A complexidade do universo social brasileiro aparece quando se tenta mapear a
produção cultural brasileira e quando se procura visualizar as tendências ideológicas, políticas e intelectuais que têm marcado o pensamento social do País.
Em relação à produção historiográfica mais recente, vale considerar que, a despeito da
violenta repressão cultural imposta pela ditadura militar ao longo dos anos 60 e, especialmente, durante a primeira metade dos anos 70, esta década irrompeu trazendo uma grande expansão dos estudos históricos, das pesquisas e publicações de livros, artigos e revistas impulsionada pela criação de inúmeros cursos de pós-graduação no País, pelo próprio crescimento do mercado editorial e, não menos, pela intensa pressão da resistência política organizada, formal ou informalmente. Novos grupos sociais, étnicos e sexuais passaram a participar da vida pública, trazendo suas questões e reivindicações e, ao mesmo tempo, ampliando as formas culturais e estéticas de consumo. As mulheres entraram agressivamente no mercado, participando de cursos nas universidades, nas escolas e em outras instituições, enquanto o movimento feminista levou grande número às praças públicas, exigindo novos direitos sociais e sexuais.
Os negros também colocaram suas demandas na agência pública, enquanto o
movimento operário se reorganizava nos grandes centros industriais e propunha a criação de um importante partido político de massas; os jovens, entre os quais muitos estudantes, passaram a compor um continente político expressivo. De modo geral, a produção acadêmica procura acompanhar e atualizar-se com os
desenvolvimentos teóricos e temáticos que se produzem no exterior, em especial,
na França, Inglaterra, Itália e nos Estados Unidos, de onde vêm nossas principais referências teóricas, metodológicas e temáticas. Contudo, também fica clara a importância de trabalhar as especificidades locais das experiências históricas tal qual se constituem o País. A explosão de uma expressiva produção historiográfica brasileira ocorre,
ainda num momento em que se tornam visíveis os sinais de esgotamento
do marxismo como modelo privilegiado de interpretação do passado. Das primeiras análises marxistas que procuram definir, inicialmente de maneira bastante mecanicista, posteriormente de modo mais sofisticado, as estruturas socioeconômicas e os modos de produção existentes no País passou-se, nos anos 70, a discutir o universo mental e as ideologias presentes nas análises históricas da “realidade brasileira”. Este ensaio expõe os fundamentos ideológicos em que se apoia boa parte das interpretações do Brasil, identificando como um de seus alicerces a visão senhorial da sociedade, que celebra a conciliação, a "cordialidade" e o caráter pretensamente incruento de nossa história. Enquanto desvela o ideário conservador, à direita e à esquerda, o autor analisa as vertentes de constituição de um pensamento verdadeiramente crítico, partindo de Mário de Andrade e Caio Prado Jr. até chegar a textos exemplares de Florestan Fernandes, Antônio Candido, Raymundo Faoro, Ferreira Gullar e Roberto Schwarz. Assim, oferece ao mesmo tempo uma excelente introdução à história do pensamento brasileiro no século XX e uma visão contundente das ideologias que encobrem as lutas sociais e têm contribuído para perpetuar as enormes desigualdades do país. Novais é declarado discípulo de Caio Prado Júnior, e como este, segue o modelo de historiografia marxista. Em sua pesquisa de doutorado publicada em 1978, considera que o que justifica o nascimento e o funcionamento do sistema colonial é o acúmulo primitivo de capital através do comércio dos produtos agrícolas coloniais e da venda para as Colônias dos produtos manufaturados da Metrópole, sendo que este sistema entre em crise com o surgimento de novas tecnologias da Revolução Industrial, passando do que Marx chama de Capitalismo Comercial para o Capitalismo Industrial. Essa obra questiona a historiografia sobre a Revolução de 1930. Resgata a memória dos vencidos, do proletariado brasileiro, das propostas revolucionárias esquecidas dos anos 1920. Mesmo que localizado num campo historiográfico de inspiração gramsciana, o estudo aponta para os posteriores desdobramentos conceituais realizados em nossa historiografia, a partir da incorporação da análise arqueo-genealógica do discurso proposto por Foucault e Walter Benjamin. Grandes mudanças ocorreram na produção historiográfica brasileira a partir dos anos de 1980, quando Thompson publicou obras que traziam não só um novo conceito de classes sociais, mas toda uma ênfase nos aspectos culturais e subjetivos antes ignorados. Ao lado de outros conhecidos historiadores marxistas reunidos em torno das propostas da Social History anglo-americana, o historiador inglês reforça a ruptura com a produção marxista anterior e realiza uma instigante renovação conceitual no interior deste campo epistemológico: num primeiro momento, ao denunciar o estruturalismo da produção marxista anterior, predominante nos anos 60 e 70, em que os sujeitos quase não aparecem, ou aparecem apenas determinados, sem ação, inertes e sem rosto, definidos por sua inserção na infraestrutura socioeconômica. Reivindicando a presença ativa dos sujeitos políticos, a ação social e a interferência criativa dos agentes históricos, o historiador inglês afirma que “as classes se fazem tanto quanto são feitas” e, por seu lado, contribui para a crítica do sujeito universal, tal qual é construída pela produção historiográfica. A obra foi publicada inicialmente na década de 60 e foi traduzido na década de 80 para o público brasileiro, logrando um grande sucesso na academia. A revolução thompsoniana se faz sentir na maneira pela qual o historiador inglês propõe uma inversão na leitura dos processos históricos, a exemplo da Revolução Industrial, vista com efeito mas do que um ponto de partida. Cornelius Castoriádisfoi um filósofo, economista e psicanalista francês, de origem grega, defensor do conceito de autonomia política, fazendo crítica da burocracia de Estado, aponta para os limites do conceito de ideologia e propõe o de imaginário social. Em 1949, fundou, com Claude Lefort, o grupo Socialismo ou Barbárie, que deu origem à revista homônima, que circulou 1967. Outras obras: Encruzilhadas do Labirinto, Socialismo ou Barbárie. De modo geral, esses trabalhos analisam a condição operária no cotidiano da vida social, dentro e fora dos muros da fábrica, percebendo os mecanismos de controle e disciplinarização dos trabalhadores, que se difundem nas primeiras décadas do século, num momento de intensa industrialização e urbanização das cidades. Contudo, enquanto os estudos de Boris Fausto (Trabalho urbano e conflito industrial) e Francisco Hardman (Nem pátria, nem patrão), atentam para as tendências políticas que dominam o movimento operário, como os anarquistas, socialistas e posteriormente os comunistas, destacando sua importância na formação da classe operária no país, os estudos de Chalhoub e Decca buscam os trabalhadores fora do campo da militância, dando maior ênfase às formas cotidianas da vida social. Desafiando a tradição de uma história do movimento operário escrita por intelectuais e lideranças ligadas ao Partido Comunista, Margareth Rago traz à cena a militância anarquista, que até então havia sido desqualificada, atirada para o lugar de momento romântico, inconsciente e inconsequente. Apoiado em rigorosa pesquisa e em fontes, em grande medida ainda inéditas, o livro esclarece que o anarquismo foi fundamental para a formação da classe operária brasileira e para a elaboração de uma cultura operária, própria e distinta daquela encarnada por seus patrões. Além disso, a autora rompe com a versão masculina e masculinizante da história da classe e do movimento operário. Ressalta a importância da presença feminina na nascente classe operária brasileira, dos fins do século XIX aos anos trinta do século XX, e o papel que o discurso anarquista exerceu ao instaurar os primeiros questionamentos das hierarquias entre os gêneros, e ao afirmar o direito feminino ao trabalho fora do lar. Este e um estudo sobre o cotidiano operário fora dos locais de trabalho na cidade de São Paulo, que, nas décadas de vinte e trinta um dos centros industriais mais importantes do pais, torna-se um dos centros industriais mais importantes do país. Pretende contribuir para o conhecimento das condições concretas de existência dos trabalhadores fora da esfera da produção num período e local determinados. Por outro lado, busca apreender como a vida operária em vários de seus aspectos se constituiu a partir da pratica de diferentes agentes históricos e grupos sociais,s na capital do Estado. Desde o aparecimento do operariado como força social importante em são Paulo, nos findo século XIX, sua presença fora dos ambientes de trabalho foi objeto de preocupação crescente no interior de uma sociedade onde a ordem urbano industrial se acentuava. Empenhos repressivos ou mais persuasivos dos setores dominantes em relação ao viver operário sempre se alternaram desde as primeiras décadas do crescimento industrial. e urbano da cidade. Trabalho, Lar e Botequim tenta reconstruir o cotidiano da classe trabalhadora carioca, no início do século XX. Uma época em que o Rio de Janeiro passava por um período de transformação econômica, pois saía do sistema escravocrata e entrava na ordem capitalista; mas foi uma época em que também passava por mudanças estruturais, como a reforma urbana instaurada pelo governo de Pereira Passos. Através de 140 processos criminais de homicídios, jornais da época, livros de literatura e outros trabalhos já realizados sobre este assunto, Chalhoub mergulha nos aspectos mais íntimos da vida desses indivíduos. O livro retrata as camadas populares e o seu cotidiano. Eles são nomeados, não são considerados apenas como um massa de manobra. Cada um tem sua história que vai sendo recriada por Chalhoub. A Era Pereira Passos que serve de pano de fundo para a história, é de uma contradição imensa. Tentava-se de diversas maneiras transformar o Rio de Janeiro em uma cidade moderna, um exemplo para todo o país de civilização e progresso. Mas, ao mesmo tempo em que essas mudanças trouxeram euforia para uns, trouxeram enormes tristezas para outros, principalmente, a classe mais humilde da sociedade. Tomando como ponto de partida a cidade do Rio de Janeiro e a demolição de seus cortiços, passando pelas polêmicas entre infeccionistas e contagionistas em torno da transmissão da febre amarela e pela resistência das comunidades negras à vacina antivariólica, Sidney Chaloub escreveu uma "história na encruzilhada de muitas histórias".De forma apaixonante e extremamente bem-humorada, Cidade febril reinterpreta esses e outros conflitos à luz da história social. O resultado é uma obra riquíssima, que mapeia a formação das políticas de saúde pública no Brasil, as quais, longe de se limitarem ao século XIX, até hoje influem em nosso cotidiano com força assustadora. históricos, Progressivamente, outros sujeitos sociais foram incluídos nos estudos eliminando-se a hierarquia dos temas e as problematizações privilegiadas. Mulheres, negros, escravos, homossexuais, prisioneiros, loucos e crianças constituíram uma ampla gama de excluídos, que reclamaram seu lugar na história. Nesse contexto, outra importante fonte de renovação veio da redescoberta da Escola dos Annales, obscurecida pela produção marxista desde o final dos anos 60, e da Nova História, que encanta com seus novos temas e abordagens, sobretudo ao longo dos anos 80. Dos instintos aos sentimentos, do medo ao amor, do cheiro às lágrimas, entre a mentalidade e a sensibilidade, pensadas nas múltiplas temporalidades existentes na “longa duração”, os novos temas revelam um vasto campo de pesquisas inexploradas. Ao contrário das mudanças revolucionárias, da ansiosa busca marxista da luta de classes e da Revolução, passa-se paulatinamente a olhar para as permanências estruturais, para as continuidades existentes ao longo dos processos temporais, o que ajuda, em certa medida, a explicar as falências das propostas formadoras. Duvida-se crescentemente da possibilidade de um conhecimento objetivo, enquanto a dimensão subjetiva e o campo simbólico passam a ser avidamente interrogados. Embora os próprios temas e conceitos com que operavam os pesquisadores de filiação marxista tenham sofrido uma grande renovação, a abertura dos historiadores para os novos temas, objetos e atores que pressionam pelo “direito à história”, resulta em importantes deslocamentos teóricos e impõe a busca de novos conceitos e formas de pensamento que deem conta de pensar diferentemente o campo histórico. Nesse movimento, percebe-se que vários temas pesquisados – como a história do cotidiano, dos sentimentos e dos afetos, da criança e da família, da prisão e de outras instituições, do corpo e da sexualidade – não são totalmente novos, no entanto, passam a ser renovados através das questões colocadas e das novas interpretações a que são submetidos. Nesse momento, nos damos conta de que o historiador trabalha primeiramente com a produção dos discursos, com interpretações, com máscaras sobre máscaras e que a busca da objetividade e de uma suposta essência natural é mais uma ilusão antropológica. Não mais fatos, não mais os objetos e os sujeitos no ponto de partida, mas os discursos e as práticas instituintes produtoras de real, como afirma Paul Veyne. Não apenas a história da razão, mas a da loucura, não apenas a história social dos prisioneiros, mas as formas pelas quais a prisão emerge como forma punitiva considerada verdadeira, necessárias e universal; não a história da sexualidade ao longo da história, mas a de uma problemática relação com o sexo, marcada pela emergência de um “dispositivo da sexualidade” no mundo vitoriano, regulando e normatizando os indivíduos e seus comportamentos: não objetos prontos e acabados evoluindo ao longo da história do progresso e da razão nas práticas discursivas e não-discursivas constituidoras e instituístes. Esta obra é um estudo sobre o hospício Juquery e a psiquiatria paulista do final do século XIX até a década de 1930. A autora estabelece as relações com a problemática urbana, percebendo as práticas psiquiátricas concretas e cotidianas no âmago da relação asilar, enquanto instrumento disciplinante. Possuí doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1986). Atualmente é professora associada (aposentada) da Universidade Estadual de Campinas, onde mantém atividades de Pesquisa em História Social da Cultura. Sua área de pesquisa abrange temas relacionados à história social da cultura, especialmente manifestações coletivas como o carnaval ou as rodas de samba no Rio de Janeiro no início do século XX. Sua experiência inclui ainda um amplo elenco de temas relativos ao período, particularmente aqueles relacionados com a emergência de saberes e práticas disciplinares no início da República. A imprensa diária, o relato de viajantes e memorialistas, a literatura e os registros policiais são as principais fontes pesquisadas por Maria Clementina Pereira Cunha para mostrar como era o Carnaval do Rio de Janeiro no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Com o auxílio de um rico conjunto de ilustrações, a autora apresenta todos os que brincavam nas ruas daquele tempo - agremiações como os Tenentes do Diabo e os Pés Espalhados, grupos de mascarados e zé- pereiras, foliões de primeira classe e intelectuais patriotas, o zé-povinho, os negros dos bairros populares da cidade. A autora fala também das lutas pela abolição, dos sonhos de monarquistas e republicanos, das expectativas dos negros da Cidade Nova, do racismo e das propostas para civilizar o país. Revelando o que havia de sério no riso, 'Ecos da folia' permite compreender melhor o longo processo de exclusão social que formou o Brasil. No final do século XIX e início do XX, cabia à medicina social um lugar de destaque na tarefa de organizar o “caos urbano”, do qual a prostituição fazia parte. Meretrizes e doutores é um estudo sobre os textos médicos produzidos no Rio de Janeiro entre 1840 e 1980, revelando a implícita necessidade de se enquadrar em padrões burgueses os comportamentos sociais, afetivos e sexuais dos indivíduos que habitavam a cidade. Esta transformação do corpo, do desejo e do prazer em objetivos, marcou o início da constituição de uma ciência sexual, que hoje se encarrega de impor os controvertidos limites da sexualidade sadia. Para além da medicalização das sexualidades insubmissas e do controle sobre o corpo feminino, trata-se, nesta perspectiva, de explorar as formas alternativas de sociabilidade e de subjetivação vivenciadas na experiência do desejo, num momento de intensa modernização da cidade. A invenção do Nordeste e outras artes, apresenta o nascimento dessa importante região brasileira, como configuração discursiva e política, associada à questão da seca, tal como foi formulada pelas elites regionais. Para além dos estudos sobre as relações de poder constitutivas instauradores dos parâmetros geográficos, históricos e regionais que difundem e cristalizam, no País, a imagem do Nordeste como lugar do atraso rural, do calor abafado e da violência. A entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho e a crescente pressão do movimento feminista afetam profundamente os estudos históricos também no Brasil. Contudo, a visibilidade que ganham as mulheres como agentes históricos, a partir dos anos 70, com o trabalho de Heleicth Saffioti, Mito e realidade: a mulheres na sociedade de classes, ocorre inicialmente a partir do padrão masculino da história social, extremamente preocupada com a denuncia das formas da exploração capitalista. Em outros termos, isto significa dizer que houve uma acentuada preocupação em criticar as formas de opressão patronal sobre os trabalhadores, o que resultou em grande parte no reforço da vitimização da mulher. No livro “Quotidiano e Poder” Maria Odila Leite da Silva Dias, busca um novo enfoque para entender a sociedade paulista do século XIX. Demonstrando assim que há muitas histórias nas entrelinhas da história oficial, a qual tende a revelar e perpetuar a versão dos vencedores. O seu objeto de estudo “os papéis sociais das mulheres” revela minúcias muitas vezes despercebidas pelos historiadores do período, que aspiram abarcar o todo e tendem inevitavelmente para as generalizações, repetindo as “verdades prescritas” sem procurar de fato entender a enorme diversidade dos acontecimentos. “Quotidiano e poder” faz parte de um grupo de trabalhos que enxergam a história como uma construção de vários sujeitos. Ao lê-lo percebemos como essas mulheres estavam presente ativamente no cotidiano dessa sociedade, apreendemos suas vidas, suas artimanhas, seu labor, suas dificuldades diárias, seu respeito ou rechaço as convenções. Esse quadro da participação das mulheres ampliou-se consideravelmente com a explosão dos temas femininos da Nouvelle Histoire, como bruxaria, prostituição, loucura, aborto parto, maternidade, saúde, sexualidade, a história das emoções e dos sentimentos. Referenciada pela história das mentalidades, Laura de Melo e Souza escreveu O diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade popular no Brasil, no qual analisa os casos de feitiçaria condenados pela Inquisição no Brasil colonial. Ronaldo Vainfas, em Trópicos dos pecados: Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil, tematiza brilhantemente a história da sexualidade brasileira, mostrando a perseguição da Inquisição às práticas sexuais consideradas condenáveis, enquanto Lígia Bellini, em A coisa obscura: Mulher, sodomia e Inquisição no Brasil Colonial, privilegia as práticas sexuais das mulheres como alvo de investimento do poder religioso. Este é um dos primeiros estudos realizados no Brasil sobre a feitiçaria nos tempos coloniais. É também um dos primeiros livros editados no Brasil que discute a corrente da história das mentalidades e do imaginário (1986). Uma verdadeira arqueologia da religiosidade popular, com base em cronistas da época, devassas eclesiásticas e processos da Inquisição, em uma linguagem que mostra rigor literário e científico. Por meio da nossa herança cultural européia, indígena e africana, aqui são rastreadas antigas práticas e personagens que, ainda hoje, integram nossa crença e frequentam nossos terreiros A chegada dos europeus à América no século XV representou muito mais do que o estabelecimento de relações econômicas e políticas entre os dois continentes. Em 'Inferno Atlântico', terceiro livro de Laura de Mello e Souza, a historiadora paulista faz uma análise instigante das transformações que os dois povos sofreram no plano religioso a partir do choque provocado pelo contato entre aquelas culturas, até então (e, em muitos aspectos, ainda hoje) tão distintas. A autora divide esta obra em duas partes. A primeira procura inserir o contraste das crenças religiosas no quadro do sistema colonial e das mudanças por que passava a Europa no século XVI. Buscando sempre focalizar as relações luso-brasileiras entre os séculos XVI e XVIII, a autora evidencia na segunda parte do livro a importância cotidiana das concepções demonológicas. Presença constante no Brasil entre os séculos XVI e XVIII, o Santo Ofício procurou controlar o cotidiano da Colônia, impondo aos seus habitantes as normas da vida cristã. É nesse universo repleto de conflitos e desejos que Ronaldo Vainfas mergulha à procura das moralidades coloniais, resgatando histórias de homens e mulheres, considerados pecadores desviantes da moral ortodoxa que viveram seu calvário nas malhas da Inquisição. Temas do cotidiano de nossos antepassados, como concubinato, homossexualidade masculina e feminina, bigamia, são discutidos tanto no âmbito teológico e jurídico, como em sua prática dentro das alcovas. Ao longo do século XVI os colonizadores europeus se horrorizaram com um fenômeno religioso entre os tupis, a que chamaram "santidade". Nela, em meio a danças, transes, cânticos e à fumaça inebriante do tabaco, os índios renovavam a peregrinação à Terra sem Mal - lugar mítico da felicidade eterna que buscavam no mundo terreno. Vasculhando documentação inquisitorial inédita sobre o culto indígena na fazenda de Jaguaripe (Bahia), Ronaldo Vainfas descobre na santidade uma idolatria insurgente, culturalmente híbrida, que ao mesmo tempo negava e incorporava valores da dominação colonial. Por meio de um texto apaixonado e instigante, o autor lança luz sobre uma nova e reveladora faceta da conquista da América portuguesa. A obra é uma analise de documentos e registros das confissões e denúncias de casos de mulheres sodomitas e feiticeiras, feitos pela Inquisição portuguesa por ocasião das visitações ao Brasil. Ligia Bellini, foca nos registros de relações afetivas e sexuais entre mulheres que viveram no Nordeste brasileiro, no final do século XVI e procura compreender e informar sobre as concepções e conhecimentos existentes, no período em questão, a respeito da anatomia e fisiologia e os modos como podiam transgredir os corpos femininos. Maria Izilda Matos e Fernando Faria estudaram as composições musicais de Lupicínio Rodrigues a partir da categoria do gênero, descortinando as formas de construção cultural das referências identitárias da feminilidade e da masculinidade, nas décadas de 1940 e 1950, dominantes até recentemente. A partir da análise das letras de músicas produzidas pelo famoso compositor gaúcho, podem ser visualizadas não apenas as experiências femininas, mas também “seu universo de relações com o mundo masculino”, numa proposta bastante enriquecedora e inovadora. Dos Os historiadores abrem, ainda, as portas das cidades para suas pesquisas. estranhamento provocado pelo surgimento das grandes metrópoles europeias, representadas a partir da metáfora do monstro, nos inícios do século XIX, passa-se a discutir os debates em torno das formas de espacialização e planejamento urbano. Iniciando-se pelos estudos que problematizam o nascimento da “questão urbana” na Europa, novos estudos descobrem as cidades brasileiras, seja a partir da noção de disciplinarização de Foucault, seja a partir da análise da constituição da sensibilidade moderna, apresentada por Benjamin, ao visitar a Paris de Baudelaire. A arquitetura física é politizada como “arquitetura da vigilância”, ao mesmo tempo em que se registra a emergência da sensibilidade moderna, atenta para os novos códigos de sociabilidade que se constituem nas grandes cidades. Foram vários os estudos que centraram sua atenção nos fenômenos da urbanização em São Paulo, no Rio de Janeiro e em muitas outras cidades do País, entre Porto Alegre, Recife e Belém do Pará. Quase todos esses trabalhos privilegiaram as primeiras décadas do século, momento de intensa modernização e urbanização das cidades, de investimento industrial e de fomento da imigração europeia, especialmente no Centro-Sul e Região Sudeste. Os passeios, as modas, os novos perfis urbanos, as novas tecnologias, as soluções urbanísticas, a vida do submundo, a saúde pública e as questões da higiene compuseram um amplo leque de possibilidades temáticas. Orfeu, herói da mitologia grega, era louvado como o celebrante da música, da exaltação e do êxtase coletivo. Neste estudo sobre o impacto das novas tecnologias nos processos de metropolização, Nicolau Sevcenko usa as imagens dos rituais órficos como um emblema. O cenário é a cidade de São Paulo nos anos 20, quando passava pelo boom de crescimento e urbanização que a transformaria numa metrópole moderna. O frêmito das tecnologias mecânicas de aceleração se transpõe para os corpos e as mentes por meio de celebrações físicas, cívicas e míticas no espaço público. O pano de fundo: a Primeira Guerra, as tensões revolucionárias, a explosão da Arte Moderna e o delírio frenético do jazz. Os personagens: a população de um experimento social em escala gigantesca, na busca de uma identidade utópica. Euclides da Cunha e Lima Barreto são os escritores que Nicolau Sevcenko elege como referência para traçar um panorama dos cruzamentos entre história, ciência e cultura no Brasil da passagem do século XIX ao XX, momento que marcou a entrada do país na modernidade, após a Abolição e o advento da República. Num período - a Belle Époque - de negação do passado escravista e de forte espírito cosmopolita, os dois autores vislumbravam na literatura um projeto de país que levasse em conta as contradições históricas brasileiras. Sevcenko mostra que a permanência das obras de Euclides e Lima se deve a esse sentimento de missão - animado por um impulso utilitário de atuação pública -, assim como à inventividade da linguagem que desenvolveram. A reedição atualizada de Literatura como missão, publicado pela primeira vez em 1983, traz um posfácio inédito em que o autor aponta para a contribuição decisiva de escritores, principalmente Machado de Assis, que, ao lado de Euclides da Cunha e Lima Barreto, também traduziram o desacordo entre o conservadorismo do pensamento dominante e a lucidez visionária da literatura. A amplamente discutida crise dos paradigmas explicativos da realidade deste fim de século colocou em evidência a assim chamada "nova história cultural", que possui um vasto campo de aplicação nos estudos relacionados às representações sociais da cidade. Ao se compreender o fenômeno urbano como uma acumulação de bens culturais, o livro busca desenvolver estratégias metodológicas e teóricas que nos permitam uma "leitura da cidade" , desse modo alcançando o "real" através do sistema historicamente construído de idéias e imagens da representação coletiva que chamamos "imaginário". A construção de uma forma de acesso ao urbano através da visão literária que nos mostra como idéias e imagens são reapropriadas em tempos e espaços diferentes. De Paris a Porto Alegre, passando pelo Rio de Janeiro, as especificidades do local se articulam com a ressemantização do mito da modernidade urbana. O livro recupera imagens urbanas e paisagens sonoras, personagens da urbe e suas experiências cotidianas, a cidade do dia – do trabalho e as vivências boêmias, cautelosamente desvendando a teia de relações, representações, tensões e disputas envolvidas nestes processos. Assim, reconstrói rastros deixados pelos imigrantes e migrantes, recuperando múltiplas possibilidades, territórios, sonoridades, entoações, sonhos e sensibilidades ocultados no passado. Neste desafio, o livro privilegia a trajetória e as canções de Adoniran Barbosa, procurando os vínculos do artista com as transformações e as tensões no cotidiano urbano, restaurando emoções e sensibilidades presentes nas letras e nas entrelinhas das composições deste que é reconhecido como “a voz da cidade”. A determinação cultural dos agentes e das práticas sociais, para além da econômica e política, revela-se na leitura que os historiadores passam a fazer das subjetividades, do imaginário e do campo simbólico. Roger Chartier (1988) sistematiza as inovações trazidas por uma produção historiográfica que assume sua ruptura com a crença no real e no social. Para além da construção cultural de nossas referências, enfatiza as práticas de leitura e apropriação da cultura, desancando os complexos movimentos da circularização das ideias. Se a História Cultural é chamada de Nova História Cultural é porque está dando a ver uma nova forma de a História trabalhar a cultura. Não se trata de fazer uma História do Pensamento ou de uma História Intelectual, ou ainda mesmo de pensar uma História da Cultura nos velhos moldes, a estudar as grandes correntes de idéias e seus nomes mais expressivos. Trata-se, antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. A cultura é ainda uma forma de expressão e tradução da realidade que e faz de forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ações e aos atores ociais se apresentam de forma cifrada, portanto, já um significado e uma apreciação valorativa. No Brasil, o “brasilianista” Jeffrey Needell analisa a vida cultural das elites cariocas em Belle Époque Tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Inovador quanto à temática, o livro desvenda as formas de sociabilidade, lazer e consumo de homens e mulheres das classes dominantes no século passado, dando especial ênfase à circulação das ideias, às reuniões literárias e a outras formas de produção e consumo cultural. O historiador Alcir Lenharo, por sua vez, parte, em sua última obra, em busca das sociabilidades nômades nas noites boêmias do Rio de Janeiro, entre os anos 40 e 50, onde se reuniam cantores, músicos, artistas, intelectuais e políticos. Cantores do Rádio: A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico de seu tempo, apresenta a história do rádio brasileiro a partir da biografia desses dois grandes cantores, notáveis não só pelo sucesso de seu trabalho, mas pela militância política de esquerda. Algumas tendências destacam-se: a busca de uma releitura dos historiadores clássicos, tendo em vista desconstruir seu discurso, e não aprender a “realidade” que supostamente descrevem. Hoje lemos Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado Júnior, considerado os “inventores do Brasil”, nos anos 30, menos para conhecer o passado do que para entender como foi interpretado. Como se lia; que verdades foram produzidas a respeito de nossa identidade; como se escreveu a história da Nação; que mitos foram engendrados; que atores foram suprimidos; que verdades foram inventadas, a partir de determinados jogos de poder, e não revelados como essências são algumas das perguntas correntes. A obra traz à tona a real participação dos Estados Unidos durante a ditadura militar no Brasil. Carlos Fico aponta o general brasileiro que era o contato entre o então futuro presidente Castelo Branco e o governo de Washington para a entrega de armas, munições e combustível durante o golpe de 64. O grande irmão relata episódios sombrios, lances de suborno e traz revelações chocantes como a instalação de equipamento de detecção de explosões nucleares, sem o conhecimento do governo brasileiro, em base militar operada pelos EUA secretamente no Brasil. A incorporação da subjetividade, como dimensão a ser historicizada e incorporada pelo pesquisador, resulta de uma profunda desconfiança na existência de uma realidade organizada, exterior, pronta para ser definitivamente decifrada. Trata-se agora de tematizar a mediação estabelecida entre o historiador e seu objeto, distinguindo ainda as formas de representação dos atores sociais e as do próprio estudioso. Nesta direção, mas do que a inclusão dos oprimidos na grande narrativa, processa-se um deslocamento epistemológico, a busca de novas linguagens e figuras que dêem conta de captar as diferenças. Quebra-se a lógica da identidade, a figura do sujeito universal, as categorias abstratas e universalizantes que contavam a história dos dominantes como se fora de todo um povo. Ao mesmo tempo, buscam-se novas formas narrativas, já que conteúdo e forma passam a adquirir status e relevo do mesmo nível.