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Presidente da República

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Ministro da Educação
FERNANDO HADDAD

Secretário-Executivo
JOSÉ HENRIQUE PAIM FERNANDES

Secretário de Educação Básica


FRANCISCO DAS CHAGAS FERNANDES
ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS
ORIENTAÇÕES PARA A INCLUSÃO DA CRIANÇA
DE SEIS ANOS DE IDADE

Brasília
2006
Diretora de Políticas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental
JEANETE BEAUCHAMP

Coordenadora Geral do Ensino Fundamental


SANDRA DENISE PAGEL

Organização do Documento
Jeanete Beauchamp
Sandra Denise Pagel
Aricélia Ribeiro do Nascimento

Projeto Gráfico e Diagramação


Estação Gráfica

Impresso no Brasil
APRESENTAÇÃO

ste governo, ao reafirmar a urgência da construção de uma escola inclusiva, cidadã, solidá

E ria e de qualidade social para todas as crianças, adolescentes e jovens brasileiros, assume,
cada vez mais, o compromisso com a implementação de políticas indutoras de transforma-
ções significativas na estrutura da escola, na reorganização dos tempos e dos espaços escolares, nas
formas de ensinar, aprender, avaliar, organizar e desenvolver o currículo, e trabalhar com o co-
nhecimento, respeitando as singularidades do desenvolvimento humano.
O Ministério da Educação vem envidando efetivos esforços na ampliação do ensino fundamental
para nove anos de duração, considerando a crescente universalização dessa etapa de ensino de
oito anos de duração e, ainda, a necessidade de o Brasil aumentar o número de anos do ensino
obrigatório. Essa relevância é constatada, também, ao se analisar a legislação educacional brasilei-
ra: a Lei no 4.024/1961 estabeleceu quatro anos de escolaridade obrigatória; com o Acordo de
Punta Del Este e Santiago, de 1970, estendeu-se para seis anos o tempo do ensino obrigatório; a
Lei no 5.692/1971 determinou a extensão da obrigatoriedade para oito anos; já a Lei no 9.394/
1996 sinalizou para um ensino obrigatório de nove anos de duração, a iniciar-se aos seis anos de
idade, o que, por sua vez, tornou-se meta da educação nacional pela Lei no 10.172/2001, que
aprovou o Plano Nacional de Educação. Finalmente, em 6 de fevereiro de 2006, a Lei no 11.274,
institui o ensino fundamental de nove anos de duração com a inclusão das crianças de seis anos de
idade.
Com a aprovação da Lei no 11.274/2006, mais crianças serão incluídas no sistema educacional
brasileiro, especialmente aquelas pertencentes aos setores populares, uma vez que as crianças de
seis anos de idade das classes média e alta já se encontram, majoritariamente, incorporadas ao
sistema de ensino – na pré-escola ou na primeira série do ensino fundamental.
A importância dessa decisão política relaciona-se, também, ao fato de recentes pesquisas mostra-
rem que 81,7% das crianças de seis anos estão na escola, sendo que 38,9% freqüentam a educação
infantil, 13,6% pertencem às classes de alfabetização e 29,6% estão no ensino fundamental (IBGE,
Censo Demográfico 2000).
Outro fator importante para a inclusão das crianças de seis anos na instituição escolar deve-se aos
resultados de estudos demonstrarem que, quando as crianças ingressam na instituição escolar an-
tes dos sete anos de idade, apresentam, em sua maioria, resultados superiores em relação àquelas que
ingressam somente aos sete anos. A exemplo desses estudos, podemos citar o Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2003. Tal sistema demonstra que crianças com histórico de
experiência na pré-escola obtiveram maiores médias de proficiência em leitura: vinte pontos a
mais nos resultados dos testes de leitura.
Para que o ensino fundamental de nove anos seja assumido como direito público subjetivo e,
portanto, objeto de recenseamento e chamada escolar pública (LDB 9.394/1996 Art. 5º), é fun-
damental, nesse momento de sua implantação, considerar a organização federativa e o regime de
colaboração entre os sistemas de ensino estaduais, municipais e do Distrito Federal. Deve-se ob-
servar, também, o que estabelece a Resolução CNE/CEB no 3/2005, de 3 de agosto de 2005, que
fixa, como condição para a matrícula de crianças de seis anos de idade no ensino fundamental,
que essas, obrigatoriamente, tenham seis anos completos ou a completar no início do ano letivo
em curso.
Ressalte-se que o ingresso da criança de seis anos no ensino fundamental não pode constituir uma
medida meramente administrativa. É preciso atenção ao processo de desenvolvimento e aprendi-
zagem das crianças, o que implica conhecimento e respeito às suas características etárias, sociais,
psicológicas, e cognitivas.
Nesse sentido, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Básica (SEB) e do
Departamento de Políticas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental (DPE), buscando
fortalecer um processo de debate com professores e gestores sobre a infância na educação básica,
elaborou este documento, cujos focos são o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças de
seis anos de idade ingressantes no ensino fundamental de nove anos, sem perder de vista a
abrangência da infância de seis a dez anos de idade nessa etapa de ensino.
Finalmente, informamos que este documento compõe-se de nove capítulos: A infância e sua singu-
laridade; A infância na escola e na vida: uma relação fundamental; O brincar como um modo de ser e
estar no mundo; As diversas expressões e o desenvolvimento da criança na escola; As crianças de seis
anos e as áreas do conhecimento; Letramento e alfabetização: pensando a prática pedagógica; A organi-
zação do trabalho pedagógico: alfabetização e letramento como eixos organizadores; Avaliação e apren-
dizagem na escola: a prática pedagógica como eixo da reflexão; e Modalidades organizativas do trabalho
pedagógico: uma possibilidade.

Fernando Haddad
Ministro da Educação

Francisco das Chagas Fernandes


Secretário da Educação Básica
SUMÁRIO

17 A infância e sua singularidade


Sonia Kramer

31 A infância na escola e na vida: uma relação fundamental


Anelise Monteiro do Nascimento

41 O brincar como um modo de ser e estar no mundo


Angela Meyer Borba

57 As diversas expressões e o desenvolvimento da criança na escola


Angela Meyer Borba e Cecília Goulart

69 As crianças de seis anos e as áreas do conhecimento


Patrícia Corsino

83 Letramento e alfabetização: pensando a prática pedagógica


Telma Ferraz Leal, Eliana Borges Correia de Albuquerque, Artur Gomes
de Morais

90 A organização do trabalho pedagógico: alfabetização e letramento


como eixos orientadores
Cecília Goulart

101 Avaliação e aprendizagem na escola: a prática pedagógica


como eixo da reflexão
Telma Ferraz Leal, Artur Gomes de Morais, Eliana Borges Correia de
Albuquerque

129 Modalidades organizativas do trabalho pedagógico: uma possibilidade


Alfredina Nery
8
INTRODUÇÃO

implantação de uma política de ampliação do ensino fundamental de oito para nove

A anos de duração exige tratamento político, administrativo e pedagógico, uma vez que o
objetivo de um maior número de anos no ensino obrigatório é assegurar a todas as crianças
um tempo mais longo de convívio escolar com maiores oportunidades de aprendizagem.

Ressalte-se que a aprendizagem não depende apenas do aumento do tempo de permanência na


escola, mas também do emprego mais eficaz desse tempo: a associação de ambos pode contribuir
significativamente para que os estudantes aprendam mais e de maneira mais prazerosa.

Para a legitimidade e a efetividade dessa política educacional, são necessárias ações formativas da
opinião pública, condições pedagógicas, administrativas, financeiras, materiais e de recursos
humanos, bem como acompanhamento e avaliação, em todos os níveis da gestão educacional.

Nesse sentido, elaboramos este documento Ensino Fundamental de Nove Anos: orientações para a
inclusão das crianças de seis anos de idade, uma vez que a implementação dessa política requer
orientações pedagógicas que respeitem as crianças como sujeitos da aprendizagem.

Em se tratando dos aspectos administrativos, vale esclarecer que a organização federativa garante
que cada sistema de ensino é competente e livre para construir, com a respectiva comunidade
escolar, seu plano de ampliação do ensino fundamental, como também é responsável por
desenvolver estudos com vistas à democratização do debate, o qual deve envolver, portanto,
todos os segmentos interessados em assegurar o padrão de qualidade do processo ensino-
aprendizagem.

Faz-se necessário, ainda, que os sistemas de ensino garantam às crianças de seis anos de idade,
ingressantes no ensino fundamental, nove anos de estudo nessa etapa da educação básica. Durante
o período de transição entre as duas estruturas, os sistemas devem administrar uma proposta
curricular, que assegure as aprendizagens necessárias ao prosseguimento, com sucesso, nos estudos
tanto às crianças de seis anos quanto às de sete anos de idade que estão ingressando em 2006, bem
como às crianças ingressantes no, até então, ensino fundamental de oito anos. 9
A ampliação do ensino fundamental demanda, ainda, providências para o atendimento das
necessidades de recursos humanos – professores, gestores e demais profissionais de educação – para
lhes assegurar, dentre outras condições, uma política de formação continuada em serviço, o direito
ao tempo para o planejamento da prática pedagógica, assim como melhorias em suas carreiras.
Além disso, os espaços educativos, os materiais didáticos, o mobiliário e os equipamentos precisam
ser repensados para atender às crianças com essa nova faixa etária no ensino fundamental, bem
como à infância que já estava nessa etapa de ensino com oito anos de duração.

Neste início do processo de ampliação do ensino fundamental, existem muitas perguntas dos
sistemas de ensino sobre o currículo para as classes das crianças de seis anos de idade, entre as quais
destacamos: o que trabalhar? Qual é o currículo? O currículo para essa faixa etária será o mesmo do
último ano da pré-escola? O conteúdo para essa criança será uma compilação dos conteúdos da
pré-escola com os da primeira série ou do primeiro ano do ensino fundamental de oito anos?

Antes de refletirmos sobre essas questões, é importante salientar que a mudança na estrutura do
ensino fundamental não deve se restringir a o que fazer exclusivamente nos primeiros anos: este é
o momento para repensar todo o ensino fundamental – tanto os cinco anos iniciais quanto os
quatro anos finais.

Quanto às perguntas anteriores, lembramos que os sistemas, neste momento, terão a oportunidade
de rever currículos, conteúdos, práticas pedagógicas não somente para o primeiro ano, mas para
todo o ensino fundamental. A criança de seis anos de idade que passa a fazer parte desse nível de
ensino não poderá ser vista como um sujeito a quem faltam conteúdos da educação infantil ou um
sujeito que será preparado, nesse primeiro ano, para os anos seguintes do ensino fundamental.
Reafirmamos que essa criança está no ensino obrigatório e, portanto, precisa ser atendida em
todos os objetivos legais e pedagógicos estabelecidos para essa etapa de ensino.

Faz-se necessário destacar, ainda, que a educação infantil não tem como propósito preparar crianças
para o ensino fundamental, essa etapa da educação básica possui objetivos próprios, os quais devem
ser alcançados a partir do respeito, do cuidado e da educação de crianças que se encontram em um
tempo singular da primeira infância. No que concerne ao ensino fundamental, as crianças de seis
anos, assim como as demais de sete a dez anos de idade, precisam de uma proposta curricular que
atenda a suas características, potencialidades e necessidades específicas.

Nesse sentido, não se trata de compilar conteúdos de duas etapas da educação básica, trata-se de
construirmos uma proposta pedagógica coerente com as especificidades da segunda infância e que
atenda, também, às necessidades de desenvolvimento da adolescência.

A ampliação do ensino fundamental para nove anos significa, também, uma possibilidade de
qualificação do ensino e da aprendizagem da alfabetização e do letramento, pois a criança terá
mais tempo para se apropriar desses conteúdos. No entanto, o ensino nesse primeiro ano ou nesses
dois primeiros anos não deverá se reduzir a essas aprendizagens. Por isso, neste documento de
10 orientações pedagógicas, reafirmamos a importância de um trabalho pedagógico que assegure o
estudo das diversas expressões e de todas as áreas do conhecimento, igualmente necessárias à
formação do estudante do ensino fundamental.

Vale lembrar que todos nós – professores, gestores e demais profissionais de apoio à docência –
temos, neste momento, uma complexa e urgente tarefa: a elaboração de diretrizes curriculares
nacionais para o ensino fundamental de nove anos. Tendo em vista essa realidade, Ministério da
Educação e Conselho Nacional de Educação (CNE) já estão trabalhando para atender a essa
nova exigência da educação básica.

Retomando as idéias iniciais deste texto, é preciso, ainda, que haja, de forma criteriosa, com base
em estudos, debates e entendimentos, a reorganização das propostas pedagógicas das secretarias de
educação e dos projetos pedagógicos das escolas, de modo que assegurem o pleno desenvolvimento
das crianças em seus aspectos físico, psicológico, intelectual, social e cognitivo, tendo em vista
alcançar os objetivos do ensino fundamental, sem restringir a aprendizagem das crianças de seis
anos de idade à exclusividade da alfabetização no primeiro ano do ensino fundamental de nove
anos, mas sim ampliando as possibilidades de aprendizagem.

Desse modo, neste documento, procuramos apresentar algumas orientações pedagógicas e


possibilidades de trabalho, a partir da reflexão e do estudo de alguns aspectos indispensáveis para
subsidiar a prática pedagógica nos anos iniciais do ensino fundamental, com especial atenção para
as crianças de seis anos de idade. A seguir, passamos a abordar alguns pontos específicos de cada
um dos textos que compõem este documento.

No primeiro texto, exploramos A infância e sua singularidade, tendo como eixo de discussão as
dimensões do desenvolvimento humano, a cultura e o conhecimento. Consideramos a infância
eixo primordial para a compreensão da nova proposta pedagógica necessária aos anos/séries iniciais
do ensino fundamental e, conseqüentemente, para a reestruturação qualitativa dessa etapa de ensino.

Logo em seguida, refletimos sobre a experiência, vivenciada por crianças, de chegar à escola pela
primeira vez, o que, sem dúvida, é um acontecimento importante na vida do ser humano. Por isso,
elegemos o tema A infância na escola e na vida: uma relação fundamental para conversarmos sobre
o sentimento de milhares de crianças que adentram, cheias de expectativas, o universo chamado
escola. Precisamos cuidar para não as frustar, pois, por muitos anos, freqüentarão esse espaço
institucional. Optamos por enfatizar a infância da criança de seis a dez anos de idade, partindo do
pressuposto de que elas trazem muitas histórias, muitos saberes, jeitos singulares de ser e estar no
mundo, formas diversas de viver a infância. Estamos convencidos de que são crianças constituídas
de culturas diferentes. Então, como as receber sem as assustar com o rótulo de "alunos do ensino
fundamental"? De que maneira é possível acolhê-las como crianças que vivem a singular experiência
da infância? Como as encantar com outros saberes, considerando que algumas estão diante de sua
primeira experiência escolar e outras já trazem boas referências da educação infantil? Essas são
algumas das reflexões propostas nesse texto.

Partindo do princípio de que o brincar é da natureza de ser criança, não poderíamos deixar de
assegurar um espaço privilegiado para o diálogo sobre tal temática. Hoje, os profissionais da docência 11
estão diante de uma boa oportunidade de revisão da proposta pedagógica e do projeto pedagógico
da escola, pois chegaram, para compor essa trajetória de nove anos de ensino e aprendizagens,
crianças de seis anos que, por sua vez, vão se encontrar com outras infâncias de sete, oito, nove e
dez anos de idade. Se assim entendermos, estaremos convencidos de que este é o momento de
recolocarmos no currículo dessa etapa da educação básica O brincar como um modo de ser e estar no
mundo; o brincar como uma das prioridades de estudo nos espaços de debates pedagógicos, nos
programas de formação continuada, nos tempos de planejamento; o brincar como uma expressão
legítima e única da infância; o lúdico como um dos princípios para a prática pedagógica; a brincadeira
nos tempos e espaços da escola e das salas de aula; a brincadeira como possibilidade para conhecer
mais as crianças e as infâncias que constituem os anos/séries iniciais do ensino fundamental de
nove anos.

Mais adiante, convidamos cada profissional de educação, responsável pelo desenvolvimento e


pela aprendizagem no ensino fundamental, para um debate sobre a importância das Diversas
expressões e o desenvolvimento da criança na escola por entendermos que, para favorecer a
aprendizagem, precisamos dialogar com o ser humano em todas as suas dimensões. Não com um
sujeito que entra livre na escola e, de maneira cruel, é limitado em suas potencialidades e reduzido
em suas possibilidades de expressão. Para tanto, a escola deve garantir tempos e espaços para o
movimento, a dança, a música, a arte, o teatro... Esse ser humano que carrega a leveza da infância
ou a inquietude da adolescência precisa vivenciar, sentir, perceber a essência de cada uma das
expressões que o torna ainda mais humano. Portanto, é necessário rever o uso dessas expressões
como pretexto para disciplinar o corpo, como, por exemplo, a utilização da música exclusivamente
para anunciar a hora do lanche, da saída, de fazer silêncio, de aprender letras, de produzir textos,
de ir ao banheiro... Sem permitir que crianças e adolescentes possam sentir a música em suas
diferentes manifestações; sem dar a esses estudantes a possibilidade de se tornarem mais sensíveis
aos sons dos cantos dos pássaros, à leveza dos sons de uma flauta, felizes ou surpresos diante do
acorde alegre ou melancólico de um violão...

Ao apresentamos, no quinto texto deste documento, a temática As crianças de seis anos e as áreas
do conhecimento, objetivamos discutir essas áreas e a relação delas entre si em uma perspectiva de
menor fragmentação dos saberes no cotidiano escolar. Estamos diante de uma tarefa complexa
que requer atitude de curiosidade científica e de reflexão, de investigação sobre o que sabemos a
respeito de cada um dos conteúdos que compõem essas áreas, de inquietude diante de fazeres
pedagógicos cristalizados. Neste texto, procuramos explorar, mesmo que de forma mínima, cada
uma dessas áreas, na perspectiva de dialogar com o(a) professor(a) sobre as inúmeras possibilidades
por elas apresentadas para o desenvolvimento curricular das crianças dos anos/séries inicias do
ensino fundamental.

Outro tema de extrema relevância nesse processo de ampliação do ensino obrigatório é a questão
da alfabetização nos anos/séries iniciais, por isso procuramos incentivar um debate sobre Letramento
e alfabetização: pensando a prática pedagógica. Assim, optamos por abordar alguns aspectos que devem
ser objeto de estudo dos professores: a importância da relação das crianças com o mundo da escrita;
a incoerência pedagógica da exclusividade da alfabetização nesse primeiro ano/série do ensino
fundamental em detrimento das demais áreas do conhecimento; a importância do investimento na
12
formação de leitores, na criação de bibliotecas e salas de leitura; e a relevância do papel do professor
como mediador de leitura. Este é um momento adequado, também, para revermos nossas concepções
e práticas de alfabetização. É urgente garantir que os estudantes tenham direito de aprender a ler e a
escrever de maneira contextualizada, assim como é essencial buscar assegurar a formação de estudantes
que lêem, escrevem, interpretam, compreendem e fazem uso social desses saberes e, por isso, têm
maiores condições de atuar como cidadãos nos tempos e espaços além da escola.

Organizar o trabalho pedagógico da escola e da sala de aula é tarefa individual e coletiva de


professores, coordenadores, orientadores, supervisores, equipes de apoio e diretores. Para tanto, é
fundamental que se sensibilizem com as especificidades, as potencialidades, os saberes, os limites,
as possibilidades das crianças e adolescentes diante do desafio de uma formação voltada para a
cidadania, a autonomia e a liberdade responsável de aprender e transformar a realidade de maneira
positiva. A forma como a escola percebe e concebe as necessidades e potencialidades de seus
estudantes reflete-se diretamente na organização do trabalho escolar. Por isso, vale ressaltar que,
como cada escola está inserida em uma realidade com características específicas, não há um único
modo de organizar as escolas e as salas de aula. Mas é necessário que tenhamos eixos norteadores
comuns. Portanto, procuramos, neste momento de ampliação do ensino fundamental para nove
anos, estar atentos para a necessidade de que aspectos estruturantes da escola precisam ser analisados
e reelaborados. Por exemplo: como o projeto pedagógico da escola assegura a flexibilização dos
tempos e dos espaços na lógica da diversidade, da pluralidade, da autonomia, da criatividade, dos
agrupamentos e reagrupamentos dos estudantes com vistas a uma efetiva aprendizagem em todas
as dimensões do currículo? Como a instituição escolar tem pensado a alfabetização e o letramento,
ao organizar e planejar tempos e espaços que assegurem aprendizagens para a formação humana?
Com o objetivo de aprofundar o estudo sobre essas e outras questões que permeiam esse tema,
elegemos A organização do trabalho pedagógico: alfabetização e letramento como eixos orientadores um
assunto relevante na reestruturação do ensino fundamental.

Compreendemos a ampliação do ensino fundamental, também, como uma oportunidade de rever


concepções e práticas de avaliação do ensino-aprendizagem, partindo do princípio de que
precisamos, na educação brasileira, de uma avaliação inclusiva. Para isso, tornam-se urgentes a
revisão e a mudança de determinadas concepções de avaliação que se traduzem e se perpetuam em
práticas discriminatórias e redutoras das possibilidades de aprender. Assim, no texto Avaliação e
aprendizagem na escola: a prática pedagógica como eixo da reflexão, tratamos da avaliação dando
ênfase à escola que assegura aprendizagem de qualidade a todos. Ressaltamos a importância de
uma escola que, para avaliar, lança mão da observação, do registro e da reflexão constantes do
processo de ensino-aprendizagem, porque não se limita a resultados finais traduzidos em notas ou
conceitos. Enfatizamos a escola que, para avaliar, elabora outros procedimentos e instrumentos
além da prova bimestral e do exercício de verificação, porque ela entende que o ser humano – seja
ele criança, adolescente, jovem ou adulto – é singular na forma, na "quantidade" do aprender e
em demonstrar suas aprendizagens, por isso precisa de diferentes oportunidades, procedimentos e
instrumentos para explicitar seus saberes. É nessa perspectiva de avaliação que reafirmamos um
movimento que procura romper com o caráter meramente classificatório e de verificação dos
saberes, que busca constituir nos tempos e espaços da escola e da sala de aula uma prática de
avaliação ética e democrática.
13
Ao apresentarmos, no último texto, algumas Modalidades organizativas do trabalho pedagógico: uma
possibilidade, partimos do princípio de que se faz necessário apresentar, neste momento de ampliação
do ensino fundamental, algumas propostas de trabalho cotidiano. Entretanto, nenhuma delas
terá significado se o professor(a) não se permitir assumir o seu legítimo lugar de mediador do
processo ensino-aprendizagem, se não as recriar. As atividades aqui apresentadas não foram
elaboradas como modelos, mas como subsídio ao planejamento da prática. Foram elaboradas,
apostando na infinita capacidade criativa do(a) professor(a) de reinventar o já pronto, o já posto.
Tais atividades têm como propósito encorajar o(a) professor(a) na elaboração de tantas outras
muito mais ricas e de resultados mais eficientes para a aprendizagem dos estudantes; e foram
propositadamente apresentadas para que o(a) professor(a) possa superá-las no estabelecimento de
novas referências pedagógicas e metodológicas com vistas a um ensino fundamental de qualidade.

Finalmente, temos convicção de que a tarefa que nós – professores, gestores e demais profissionais
da educação – temos em mãos é da mais profunda complexidade. Sabemos, também, que as
reflexões e possibilidades apresentadas neste documento não bastam, não abrangem a diversidade
da nossa escola em suas necessidades curriculares, mas estamos certos de que tomamos a decisão
ética de assegurar a todas as crianças brasileiras de seis anos de idade o direito a uma educação
pública que, mais do que garantir acesso, tem o dever de assegurar a permanência e a aprendizagem
com qualidade.

Jeanete Beauchamp
Diretora do Departamento de Políticas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental
Sandra Denise Pagel
Coordenadora Geral do Ensino Fundamental
Aricélia Ribeiro do Nascimento
Assessora da Coordenação Geral do Ensino Fundamental

14
A INFÂNCIA E
SUA SINGULARIDADE 1
Sônia Kramer 2

“Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em


casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-
independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.
A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte
ele veio contando que caíra no pátio da escola um
pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito
queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez
Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido
de jogar futebol durante quinze dias.
Quando o menino voltou falando que todas as
borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá
Elpídia e queriam formar um tapete voador para
transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao
médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a
cabeça:
- Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é
mesmo um caso de poesia.

Carlos Drummond de Andrade

ste texto tem o objetivo de refletir so dez anos de idade. Pretendemos, com este tex-

E bre a infância e sua singularidade. Nele,


a infância é entendida, por um lado,
como categoria social e como categoria da his-
to, discutir a infância, a escola e os desafios
colocados hoje para a educação infantil e o
ensino fundamental de nove anos.
tória humana, englobando aspectos que afe- Inicialmente, são apresentadas algumas idéias
tam também o que temos chamado de sobre infância, história, sociedade e cultura
adolescência ou juventude. Por outro lado, a contemporânea. Em seguida, analisamos as
infância é entendida como período da histó- crianças e a chamada cultura infantil, tentan-
ria de cada um, que se estende, na nossa soci- do refletir sobre o significado de atuarmos com
edade, do nascimento até aproximadamente as crianças como sujeitos. Aqui, focalizamos

1
Texto escrito a partir de: KRAMER, S., Infância, Cultura e Educação. In: PAIVA, A. , EVANGELISTA, A. PAULINO, G.,
e VERSIANIN, Z. (Org.). No fim do século: a diversidade. O Jogo do Livro Infantil e Juvenil. Editora Autêntica/CEALE, 2000,
p. 9-36; e KRAMER, S. Direitos da criança e projeto político-pedagógico de educação infantil. In: BAZILIO, L. e KRAMER, S.
Infância, educação e direitos humanos. São Paulo, Ed.Cortez, 2003, p. 51-81.
2
KRAMER Sônia. Professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, onde coordena o Curso de
Especialização em Educação Infantil. 15
também interações, tensões e contradi- de infância na sociedade moderna,
ções entre crianças e adultos, um gran- sabemos que as visões sobre a in-
de desafio enfrentado atualmente. fância são construídas social e
Por fim, abordamos o impacto Numa sociedade historicamente. A inserção
dessas reflexões, considerando os desigual, as crianças concreta das crianças e seus
direitos das crianças, a educação papéis variam com as formas
infantil e o ensino fundamental.
desempenham, nos
de organização da socieda-
diversos contextos, de. Assim, a idéia de infân-
Infância, História e papéis diferentes. cia não existiu sempre e da
Cultura Contemporânea mesma maneira. Ao contrário,
Profissionais que trabalham na educa- a noção de infância surgiu com
ção e no âmbito das políticas sociais vol- a sociedade capitalista, urbano-in-
tadas à infância enfrentam imensos desafios: dustrial, na medida em que mudavam a inser-
questões relativas à situação política e econô- ção e o papel social da criança na sua
mica e à pobreza das nossas populações, ques- comunidade. Aprendemos com esses estudos:
tões de natureza urbana e social, problemas (i) a condição e natureza histórica e social das
específicos do campo educacional que, cada crianças; (ii) a necessidade de pesquisas que
vez mais, assumem proporções graves e têm im- aprofundem o conhecimento sobre as crian-
plicações sérias, exigindo respostas firmes e rá- ças em diferentes contextos; e (iii) a impor-
pidas, nunca fáceis. Vivemos o paradoxo de tância de atuar considerando-se essa
possuir um conhecimento teórico complexo diversidade.
sobre a infância e de ter muita dificuldade de
As contribuições do sociólogo francês Bernard
lidar com populações infantis e juvenis. Re-
Charlot, nos anos 1970, também foram fun-
fletir sobre esses paradoxos e sobre a infância,
damentais e ajudaram a compreender o signi-
hoje, é condição para se planejar o trabalho
ficado ideológico da criança e o valor social
na creche e na escola e para implementar o
atribuído à infância: a distribuição desigual de
currículo. Como as pessoas percebem as cri-
poder entre adultos e crianças tem razões soci-
anças? Qual é o papel social da infância na
sociedade atual? Que valor é atribuído à cri- ais e ideológicas, com conseqüências no con-
ança por pessoas de diferentes classes e grupos trole e na dominação de grupos. As idéias de
sociais? Qual é o significado de ser criança nas Charlot favorecem compreender a infância de
diferentes culturas? Como trabalhar com as maneira histórica, ideológica e cultural: a de-
crianças de maneira que sejam considerados pendência da criança em relação ao adulto,
seu contexto de origem, seu desenvolvimento diz o sociólogo, é fato social e não natural. Tam-
e o acesso aos conhecimentos, direito social bém a antropologia favorece conhecer a di-
de todos? Como assegurar que a educação cum- versidade das populações infantis, as práticas
pra seu papel social diante da heterogeneidade culturais entre crianças e com adultos, bem
das populações infantis e das contradições da como brincadeiras, atividades, músicas, histó-
sociedade? rias, valores, significados. E a busca de uma
psicologia baseada na história e na sociologia
Ao longo do século XX, cresceu o esforço pelo
- as teorias de Vygotsky e Wallon e seu debate
conhecimento da criança, em vários campos
com Piaget - revelam esse avanço e revolucio-
do conhecimento. Desde que o historiador
nam os estudos da infância.
francês Philippe Ariès publicou, nos anos 1970,
seu estudo sobre a história social da criança e Numa sociedade desigual, as crianças desem-
16 da família, analisando o surgimento da noção penham, nos diversos contextos, papéis
diferentes. A idéia de infância moderna foi revolução industrial condenavam-nas a não
universalizada com base em um padrão de cri- ser crianças: meninos trabalhavam nas fábri-
anças das classes médias, a partir de critérios cas, nas minas de carvão, nas ruas. Mas até
de idade e de dependência do adulto, caracte- hoje o projeto da modernidade não é real para
rísticos de sua inserção no interior dessas clas- a maioria das populações infantis, em países
ses. No entanto, é preciso considerar a como o Brasil, onde não é assegurado às cri-
diversidade de aspectos sociais, culturais e po- anças o direito de brincar, de não trabalhar.
líticos: no Brasil, as nações indígenas, suas lín- Pode a criança deixar de ser inf-ans (o que não
guas e seus costumes; a escravidão das fala) e adquirir voz num contexto que, por um
populações negras; a opressão e a pobreza de lado, infantiliza jovens e adultos e empurra
expressiva parte da população; o colonialismo para frente o momento da maturidade e, por
e o imperialismo que deixaram marcas diferen- outro, os adultiza, jogando para trás a curta
ciadas no processo de socialização de crianças etapa da primeira infância? Crianças são su-
e adultos. jeitos sociais e históricos, marcadas, portanto,
Recentemente, outras questões inquietam os pelas contradições das sociedades em que es-
que atuam na área: alguns pensadores denun- tão inseridas. A criança não se resume a ser
ciam o desaparecimento da infância. Pergun- alguém que não é, mas que se tornará (adulto,
tam "de que infância nós falamos?", uma vez no dia em que deixar de ser criança). Reco-
que a violência contra as crianças e entre elas nhecemos o que é específico da infância: seu
se tornou constante. Imagens de pobreza de poder de imaginação, a fantasia, a criação, a
crianças e trabalho infantil retratam uma situ- brincadeira entendida como experiência de
ação em que o reino encantado da infância cultura. Crianças são cidadãs, pessoas deten-
teria chegado ao fim. Na era pós-industrial não toras de direitos, que produzem cultura e são
haveria mais lugar para a idéia de infância, uma nela produzidas. Esse modo de ver as crianças
das invenções mais humanitárias da favorece entendê-las e também ver o mundo
modernidade; com a mídia e a Internet, o aces- a partir do seu ponto de vista. A infância, mais
so das crianças à informação adulta teria ter- que estágio, é categoria da história: existe uma
minado por expulsá-las do jardim da infância história humana porque o homem tem infân-
(Postman, 1999). Mas é a idéia de infância cia. As crianças brincam, isso é o que as carac-
que entra em crise ou a crise é a do homem teriza. Construindo com pedaços, refazendo a
contemporâneo e de suas idéias? partir de resíduos ou sobras (Benjamin, 1987b),
Estará a infância desaparecendo? A idéia de na brincadeira, elas estabelecem novas rela-
infância surgiu no contexto histórico e social ções e combinações. As crianças viram as coi-
da modernidade, com a redução dos índices sas pelo avesso e, assim, revelam a possibilidade
de mortalidade infantil, graças ao avanço da de criar. Uma cadeira de cabeça para baixo se
ciência e a mudanças econômicas e sociais. torna barco, foguete, navio, trem, caminhão.
Essa concepção, para Ariès, nasceu nas clas- Aprendemos, assim, com as crianças, que é pos-
ses médias e foi marcada por um duplo modo sível mudar o rumo estabelecido das coisas.
de ver as crianças, pela contradição entre mo- As crianças e a cultura infantil
ralizar (treinar, conduzir, controlar a criança)
e paparicar (achá-la engraçadinha, ingênua, Procurando entender a infância e as crianças
pura, querer mantê-la como criança). A misé- na sociedade contemporânea, de modo que
ria das populações infantis naquela época e o possamos compreender a delicada complexi-
trabalho escravo e opressor desde o início da dade da infância e a dimensão criadora das 17
ações infantis, encontramos na obra de Walter possível trabalhar com crianças sem saber brin-
Benjamin interessantes contribuições3. Mui- car, sem ter nunca brincado?
tos de seus textos expressam uma visão peculi-
ar da infância e da cultura infantil e oferecem b) A criança é colecionadora, dá sentido
importantes eixos que orientam outra manei- ao mundo, produz história
ra de ver as crianças. Para nossa discussão, pro- Como um colecionador, a criança caça, pro-
pomos quatro eixos, baseados em Benjamin: cura. As crianças, em sua tentativa de desco-
a) A criança cria cultura, brinca e nisso brir e conhecer o mundo, atuam sobre os
reside sua singularidade objetos e os libertam de sua obrigação de ser
úteis. Na ação infantil, vai se expressando, as-
As crianças "fazem história a partir dos restos da sim, uma experiência cultural na qual ela atri-
história", o que as aproxima dos inúteis e dos bui significados diversos às coisas, fatos e
marginalizados (Benjamin, 1984, p.14). Elas artefatos. Como um colecionador, a criança
reconstroem das ruínas; refazem dos pedaços. busca, perde e encontra, separa os objetos de
Interessadas em brinquedos e bonecas, atraí- seus contextos, vai juntando figurinhas, cha-
das por contos de fadas, mitos, lendas, que- pinhas, ponteiras, pedaços de lápis, borrachas
rendo aprender e criar, as crianças estão mais antigas, pedaços de brinquedos, lembranças,
próximas do artista, do colecionador e do má- presentes, fotografias.
gico, do que de pedagogos bem intenciona- A maioria de nós – adultos que estamos lendo
dos. A cultura infantil é, pois, produção e este texto – tem também caixas e gavetas em
criação. As crianças produzem cultura e são que verdadeiras coleções vão sendo formadas
produzidas na cultura em que se inserem (em dia a dia, como partes de uma trajetória. A
seu espaço) e que lhes é contemporânea (de história de cada um e cada uma de nós vai
seu tempo). A pergunta que cabe fazer é: sendo reunida, e só pode ser contada por nós.
quantos de nós, trabalhando nas políticas pú- Nós conhecemos os significados de cada uma
blicas, nos projetos educacionais e nas práti- dessas coisas que evocam situações vividas,
cas cotidianas, garantimos espaço para esse tipo conquistas ou perdas, pessoas, lugares, tempos
de ação e interação das crianças? Nossas cre- esquecidos. Observar a coleção aciona a me-
ches, pré-escolas e escolas têm oferecido con- mória e desvela a narrativa da história.
dições para que as crianças produzam cultura? Quantos de nós estamos dispostos a nos desfa-
Nossas propostas curriculares garantem o tem- zer de nossas coleções, ou seja, de nossa histó-
po e o espaço para criar? ria? "Arrumar significaria aniquilar", diz
Nesse "refazer" reside o potencial da brinca- Benjamin. Quantos de nós estamos sempre
deira, entendida como experiência de cultu- dispostos a arrumar as coleções infantis? Como
ra. Não é por acaso que, em diversas línguas, a garantir a ordem sem destruir a criação?
palavra "brincar" – spillen, to play, jouer – pos-
c) A criança subverte a ordem e estabele-
sui o sentido de dançar, praticar deporte, re- ce uma relação crítica com a tradição
presentar em uma peça teatral, tocar um
instrumento musical, brincar. Ao valorizar a Olhar o mundo a partir do ponto de vista da
brincadeira, Benjamin critica a pedagogização criança pode revelar contradições e uma outra
da infância e faz cada um de nós pensarnos: é maneira de ver a realidade. Nesse processo, o

3
Benjamin viveu na Europa no início do século XX e foi leitor de Marx, Freud, Proust, Kafka e Baudelaire, além de interlocutor
18 crítico dos pensadores da Escola de Frankfurt, de Bertolt Brecht, Chagall, Gershon Scholem.
papel do cinema, da fotografia, da imagem, é e combater a desigualdade de condições e a
importante para nos ajudar a constituir esse situação de pobreza da maioria de nossas po-
olhar infantil, sensível e crítico. Atuar com as pulações com políticas e práticas capazes de
crianças com esse olhar significa agir com a assegurar igualdade e justiça social. Isso impli-
própria condição humana, com a história hu- ca garantir o direito a condições dignas de vida,
mana. Desvelando o real, subvertendo a apa- à brincadeira, ao conhecimento, ao afeto e a
rente ordem natural das coisas, as crianças interações saudáveis.
falam não só do seu mundo e de sua ótica de No contexto dessa reflexão, um paradoxo fica
crianças, mas também do mundo adulto, da evidenciado: as relações entre crianças e adul-
sociedade contemporânea. Imbuir-se desse tos atualmente e sua delicada complexidade.
olhar infantil crítico, que vira as coisas pelo Discutiremos esse ponto a seguir.
avesso, que desmonta brinquedos, desmancha
construções, dá volta à costura do mundo, é Crianças e adultos:
aprender com as crianças e não se deixar identidade, diversidade e
infantilizar. ser Conhecer a infância e as cri- autoridade em risco?
anças favorece que o humano continue sen-
A história humana tem sido marcada pela des-
do sujeito crítico da história que ele produz (e
truição e pela barbárie. Mas, além dos proble-
que o produz). Sendo humano, esse processo
mas econômicos, políticos e sociais que temos
é marcado por contradições: podemos apren-
enfrentado, os quais não são de solução rápi-
der com as crianças a crítica, a brincadeira, a
da, os acontecimentos recentes e a guerra nos
virar as coisas do mundo pelo avesso. Ao mes-
inquietam. Ao discutir infância, creche e es-
mo tempo, precisamos considerar o contexto,
cola, é importante tratar de temas como: di-
as condições concretas em que as crianças es-
reitos humanos; a violência praticada contra/
tão inseridas e onde se dão suas práticas e
por crianças e jovens e seu impacto nas atitu-
interações. Precisamos considerar os valores e
des dos adultos, em particular professores; as
princípios éticos que queremos transmitir na
relações entre adultos e crianças e a perda da
ação educativa.
autoridade como um dos problemas sociais
d) A criança pertence a uma classe social mais graves do cenário contemporâneo. As
relações estabelecidas com a infância expres-
As crianças não formam uma comunidade iso- sam a crítica de uma cultura em que não nos
lada; elas são parte do grupo e suas brincadei- reconhecemos. Reencontrar o sentido de so-
ras expressam esse pertencimento. As crianças lidariedade e restabelecer com as crianças e os
não são filhotes, mas sujeitos sociais; nascem jovens laços de caráter afetivo, ético, social e
no interior de uma classe, de uma etnia, de político exigem a revisão do papel que tem sido
um grupo social. Os costumes, valores, hábi- desempenhado nas instituições educativas. Na
tos, as práticas sociais, as experiências interfe- modernidade, a narrativa entra em extinção
rem em suas ações e nos significados que porque a experiência vai definhando, sendo
atribuem às pessoas, às coisas e às relações. No reduzida a vivências, em reação aos choques
entanto, apesar do seu direito de brincar, para da vida cotidiana. Experiência e narrativa aju-
muitas o trabalho é imposto como meio de dam a compreender processos culturais (tam-
sobrevivência. Considerar, simultaneamente, bém educacionais) e seus impasses. Mais do
a singularidade da criança e as determinações que isso, esses conceitos contribuem para prá-
sociais e econômicas que interferem na sua con- ticas com crianças e para estratégias de forma-
dição, exige reconhecer a diversidade cultural ção que abram o espaço da narrativa, para que 19
crianças, jovens e adultos possam falar do que classes médias, esse discurso reforça a idéia de
vivem, viveram, assistiram, enfrentaram. que a vontade da criança deve ser atendida a
Muitas iniciativas têm tentado resgatar histó- qualquer custo, especialmente para consumir;
rias de grupos, povos, pessoas, classes sociais; nas classes populares, crianças assumem res-
refazendo as trajetórias, velhos sentidos são ponsabilidades muito além do que podem. Em
recuperados e as histórias ganham outras con- ambas, as crianças são expostas à mídia, à vio-
figurações. Os conceitos de infância, narrati- lência e à exploração.
va e experiência fornecem elementos básicos Por outro lado, o reconhecimento do papel
para pensar na delicada questão da autorida- social da criança tem levado muitos adultos a
de. Para Benjamin (1987a), o que dá autori- abdicarem de assumir seu papel. Parecem usar
dade é a experiência: a proximidade da morte a concepção de "infância como sujeito" como
dava ao moribundo maior autoridade, deriva- desculpa para não estabelecer regras, não ex-
da de sua maior experiência e de uma mais pressar seu ponto de vista, não se posicionar.
clara possibilidade de narrar o vivido, tornan- O lugar do adulto fica desocupado, como se
do-o infinito. A vivência, que é finita, se tor- para a criança ocupar um lugar, o adulto preci-
na infinita (e ultrapassa a morte) graças à sasse desocupar o seu, o que revela uma distorção
linguagem: é no outro que a narrativa se enraí- profunda do sentido da autoridade. E como
za, o que significa que a narrativa é fundamen- valorizar e reconhecer a criança sem
tal para a constituição do sentido de abandoná-la à própria sorte ou azar e sem ape-
coletividade, em que cada qual aprende a exer- nas normatizar? Pergunto: como atuar, consi-
cer o seu papel. A arte de narrar diminui por- derando as condições, sem expor e sem largar
que a experiência entra em extinção. Em as crianças? Como reconhecer os seus direitos
conseqüência, reduz a autoridade constituída e preservá-los? Na escola, parece que as crian-
e legitimada pela experiência. ças pedem para o professor intervir e ele não o
No que se refere aos desafios das relações con- faz, impondo em vez de dividir com a criança
temporâneas entre adultos e crianças, em situações em que poderia fazê-lo, e exigin-
Sarmento alerta para os efeitos da "convergên- do demais quando deveria poupá-la. A ques-
cia de três mudanças centrais: a globalização so- tão da sociabilidade tornou-se tão frágil que
cial, a crise educacional e as mutações no mundo os adultos – professores, pais – não vêem as
do trabalho" (2001, p. 16). Trata-se de um pa- possibilidades da criança e ora controlam, re-
radoxo duplo: os adultos permanecem cada vez gulam, conduzem, ora sequer intervêm, têm
mais tempo em casa graças à mudança nas for- medo de crianças e jovens, medo de estabele-
mas de organização do trabalho e ao desem- cer regras, de fazer acordos, de lidar com as
prego crescente, enquanto as crianças saem crianças no diálogo e na autoridade. O equilí-
mais de casa, sobretudo por conta da sua cres- brio e o diálogo se perdem e esses adultos, ao
cente permanência nas instituições. "Há, des- abrirem mão da sua autoria (de pais ou profes-
te modo, como que uma troca de posições entre sores), ao cederem seu lugar, só têm, como al-
gerações. Este é um dos mais significativos efeitos ternativa, o confronto ou o descaso.
gerados pelas mutações no mundo do trabalho" No centro dessa questão parece se manifestar
(Sarmento, 2001, p. 21). Além disso, a sociabi- uma indisponibilidade em relação às crianças,
lidade se transforma e as relações entre adultos e uma das mais perversas mudanças de valores
crianças tomam rumos descon-certantes. O dis- dos adultos: perguntas ficam sem respostas;
curso da criança como sujeito de direito e da in- transgressões ficam sem sanção; dúvidas ficam
20 fância como construção social é deturpado: nas sem esclarecimento; relatos ficam sem escuta.
Diversos fatores interferem nas rela- e corroídos no seu caráter (Idem,
ções entre crianças e adultos. Um 1999), os adultos têm encontra-
aspecto se situa no centro da do soluções para lidar com
questão: a indisponibilidade do Em contextos em identidade, diversidade e para
adulto que parece impregnar que não há garan- delinear padrões de autorida-
a vida contemporânea, tia de direitos, de, ressignificando seu papel,
marcada pelo individualismo acentuam-se a desi- na esfera social coletiva? Ou
e pela mercantilização das re- identidade, diversidade e au-
gualdade e a injus- toridade estão em risco, agra-
lações. Com a perda da capa-
cidade do diálogo na tiça social vando a desumanização, se é
modernidade, as pessoas só con- possível usar essa expressão dian-
versam sobre o preço das coisas; sem te da barbárie que o século XX lo-
o diálogo, sem a narrativa, ficam impossibili- grou nos deixar como herança?
tadas de dar ou de ouvir um conselho que é,
Direito das crianças,
segundo Benjamin (1987a), sempre a suges-
educação infantil e ensino
tão de como poderia uma história continuar.
fundamental: desafios
Desocupando seu lugar, os adultos ora tratam
a criança como companheira em situações nas Aprendemos com Paulo Freire que educação
quais ela não tem a menor condição de sê-lo, e pedagogia dizem respeito à formação cultu-
ora não assumem o papel de adultos em situa- ral – o trabalho pedagógico precisa favorecer
ções nas quais as crianças precisam aprender a experiência com o conhecimento científico
condutas, práticas e valores que só irão adqui- e com a cultura, entendida tanto na sua di-
rir se forem iniciadas pelo adulto. As crianças mensão de produção nas relações sociais coti-
são negligenciadas e vão ficando também per- dianas e como produção historicamente
didas e confusas. Muitos adultos parecem in- acumulada, presente na literatura, na música,
diferentes e não mais as iniciam. A indiferença na dança, no teatro, no cinema, na produção
ocupa o lugar das diferenças. artística, histórica e cultural que se encontra
Em contextos em que não há garantia de di- nos museus. Essa visão do pedagógico ajuda a
reitos, acentuam-se a desigualdade e a injusti- pensar sobre a creche e a escola em suas di-
ça social e as crianças enfrentam situações além mensões políticas, éticas e estéticas. A educa-
de seu nível de compreensão, convivem com ção, uma prática social, inclui o conhecimento
problemas além do que seu conhecimento e científico, a arte e a vida cotidiana.
experiência permitem entender. Os adultos Educação infantil e ensino fundamental são
não sabem como responder ou agir diante de freqüentemente separados. Porém, do ponto
situações que não enfrentaram antes porque, de vista da criança, não há fragmentação. Os
embora adultos, não se constituíram na expe- adultos e as instituições é que muitas vezes
riência e são cobrados a responder perguntas opõem educação infantil e ensino fundamen-
para as quais nunca ninguém lhes deu respos- tal, deixando de fora o que seria capaz de
tas. Além disso, o panorama social e a con- articulá-los: a experiência com a cultura. Ques-
juntura política mais ampla de banalização da tões como alfabetizar ou não na educação in-
violência, valorização da guerra e do confron- fantil e como integrar educação infantil e
to, agressão, impunidade e corrupção geram ensino fundamental continuam atuais. Temos
perplexidade e o risco, que ela implica, do crianças, sempre, na educação infantil e no
imobilismo. Sem autoridade (Sennett, 2001) ensino fundamental. Entender que as pessoas 21
são sujeitos da história e da cultura, além de acompanhado por adultos na educação infantil
serem por elas produzidas, e considerar os mi- e no ensino fundamental e que saibamos, em
lhões de estudantes brasileiros de 0 a 10 anos ambos, ver, entender e lidar com as crianças
como crianças e não só estudantes, implica ver como crianças e não apenas como estudan-
o pedagógico na sua dimensão cultural, como tes. A inclusão de crianças de seis anos no
conhecimento, arte e vida, e não só como algo ensino fundamental requer diálogo entre edu-
instrucional, que visa a ensinar coisas. Essa cação infantil e ensino fundamental, diálogo
reflexão vale para a educação infantil e o en- institucional e pedagógico, dentro da escola
sino fundamental. e entre as escolas, com alternativas
Educação infantil e ensino fundamental são curriculares claras.
indissociáveis: ambos envolvem conhecimen- No Brasil, temos hoje importantes documen-
tos e afetos; saberes e valores; cuidados e aten- tos legais: a Constituinte de 1988, a primeira
ção; seriedade e riso. O cuidado, a atenção, o que reconhece a educação infantil como di-
acolhimento estão presentes na educação in- reito das crianças de 0 a 6 anos de idade, de-
fantil; a alegria e a brincadeira também. E, nas ver de Estado e opção da família; o Estatuto
práticas realizadas, as crianças aprendem. Elas da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069,
gostam de aprender. Na educação infantil e de 1990), que afirma os direitos das crianças e
no ensino fundamental, o objetivo é atuar com as protege; e a Lei de Diretrizes e Bases da
liberdade para assegurar a apropriação e a cons- Educação Nacional, de 1996, que reconhece
trução do conhecimento por todos. Na edu- a educação infantil como primeira etapa da
cação infantil, o objetivo é garantir o acesso, educação básica. Todos esses documentos são
de todos que assim o desejarem, a vagas em conquistas dos movimentos sociais, movimen-
creches e pré-escolas, assegurando o direito da tos de creches, movimentos dos fóruns perma-
criança de brincar, criar, aprender. Nos dois, nentes de educação infantil. E qual tem sido a
temos grandes desafios: o de pensar a creche, ação desses movimentos e das políticas públi-
a pré-escola e a escola como instâncias de for- cas nos municípios? Como tem sido a partici-
mação cultural; o de ver as crianças como su- pação das creches, pré-escolas e escolas? As
jeitos de cultura e história, sujeitos sociais. conquistas formais têm se tornado ações de
O ensino fundamental, no Brasil, passa agora fato? Que impacto tais conquistas promovem
a ter nove anos de duração e inclui as crianças no currículo? De que maneira a antecipação
de seis anos de idade, o que já é feito em vári- da escolaridade interfere nos processos de in-
os países e em alguns municípios brasileiros há serção social e nos modos de subjetivação de
muito tempo. Mas muitos professores ainda crianças, jovens e adultos? As escolas têm le-
perguntam: o melhor é que elas estejam na vado em conta essas questões na concepção e
educação infantil ou no ensino fundamental? na construção dos seus currículos? Os sistemas
Defendemos aqui o ponto de vista de que os de ensino têm se equipado para fazer frente às
direitos sociais precisam ser assegurados e que mudanças?
o trabalho pedagógico precisa levar em conta O tempo da infância é o tempo
a singularidade das ações infantis e o direito à de aprender e ... de aprender
brincadeira, à produção cultural tanto na edu- com as crianças
cação infantil quanto no ensino fundamen-
tal. É preciso garantir que as crianças sejam As reflexões desenvolvidas aqui se voltam
atendidas nas suas necessidades (a de aprender para uma perspectiva da educação contem-
22 e a de brincar), que o trabalho seja planejado e porânea, na educação infantil ou no ensino
fundamental, na qual o outro é vis- infantis, as relações entre adultos e
to como um eu e na qual está crianças, é essencial para a in-
em pauta a solidariedade, o tervenção e a mudança.
respeito às diferenças e o Sem conhecer as Sem conhecer as
combate à indiferença e à
interações, não há como interações, não há como
desigualdade. Assumir a
educar crianças e jovens educar crianças e jo-
defesa da escola – uma
vens numa perspectiva
das instituições mais es- numa perspectiva de
de humanização ne-
táveis num momento de humanização necessária cessária para subsidiar
absoluta instabilidade – para subsidiar políticas políticas públicas e prá-
significa assumir uma públicas e práticas ticas educativas solidári-
posição contra o trabalho
educativas solidárias. as entre crianças, jovens
infantil. As crianças têm o
e adultos, com ações cole-
direito de estar numa escola
estruturada de acordo com uma tivas e elos capazes de gerar o
das muitas possibilidades de organi- sentido de pertencer a. Que pa-
zação curricular que favoreçam a sua inser- pel têm desempenhado a creche, a pré-
ção crítica na cultura. Elas têm direito a escola e a escola? Que princípios de identidade,
condições oferecidas pelo Estado e pela socie- valores éticos e padrões de autoridade ensinam
dade que garantam o atendimento de suas às crianças? As práticas contribuem para
necessidades básicas em outras esferas da vida humanizar as relações? Como? As práticas de
econômica e social, favorecendo mais que uma educação infantil e ensino fundamental têm
escola digna, uma vida digna. levado em conta diferenças étnicas, religiosas,
regionais, experiências culturais, tradições e
Como ensinar solidariedade e justiça social, e
respeitando as diferenças, contra a discrimi- costumes adquiridos pelas crianças e jovens no
nação e a dominação? Estão nossas crianças e seu meio de origem e no seu cotidiano de rela-
jovens aprendendo a rir da dor do outro, a ções? Têm favorecido às crianças experiênci-
humilhar, a serem humilhadas, a não mais se as de cultura, com brinquedos, museus, cinema,
sensibilizar? Perdemos o diálogo? Como teatro, com a literatura? E para os professores?
recuperá-lo? As práticas, feitas com as crian- Qual é a sua formação cultural? E sua inserção
ças, humanizam-nas? Nosso maior desafio é cultural? Quais são suas experiências de cultu-
obter entendimento e uma educação baseada ra? Que relações têm com a leitura e a escrita?
no reconhecimento do outro e suas diferen-
Esses e muitos outros desafios são atualmente
ças de cultura, etnia, religião, gênero, classe
enfrentados por nós. Ao considerarmos os pa-
social, idade e combater a desigualdade; viver
radoxos dos tempos em que vivemos e os va-
uma ética e implementar uma formação cul-
tural que assegure sua dimensão de experiên- lores de solidariedade e generosidade que
cia crítica. É preciso compreender os processos queremos transmitir, num contexto de inten-
relativos aos modos de interação entre crian- so e visível individualismo, cinismo,
ças e adultos em diferentes contextos sociais, pragmatismo e conformismo, são necessárias
culturais e institucionais. O diálogo com vários condições concretas de trabalho com quali-
campos do conhecimento contribui para agir dade e ação coletiva que viabilizem formas de
com as crianças. Conhecer as ações e produções enfrentar os desafios e mudar o futuro.

23
Referências Bibliográficas

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25
26
A INFÂNCIA NA
ESCOLA E NA VIDA: UMA
RELAÇÃO FUNDAMENTAL
Anelise Monteiro do Nascimento 1

Infância
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo,
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusoé
Comprida história que não acaba mais
.......................................
Eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robinson Crusoé.2

Carlos Drummond de Andrade

ste texto tem como objetivo contribuir que são necessárias a participação de todos e a

E para o debate sobre o ensino fundamen


tal de nove anos, tendo como foco a
busca de possibilidades adequadas para rece-
ampliação do debate no interior de cada esco-
la. Nesse processo, a primeira pergunta que nos
inquieta e abre a possibilidade de discussão é:
bermos as crianças de seis anos de idade nessa quem são as crianças hoje? Tal pergunta é fun-
etapa de ensino. Para tanto, faz-se necessário damental, pois encaminha o debate para pen-
discutir sobre quem são essas crianças, quais sarmos tanto sobre as concepções de infância
são as suas características e como essa fase da que orientam as práticas escolares vigentes,
vida tem sido compreendida dentro e fora do quanto sobre as possibilidades de mudança que
ambiente escolar. este momento anuncia.
Para superarmos o desafio da implantação de um Como vimos no primeiro texto deste caderno,
ensino fundamental de nove anos, acreditamos os estudos de Phillipe Ariès (1978) indicam que

1
NASCIMENTO, Anelise Monteiro do. Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
professora de educação infantil.
2
Robinson Crusoé é o personagem central do livro As aventuras de Robinson Crusoé, escrito por Daniel Defoe. O livro conta
a história do naufrágio de um navio que levou seu único sobrevivente, Robinson, para uma ilha desconhecida onde ele, solitário,
reconstruiu a vida longe da civilização. Com suas próprias mãos, fez uma casa, teceu roupas, preparou seus alimentos e enfrentou
muitos desafios para sobreviver. 27
o conceito de infância muda historicamente como a sociedade vê a infância. Na página
em função de determinantes sociais, culturais, seguinte, encontram-se duas reproduções de
políticos e econômicos. pinturas para refletirmos sobre como esse con-
A literatura, as artes, a poesia e o cinema têm ceito é socialmente construído.
sido grandes aliados na percepção do modo Pensemos sobre a maneira como as crianças
são retratadas pelos dois artistas. A criança do
quadro à esquerda é o próprio Renoir que apa-
rece como um bebê recebendo os cuidados de
sua mãe. Sua vestimenta é diferente da dos
adultos. Na imagem, que retrata um episó-
dio cotidiano do fim do século XIX, há uma
distinção entre criança e adulto. Já obser-
vando o quadro de Velásquez, pintado em
meados do século XVII, podemos dizer que
essa distinção não é tão explícita. O que
marca a diferença entre os adultos e as cri-
anças nesse segundo quadro? O que pode-
mos pensar sobre as concepções de infância
subjacentes às obras?
Agora, vamos ler o poema O Pirata, de
Roseana Muray:
O pirata
As meninas - Velásquez (1656) Roseana Muray
O menino brinca de pirata:
sua espada é de ouro
e sua roupa de prata.
Atravessa os sete mares
em busca do grande tesouro.
Seu navio tem setecentas velas de pano
e é o terror do oceano.
Mas o tempo passa e ele se cansa
de ser pirata.
E vira outra vez menino.
Quem é o menino do poema? Sem dúvida, o
contexto histórico-social em que foram produ-
zidos os quadros e a poesia é influenciado tan-
to pelo conceito de infância vigente, quanto
pelo olhar do próprio artista. A poesia desta-
ca o papel que a imaginação desempenha na
vida da criança, as diversas possibilidades de
representação do real e os modos próprios
de estar no mundo e de interagir com ele.
28 A família do artista - Renoir (1896) Nos quadros de Velásquez e Renoir, embora
evidenciem diferentes maneiras de conceber universalização desse atendimento, ainda te-
a infância, esse olhar matreiro e curioso da mos muito a construir em direção a uma estru-
criança está ausente. tura social em que a escolaridade seja
considerada prioridade na vida das crianças e
Refletindo sobre a pluralidade jovens e estes, por sua vez, sejam olhados pela
da infância escola nas suas especificidades para que a de-
Ao contribuir para desmistificar um conceito mocratização efetivamente aconteça.
único de infância, chamando atenção para o Nesse sentido, podemos ver o ensino funda-
fato de que existem infâncias e não infância, mental de nove anos como mais uma estraté-
pelos aspectos sociais, culturais, políticos e eco- gia de democratização e acesso à escola. A Lei
nômicos que envolvem essa fase da vida, os no 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, assegu-
estudos de Ariès apontam para a necessidade ra o direito das crianças de seis anos à educa-
de se desconstruir padrões relativos à concep- ção formal, obrigando as famílias a matriculá-las
ção burguesa de infância. Esse olhar para a e o estado a oferecer o atendimento. Mas como
infância possibilita ver as crianças pelo que são assegurar a verdadeira efetivação desse direi-
no presente, sem se valer de estereótipos, idéi- to? Como fazer para que essas crianças
as pré-concebidas ou de práticas educativas ingressantes nesse nível de ensino não engros-
que visam a moldá-las em função de visões sem futuras estatísticas negativas? Acreditamos
ideológicas e rígidas de desenvolvimento e que o diálogo proposto pelo Ministério da
aprendizagem. Educação com a publicação deste caderno e
No Brasil, as grandes desigualdades na dis- os debates que devem ser promovidos em cada
tribuição de renda e de poder foram respon- escola podem auxiliar nesse sentido. Pense-
sáveis por infâncias distintas para classes mos: o que temos privilegiado no cotidiano
sociais também distintas. As condições de escolar? As vozes das crianças são ouvidas ou
vida das crianças fizeram com que o signifi- silenciadas? Que temas estão presentes em
cado social dado à infância não fosse homo- nossas salas de aula e quais são evitados?
gêneo. Del Priori (2000) afirma que a Estamos abertos a todos os interesses das cri-
história da criança brasileira não foi diferente anças? No poema Certas Palavras, Drummond
da dos adultos, tendo sido feita à sua sombra. busca o encontro com alguns sentimentos pró-
Sombra de uma sociedade que viveu quase prios da infância:
quatro séculos de escravidão, tendo a divisão Certas Palavras
entre senhores e escravos como determinante Carlos Drummond de Andrade
da sua estrutura social. Certas palavras não podem ser ditas
As crianças das classes mais abastadas, segundo Em qualquer lugar e hora qualquer.
a autora, eram educadas por preceptores parti- Estritamente reservadas
culares, não tendo freqüentado escolas até o Para companheiros de confiança,
início do século XX, e os filhos dos pobres, des- Devem ser sacralmente pronunciada
de muito cedo, eram considerados força produ- Em tom muito especial
tiva, não tendo a educação como prioridade. Lá onde a polícia dos adultos
Não adivinha nem alcança.
Vale lembrar que, no Brasil, ainda é muito re- Entretanto são palavras simples
cente a busca pela democratização da Definem
escolarização obrigatória e presenciamos agora Partes do corpo, movimentos, atos
a sua ampliação. Se já caminhamos para a Do viver que só os grandes se permitem 29
E a nós é defendido por sentença profissionais que atuam na escola. Propomos
Dos séculos. esse exercício porque, ainda hoje, é comum
observar atitudes de adultos, dentro e fora da
E tudo é proibido. Então, falamos. escola, que desconsideram a criança como ator
Que espaços e tempos estamos criando para social e, assim, queremos chamar atenção para
que as crianças possam trazer para dentro da a necessidade de a escola trabalhar o sentido
escola as muitas questões e inquietudes que da infância em toda a sua dimensão.
envolvem esse período da vida? As peraltices Diante disso, qual é o papel da escola? Quais
infantis têm tido lugar na escola ou somos so- as dimensões do conhecimento precisamos
mente a “polícia dos adultos”? considerar? Se acreditamos que o principal
A estética dos espaços e as relações que se es- papel da escola é o desenvolvimento integral
tabelecem revelam o que pensamos sobre cri- da criança, devemos considerá-la: na dimen-
ança e educação. Essas concepções estão são afetiva, ou seja, nas relações com o meio,
presentes em todas as práticas existentes no com as outras crianças e adultos com quem
interior da escola, deixando mais ou menos convive; na dimensão cognitiva, construindo
explícitos os valores e conceitos dessa institui- conhecimentos por meio de trocas com par-
ção. Tomemos como exemplo os murais. O ceiros mais e menos experientes e do contato
que compõem os murais? Por quem são orga- com o conhecimento historicamente
nizados? Costumam trazer as produções das cri- construído pela humanidade; na dimensão so-
anças? São um espaço de exposição em que cial, freqüentando não só a escola como tam-
podemos acompanhar o desenvolvimento das bém outros espaços de interação como praças,
crianças? Os murais têm ocupado um espaço clubes, festas populares, espaços religiosos, ci-
de comunicação dos saberes das crianças? nemas e outras instituições culturais; na dimen-
são psicológica, atendendo suas necessidades
Refletir sobre a infância em sua pluralidade básicas, como, por exemplo, espaço para fala
dentro da escola é, também, pensar nos espa- e escuta, carinho, atenção, respeito aos seus
ços que têm sido destinados para que a crian- direitos (MEC, 2005).
ça possa viver esse tempo de vida com todos
os direitos e deveres assegurados. Neste texto, Cabe destacar que assumir o desenvolvimen-
embora tenhamos como objetivo o debate so- to integral da criança e se comprometer com
bre a entrada das crianças de seis anos no en- ele não é uma tarefa só dos professores, mas de
sino fundamental, queremos pensar que a toda a comunidade escolar.
infância não se resume a essa faixa etária e pro- Infância nos espaços e os
por uma reflexão sobre que aspectos têm ori- espaços da infância
entado a nossa prática. Quem sabe a entrada
das crianças de seis anos não nos ajude a ver A entrada das crianças de seis anos no ensino
de forma diferente as crianças que já estavam fundamental se faz em um contexto favorá-
em nossas salas de aula? Está posto aí um novo vel, pois nunca se falou tanto da infância como
desafio: utilizar essa ocasião para revisitar ve- se fala hoje. Os reflexos desse olhar podem ser
lhos conceitos e colocar em cheque algumas percebidos em vários contextos da sociedade.
convicções. Esse é um exercício que requer No que diz respeito à escola, estamos em um
tanto uma tomada de consciência pessoal, momento de questionamos nossas concep-
quanto o fortalecimento da organização cole- ções e nossas práticas escolares. Esse ques-
tiva de estudo acerca desse tema, envolvendo tiona-mento é fundamental, pois, algumas
30 professores, gestores, coordenadores e demais vezes, durante o desenvolvimento do trabalho
pedagógico, podemos correr o risco de valorizadas. Crianças vistas como ameaças na
desconsiderar que a infância está presente nos rua enquanto, na escola, pouco se sabe sobre
anos/séries iniciais do ensino fundamental e elas. Como são tratadas, vistas e olhadas essas
não só na educação infantil. crianças que estão nas ruas, nas escolas, nos
lares e que sofrem toda sorte de opressão?
Nosso intuito é provocativo no sentido da re-
flexão e da investigação sobre quem são essas Por outro lado, as crianças que vivem nas pe-
crianças que estão chegando às nossas salas de quenas cidades também trazem desafios para
aula. De onde vêm? Já tiveram experiências este momento. Quem são essas crianças? De
escolares anteriores? Que grupos sociais fre- que e onde brincam? Quais são os seus inte-
qüentam? resses? Como realizar um diálogo entre as
vivências da criança dentro e fora da escola?
Para considerar a infância em toda a sua di-
mensão, é preciso olhar não só para o cotidia- Será que a busca por essas respostas pode fa-
no das instituições de ensino como também zer com que tornemos a sala de aula um espa-
para os outros espaços sociais em que as crian- ço mais dinâmico? Ou ainda, será que uma
ças estão inseridas. Em que atividades estão pesquisa sobre a realidade sócio-cultural das
envolvidas quando não estão na escola? Exis- crianças nesses diferentes contextos poderia
tem locais de encontros com outras crianças? abrir espaço para um projeto que buscasse esse
Ampliando o olhar, percebemos que não só a diálogo?
escola e a legislação têm voltado sua atenção Ao nos propormos a receber a criança de seis
para a criança. A mídia também encontrou anos no ensino fundamental, tenha ela fre-
na infância um grande público consumi- qüentado, ou não, a educação infan-
dor. Hoje as crianças estão expostas a til, devemos ter em mente que
comerciais que buscam criar desejos esse é o primeiro contato com
e incentivar o consumo. Nos gran- o seu percurso no ensino fun-
des centros urbanos, vemos o ofe- Como realizar um damental. Como fazer para
recimento de um novo “serviço” diálogo entre as recebê-la? O momento da
que são os “cantinhos da crian- vivências da entrada na escola é um mo-
ça”. São espaços reservados, por criança dentro e mento delicado que merece
exemplo, em supermercados, que fora da escola? toda a atenção. Graciliano
se propõem a oferecer um maior Ramos, na obra Infância, nar-
conforto para as famílias e um atendi- ra suas memórias de menino e
mento lúdico para a criança. conta como recebeu a notícia de que
entraria para a escola:
Além das diferentes apropriações dos espaços
sociais, outro ponto que nos inquieta diz res- A notícia veio de sopetão: iam meter-
peito às condições de vida das crianças e às me na escola. Já me haviam falado nisso,
desigualdades que separam alguns grupos so- em horas de zanga, mas nunca me
ciais, numa sociedade marcadamente convencera de que realizassem a
estratificada. Crianças que vivem em situação de ameaça. A escola, segundo informações
pobreza, que precisam, muitas vezes, trabalhar dignas de crédito, era um lugar para onde
para se sustentar, que sofrem a violência do- se enviavam as crianças rebeldes. Eu me
méstica e do entorno social, que são ame- comportava direito: encolhido e morno,
drontadas e amedrontam. Crianças deslizava como sombra. As minhas
destituídas de direitos, cujas vidas são pouco brincadeiras eram silenciosas. E nem 31
me afoitava a incomodar as pessoas merece ser destacado: como são organizados
grandes com perguntas. os tempos e espaços escolares?
O que podemos pensar a partir da leitura des- Pensar sobre a infância na escola e na sala de
se trecho do livro? Que escola está presente aula é um grande desafio para o ensino fun-
no imaginário do menino? O que estamos fa- damental que, ao longo de sua história, não
zendo para receber a criança que estava em tem considerado o corpo, o universo lúdico,
uma instituição de educação infantil e agora os jogos e as brincadeiras como prioridade.
vem para o ensino fundamental? Como está Infelizmente, quando as crianças chegam a
nossa organizaçõ para recebermo aquelas que essa etapa de ensino, é comum ouvir a frase
nunca tiveram experiência escolar? Na pers- “Agora a brincadeira acabou!”. Nosso con-
pectiva de refletirmos sobre essas questões, ve- vite, e desafio, é aprender sobre e com as cri-
jamos o relato a seguir: anças por meio de suas diferentes linguagens.
Nesse sentido, a brincadeira se torna essen-
É o primeiro dia do ano, a escola está cial, pois nela estão presentes as múltiplas
preparada para receber as crianças para formas de ver e interpretar o mundo. A brin-
mais um ano letivo. Para algumas cadeira é responsável por muitas aprendiza-
crianças, essa já é uma rotina conhecida, gens, como se vê no texto O brincar como
mas para Luiza, que está indo para a um modo de ser e estar no mundo.
escola pela primeira vez, não. Em seus
Faz-se necessário definir caminhos pedagógi-
olhos é possível notar um misto de medo
cos nos tempos e espaços da escola e da sala
e desejo. Ela chega acompanhada por sua
de aula que favoreçam o encontro da cultura
mãe. (...)
infantil, valorizando as trocas entre todos os
A sineta toca e todos se dirigem para as que ali estão, em que crianças possam recriar
salas. Mariza acompanha Luiza até o as relações da sociedade na qual estão
encontro com a professora. A escola inseridas, possam expressar suas emoções e for-
parece enorme aos olhos de Luiza. Ao mas de ver e de significar o mundo, espaços e
encontrar com a professora, essa lhe tempos que favoreçam a construção da auto-
dirige a palavra, abaixa, ficando da sua nomia. Esse é um momento propício para tra-
altura e diz: tar dos aspectos que envolvem a escola e do
conhecimento que nela será produzido, tanto
–– Oi Luiza, eu estava te esperando.
pelas crianças, a partir do seu olhar curioso
Sabe, podemos fazer muitas coisas
sobre a realidade que a cerca, quanto pela
diferentes aqui na escola. Eu vou ser sua mediação do adulto.
professora e nós vamos brincar muito
juntas (Brasil/Ministério da Educação, Infância na escola e na vida:
2005). alguns desafios
A professora se coloca como mediadora entre Como vimos, são muitas as questões relativas
as expectativas da menina e o novo mundo a à entrada das crianças de seis anos no ensino
ser descoberto. O nome, a proximidade, o fundamental. Não podemos fazer frente a esse
olhar, o toque, a proposta do brincar: elos que momento somente considerando os aspectos
abrem possibilidades de continuidade, elemen- legais que o envolvem. O direito efetivo à edu-
tos essenciais para a inserção e o acolhimento. cação das crianças de seis anos não acontece-
Se as ações de acolhimento e inserção são fun- rá somente com a promulgação da Lei nº
32 damentais, há, também, um outro ponto que 11.274, dependerá, principalmente, das práticas
pedagógicas e de uma política da escola para a primeira experiência escolar, então, precisa-
verdadeira acolhida dessa faixa-etária na ins- mos estar preparados para criar espaços de tro-
tituição. Que trabalho pedagógico será reali- cas e aprendizagens significativas, onde as
zado com essas crianças? Os estudos sobre crianças possam, nesse primeiro ano, viver a
aprendizagem e desenvolvimento realizados experiência de um ensino rico em afetividade
por Piaget e Vygotsky podem contribuir nesse e descobertas.
sentido, assim como as pesquisas nas áreas da
Algumas crianças trazem na sua história a ex-
sociologia da infância e da história. Esses,
como outros campos do saber, podem servir periência de uma pré-escola e agora terão a
de suporte para a elaboração de um plano de oportunidade de viver novas aprendizagens,
trabalho com as crianças de seis anos. O de- que não devem se resumir a uma repetição da
senvolvimento dessas crianças só ocorrerá em pré-escola, nem na transferência dos conteú-
todas as dimensões se sua inserção na escola dos e do trabalho pedagógico desenvolvido na
fizer parte de algo que vá além da criação de primeira série do fundamental de oito anos.
mais uma sala de aula e da disponibilidade de As crianças possuem modos próprios de compre-
vagas. É nesse sentido que somos convidados ender e interagir com o mundo. A nós, professo-
à reflexão sobre como a infância acontece den- res, cabe favorecer a criação de um ambiente
tro e fora das escolas. Quem são as crianças e escolar onde a infância possa ser vivida em toda
que educação pretendemos lhes oferecer? a sua plenitude, um espaço e um tempo de en-
Os desafios que envolvem esse momento são contro entre os seus próprios espaços e tem-
muitos. Para algumas crianças, essa será a pos de ser criança dentro e fora da escola.

33
Referências Bibliográficas

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VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

34
O BRINCAR COMO UM MODO DE
SER E ESTAR NO MUNDO
Ângela Mayer Borba 1

[...] as crianças são inclinadas de modo especial a


procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde
visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas.
Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo
que surge na construção, no trabalho de
jardinagem ou doméstico, na costura ou na
marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o
rosto que o mundo das coisas volta exatamente
para elas, e para elas unicamente. Neles, elas
menos imitam as obras dos adultos do que põem
materiais de espécie muito diferente, através
daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em
uma nova, brusca relação entre si.

Walter Benjamim

ipa, esconde-esconde, pique, passaraio, outros tempos estão presentes nas vidas das cri-

P bolinha de gude, bate-mãos, amareli


nha, queimada, cinco-marias, corda,
pique-bandeira, polícia e ladrão, elástico, casi-
anças hoje? Diferentes espaços geográficos e
culturais implicam diferentes formas de brin-
car? Qual é o significado do brincar na vida e
na constituição das subjetividades e identida-
nha, castelos de areia, mãe e filha, princesas,
super-heróis...2 Brincadeiras que nos remetem des das crianças? Por que à medida que avan-
à nossa própria infância e também nos levam çam os segmentos escolares se reduzem os
a refletir sobre a criança contemporânea: de espaços e tempos do brincar e as crianças vão
que as crianças brincam hoje? Como e com deixando de ser crianças para serem alunos?
quem brincam? De que forma o mundo con- A experiência do brincar cruza diferentes tem-
temporâneo, marcado pela falta de espaço nas pos e lugares, passados, presentes e futuros,
grandes cidades, pela pressa, pela influência sendo marcada ao mesmo tempo pela conti-
da mídia, pelo consumismo e pela violência, nuidade e pela mudança. A criança, pelo fato
se reflete nas brincadeiras? As brincadeiras de de se situar em um contexto histórico e social,

1
BORBA, Angela Meyer. Doutora em Educação – Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
Em diferentes regiões, cidades e bairros, podemos encontrar diferentes denominações para as mesmas brincadeiras. Por
exemplo, amarelinha também pode ser macaca, academia, escada, sapata. 35
ou seja, em um ambiente estruturado a partir adultos, autores de seus processos de consti-
de valores, significados, atividades e artefatos tuição de conhecimentos, culturas e subjeti-
construídos e partilhados pelos sujeitos que ali vidades. Tendo em vista esses eixos,
vivem, incorpora a experiência social e cultu- perguntamos: quais são as principais dimen-
ral do brincar por meio das relações que esta- sões constitutivas do brincar? Que relações tem
belece com os outros – adultos e crianças. Mas o brincar com o desenvolvimento, a aprendi-
essa experiência não é simplesmente zagem, a cultura e os conhecimentos? Como
reproduzida, e sim recriada a partir do que a podemos incorporar a brincadeira no traba-
criança traz de novo, com o seu poder de ima- lho educativo, considerando-se todas as di-
ginar, criar, reinventar e produzir cultura. mensões que a constituem?
A criança encarna, dessa forma, uma possibi- Infância, brincadeira, desenvol-
lidade de mudança e de renovação da experi- vimento e aprendizagem
ência humana, que nós, adultos, muitas
vezes não somos capazes de perceber, A brincadeira é uma palavra estrei-
pois, ao olharmos para ela, quere- tamente associada à infância e às
mos ver a nossa própria infância crianças. Porém, ao menos nas
espelhada ou o futuro adulto que Que relações tem sociedades ocidentais, ainda é
se tornará. Reduzimos a crian- o brincar com o considerada irrelevante ou de
ça a nós mesmos ou àquilo que desenvolvimento, pouco valor do ponto de vis-
pensamos, esperamos ou dese- a aprendizagem, ta da educação formal, assu-
jamos, dela e para ela, vendo-a a cultura e os mindo freqüentemente a
como um ser incompleto e ima- significação de oposição ao tra-
conhecimentos? balho, tanto no contexto da es-
turo e, ao mesmo tempo, eliminan-
do-a da posição de o outro do adulto. cola quanto no cotidiano familiar.
Mas como podemos compreender a criança Nesse aspecto, a significativa produção te-
nas suas formas próprias de ser, pensar e agir? órica já acumulada afirmando a importância
Como vê-la como alguém que inquieta o nos- da brincadeira na constituição dos processos
so olhar, desloca nossos saberes e nos ajuda a de desenvolvimento e de aprendizagem não
enxergar o mundo e a nós mesmos? Como foi capaz de modificar as idéias e práticas que
podemos ajudar a criança a se constituir como reduzem o brincar a uma atividade à parte, pa-
sujeito no mundo? De que forma a compreen- ralela, de menor importância no contexto da
são sobre o significado do brincar na vida e na formação escolar da criança. Por outro lado,
constituição dos sujeitos situa o papel dos adul- podemos identificar hoje um discurso genera-
tos e da escola na relação com as crianças e os lizado em torno da “importância do brincar”,
adolescentes? presente não apenas na mídia e na publicida-
Nesse contexto, convidamos os professores a de produzidas para a infância, como também
refletirem conosco sobre essas questões tendo nos programas, propostas e práticas educativas
como eixo alguns pontos: a singularidade da institucionais. Nesse contexto, é importante
criança nas suas formas próprias de ser e de se indagarmos: nossas práticas têm conseguido
relacionar com o mundo; a função humaniza- incorporar o brincar como dimensão cultural
dora do brincar e o papel do diálogo entre do processo de constituição do conhecimen-
adultos e crianças; e a compreensão de que a to e da formação humana? Ou têm privilegia-
escola não se constitui apenas de alunos e pro- do o ensino das habilidades e dos conteúdos
36 fessores, mas de sujeitos plenos, crianças e básicos das ciências, desprezando a formação
cultural e a função humanizadora da escola? brincar de forma mais positiva, não como opo-
Na realidade, tanto a dimensão científica sição ao trabalho, mas como uma atividade que
quanto a dimensão cultural e artística deveri- se articula aos processos de aprender, se de-
am estar contempladas nas nossas práticas jun- senvolver e conhecer? Vejamos alguns cami-
to às crianças, mas para isso é preciso que as nhos nessa direção.
rotinas, as grades de horários, a organização Os estudos da psicologia baseados em uma vi-
dos conteúdos e das atividades abram espaço são histórica e social dos processos de desen-
para que possamos, junto com as crianças, brin- volvimento infantil apontam que o brincar é
car e produzir cultura. Muitas vezes nos senti- um importante processo psicológico, fonte de
mos aprisionados pelos horários e conteúdos desenvolvimento e aprendizagem. De acordo
rigidamente estabelecidos e não encontramos com Vygotsky (1987), um dos principais re-
espaço para a fruição, para o fazer estético ou presentantes dessa visão, o brincar é uma ati-
a brincadeira. Cabe então a pergunta: é possí- vidade humana criadora, na qual imaginação,
vel organizar nosso trabalho e a escola de ou- fantasia e realidade interagem na produção de
tra forma, de modo que esse espaço seja novas possibilidades de interpretação, de ex-
garantido? Que critérios estão em jogo quan- pressão e de ação pelas crianças, assim como
do significamos nosso tempo como ganho ou de novas formas de construir relações sociais
perdido? Vale a pena refletir sobre essas ques- com outros sujeitos, crianças e adultos. Tal
tões para vislumbrarmos formas de transfor- concepção se afasta da visão predominante da
mar nossa vida nas escolas, organizando-as brincadeira como atividade restrita à assimila-
como espaços nos quais aprendemos e vive- ção de códigos e papéis sociais e culturais, cuja
mos a experiência de sermos sujeitos cultu- função principal seria facilitar o processo de
rais e históricos! socialização da criança e a sua integração à
A brincadeira está entre as atividades sociedade. Ultrapassando essa idéia, o autor
freqüentemente avaliadas por nós como tem- compreende que, se por um lado a criança de
po perdido. Por que isso ocorre? Ora, essa vi- fato reproduz e representa o mundo por meio
são é fruto da idéia de que a brincadeira é uma das situações criadas nas atividades de brinca-
atividade oposta ao trabalho, sendo por isso deiras, por outro lado tal reprodução não se
menos importante, uma vez que não se vincu- faz passivamente, mas mediante um processo
la ao mundo produtivo, não gera resultados. E ativo de reinterpretação do mundo, que abre
é essa concepção que provoca a diminuição lugar para a invenção e a produção de novos
dos espaços e tempos do brincar à medida que significados, saberes e práticas.
avançam as séries/anos do ensino fundamen- Ao observarmos as crianças e os adolescentes
tal. Seu lugar e seu tempo vão se restringindo de nossas escolas brincando, podemos
à “hora do recreio”, assumindo contornos cada conhecê-los melhor, ultrapassando os muros
vez mais definidos e restritos em termos de da escola, pois uma parte de seus mundos e
horários, espaços e disciplina: não pode correr, experiências revela-se nas ações e significados
pular, jogar bola etc. Sua função fica reduzida que constroem nas suas brincadeiras. Isso por-
a proporcionar o relaxamento e a reposição que o processo do brincar referencia-se naqui-
de energias para o trabalho, este sim sério e lo que os sujeitos conhecem e vivenciam. Com
importante. Mas a brincadeira também é sé- base em suas experiências, os sujeitos
ria! E no trabalho muitas vezes brincamos e na reelaboram e reinterpretam situações de sua vida
brincadeira também trabalhamos! Diante des- cotidiana e as referências de seus contextos
sas considerações, será que podemos pensar o socioculturais, combinando e criando outras 37
realidades. Quando as crianças pequenas brin- (Benjamim, 1984). Vozes, gestos, narrativas e
cam de ser “outros” (pai, mãe, médico, mons- cenários criados e articulados pelas crianças
tro, fada, bruxa, ladrão, bêbado, polícia, etc.), configuram a dimensão imaginária, revelan-
refletem sobre suas relações com esses outros e do o complexo processo criador envolvido no
tomam consciência de si e do mundo, estabele- brincar.
cendo outras lógicas e fronteiras de significação É importante ressaltar que a brincadeira não é
da vida. O brincar envolve, portanto, comple- algo já dado na vida do ser humano, ou seja,
xos processos de articulação entre o já dado e o aprende-se a brincar, desde cedo, nas relações
novo, entre a experiência, a memória e a imagi- que os sujeitos estabelecem com os outros e
nação, entre a realidade e a fantasia. com a cultura. O brincar envolve múltiplas
A imaginação, constitutiva do brincar e do aprendizagens. Vamos tentar explicitar algu-
processo de humanização dos homens, é um mas delas.
importante processo psicológico, iniciado na Um primeiro aspecto que podemos apontar é
infância, que permite aos sujeitos se des- que o brincar não apenas requer mui-
prenderem das restrições impostas tas aprendizagens, mas constitui
pelo contexto imediato e um espaço de aprendizagem.
transformá-lo. Combinada Vygotsky (1987) afirma
com uma ação performativa A brincadeira não é que na brincadeira “a cri-
construída por gestos, algo já dado na vida ança se comporta além
movimentos, vozes, for- do comportamento ha-
do ser humano, ou
mas de dizer, roupas, ce- bitual de sua idade,
nários etc., a imaginação seja, aprende-se a
além de seu comporta-
estabelece o plano do brincar, desde cedo,
mento diário; no brin-
brincar, do fazer de con- nas relações que os quedo, é como se ela
ta, da criação de uma re- sujeitos estabelecem fosse maior do que ela é
alidade “fingida”. com os outros e com na realidade” (p.117).
Vygotsky (1987) defende Isso porque a brincadeira,
a cultura
que nesse novo plano de pen- na sua visão, cria uma zona de
samento, ação, expressão e comu- desenvolvimento proximal, per-
nicação, novos significados são mitindo que as ações da criança ultra-
elaborados, novos papéis sociais e ações sobre passem o desenvolvimento já alcançado
o mundo são desenhados, e novas regras e re- (desenvolvimento real), impulsionando-a a
lações entre os objetos e os sujeitos, e desses conquistar novas possibilidades de compreen-
entre si, são instituídas. são e de ação sobre o mundo.
É assim que cabos de vassoura tornam-se ca-
O brincar supõe também o aprendizado de uma
valos e com eles as crianças cavalgam para
forma particular de relação com o mundo
outros tempos e lugares; pedaços de pano trans-
marcada pelo distanciamento da realidade da
formam-se em capas e vestimentas de prínci-
pes e princesas; pedrinhas em comidinhas; vida comum, ainda que nela referenciada. As
cadeiras em trens; crianças em pais, professo- brincadeiras de imaginação/fantasia, por exem-
res, motoristas, monstros, super-heróis etc. A plo, exigem que seus participantes compreen-
“criança quer puxar uma coisa torna-se cava- dam que o que está se fazendo não é o que
lo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, aparenta ser. Quando o adulto imita uma bru-
38 quer esconder-se e torna-se ladrão ou guarda” xa para uma criança, esta sabe que ele não é
uma bruxa, por isso pode experimentar, com Mariana, sentada em cima do
segurança, a tensão e o medo, e solucioná-los escorrega, olha para Isabela que está
fugindo ou prendendo a bruxa. Quando as embaixo:
crianças brincam de luta, é preciso que elas Eu tô presa!
saibam que aqueles gestos e movimentos cor- Isabela: Dá a carteira de identidade pra
porais “fingem” uma luta, não causando ma- ele! Abaixa-se e pega uma folha.
chucados uns nos outros. A brincadeira é um Mariana pega um objeto pequeno de
espaço de “mentirinha”, no qual os sujeitos têm borracha que está em cima do
o controle da situação. Justamente essa atitu- escorrega e mostra para João.
de não-literal permite que a brincadeira seja Mariana: Eu tenho, eu tenho!
desprovida das conseqüências que as mesmas João, olhando o objeto: Pode sair!
ações teriam na realidade imediata, abrindo Isabela dá a folha para João.
janelas para a incoerência, para a ultrapassa- João: É papel, é papel! E a deixa sair.
gem de limites, para as transgressões, para no- Se analisarmos esse fragmento, que corres-
vas experiências. ponde a um tipo de brincadeira altamente
Vejamos uma situação3 observada em uma es- apreciado por grande parte das crianças dessa
cola pública. Um grupo de meninos e meni- faixa etária, veremos quantos aspectos presen-
nas de cinco e seis anos brinca de polícia e tes envolvem aprendizagens variadas – cada
ladrão no parque da escola. Usam pás, gravetos criança se comporta de acordo com seu papel
e ancinhos como se fossem armas, empunhan- e com as idéias gerais que definem o universo
do-os, emitindo sons e fingindo atirar: Pou, simbólico da brincadeira: os policiais perse-
pou! Os papéis assumidos pelas crianças se di- guem e prendem enquanto os ladrões fogem e
videm entre policiais e ladrões e à medida que salvam os companheiros; ambos usam armas,
vão entrando e participando da brincadeira, transformando o significado de objetos que en-
as crianças escolhem: Eu sou ladrão, eu sou po- contram no parque; os gestos e as ações aju-
lícia! Muitas vezes é necessário negociar: Não, dam a significar os objetos e a construir a
alguém tem de ser polícia! Eu não vou ser! Eu narrativa da brincadeira. Estão em jogo tam-
sou, eu sou polícia! A brincadeira consiste na bém habilidades de correr, pular, subir, expres-
perseguição dos policiais aos ladrões. Esses úl- sar-se e comunicar-se, garantindo que todos
timos precisam correr muito para fugir. “Poli- compreendam que o que se faz ali é brincadei-
ciais” e “ladrões” sobem e descem escorregas, ra e não a realidade da vida comum. Elemen-
trepa-trepa, entram e saem da casinha, per- tos novos, como a carteira de identidade, são
correndo toda a extensão do parque. As ex- introduzidos na brincadeira e facilmente in-
pressões, gestos, movimentos e falas revelam corporados pelas crianças, o que podemos ob-
grande envolvimento e excitação das crian- servar pela coordenação de suas ações. Para
tanto, tais elementos se conectam com as re-
ças. Em alguns momentos, os policiais pren-
ferências socioculturais das crianças – o valor
dem um dos ladrões, segurando-o, fingindo dar
da carteira de identidade como documento
uma “gravata”, derrubando-o. Algum compa-
principal de identificação do cidadão –, possi-
nheiro aparece para salvá-lo. A um dado mo-
bilitando a construção de um significado co-
mento, João diz que prendeu Mariana na parte
mum partilhado no espaço do brincar.
de cima do escorrega.

3
Situação retirada de: BORBA, A. M. Culturas da infância nos espaços-tempos do brincar: um estudo com crianças de 4-6 anos
em instituição pública de educação infantil. Tese de doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2005. 39
Se observarmos com cuidado diferentes e Sua apropriação se dá no próprio processo de
variadas situações de brincadeiras coletivas brincar. É brincando que aprendemos a brincar.
organizadas por crianças e adolescentes – É interagindo com os outros, observando-os e
como queimado, pique-bandeira, corda, elás- participando das brincadeiras que vamos nos
tico, jogos de imaginação (cenas domésticas, apropriando tanto dos processos básicos
personagens e enredos de novelas, contos de constitutivos do brincar, como dos modos par-
fadas, séries televisivas etc.), entre outras possi- ticulares de brincadeira, ou seja, das rotinas,
bilidades –, poderemos aprender muito sobre regras e universos simbólicos que caracterizam
as crianças e os processos de desenvolvimento e especificam os grupos sociais em que nos in-
e aprendizagem envolvidos em suas ações. Ob- serimos.
servemos com atenção suas falas, expressões e Um outro aspecto a ressaltar é que os modos
gestos enquanto brincam. Ficaremos impres- de comunicar característicos da brincadeira
sionados com seu investimento no planeja- constituem-se por novas regras e limites, dife-
mento e na organização das brincadeiras com rentes da comunicação habitual. Esses limites
a intenção de definir e de negociar papéis, tur- são definidos pelo compromisso com o reco-
nos de participação, cenários, regras, ações, nhecimento do brincar como uma outra reali-
significados e conflitos. É também surpreen- dade, uma nova ordem, seja no contexto dos
dente, principalmente nos jogos de imagina- jogos de faz-de-conta, em que as situações e
ção (faz-de-conta), a maneira como as crianças regras são estabelecidas pelos significados ima-
agem, diferente da habitual, modificando as ginados e criados nas interações entre as cri-
vozes, a entonação de suas falas, o vocabulá- anças, seja no plano dos jogos/brincadeiras com
rio, os gestos, os modos de andar etc.! Para ser regras pré-existentes (bola de gude, amareli-
monstro, Pedro não pode se comportar como nha, queimada etc.). É importante enfatizar
Pedro, e terá de andar, expressar-se, falar e agir que o modo de comunicar próprio do brincar
como monstro. No entanto, Pedro não deixa não se refere a um pensamento ilógico, mas a
de ser Pedro, apenas finge para convencer os um discurso organizado com lógica e caracte-
parceiros de que é um monstro “de men- rísticas próprias, o qual permite que as crian-
tirinha”. Parece que estamos diante de atores ças transponham espaços e tempos e transitem
de teatro, compromissados com a verdade da- entre os planos da imaginação e da fantasia,
quelas ações representadas! Quantos conhe- explorando suas contradições e possibilidades.
cimentos estão envolvidos nessas ações!
Assim, o plano informal das brincadeiras pos-
Essas observações levam-nos a perceber que a sibilita a construção e a ampliação de compe-
brincadeira requer o aprendizado de uma for- tências e conhecimentos nos planos da
ma específica de comunicação que estabelece cognição e das interações sociais, o que certa-
e controla esse universo simbólico e o espaço mente tem conseqüências na aquisição de co-
interativo em que novos significados estão sen- nhecimentos no plano da aprendizagem
do partilhados. Dito de outra forma, a apro- formal. A partir das considerações feitas até
priação dessa forma de comunicação é aqui, vale a pena refletir sobre as relações en-
condição para a construção das situações ima- tre aquilo que o brincar possibilita – tais como
ginadas (falas/diálogos dos personagens, nar- aprender a olhar as coisas de outras maneiras
rativas das ações e acontecimentos), bem atribuindo-lhes novos significados, a estabe-
como para a organização e o controle da brin- lecer novas relações entre os objetos físicos e
cadeira pelas crianças. Mas de que maneira se sociais, a coordenar as ações individuais com
40 constrói e se organiza esse modo de comunicar? as dos parceiros, a argumentar e a negociar, a
organizar novas realidades a partir de planos pelos sujeitos nos contextos históricos e soci-
imaginados, a regular as ações indivi- ais em que se inserem. Representa, dessa
duais e coletivas a partir de idéias e forma, um acervo comum sobre o
regras de universos simbólicos – qual os sujeitos desenvolvem
e o processo de constituição de atividades conjuntas. Por
conhecimentos pelas crian- Os processos de outro lado, o brincar é um
ças e pelos adolescentes. Os desenvolvimento dos pilares da constituição
processos de desenvolvi- e de aprendizagem de culturas da infância,
mento e de aprendizagem envolvidos no brincar são compreendidas como sig-
envolvidos no brincar são também constitutivos do nificações e formas de
também constitutivos do ação social específicas que
processo de apropriação
processo de apropriação de estruturam as relações das
conhecimentos! A possibili- de conhecimentos! crianças entre si, bem como
dade de imaginar, de ultrapas- os modos pelos quais interpre-
sar o já dado, de estabelecer novas tam, representam e agem sobre
relações, de inverter a ordem, de ar- o mundo. Essas duas perspectivas
ticular passado, presente e futuro potencializa configuram o brincar ao mesmo tempo como
nossas possibilidades de aprender sobre o mun- produto e prática cultural, ou seja, como
do em que vivemos! patrimônio cultural, fruto das ações humanas
Podemos afirmar, a partir dessas reflexões, que transmitidas de modo inter e intrageracional,
o brincar é um espaço de apropriação e cons- e como forma de ação que cria e transforma
tituição pelas crianças de conhecimentos e ha- significados sobre o mundo.
bilidades no âmbito da linguagem, da Constituindo um saber e um conjunto de prá-
cognição, dos valores e da sociabilidade. E que ticas partilhadas pelas crianças, o brincar está
esses conhecimentos se tecem nas narrativas estreitamente associado à sua formação como
do dia-a-dia, constituindo os sujeitos e a base sujeitos culturais e à constituição de culturas
para muitas aprendizagens e situações em que em espaços e tempos nos quais convivem co-
são necessários o distanciamento da realidade tidianamente. Esse saber, base comum sobre a
cotidiana, o pensar sobre o mundo e o qual as crianças desenvolvem coletivamente
interpretá-lo de novas formas, bem como o de- suas brincadeiras, é composto de elementos ex-
senvolvimento conjunto de ações coordena- teriores e interi ores às comunidades infantis.
das em torno de um fio condutor comum. Externamente, pode ter como fontes a cultu-
ra televisiva, o mercado de brinquedos, a edu-
Brincadeira, cultura e
cação dos adultos e as suas representações
conhecimento: a função huma-
sobre a brincadeira e a infância, além das prá-
nizadora da escola
ticas culturais transmitidas por outras crianças
Vamos refletir agora sobre as relações entre o e adultos. Internamente, compõe-se de atitu-
brincar, a cultura e o conhecimento na exis- des coletivas e elementos culturais particula-
tência humana e, mais particularmente, na res (regras, modos de falar e de fazer, valores,
experiência da infância. técnicas, artefatos etc.) gerados nas práticas e
Por um lado, podemos dizer que a brincadeira é reinterpretações dos elementos externos. Exis-
um fenômeno da cultura, uma vez que se con- te assim uma dinâmica entre universalidade e
figura como um conjunto de práticas, conheci- diversidade que se traduz em permanências e
mentos e artefatos construídos e acumulados transformações, configurando o brincar como 41
uma complexa experiência cultural que simul- desafiar os limites da realidade cotidiana. A
taneamente une e especifica os grupos sociais. idéia de liberdade está associada, entretanto,
não à ausência de regras, mas à criação de for-
Pintores, poetas, escritores, cineastas,
mas de expressão e de ação e à definição de
teatrólogos costumam utilizar o tema da infân-
novos planos de significação que implicam
cia e dos brinquedos e brincadeiras em suas
novas formas de compreender o mundo e a si
obras, ofecerendo-nos, por meio do olhar ar-
mesmo.
tístico, interpretações sensíveis.
Pipas colorindo os céus. Crianças e adultos,
- O bom da pipa não é mostrar aos
outros, é sentir individualmente a pipa, em todas as regiões do Brasil e em várias par-
dando ao céu o recado da gente. tes do mundo “empinam” esse brinquedo, com
- Que recado? Explique isso direito! modos variados de confeccioná-lo, praticá-lo,
João olhou-me com delicado desprezo. significá-lo e com ele estabelecer relações so-
- Pensei que não precisasse. Você solta ciais. Universalidade e pluralidade são suas
o bichinho e solta-se a si mesmo. Ela é marcas, e de muitos outros brinquedos e brin-
sua liberdade, o seu eu, girando por aí, cadeiras, como a amarelinha. Domínio da ex-
dispensado de todas as limitações. periência humana e ao mesmo tempo
(Carlos Drummond de Andrade apud especificidade de grupos sociais.
Carvalho, Ana M.A. e Pontes,
Pega-pega, pira, picula. Pique-cola, pique-bai-
Fernando A.R.)
xo, pique-alto, pique-estátua, pique-fruta. Dife-
Drummond expressa o sentimento de liberda- rentes denominações e variações para uma
de e desprendimento promovido pela brinca- brincadeira cuja estrutura básica é a persegui-
deira. Brincar seria “soltar-se a si mesmo”, ção e a fuga, ou seja, há um pegador que corre
desprender-se da realidade imediata e de seus atrás dos demais tentando alcançá-los. A brin-
limites, voar, lançar-se ao céu, mas ao mesmo cadeira percorre três etapas básicas: a partir da
tempo diríamos que é possuir o controle do formação do grupo, a escolha do “pegador”; o
vôo nas mãos, segurando e movimentando a
desenvolvimento do jogo por meio de tenta-
linha da pipa e regendo o “eu” por meio dos
tivas de pegar e do revezamento de pegadores;
contornos dessa nova dimensão da realidade.
e a finalização.
Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês Um repertório de brincadeiras, cujos esquemas
A noiva do caubói era você além das básicos ou rotinas são partilhados pelas crian-
outras três ças, compõe a cultura lúdica infantil, ou seja,
Eu enfrentava os batalhões, os alemães o conjunto de experiências que permite às cri-
e seus canhões anças brincar juntas (Brougère, 2002, 2004).
Guardava o meu bodoque e ensaiava o Esses esquemas, contudo, não são estáticos,
rock para as matinês mas transpostos e transformados de um con-
(João e Maria – Chico Buarque) texto para o outro. Nesse sentido, são influen-
A liberdade no brincar se configura no inver- ciados tanto pelo contexto físico do ambiente,
ter a ordem, virar o mundo de ponta-cabeça, a partir dos recursos naturais e materiais dis-
fazer o que parece impossível, transitar em di- poníveis, como também pelo contexto simbó-
ferentes tempos – passado, presente e futuro – lico, ou seja, pelos significados pré-existentes
Agora eu era o herói... Rodar até cair, ficar tonto e partilhados pelo grupo de crianças. Desse
42 de tanto correr, ser rei, caubói, ladrão, polícia, modo, ambientes escolares organizados para a
brincadeira, compostos de mobiliário e obje- e disputas. Nesse contexto, as crianças esta-
tos vinculados à vida doméstica, suscitam belecem laços de sociabilidade e constro-
brincadeiras de papéis familiares; rios, em sentimentos e atitudes de
mares, lama e areia geram brinca- solidariedade e de amizade.
deiras de nadar, pular, fazer cas- A brincadeira é É importante demarcar que no
telos; personagens de novela brincar as crianças vão se cons-
um lugar de
conhecidos pelas crianças cri- tituindo como agentes de sua
am brincadeiras de papéis e construção de
experiência social, organizan-
cenas domésticas; super-heróis culturas fundado
do com autonomia suas ações
tematizam piques e brincadei- nas interações e interações, elaborando pla-
ras de perseguição. sociais entre as nos e formas de ações conjun-
Todos esses elementos externos crianças tas, criando regras de
ao jogo, localizados na escola, na fa- convivência social e de participação
mília, no bairro ou na mídia televisiva, nas brincadeiras. Nesse processo, insti-
entre outros espaços propiciadores de experi- tuem coletivamente uma ordem social que rege
ências sociais e culturais, são reinterpretados as relações entre pares e se afirmam como au-
pelas crianças e articulados às suas experiênci- toras de suas práticas sociais e culturais.
as lúdicas. A partir daí, geram-se novos modos
Brincar com o outro, portanto, é uma experi-
de brincar. A televisão, por exemplo, é um ele-
ência de cultura e um complexo processo
mento externo de grande influência hoje, mas
interativo e reflexivo que envolve a constru-
é preciso salientar que suas imagens e repre-
ção de habilidades, conhecimentos e valores
sentações não são simplesmente imitadas pe-
sobre o mundo. O brincar contém o mundo e
las crianças, mas recriadas a partir de suas
ao mesmo tempo contribui para expressá-lo,
práticas lúdicas. Assim, podemos ver os bo-
pensá-lo e recriá-lo. Dessa forma, amplia os co-
necos Power Rangers - personagens de uma
nhecimentos da criança sobre si mesma e so-
série televisiva - lutando e usando seus pode-
bre a realidade ao seu redor.
res nas mãos das crianças, mas também co-
mendo, dormindo, brincando com bonecas As reflexões que desenvolvemos até aqui nos
Barbie, etc. Para que se abram e se ampliem levam a perguntar: como temos significado e
as possibilidades de criação no brincar é im- compartilhado com as crianças e os adolescen-
prescindível, contudo, que as crianças te- tes suas experiências de brincadeiras? O espa-
nham acesso a espaços coletivos de ço do brincar nas nossas escolas é apenas
brincadeira e a experiências de cultura. passatempo e liberação-reposição de energias
para alimentar o trabalho? Ou é uma forma de
A brincadeira é um lugar de construção de
interpretar, agir e nos relacionar com o mun-
culturas fundado nas interações sociais entre
do e com os outros, vivenciada como experi-
as crianças. É também suporte da sociabili-
ência que nos humaniza, levando-nos à
dade. O desejo de brincar com o outro, de
apropriação de conhecimentos, valores e sig-
estar e fazer coisas com o outro, é a principal
razão que leva as crianças a se engajarem em nificados, com imaginação, humor,
grupos de pares. Para brincar juntas, necessi- criatividade, paixão e prazer?
tam construir e manter um espaço interativo Mas sabemos verdadeiramente o que é brin-
de ações coordenadas, o que envolve a parti- car e de que e como nossas crianças e adoles-
lha de objetos, espaços, valores, conhecimen- centes brincam? Pensar sobre a função
tos e significados e a negociação de conflitos humanizadora da brincadeira nos provoca 43
inquietações quanto à organização da escola e entre pares se observarmos: que assuntos es-
do trabalho pedagógico. Como podemos tão em jogo quando brincam? Como se orga-
transformá-los de forma que deixem a brinca- nizam em grupos? Que critérios e valores
deira fruir? Nos provoca também a redescobrir perpassam a escolha/seleção dos parceiros
em nós mesmos o gosto e o prazer do fazer (amizade, alianças, hierarquias, preconceitos,
lúdico e das brincadeiras, levando-nos a bus- relações de poder, etc.)? Que conhecimen-
car em nossas experiências de infância, em lei- tos as crianças e os adolescentes revelam?
turas e por meio de um olhar atento às Quais são as regras que regem as relações en-
diferentes práticas culturais de brincadeira que tre pares?
identificam os grupos sociais, fontes para a Essas observações e o que podemos aprender
ampliação do nosso repertório e das nossas com elas contribuem para a nossa aproxima-
formas de ação lúdica sobre o mundo. Afi- ção cultural com as crianças e para compreen-
nal, brincar é uma experiência de cultura im- dermos melhor a importância do brincar nas
portante não apenas nos primeiros anos da suas vidas. Certamente ficará mais claro para
infância, mas durante todo o percurso de vida nós que o brincar é uma atividade humana
de qualquer ser humano, portanto, também significativa, por meio da qual os sujeitos se
deve ser garantida em todos os anos do ensi- compreendem como sujeitos culturais e huma-
no fundamental e etapas subseqüentes da nos, membros de um grupo social e que, como
nossa formação! tal, constitui um direito a ser assegurado na
Uma excelente fonte de conhecimentos so- vida do homem. E o que dirá na vida das cri-
bre o brincar e sobre as crianças e os adoles- anças, em que esse tipo de atividade ocupa um
centes é observá-los brincando. Penetrar nos lugar central, sendo uma de suas principais
seus jogos e brincadeiras contribui, por um formas de ação sobre o mundo! Perceberemos
lado, para colhermos informações importan- também, com mais profundidade, que a esco-
tes para a organização dos espaços-tempos es- la, como espaço de encontro das crianças e
colares e das práticas pedagógicas de forma que dos adolescentes com seus pares e adultos e
possam garantir e incentivar o brincar. Por com o mundo que os cerca, assume o papel
outro lado, ajuda na criação de possibilidades fundamental de garantir em seus espaços o di-
de interações e diálogos com as crianças, uma reito de brincar. Além disso, ao situarmos nos-
vez que propicia a compreensão de suas lógi- sas observações no contexto da
cas e formas próprias de pensar, sentir e fazer e contemporaneidade, veremos que esse papel
de seus processos de constituição de suas iden- cresce em importância na medida em que a
tidades individuais e culturas de pares. Medi- infância vem sendo marcada pela diminuição
ante nossas observações, podemos dos espaços públicos de brincadeira, pela falta
compreender melhor a dinâmica do brincar, de tempo para o lazer, pelo isolamento, sendo
perguntando-nos: de que as crianças e os ado- a escola muitas vezes o principal universo de
lescentes brincam? Que temas e objetos/brin- construção de sociabilidade.
quedos estão envolvidos? Que brincadeiras se Vamos refletir agora sobre as práticas que nos
repetem cotidianamente? Que regras organi- aproximam e, ao mesmo tempo, sobre aquelas
zam as brincadeiras? Em que espaços e duran- que nos afastam das concepções sobre a brin-
te quanto tempo brincam? Como se escolhem cadeira que discutimos até aqui. O brincar é
e se distribuem os participantes? Que papéis sugerido em muitas propostas e práticas peda-
são assumidos por eles? Aprenderemos muito gógicas com crianças e adolescentes como um
44 também sobre as suas vidas e suas relações pretexto ou instrumento para o ensino de
conteúdos. Como exemplo, temos atividades, constituem formas interes-
músicas para memorizar informa- santes de aprender brincando ou
ções, jogos de operações matemá- de brincar aprendendo. Quantos
ticas, jogos de correspondência Ao planejarmos de nós lembramos das muitas
entre imagens e palavras escri- atividades lúdicas, descobertas que fizemos por
tas, entre outros. Mas quando é importante meio de jogos e atividades
compreendidos apenas como perguntar: a que lúdicas? Se incorporarmos de
recursos, perdem o sentido de forma mais efetiva a
fins e a quem estão
brincadeira e, muitas vezes, até ludicidade nas nossas práticas,
servindo? estaremos potencializando as
mesmo o seu caráter lúdico, assu-
mindo muito mais a função de trei- possibilidades de aprender e o in-
nar e sistematizar conhecimentos, uma vestimento e o prazer das crianças e dos
vez que são usados com o objetivo principal adolescentes no processo de conhecer. E com
de atingir resultados preestabelecidos. É pre- certeza descobriremos também novas formas
ciso compreender que o jogo como recurso de ensinar e de aprender com as crianças e os
didático não contém os requisitos básicos que adolescentes!
configuram uma atividade como brincadei- Mas como planejar essas atividades? Um bom
ra: ser livre, espontâneo, não ter hora começo é nos perguntarmos: Conhecemos
marcada, nem resultados prévios e determi- bem nossas crianças ou adolescentes? Sabemos
nados. Isso não significa que não possamos do que gostam ou não de fazer, de seus inte-
utilizar a ludicidade na aprendizagem, medi- resses, de suas práticas? Sabemos ouvi-los? Cri-
ante jogos e situações lúdicas que propiciem amos espaços para que eles também nos
a reflexão sobre conceitos matemáticos, conheçam? A abertura de portas para o en-
lingüísticos ou científicos. Podemos e deve- contro e a proximidade cultural com as crian-
mos, mas é preciso colocá-la no real espaço ças e os adolescentes é fundamental para
que ocupa no mundo infantil, e que não é o organizarmos atividades que estejam em mai-
da experiência da brincadeira como cultura. or sintonia com seus interesses e necessidades.
Constituem apenas diferentes modos de en- Ao planejarmos atividades lúdicas, é impor-
sinar e aprender que, ao incorporarem a tante perguntar: a que fins e a quem estão ser-
ludicidade, podem propiciar novas e interes- vindo? Como estão sendo apresentadas?
santes relações e interações entre as crianças Permitem a escuta das vozes das crianças?
e destas com os conhecimentos. Como posso me posicionar junto a elas de
Existem inúmeras possibilidades de incorpo- modo que promova uma experiência lúdica?
rar a ludicidade na aprendizagem, mas para que O que se quer é apenas uma animação ou a
uma atividade pedagógica seja lúdica é impor- intenção é possibilitar uma experiência em que
tante que permita a fruição, a decisão, a esco- se estabeleçam novas e diversas relações com
lha, as descobertas, as perguntas e as soluções os conhecimentos?
por parte das crianças e dos adolescentes, do É importante demarcar que o eixo principal
contrário, será compreendida apenas como em torno do qual o brincar deve ser incorpo-
mais um exercício. No processo de alfabetiza- rado em nossas práticas é o seu significado
ção, por exemplo, os trava-línguas, jogos de como experiência de cultura. Isso exige a ga-
rima, lotos com palavras, jogos da memória, rantia de tempos e espaços para que as própri-
palavras cruzadas, língua do pê e outras lín- as crianças e os adolescentes criem e
guas que podem ser inventadas, entre outras desenvolvam suas brincadeiras, não apenas em 45
locais e horários destinados pela escola a essas relacionar com os outros. Percebendo as ali-
atividades (como os pátios e parques para a anças, amizades, hierarquias e relações de po-
recreação), mas também nos espaços das salas der entre pares. Estabelecendo pontes, com
de aula, por meio da invenção de diferentes base nessas observações, entre o que se apren-
formas de brincar com os conhecimentos. Mas de no brincar e em outras atividades, fornecen-
de que maneira podemos assegurar nas nossas do para as crianças a possibilidade de
práticas escolares que o brincar seja vivido enriquecerem-nas mutuamente. Centrando a
como experiência de cultura? Vamos pensar ação pedagógica no diálogo com as crianças e
juntos alguns caminhos. os adolescentes, trocando saberes e experiênci-
Organizando rotinas que propiciem as, trazendo a dimensão da imaginação
a iniciativa, a autonomia e as e da criação para a prática cotidia-
interações entre crianças. Cri- na de ensinar e aprender.
ando espaços em que a vida O eixo principal Enfim, é preciso deixar que
pulse, onde se construam em torno do qual o as crianças e os adolescen-
ações conjuntas, amizades brincar deve ser tes brinquem, é preciso
sejam feitas e criem-se cul- incorporado em aprender com eles a rir, a
turas. Colocando à dispo- inverter a ordem, a repre-
sição das crianças materiais
nossas práticas é o sentar, a imitar, a sonhar e
e objetos para descobertas, seu significado a imaginar. E no encontro
ressignificações, transgres- como experiência com eles, incorporando a di-
sões. Compartilhando brinca- de cultura. mensão humana do brincar, da
deiras com as crianças, sendo poesia e da arte, construir o per-
cúmplice, parceiro, apoiando-as, res- curso da ampliação e da afirmação de
peitando-as e contribuindo para ampliar seu conhecimentos sobre o mundo. Dessa forma,
repertório. Observando-as para melhor abriremos o caminho para que nós, adultos e
conhecê-las, compreendendo seus universos crianças, possamos nos reconhecer como su-
e referências culturais, seus modos próprios jeitos e atores sociais plenos, fazedores da nos-
de sentir, pensar e agir, suas formas de se sa história e do mundo que nos cerca.

46
Referências Bibliográficas

ANDRADE. C. D. apud CARVALHO, Ana M.A.; PONTEs, Fernando A.R. Brincadeira é


cultura. In: Carvalho, Ana M. A. et alii (Org.) Brincadeira e cultura: viajando pelo Brasil que
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VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

47
48
AS DIVERSAS EXPRESSÕES
E O DESENVOLVIMENTO DA
CRIANÇA NA ESCOLA
Ângela Mayer Borba 1
Cecília Goulart 2

Pescadores de vida
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago
Kovadloff, levou-o para descobrir o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas,
esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram
aquelas alturas de areia, depois de muito
caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E
foi tanta a imensidão do mar e tanto o seu fulgor,
que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo,
gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!

Eduardo Galeano

dança, o teatro, a música, a literatura, vida, reproduzindo-a e tornando-a objeto de

A as artes visuais e as artes plásticas re


presentam formas de expressão criadas
pelo homem como possibilidades diferencia-
reflexão. Sendo assim, convidamos os profes-
sores para refletirem conosco sobre esses espa-
ços nas escolas. Que sentidos assumem na
formação das crianças e dos adolescentes?
das de dialogar com o mundo. Esses diferentes
domínios de significados constituem espaços Como incorporá-los nas práticas pedagógicas
de criação, transgressão, formação de sentidos cotidianas e no currículo escolar?
e significados que fornecem aos sujeitos, auto- O debate atual em torno da necessidade de
res ou contempladores, novas formas de incluir a dimensão artístico-cultural na forma-
inteligibilidade, comunicação e relação com a ção de crianças e de adolescentes caminha na

1
BORBA, Angela Meyer. Doutora em Educação – Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
GOULART, Cecília. Doutora em Letras – Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). 49
direção não apenas das questões relativas ao elaborando e reconhecendo de modo sensí-
acesso e à apropriação da produção existente, vel nosso pertencimento ao mundo.
como também da organização da escola como A chamada natureza humana não existe de
espaço de criação estética. Nesse contexto, a modo independente da cultura; o homem, di-
arte não está a “serviço da educação” (Ostetto
ferentemente dos animais, não é capaz de or-
e Leite, 2004), mas constitui-se como expe-
ganizar sua experiência sem a orientação de
riência estética e humana, como área de co-
sistemas simbólicos. Os símbolos não são sim-
nhecimento que tem seus conteúdos próprios.
ples expressões e instrumentos da natureza
É importante não reduzir a arte a mero recur-
humana – são historicamente constituidores
so ou pretexto para o ensino de conteúdos pri-
da natureza das pessoas, de diferentes manei-
vilegiados na escola, pois qualquer tentativa
ras. Há situações culturais, formas de vida,
de normatizá-la como recurso didático leva à
objetos e saberes que são peculiares a determi-
sua destruição. Como nos diz Kramer (1998)
nados grupos e sociedades e não podem ser
“Para ser educativa a arte precisa ser arte e não
desprezados, sob o risco de serem
arte educativa”. O que significa então traba-
descaracterizados cultural e politicamente,
lhar com arte nas escolas?
despersonalizados, pelo valor humano essen-
Para encaminhar essa discussão, vamos refle- cial que possuem para aquelas pessoas que têm
tir sobre as relações entre arte, cultura e co- suas vidas por eles marcadas.
nhecimento no espaço escolar, focalizando a
Na educação, considerando os objetivos de
importância da apreciação e da criação artísti-
alargar e aprofundar o conhecimento do ser
co-cultural na formação das crianças. Refleti-
humano, possibilitando-lhe maior compreen-
remos, também, sobre possibilidades de
são da realidade e maior participação social,
trabalho com as variadas formas de expressões
não podemos prescindir de trabalhar com a
artísticas.
arte. Daí a necessidade de levar crianças e ado-
Arte, cultura, conhecimento e lescentes a participar de exposições de vários
educação: apreciação e criação tipos, assistir a filmes, danças, ouvir músicas
estética de diferentes compositores, entre muitas ou-
tras atividades. Hoje, por meio de novas
A arte, a linguagem e o conhecimento, de tecnologias como CDs, DVDs, e mesmo a te-
modo geral, são frutos da ação humana sobre levisão, esse trabalho está facilitado.
o mundo, sobre a realidade. Ao mesmo tempo
É importante também que as crianças tenham
em que os criamos, agem sobre nós, identifi- acesso a livros de arte (há coleções inclusive
cando-nos de muitas maneiras, dependentes em jornaleiros), de literatura e também acesso
do tempo histórico e dos grupos sociais em que a livros biográficos de autores de produções
nascemos. A arte, a linguagem e o conheci- artísticas, não só contemporâneos. Nossa sen-
mento fazem parte do acervo cultural do ho- sibilidade e nossos modos de ler o mundo se
mem, como resultado de suas necessidades ampliam pelo conhecimento das obras e das
filosóficas, biológicas, psicológicas e sociais, vidas das pessoas que as elaboraram –
entre outras. Estabelecemos novas realidades, redimensionamos a nossa condição humana e
novas formas de inserção no mundo e de vi- as nossas possibilidades de viver e agir no mun-
são deste mesmo mundo, quando, como auto- do, engrandecendo-as. Propiciar às crianças
res e atores, dançamos, pintamos, tocamos e aos adolescentes o prazer do exercício de ex-
instrumentos, entre muitas outras possibilidades, plorar as potencialidades de todo mundo e de
50
cada um, conhecendo outras formas de ordem pastas-catálogo, DVDs e livros de arte. Parti-
e de des-ordem, neles mesmos e nos outros. A ram para o trabalho com as crianças, convi-
educação tem sentido justamente porque nos dando-as a se transportarem para o mundo de
possibilita estabelecer novos entendimentos, cada artista, ouvindo as histórias de cada um e
novas ordens. conhecendo algumas de suas obras. Várias ati-
A produção artística oral, escrita e plástica vidades foram desenvolvidas – observação,
que historicamente os grupos populares vêm descrição e interpretação das obras – e bus-
produzindo faz parte do acervo cultural da cou-se identificar o que os artistas estavam re-
humanidade e nos representa de modo legí- presentando e expressando, a maneira como
timo também. o fizeram, que cores e materiais usaram; com-
paração entre as obras de cada artista e desco-
Educar e ensinar no contexto da cultura é um berta de suas características particulares;
grande desafio. Aprendemos muito também comparação das obras dos diferentes artistas
nós, professores. As obras de arte são modos selecionados; releituras das obras pelas crianças
instigantes de ver e ler o mundo, estão por meio da confecção de obras próprias;
impregnadas de conteúdos sociais elaboração de textos coletivos so-
que, portanto, podem ser ana- bre as aprendizagens e informa-
lisados e debatidos, pelas vá- ções coletadas; visita ao
rias interpretações que museu de Arte Naïf, na ci-
A produção artística
podem suscitar. O olhar dade do Rio de Janeiro;
crítico que as crianças oral, escrita e plástica
e realização de uma Ofi-
desenvolvem com esse que historicamente os cina de Cultura Popu-
tipo de conhecimento, grupos populares vêm lar, em que as pesquisas
muitas vezes, surpreen- produzindo faz parte do e produções das crian-
de-nos. É preciso apos- acervo cultural da ças foram expostas e os
tar muito nas crianças e pais e pessoas do bairro
humanidade e nos
nos adolescentes, em suas foram convidados a rea-
capacidades de aprender e representa de modo
lizar também suas produções.
conhecer. legítimo Por meio desse trabalho, crian-
As professoras Renata dos Santos ças e professores não apenas am-
Melro, Maria Inês Barreto Neto, Adriana pliaram os seus conhecimentos sobre
Santos da Mata e Lílian Cristina de Azevedo arte e cultura, mas também enriqueceram suas
Teixeira de Aguiar, de Niterói/RJ, desenvol- possibilidades de criar, experimentando novas
veram o projeto “Arte Naïf”,3 com crianças de cores, significados, combinações, traços e formas.
3 a 5 anos da educação infantil. Inicialmente, Conforme o relato dessa experiência, desde
as professoras estudaram o tema, buscando muito cedo as crianças podem ter acesso a pro-
compreender o que é Arte Naïf, analisando duções artísticas, fruindo-as, conversando e
obras de pintores e realizando leituras sobre
discutindo sobre as suas impressões e caracte-
aspectos conceituais relacionados à arte e à
rísticas. Que tal vivenciar com as crianças ex-
cultura em geral, e à arte popular e Arte Naïf
em particular. Selecionaram os artistas cujas periências como essa?
obras seriam trabalhadas, organizando e reu- A professora Kátia Raquel Testoni Longen, de
nindo um rico material sobre suas vidas e obras: Atalanta/SC, organizou o projeto Pequenos

3
Trabalho a ser publicado pelo MEC em Prêmio Qualidade na Educação Infantil 2005- Projetos Premiados 51
Poetas, com sua turma de crianças de nove a de sentir, pensar, compreender, dizer e fazer.
onze anos, cujo objetivo foi ampliar a leitura e Significa promover o encontro dos sujeitos
trabalhar a apreciação e a criação de poesias, com diferentes formas de expressão e de com-
de forma que ultrapassassem a concepção re- preensão da vida.
duzida de poesia como aquilo que “rima e Mas como se dá esse encontro? Bakhtin nos
tem sílabas contadas” e alcançassem a com- diz que o sujeito, ao entrar em contato com
preensão de que a poesia é, acima de tudo, uma obra de arte e contemplá-la, vivencia uma
“jogo de palavras, é emoção que desperta, é relação estética movida pela busca de compre-
uma maneira especial de ler e ver o mundo”. ensão de seu significado. A pessoa que aprecia
A professora iniciou o projeto, lendo poesias uma obra, seja ela criança ou adulto, entra em
para as crianças, no início e no fim de cada diálogo com ela, com seu autor e com o con-
dia letivo, durante uma semana, envolvendo texto em que ambos estão referenciados. Rela-
gêneros diferentes, poetas variados (Elias José, ciona-se com os signos que a compõem, elabora
Ruth Rocha, Ferreira Gullar, Olavo Bilac, uma compreensão dos seus sentidos, procuran-
Arnaldo Antunes, Cecília Meireles, Manu- do reconstruir e apreender sua totalidade.
el Bandeira), poesias com e sem rimas, Nessa relação, coloca em articulação a
engraçadas e tristes. Em seguida, a par- experiência nova provocada pela re-
tir do conto “O catador de pensa- A contempla- lação com a obra – de estranhamento
mento”, de Mônica Feth, as crianças ção é um ato da situação habitual, de surpresa, de
foram convidadas a ser “catadores de de criação, de assombro, de inquietação – com a
poesias”, o que consistia em sair pela experiência pessoal acumulada – en-
co-autoria. contros com outras obras, conheci-
escola, pelo bairro, pela cidade e con-
versar com as pessoas sobre poesia, con- mentos apropriados nas práticas sociais
vidando algumas delas para irem à escola e culturais vivenciadas nos espaços familia-
res, escolares, comunitários etc. – trazendo o
declamar uma poesia de sua escolha. A partir
seu ponto de vista para completar a obra. A
da análise de poesias de diversos autores e da
contemplação é um ato de criação, de co-auto-
busca de compreensão de recursos poéticos,
ria. Aquele que aprecia a obra continua a pro-
tais como rimas, intertextualidade, aliterações, dução do autor ao tomar para si o processo de
parlendas, as crianças produziram suas própri- reflexão e de compreensão.
as poesias. Organizaram um livro ao término
do projeto, com uma seleção de temas e pro- Na experiência estética, a apreciação oferece
duções contemplando todas as crianças. Se- o “excedente de visão” (Bakhtin, 2000), aqui-
lo que o outro não vê e que eu vejo, uma vez
gundo a professora Kátia, o projeto ensinou a
que me situo fora do objeto estético. Dele me
todos “que produzir uma boa poesia não é só
distanciando, admirando-o e inquietando-me
uma questão de inspiração, mas sim de busca,
com as emoções que em mim provoca, busco
de reflexão; enfim, que o poeta tem trabalho...” sua compreensão penetrando no seu interior,
(Brasil/MEC – Prêmio Incentivo à Educação voltando então a mim mesmo para lhe dar for-
Fundamental 2004, p.157-164). ma, completando-o e atribuindo-lhe significa-
Tais relatos ajudam-nos a compreender que o dos. Essa relação envolve o entrelaçamento
acesso à arte significa possibilitar às crianças, entre eu-outro, ir e vir, velho e novo, distância
de qualquer idade, e aos professores (as), o e aproximação, atos externos e internos, me-
contato e a intimidade com a arte no espaço mória e imaginação, passado-presente-futuro.
escolar e, dessa forma, abrir caminhos para a A apreciação como ato de criação estética, e
52 experiência estética, provocando novas formas não como atitude passiva ou olhar conformado
que apenas reproduz, está ligada ao grau de viver, um vivenciar-se no fazer; e em vez de
intimidade com as diferentes linguagens e pro- substituir a realidade, é a realidade; é uma rea-
duções artísticas. Intimidade que permite a lidade nova que adquire dimensões novas”
apropriação de sua história, características e (Ostrower, 1986, p.28) com base na imagina-
técnicas próprias e produz o reconhecimento ção e no olhar sensível. É uma realidade em
do prazer e do significado dessa relação. Inti- que o tempo, o espaço e as lógicas da realidade
midade que constrói o olhar que ultrapassa o cotidiana se transformam e assumem uma ou-
cotidiano, colocando-o em outro plano, tra dinâmica, ajudando-nos a ver o mundo
transgredindo-o, construindo múlti- sob outra ótica, outros meios de conhe-
plos sentidos, leituras e formas de cimento.
compreensão da vida. O olhar
A criação geralmente é
aguçado pela sensibilidade, Ninguém cria no identificada com a novidade
pela emoção, pela afeti- vazio e sim a partir e a liberdade absolutas. Será
vidade, pela imaginação, das experiências assim? O potencial de inova-
pela reflexão, pela crítica.
vividas, dos conhe- ção e de liberdade de fato
Olhar que indaga, rompe,
cimentos e dos existe, porém é preciso com-
quebra a linearidade, ousa,
preender que o novo não se
inverte a ordem, desafia a ló- valores apropriados. desconecta do velho e do já
gica, brinca, encontra incoerên- conhecido, nem tampouco a li-
cias e divergências, estranha, berdade se traduz na ausência de
admira e se surpreende, para então es- delimitações e definições. Ninguém cria
tabelecer novas formas de ver o mundo. no vazio e sim a partir das experiências vivi-
O prazer e o domínio do olhar, da escuta e do das, dos conhecimentos e dos valores apropri-
movimento sensíveis construídos no encon- ados. A novidade está em ver o que antes não
tro com a arte potencializam as possibilidades se via, em perceber o novo no velho e vice-
de apropriação e de produção de diferentes lin- versa, em fazer conexões e associações que pro-
guagens pelos sujeitos como formas de expres- duzem múltiplas e novas leituras, em
são e representação da vida: por meio da ressignificar a realidade.
poesia, do conto, da caricatura, do desenho, O processo criador, segundo Vygotsky, ao in-
da dança, da música, da pintura, da escultura,
terpor realidade, imaginação, emoção e
da fotografia etc.
cognição, envolve reconstrução, reelaboração,
O menino era ligado em despropósitos redescoberta. Nesse sentido, é sempre um pro-
Quis montar os alicerces de uma casa cesso singular no qual o sujeito deixa suas
sobre orvalhos
marcas revelando seus encaminhamentos,
[...] Viu que podia fazer peraltagens com
as palavras. ordenamentos e formas próprias de se relacio-
[...) Foi capaz de modificar a tarde nar com os materiais, com o espaço, com as
botando uma chuva nela. linguagens e com a vida. A criação se faz com
O menino fazia prodígios. base em decisões, definições e configurações
Até fez uma pedra virar flor! dadas pelas condições e pelas referências e es-
(Manoel de Barros) colhas do sujeito. É nesse quadro que se defi-
O escritor nos fala de imaginação, fantasia, ne a liberdade. O criar livremente não significa
quebra da ordem, transgressão, peraltagens na fazer qualquer coisa, de qualquer forma, em
vida e no processo de criar com as palavras. qualquer momento, mas sim o contínuo des-
Criação que “representa uma intensificação do dobramento e redefinição de delimitações 53
dentro das quais o sujeito pode ousar, diver- não apenas pelas amarras de uma única for-
gir, inovar e estabelecer novas relações ma de se expressar, mas também pela
(Leite, 1998). unicidade e previsibilidade dos sen-
tidos possíveis. Que implicações
A importância da criação estética
O criar livre- isso tem para as crianças e para
na formação humana configura
a sua formação? Nesse contex-
a função da escola de garantir mente não
to, qual é o impacto do ingres-
o acesso às diferentes formas de significa fazer so no ensino fundamental
linguagens e de promover, por qualquer coisa, de para as crianças que vêm da
meio do fazer estético, a apro- educação infantil? Como será
qualquer forma,
priação pelas crianças de múlti- que elas se sentem? E para
plas formas de comunicação e de em qualquer
aquelas que estão se inserindo
compreensão do mundo e de si momento.
pela primeira vez em um espaço
mesmas. Mas como trabalhar no con- formal de educação?
texto escolar com o fazer estético que pro-
move o encontro do homem com a Se compreendemos que as diversas linguagens
artístico-culturais constituem modos de conhe-
humanidade? O que fazer? Como fazer? O que
cer e de explicar a realidade tão válidos quan-
não fazer? Como podemos aprender com a arte
to os saberes organizados pelos diversos ramos
e a cultura a ressignificar nosso trabalho coti-
da ciência, precisamos rever nossas práticas
diano e o processo de ensinar e aprender?
educativas. A apropriação pelas crianças dos
Práticas pedagógicas com conhecimentos produzidos pela arte contribui
diferentes formas de para alargar o seu entendimento da realidade
e para abrir caminhos para a sua participação
expressão nas escolas
no mundo. Participação que se faz pela ação
Diferentes formas de expressão como desenho, que reinterpreta, cria e transforma.
pintura, dança, canto, teatro, modelagem, li- Tomemos o exemplo do conhecimento pro-
teratura (prosa e poesia), entre outras, encon- duzido por meio da arte feita com a palavra.
tram-se presentes nos espaços de educação Compreender e expressar a realidade por meio
infantil (ainda que muitas vezes de forma re- da literatura – ficção, contos tradicionais, po-
duzida e pouco significativa), nas casas e nos esia, etc. – mobiliza nossa sensibilidade, ima-
demais espaços freqüentados pelas crianças. E ginação e criação; ajuda-nos a perceber que
por que estão presentes? Porque são formas de existem diferentes sistemas de referência do
expressão da vida, da realidade variada em que mundo que se abrem para muitos sentidos pos-
vivemos. Muitas vezes, à medida que a crian- síveis ao se conectarem com os sujeitos, suas
ça avança nos anos escolares ou séries do en- histórias e experiências singulares. Nesse sen-
sino fundamental, vê reduzidas suas tido, devemos propiciar às crianças práticas de
possibilidades de expressão, leitura e produção leitura e escrita que provoquem a imaginação,
com diferentes linguagens. Privilegia-se nas es- a fantasia, a reflexão e a crítica. Tais práticas
colas um tipo de linguagem, aquela vinculada devem mobilizar o diálogo das crianças com a
aos usos escolares, ou seja, a que serve à repro- pluralidade de produções, com diferentes au-
dução dos conteúdos dos livros didáticos me- tores e modos de expressão, e encorajá-las a
diante sua transmissão, repetição e avaliação. brincar com as palavras, a buscar novos senti-
Se antes a criança tinha possibilidades de uti- dos, novas combinações, novas emoções e,
lizar outras linguagens para ler e dizer coisas so- assim, se constituírem como autoras de suas
54 bre si e sobre o mundo, vê-se de repente cercada palavras e modos de pensar, narrar o mundo.
As professoras Juju Andrade Rodrigues e desenvolveu um projeto cujo objetivo foi in-
Noêmia Fabíola Costa do Nascimento, da Cre- formar às crianças sobre a vida e a obra de
che Municipal Maria Alice Gonçalves Guer- Graciliano Ramos, autor que dá nome à esco-
ra, em Camaragibe/PE, desenvolveram um la. A idéia surgiu a partir da pergunta de uma
projeto sobre as obras de Portinari com crian- criança sobre a origem do nome da escola. As
ças de 2 e 3 anos de idade. O projeto visava a crianças tinham várias hipóteses: nome do
“despertar nas crianças o gosto pela arte e pela dono da escola, nome de jogador de futebol,
cultura, possibilitando uma identificação com nome de político ou de escritor. Essa foi a
Portinari menino e, paralelamente, res- primeira etapa do projeto. Todos traba-
gatar as brincadeiras populares lharam na seleção de materiais
contex-tualizando-as com situa- para o projeto; a professora leu
ções vivenciadas na creche, um livro do autor, em capí-
A ampliação da tulos, para a turma, e discu-
visando ao desenvolvimen-
to do senso de observação experiência estética, tiram a importância do
e à recriação, por meio dos fazendo circular dife- trabalho de mestre Gra-
desenhos da criança, do rentes manifestações ça. Montaram uma li-
tema estrutural da obra”. As artístico-culturais, é nha do tempo com
professoras fizeram uma se- base fundamental informações sobre a vida
leção de revistas, livros, sites e a obra do autor. Elabo-
para o processo de raram textos coletivos, lis-
da Internet, entre outros ma-
teriais. Selecionaram as telas que
criação. tas de obras, etiquetaram
retratavam a infância do pintor. Fi- fotos, uma infinidade de ativi-
zeram exposição, leram textos sobre a dades aconteceu dentro e fora da
vida de Portinari e desenvolveram muitas ou- escola! (Brasil/MEC, Prêmio Qualidade
tras atividades com as crianças, valorizando os na Educação Infantil, 2004, p. 13-17).
seus conhecimentos e encorajando-as a no- Não há como nos constituirmos autores, crí-
vas descobertas por meio da fala, das interações ticos e criativos, se não tivermos acesso à
e da interpretação de aspectos simbólicos das pluralidade de linguagens e com elas sermos
obras observadas (Brasil. Ministério da Edu- livres para opinar, criar relações, construir sen-
cação – Prêmio Qualidade na Educação In- tidos e conhecimentos. A ampliação da ex-
fantil, 2004, p. 70-73). periência estética, fazendo circular diferentes
Assim, as professoras apostaram na capacida- manifestações artístico-culturais, é base funda-
de intelectual e na sensibilidade das crianças mental para o processo de criação, pois alarga
de dois e três anos, contando histórias de um o acervo de referências relativas às caracterís-
menino que se tornou um grande pintor. Daí ticas e ao funcionamento de cada tipo de ex-
para a realização de muitas outras atividades pressão, bem como amplia a rede de
só precisou da inventividade das professoras significados e modos diferenciados de
que, junto com as crianças, viajaram pelo mun- comunicabilidade e compreensão.
do da criação. Isso nos leva a concluir: se é É importante salientar que as práticas com arte
possível realizar atividades dessa natureza com de que estamos falando não se confundem com
crianças tão pequenas, é possível realizá-las os exercícios de técnicas, treinamentos
também com crianças maiores! Gerlane Muriel psicomotores ou cópias de modelos. O desenho,
de Lima Oliveira, professora de Maceió/AL, por exemplo, como forma de linguagem, não
trabalhando com crianças de cinco e seis anos, se revela nas atividades de cobrir pontilhados, 55
colorir desenhos mimeografados, montar bo- Inquietos com a subordinação das atividades
necos com formas geométricas segundo mo- de desenho às demais disciplinas e, em especi-
delos, desenhar figuras preestabelecidas, entre al ao processo de alfabetização, os professores
outras práticas tão comuns nos primeiros organizaram um projeto para o ano letivo cujo
anos de escolaridade. objetivo foi ressignificar os conceitos
O desenho é uma forma de expres- e valores estéticos das crianças, a
são de como a criança e/ou o jo- partir de ações e movimentos
vem vêem o mundo e suas O desenho é uma com linhas. O estudo partiu da
particularidades. Quando uma forma de expressão apreciação e representação
criança desenha, por exem- de como a criança das fachadas das casas da pai-
plo, uma casa fechada, deixan- sagem local, comparando-as
e/ou o jovem vêem o
do transparecer os móveis no com as de diferentes moradi-
mundo e suas parti- as. “A intenção era despertar
interior, está desenhando o que
cularidades o olhar reflexivo das crianças e
sabe existir dentro daquela casa,
como mesas e cadeiras. As crianças remetê-las a reconhecer a linha
surpreendem-nos com seus conheci- arquitetônica das moradias enquan-
mentos de vários modos, narrando aspectos da to configuradora de formas culturais e his-
realidade vivida e criada. A história relatada a tóricas e, assim, instigá-las a reelaborarem
seguir faz parte do repertório das conhecidas graficamente o tema ‘casa’ em suas produções”.
histórias de Pedro Bloch, publicadas na revis- As crianças realizaram várias atividades: dese-
ta Pais e Filhos, que mostra uma menina que nharam suas casas e os tipos de casa que co-
por meio de seu desenho desafia a certeza da nhecem; observaram as casas das calçadas das
ruas do bairro e desenharam casas; fizeram ro-
professora de modo muito seguro.
das de apreciações utilizando painéis com de-
Uma professora de creche observava as senhos de casas de várias turmas. As crianças
crianças de sua turma desenhando. se surpreenderam com o fato de seus desenhos
Ocasionalmente passeava pela sala para de casas serem tão semelhantes e estereotipa-
ver os trabalhos de cada criança. dos, à medida que os contrastaram com suas
observações da realidade, uma vez que essas
Quando chegou perto de uma menina
ressaltavam a existência de uma grande diver-
que trabalhava intensamente, perguntou
sidade de formas. Algumas crianças interpre-
o que desenhava. A menina respondeu:
taram que isso ocorria porque “não sabiam”
- "Estou desenhando Deus". fazer direito, outras porque “a gente não olha
A professora parou e disse: direito”. A partir dessas reflexões, as crianças
realizaram novas atividades: de observação, “re-
- "Mas ninguém sabe como é Deus". trato falado” da casa e releituras de obras de
Sem piscar e sem levantar os olhos de Kandinsky. Foram desenvolvidas também ati-
seu desenho, a menina respondeu: vidades com jogos, articulando a linguagem
imagética, a ação motora e a ludicidade com o
- "Saberão dentro de um minuto".
uso de barbante e cordão de rede. A idéia era
Um projeto interessante envolvendo desenho, encorajá-las a expressar com o corpo e a linha
pintura e arquitetura é relatado pela professo- as suas construções imagéticas (a partir de um
ra Evanir de Oliveira, de Natal/RN. Tal pro- poema, de uma pintura, de uma fotografia,
jeto envolveu várias turmas da escola, etc.). Durante todo o trabalho, acreditou-se
56 abrangendo a faixa etária de seis a doze anos. nas capacidades das crianças e dos adolescentes,
buscando romper a idéia, que muitos deles vão o olhar, a escuta, o toque, o gosto, o cheiro,
incorporando, de que não sabem desenhar; o movimento constituam formas sensíveis de
incentivaram-se a interpretação, o olhar se apropriar de conhecimentos sobre o
crítico, a invenção e a descoberta mundo e sobre nós mesmos nos es-
de soluções. Certamente todos paços escolares! Tornemos a es-
ganharam novos conhecimen- Aprender a cola mais colorida, encantada,
tos e instrumentos para enri- ler imagens, sons, viva, espaço de arte, cultura e
quecerem suas possibilidades objetos amplia conhecimento!
de expressão por meio do de- nossas possibilida- Aprender a ler imagens, sons,
senho. Ao término do ano le-
des de sentir e objetos amplia nossas possibili-
tivo, foi realizada uma grande
refletir sobre no- dades de sentir e refletir sobre
exposição coletiva das produ-
vas ações novas ações que criem outras
ções das crianças e adolescentes,
formas de vida no sentido de uma
resultado de um longo e rico pro-
sociedade justa e feliz, assim como in-
cesso em que novos conceitos e sabe-
cita as crianças a também se tornarem au-
res foram produzidos. (Brasil, Ministério da
toras de suas produções e de suas vidas ao mesmo
Educação – Prêmio Incentivo à Educação
tempo em que se responsabilizam pela nossa he-
Fundamental 2004, p. 93-102).
rança cultural, por descobrirem seu valor.
Tal relato mostra-nos que o desenho possui
Conforme ensina Calvino (1991), cada um
conteúdos próprios, os quais fornecem novas
de nós é uma enciclopédia, uma biblioteca,
possibilidades de expressão e de compreensão
um inventário de objetos, uma amostragem de
do mundo e de si mesmo. Sendo assim, por
objetos, de estilos, em que tudo pode ser con-
que é tão comum ser relegado a uma atividade tinuamente remexido e reordenado de todas
complementar aos conteúdos das disciplinas? as maneiras possíveis. Cada um de nós é uma
Por que à medida que as crianças avançam em combinatória de experiências, de informações,
idade e séries escolares vão compreendendo-o de leituras, de imaginações.
como uma linguagem restrita àqueles que “têm
jeito, dom”? Como uma das diversas formas O conhecimento, qualquer que seja, não tem
de conhecimento e inteligibilidade do mun- vida autônoma, visto que se trata de um pro-
do, todos nós deveríamos apropriarmo-nos do duto cultural. Como afirma Bagno (2003,
p.18) em relação à língua:” ‘a língua' como uma
desenho como forma de expressão.
'essência' não existe: o que existe são seres huma-
Deixemos a imaginação, a fruição, a sensibili- nos que falam línguas. (...) ela é tão concreta
dade, a cognição, a memória transitarem li- quanto os seres humanos de carne e osso que se
vremente pelas ações das crianças com o lápis, servem dela e dos quais ela é parte integrante”. O
a tinta e o papel, com as palavras escritas e mesmo pode ser dito em relação à arte, à cul-
orais, com argila e materiais residuais, com os tura e ao conhecimento, pois são sujeitos de
sons e ritmos musicais, os gestos e movimen- carne e osso, que interpretam a realidade, dan-
tos do corpo, com as imagens de filmes, foto- do vida às palavras, às ações, aos fazeres, cri-
grafias, pinturas, esculturas...! Permitamos que ando diferentes formas de expressar o mundo.

57
Referências Bibliográficas

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58
AS CRIANÇAS DE SEIS ANOS
E AS ÁREAS DO CONHECIMENTO
Patrícia Corsino 1

Todo conhecimento [...] deve conter


um mínimo de contra-senso, como os
antigos padrões de tapete ou de frisos
ornamentais, onde sempre se pode
descobrir, nalgum ponto, um desvio
insignificante de seu curso normal. Em
outras palavras: o decisivo não é o
prosseguimento de conhecimento em
conhecimento, mas o salto que se dá
em cada um deles.

Walter Benjamin

inclusão das crianças de seis anos no está significando nesse processo de interação.

A ensino fundamental provoca uma sé


rie de indagações sobre o que e como
se deve ou não ensiná-las nas diferentes áreas
O olhar sensível para as produções infantis
permitirá conhecer os interesses das crianças,
os conhecimentos que estão sendo apropriados
do currículo. Antes de discutir essas questões, por elas, assim como os elementos culturais do
trazemos texto de Walter Benjamin, filósofo e grupo social em que estão imersas. A partir daí,
crítico da modernidade, como um convite para será possível desenvolver um trabalho pedagó-
iniciar as reflexões. No fragmento, o autor com- gico em que a criança esteja em foco.
para a apropriação do conhecimento com um
tapete tecido artesa-nalmente que, por ser Em que consistiria esse desafio? A criança já
único, carrega nos desvios e imperfeições do não seria o foco das propostas educacionais?
tecido a autenticidade que o distingue de qual- Não há dúvida de que muitos de nós,
quer outro. É na singularidade e não na pa- professores(as), consideramos as crianças su-
dronização de comportamentos e ações que jeitos do processo educativo e buscamos no
cada sujeito, nas suas interações com o mun- cotidiano da sala de aula formas de conhecê-
do sócio-cultural e natural, vai tecendo os seus las, de aproximá-las de conhecimentos e de
conhecimentos. Esse pressuposto traz um gran- valorizar suas produções. Mas também pode-
de desafio para nós, professores – tanto na edu- mos observar outras posições como, por exem-
cação infantil quanto no ensino fundamental plo, situações em que, embora os objetivos a
–, o de observar o que e como cada criança ser alcançados digam respeito às crianças, o

1
CORSINO, Patrícia. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro; Professora
Adjunta do Departamento de Didática, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 59
foco está no conteúdo a ser ensinado, no livro vida dentro e fora da escola. Conhecer, por
didático, no tempo e no espaço impostos pela sua vez, implica sensibilidade, conhecimentos
rotina escolar, na organização dos adultos e e disponibilidade para observar, indagar, de-
até mesmo nas suposições, nas volver respostas para articular o que as cri-
idealizações e nos preconceitos so- anças sabem com os objetivos das
bre quem são as crianças e como diferentes áreas do currículo. Im-
deveriam aprender e se desen- Como pensar plica, também, uma organiza-
volver. Numa outra posição, o num trabalho ção pedagógica flexível, aberta
foco na criança é compreen- ao novo e ao imprevisível;
focado na criança pois não há como ouvir as
dido como subordinação do
trabalho às vontades da cri- sem perder o com- crianças e considerar as suas
ança ou restrição das experi- promisso com a sua falas, interesses e produções
ências educacionais ao seu inserção sócio- sem alterar a ordem inicial do
universo sócio-cultural, como se trabalho, sem torná-lo uma via
cultural?
fosse possível tecer o tapete sem de mão dupla onde as trocas mú-
ter os fios e sem aprender os pontos. tuas sejam capazes de promover am-
Na primeira posição, cabe à criança se pliações, provocar os saltos dos
adaptar ou se encaixar ao que o adulto pro- conhecimentos, como Benjamin sugere.
põe porque é ele quem sabe e determina o Esse enfoque coloca-nos num lugar estratégi-
que é bom para ela. Já na segunda, ocorre o co porque cabe a nós, professores(as), plane-
inverso, tornam-se secundários a atuação do jar, propor e coordenar atividades significativas
adulto e o compromisso da escola com a apro- e desafiadoras capazes de impulsionar o desen-
priação de conhecimentos e com a aprendi- volvimento das crianças e de amplificar as suas
zagem da criança. experiências e práticas sócio-culturais. Somos
Essas duas tendências contraditórias são mui- nós que mediamos as relações das crianças com
to mais freqüentes do que supomos. Para Pin- os elementos da natureza e da cultura, ao
to (1997), se analisarmos as concepções de disponibilizarmos materiais, ao promovermos
criança que subjazem quer ao discurso comum, situações que: abram caminhos, provoquem
quer à produção científica centrada no mun- trocas e descobertas, incluam cuidados e afe-
do infantil, perceberemos uma grande tos, favoreçam a expressão por meio de dife-
disparidade de posições. Uns valorizam aquilo rentes linguagens, articulem as diferentes áreas
que a criança é e faz, outros enfatizam o que do conhecimento e se fundamentem nos prin-
lhe falta ou o que ela poderá ou deverá vir a cípios éticos, políticos e estéticos, conforme es-
ser. E nós, professores(as), muitas vezes oscila- tabelecem as Diretrizes Curriculares para o
mos entre as duas posições. Seria, então, pos- Ensino Fundamental (Brasil. Ministério da
sível entender essa oscilação, trazendo as Educação/Conselho Nacional de Educação –
contradições e paradoxos de forma dialética Resolução CEB no 02/1998).
para se buscar a superação dessa dicotomia? Mediar essas relações, entretanto, é uma tare-
Como pensar num trabalho focado na crian- fa desafiadora pelas escolhas que precisamos
ça sem perder o compromisso com a sua inser- continuamente fazer em relação à eleição de
ção sócio-cultural? conteúdos e temas e às propostas metodoló-
Na busca desse foco, pensamos que um ponto gicas para aproximá-los das crianças. Quanto
de partida seria conhecer as crianças, saber ao conteúdo, há várias indagações: o que se-
quais são os seus interesses e preferências, suas lecionar em face do acúmulo de produções e
formas de aprender, suas facilidades e dificul- informações a que estamos sujeitos e suas cons-
60 dades, como é seu grupo familiar e social, sua tantes transformações? Que conhecimentos
são fundamentais e indispensáveis à formação Conselho Nacional de Educação, Resolução
das crianças? E como essas escolhas são políti- CEB no 2, 1998) constituem o documento le-
cas, alargam-se as perguntas: que elemen- gal que traça uma direção para que as esco-
tos e de que cultura(s) estão sendo las reflitam sobre suas propostas
selecionados e adaptados para se- pedagógicas. Como eixos das pro-
rem introduzidos às crianças? Que conheci- postas pedagógicas das escolas, as
Quais os que estão sendo silen- mentos são Diretrizes definem os seguintes
ciados? De que ponto de vista fundamentais e princípios: “a) Princípios Éticos
estão sendo abordados e para da Autonomia, da Responsabi-
indispensáveis à
que grupos sociais? Quais são as lidade, da Solidariedade e do
condições concretas de produ- formação das Respeito ao Bem Comum; b)
ção do trabalho escolar? crianças? Princípios Políticos dos Direitos e
Deveres da Cidadania, do Exercício
Quanto à metodologia, indagamos:
da Criticidade e do Respeito à Ordem
que intervenções do professor contribuem
Democrática; c) Princípios Estéticos da Sen-
para os processos de desenvolvimento integral
sibilidade, Criatividade e Diversidade de Ma-
das crianças? Como ampliar o universo cultu-
ral das crianças e suas possibilidades de nifestações Artísticas e Culturais”.
interação? Que construções estão sendo reali- A partir desses eixos, é importante que o tra-
zadas pelas crianças ante os elementos cultu- balho pedagógico com as crianças de seis anos
rais e naturais que as circundam? Que situações de idade, nos anos/séries iniciais do ensino fun-
permitem e favorecem a manifestação das dife- damental, garanta o estudo articulado das Ci-
rentes linguagens? ências Sociais, das Ciências Naturais, das
As indagações são muitas e as respostas se Noções Lógico-Matemáticas e das Linguagens.
abrem a vários caminhos e novas questões. En- Trabalhar com os conhecimentos das Ciênci-
tendemos que o conhecimento é uma cons- as Sociais nessa etapa de ensino reside, especi-
trução coletiva e é na troca dos sentidos almente, no desenvolvimento da reflexão
construídos, no diálogo e na valorização das crítica sobre os grupos humanos, suas relações,
diferentes vozes que circulam nos espaços de suas histórias, suas formas de se organizar, de
interação que a aprendizagem vai se dando. resolver problemas e de viver em diferentes
Sendo assim, é nosso objetivo neste texto dis- épocas e locais. Assim, a família , a escola, a
cutir algumas das questões apresentadas, tra- religião, o entorno social (bairro, comunida-
zer suas tensões e favorecer possíveis respostas de, povoado), o campo, a cidade, o país e o
para pensarmos juntos as diferentes áreas do mundo são esferas da vida humana que com-
currículo e a inclusão das crianças de seis anos portam inúmeras relações, configurações e or-
ganizações. Propor atividades em que as
de idade no ensino fundamental de nove anos.
crianças possam ampliar a compreensão da sua
A seguir, abordaremos o tema, trazendo alguns
própria história, da sua forma de viver e de se
pontos para reflexão neste momento de aco-
relacionar. Identificar diferenças e semelhan-
lhida dessas crianças.
ças entre as histórias vividas pelos colegas e
A criança de seis anos e o currí- por outras pessoas e grupos sociais próximos
ou distantes, que conhecem pessoalmente ou
culo do ensino fundamental
que conheceram pelas histórias ouvidas, lidas,
Como o próprio nome indica, as Diretrizes vistas na televisão, em filmes, em livros, etc.
Curriculares Nacionais para o Ensino Funda- Histórias individuais e coletivas que partici-
mental (Brasil. Ministério da Educação/ pam da construção da história da sociedade. 61
O trabalho com a área das Ciências Sociais O objetivo do trabalho com as Noções Lógico-
também objetiva ajudar a criança a pensar e a Matemáticas nas séries/anos iniciais é dar opor-
desenvolver atitudes de observação, de estu- tunidade para que as crianças coloquem todos
do e de comparação das paisagens, do lugar os tipos de objetos, eventos e ações em todas
onde habita, das relações entre o homem, as espécies de relações (Kamii,1986). En-
o espaço e a natureza. É importante corajar as crianças a identificar se-
conhecer as transformações ocor- melhanças e diferenças entre
ridas sob a ação humana na É importante diferentes elementos, classifi-
construção, no povoamento organizar os tempos cando, ordenando e seriando;
e na urbanização das diferen- a fazer correspondências e
e os espaços da
tes regiões do planeta. Per- agrupamentos; a comparar
escola para favorecer conjuntos; a pensar sobre
ceber que a maneira como
o contato das números e quantidades de
o homem lida com a natu-
reza interfere na paisagem e, crianças com a objetos quando esses forem
conseqüentemente, na forma natureza e com as significativos para elas, ope-
e na qualidade de vida das pes- tecnologias rando com quantidades e re-
soas. Propor atividades por meio gistrando as situações-problema
das quais as crianças possam investi- (inicialmente de forma espontânea
gar e intervir sobre a realidade, reconhecendo- e, posteriormente, usando a linguagem
matemática). É importante que as atividades
se como parte integrante da natureza e da
propostas sejam acompanhadas de jogos e de
cultura.
situações-problema e promovam a troca de
Na área das Ciências Naturais, o objetivo é idéias entre as crianças. Especialmente nessa
ampliar a curiosidade das crianças, incentivá- área, é fundamental o professor fazer pergun-
las a levantar hipóteses e a construir conheci- tas às crianças para poder intervir e questio-
mentos sobre os fenômenos físicos e químicos, nar a partir da lógica delas.
sobre os seres vivos e sobre a relação entre o
O trabalho com a área das Linguagens parte
homem e a natureza e entre o homem e as
do princípio de que a criança, desde bem pe-
tecnologias. É importante organizar os tempos quena, tem infinitas possibilidades para o de-
e os espaços da escola para favorecer o conta- senvolvimento de sua sensibilidade e de sua
to das crianças com a natureza e com as expressão. Um dos grandes objetivos do currí-
tecnologias, possibilitando, assim, a observa- culo nessa área é a educação estética , isto é,
ção, a experimentação, o debate e a amplia- sensibilizar a criança para apreciar uma pintu-
ção de conhecimentos científicos. ra, uma escultura, assistir a um filme, ouvir uma
As atividades didáticas dessa área têm como música. Nesse período, é importante a criança
finalidade desafiar as crianças, levá-las a pre- vivenciar atividades em que possa ver, reconhe-
ver resultados, a simular situações, a elaborar cer, sentir, experienciar, imaginar e atuar sobre
hipóteses, a refletir sobre as situações do coti- as diversas manifestações da arte. É fundamen-
diano, a se posicionar como parte da natureza tal que ela conheça as produções artísticas de
e membro de uma espécie – entre tantas ou- diferentes épocas e grupos sociais, tanto as con-
tras espécies do planeta –, estabelecendo as sideradas da cultura popular, quanto as consi-
mais diversas relações e percebendo o signifi- deradas da cultura erudita. O trabalho com as
cado dos saberes dessa área com suas ações do linguagens nas séries/anos iniciais tem como fi-
62 cotidiano. nalidade dar oportunidade para que as crianças
apreciem diferentes produções artísticas e tam- atividades variadas, as quais, por sua vez, possi-
bém elaborem suas experiências pelo fazer ar- bilitem práticas discursivas de diferentes gêne-
tístico, ampliando a sua sensibilidade e a sua ros textuais, orais e escritos, de usos, finalidades
vivência estética. e intenções diversos. Textos que circulam nas
O trabalho pedagógico com ênfase na área das diferentes esferas sociais e são produzidos por
Linguagens também inclui possibilitar a socia- interlocutores em processos interativos
lização e a memória das práticas esportivas e de (Bakhtin, 1992a, 1992b). Textos significativos
outras práticas corporais. Entendemos que, em para as crianças, produzidos nas mais variadas
todas as áreas, é essencial o respeito às culturas, situações de uso da linguagem oral e escrita, em
que elas participem como locutores e como ou-
à ludicidade, à espontaneidade, à autonomia e
vintes. É importante que o cotidiano das crian-
à organização das crianças, tendo como objeti-
ças das séries/anos iniciais seja pleno de
vo o pleno desenvolvimento humano. O/a
atividades de produção e de recepção de textos
professor(a), ao planejar atividades dessa área
orais e escritos, tais como: escuta diária da lei-
para as crianças, precisa escolher aquelas que
tura de textos diversos, especialmente de histó-
promovam a consciência corporal, a troca en-
rias e textos literários; produção de textos escritos
tre elas, a aceitação das diferenças, o respeito, a
mediada pela participação e registro de parcei-
tolerância e a inclusão do outro. Reconhecemo-
ros mais experientes; leitura e escrita espontâ-
nos e diferenciamo-nos a partir do outro, por
nea de texto diversos, mesmo sem o domínio
isso, as atividades devem permitir que todas as das convenções da escrita; participação em jo-
crianças possam participar, se divertir e apren- gos e brincadeiras com a linguagem; entre mui-
der, sejam elas gordas ou magras, altas ou bai- tas outras possíveis. Ao lado disso, as
xas, fortes ou franzinas, rápidas ou crianças devem ser encorajadas a
menos ágeis. Vale lembrar que o pensar, a discutir, a conversar e,
desenvolvimento dessa área na especialmente, a raciocinar
escola não tem como finalida- As crianças devem sobre a escrita alfabética,
de classificar ou selecionar ser encorajadas a pois um dos principais obje-
atletas. Seu objetivo princi- pensar, a discutir, a tivos do trabalho com a lín-
pal, antes de qualquer inten- conversar e, espe- gua nos primeiros anos/
ção de desenvolver cialmente, a racio- séries do ensino fundamen-
habilidades motoras, é pro- tal é lhes assegurar o conhe-
cinar sobre a
mover a inclusão de todos. cimento sobre a natureza e o
Sendo assim, é importante que escrita alfabética. funcionamento do sistema de
os conhecimentos e as atividades escrita, compreendendo e se
dessa área sejam instrumentos de for- apropriando dos usos e convenções
mação integral das crianças e de prática de da linguagem escrita nas suas mais diversas
inclusão social, e proporcionem experiências funções.
que valorizem a convivência social inclusiva, Diante dessa breve abordagem sobre a impor-
que incentivem e promovam a criatividade, a tância de um planejamento cuidadoso, que
solidariedade, a cidadania e o desenvolvimento assegure o desenvolvimento de todas as áreas
de atitudes de coletividade. do conhecimento, a ampliação do ensino fun-
Finalmente, ainda na área das Linguagens, é damental para nove anos, que significa bem
preciso assegurar um ensino pautado por uma mais que a garantia de mais um ano de esco-
prática pedagógica que permita a realização de laridade obrigatória, é uma oportunidade
63
histórica de a criança de seis anos pertencen- um dos instrumentos básicos inventados pelo
te às classes populares ser introduzida a conhe- homem cujas funções fundamentais são: o in-
cimentos que foram fruto de um processo tercâmbio social – é para se comunicar que o
sócio-histórico de construção coletiva. Esse homem cria e utiliza sistemas de linguagem –
ano ou essa série inicial deve compor um con- e o pensamento generalizante – é pela possi-
junto com os outros anos ou outras séries do bilidade de a linguagem ordenar o real, agru-
ensino fundamental; portanto, deve se articu- pando uma mesma classe de objetos, eventos
lar a ele(a)s no plano pedagógico de cada uma e situações, sob uma mesma categoria, que se
das escolas. constroem os conceitos e os significados das
palavras. A linguagem, então, atua não só no
Infância , linguagem, conheci- nível interpsíquico (entre pessoas), mas tam-
mento e aprendizagem bém no intrapsíquico (interior do sujeito).
É importante que o professor(a) pense nas cri- Decorre disso que operar com sistemas simbó-
anças como sujeitos ativos que participam e licos possibilita a realização de formas de pen-
intervêm no que acontece ao seu redor por- samento que não seriam possíveis sem esses
que suas ações são também forma de reelaboração processos de representação.
e de recriação do mundo. Nos seus processos Ainda para Vygotsky (2000), o elo central do
interativos, a criança não apenas recebe, mas processo de aprendizagem é a formação de
também cria e transforma – é constituída na cul- conceitos. Esse autor compara e inter-relacio-
tura e também é produtora de cultura. As ações na duas categorias de conceitos: os conceitos
da criança são simultaneamente individuais e espontâneos – construídos cotidianamente
únicas porque são suas formas de ser e de estar pela ação direta das crianças sobre a realidade
no mundo, constituindo sua subjetividade, e experimentada e observada por elas – e os con-
coletivas na medida em que são contextua- ceitos científicos – construídos em situações
lizadas e situadas histórica e socialmente. Agi- formais de ensino-aprendizagem. Para o autor,
mos movidos por intenções, desejos, emoções os conceitos espontâneos percorrem muitos
provocados por outras ações realizadas por nós caminhos até a criança ser capaz de defini-los
mesmos ou por outros num continuum de verbalmente. Por exemplo, quanto ao concei-
simbolizações. Sendo assim, a ação da criança to de irmão, o próprio Vygotsky relata a difi-
no mundo não pode ser entendida apenas culdade inicial da criança em definir o
como desempenho ou comportamento, mas conceito, mesmo tendo a experiência de pos-
como simbolização do sujeito. Nessa perspec- suir um irmão. Já os conceitos científicos, que
tiva, conhecer a criança implica observar suas partem de uma definição, precisam aliar a for-
ações-simbolizações, o que abre espaço para a mulação científica à experiência das crianças.
valorização de falas, produções, conquistas e Um bom exemplo disso é a definição de
interesses infantis e faz da sala de aula um es- condensação da água. Ter observado uma rou-
paço de socialização de saberes e confronto de pa secando é importante para entender a mu-
diferentes pontos de vista – das crianças, do dança de estado da água para vapor. As
professor, dos livros e de outras fontes – fazen- apropriações dos conceitos espontâneos e dos
do o trabalho se abrir ao novo, inédito, conceitos científicos seguem, assim, direções
imprevisível e surpreendente. diferentes, mas são processos intimamente in-
A linguagem é constituinte do sujeito e, por- terligados que exercem influências mútuas.
tanto, central no cotidiano escolar. De acor- Será que, ao planejarmos atividades pedagógi-
do com Vygotsky (1993,2000), a linguagem é cas para as diferentes áreas do conhecimento,
64
estamos atentos à inter-relação entre as duas palavras” (p. 275). Para o autor, o desenvol-
categorias de conceitos? vimento consiste nessa progressiva tomada de
consciência dos conceitos e operações do
O autor enfatiza que a apreensão dos
próprio pensamento.
sistemas de conhecimento cien-
tíficos pressupõe um tecido Essas colocações são bastante
conceitual já amplamente ela- O desenvolvi- provocativas para a escola, es-
borado e desenvolvido por mento dos con- pecialmente para o trabalho
meio da atividade espontâ- ceitos científicos com as crianças nos anos/séri-
nea do pensamento infantil. não é fruto de es iniciais do ensino funda-
E destaca, ainda, que o desen- memorização ou mental, quando se inicia o
volvimento dos conceitos ci- processo de sistematização de
de imitação conceitos e formalização dos
entíficos não é fruto de
memorização ou de imitação, pois conteúdos. Como pensar, então,
esses surgem e se constituem por meio nessa introdução das crianças aos con-
de uma tensão de toda a atividade do próprio ceitos científicos? Como proceder para que
pensamento infantil: “na medida em que a cri- as crianças progressivamente desloquem os
ança toma conhecimento pela primeira vez do conceitos do plano da ação para o plano do
significado de uma nova palavra, o processo de pensamento?
desenvolvimento dos conceitos não termina, Em qualquer área, esses deslocamentos podem
mas está apenas começando” (Vygotsky, 2000, ser pensados pelo(a) professor(a). Vejamos a
p. 252). Será que no cotidiano escolar estamos seguir algumas possibilidades:
atentos à importância de as crianças mexerem,
experimentarem, descobrirem, investigarem, 1) plano da ação:
deduzirem? Temos promovido e facilitado o
propor atividades que favoreçam as ações da
contato direto das crianças com os elementos
criança sobre o mundo social e natural. Sem
da natureza e da cultura? Temos planejado
possibilidades de agir, a criança não tem ele-
aulas-passeio, visitas, entrevistas, observações,
mentos para construir os conceitos espontâ-
experimentações, filmes, etc.? Quando traba- neos e, conseqüentemente, chegar à tomada
lhamos um conceito científico, quais têm sido de consciência e aos conceitos científicos. Por
as atividades que o antecedem e as que vão isso, os planejamentos das atividades, sejam elas
sucedê-lo? de Matemática, Ciências, História, Geografia
Estudando as complexas relações entre as duas ou Língua Portuguesa, precisam contemplar
categorias de conceitos, Vygotsky (2000) ob- inicialmente a ação, ou seja, a própria movi-
servou que, embora as crianças consigam ope- mentação da criança e manipulação de obje-
rar espontaneamente com uma série de tos e materiais, aulas-passeio, estudos do meio,
palavras, elas não têm consciência da sua de- visitas, entrevistas, etc. Como ação e
finição, ou seja, não conseguem tomar cons- simbolização estão juntas, cabem também a
ciência do seu próprio pensamento. Isto é: leitura de histórias e poemas, a recepção de
quanto mais usam automaticamente alguma sons e imagens (músicas, filmes, documen-
relação tanto menos têm consciência dela. Por tários, etc.), etc. Nesse processo, a criança vai
isso entende que “tomar consciência de alguma tendo a oportunidade de experimentar, anali-
operação significa transferi-la do plano da ação sar, inferir, levantar hipóteses, etc. A partir da
para o plano da linguagem, isto é, recriá-la na ação, o professor pode pensar em planos de
imaginação para que seja possível exprimi-la em representação e conseqüente tomada de 65
consciência dessa ação, ou seja, propor que matemática, gráficos, mapas, tabelas, etc. As
as crianças representem o que viram, senti- notações e escritas espontâneas das crianças,
ram, fizeram e depois falem sobre as suas re- pelas sucessivas tomadas de consciência, a
presentações, expliquem como chegaram a partir da mediação do professor e/ou de pes-
uma determinada solução, etc. soas mais experientes, gradativamente vão
dando lugar às convencionais.
2) planos de representação:
Vygotsky considera que a tomada de consci-
Expressão corporal – são as brincadeiras, ência eleva o pensamento a um nível mais
imitações e dramatizações por meio das quais abstrato e generalizado. Sendo assim, plane-
as crianças reapresentam o que viveram e jar o trabalho pedagógico tendo em vista o
sentiram com o próprio corpo ou manipu- fluxo que vai da ação à representação e dessa
lando objetos como fantoches, bonecos, última à tomada de consciência – com a
brinquedos, etc.; explicitação verbal do que foi feito – pode
Expressão gráfica e plástica – são os dese- ser um caminho para favorecer a apropria-
nhos, pinturas, colagens, modelagens que as ção gradativa de conceitos científicos, além
crianças fazem para representar o que foi vi- de tornar o trabalho mais dinâmico. Ações,
vido e experimentado. Gradativamente, es- representações e momentos de verbalização
sas representações vão sendo planejadas pelas do que foi elaborado podem ser pensados de
crianças e vão ganhando formas mais defini- maneira que alternem espaços da sala ou da
das e elaboradas; escola (em pé, sentado na rodinha), mesa (in-
dividual, grupo), pátio, sala de leitura, etc., e
Expressão oral – fala/verbalização – são as atividades mais ou menos movimentadas, in-
situações em que as crianças são chamadas a dividuais ou em duplas, em pequenos grupos
conversar sobre o que fizeram, viram, senti- ou com toda a turma.
ram, como chegaram a determinados resul-
tados, que caminhos seguiram, ou seja, são Para Vygotsky (1991), o aprendizado adequa-
incentivadas a falar sobre suas experiências, damente organizado resulta em desenvolvi-
seus sentimentos e também sobre o seu pró- mento e põe em movimento vários processos
prio pensamento (procedimentos de que, de outra forma, não seriam possíveis de
metacognição), além de terem a oportunida- acontecer. Para o autor, o desenvolvimento
de de fazer uso de diferentes gêneros do indivíduo está diretamente ligado à sua
discursivos; relação com o ambiente sócio-cultural e o pa-
pel social do outro é de fundamental impor-
Expressão/registros escritos – a língua es-
crita, assim como a oral, exerce várias fun- tância, uma vez que o indivíduo aprende e se
ções e possui inúmeros usos sociais e formas desenvolve a partir do convívio com os ou-
de se articular. Cada esfera da atividade hu- tros de sua espécie. Vygotsky vê o desenvol-
mana produz seus gêneros discursivos. É im- vimento retrospectivamente, no nível de
portante que, na escola, as crianças sejam desenvolvimento real, que se costuma deter-
desafiadas a fazer uso de diferentes gêneros e minar pela solução independente de proble-
de diferentes formas de registrar as ações que mas e, prospectivamente, no nível de
viveram, num processo de apropriação desenvolvimento potencial, determinado
gradativa dos usos e convenções dos sistemas pela solução de problemas sob a orientação
notacionais que incluem a linguagem escrita de um adulto ou em colaboração com com-
– com seus diversos gêneros e tipos de textos panheiros mais experintes. É dessa divisão do
66 – e outras notações como a linguagem desenvolvimento em níveis que Vygotsky
formula o conceito de zona de desenvolvi- áreas do currículo de forma criativa e
mento proximal2 como a distância entre o interdisciplinar, que vá ao encontro dos inte-
nível de desenvolvimento real e o potencial. resses das crianças e ao mesmo tempo possibi-
Conceito que permite a compreensão do cur- lite a ampliação de suas experiências e a sua
so interno do desenvolvimento do indivíduo inserção cultural, tem sido o trabalho com pro-
e, ainda, o acesso aos processos que estão ama- jetos, o qual será abordado a seguir.
durecendo e se encontram embrionariamente
presentes. Projetos pedagógicos: possibili-
As investigações de Vygosky (2000) mostra- dade de diálogo entre as áreas
ram que todo objeto de aprendizagem esco- do conhecimento
lar se constrói num terreno ainda não
A opção de alguns professores em trabalhar
amadurecido e que a questão sobre as fun-
ções amadurecidas devem continuar sendo com projetos tem revelado quanto os proces-
observadas porque sos de ação-representação-tomada de consci-
ência podem ser ampliados e quanto se pode
cabe definir sempre o limiar inferior da atuar pedagogicamente no limiar superior da
aprendizagem. Mas (...), devemos ter
aprendizagem, visto que os projetos cami-
também a capacidade para definir o
nham conforme os interesses das crianças e
limiar superior da aprendizagem. Só na
fronteira entre estes dois limiares a a disponibilidade de recursos que escola e a
aprendizagem pode ser fecunda. Só comunidade oferecem. Mas o que são os pro-
entre eles se situa o período de jetos de trabalho e como trabalhar com eles?
excelência do ensino de uma Trabalhar com projetos é uma forma de vin-
determinada matéria (p. 333). cular o aprendizado escolar aos interesses e pre-
Compreender esses limites é o grande desafio ocupações das crianças, aos problemas
do trabalho pedagógico que se quer excelen- emergentes na sociedade em que vivemos, à
te. E eles nos remetem às questões inicias do realidade fora da escola e às questões cultu-
texto: conhecer as crianças. Desafiá-las rais do grupo. Os projetos vão além dos
e instigá-las a ir além do que já cons- limites do currículo, pois os temas
truíram. Como é possível conhe- Conhecer as eleitos podem ser explorados de
cer esses limites seguindo o livro crianças. forma ampla e interdisciplinar, o
didático tal e qual, sem proceder Desafiá-las e que implica pesquisas, busca de
a ampliações e alterações? Como
instigá-las a ir informações, experiências de pri-
planejar e organizar o trabalho
além do que já meira mão tais como visitas e en-
pedagógico de forma que haja de
fato aprendizado das crianças e trevistas, além de possibilitarem a
construíram.
conseqüente desenvolvimento? realização de inúmeras atividades de
Como trabalhar de forma que garanta organização e de registro, feitas indi-
a atuação pedagógica no limiar superior, ou vidualmente, em pequenos grupos ou com
seja, atuando na zona de desenvolvimento ime- a participação de toda a turma.
diato? Os projetos valorizam o trabalho e a função
Nesse sentido, um caminho encontrado por vá- do professor que, em vez de ser alguém que re-
rios professores para desenvolver as diferentes produz ou adapta o que está nos livros didáticos

2
Bezerra (2000), tradutor do livro de Vygotsky, A Construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000,
diretamente do russo, indica, no prefácio, que o termo mais próximo do que fora empregado por Vygosky seria zona de
desenvolvimento imediato e não proximal como foi inicialmente traduzido do inglês. 67
e nos seus manuais, passa a ser um como a elaboração de um caderno de
pesquisador do seu próprio traba- receitas. Alguns projetos são vin-
lho. O professor torna-se alguém culados a um tema específico,
que também busca informações
Os projetos exi- outros podem ser desdobramen-
sobre o tema eleito, incentiva gem cooperação, tos de projetos institucionais. O
a curiosidade e a criatividade interesse, curiosi- mais importante é que os pro-
do grupo e, sobretudo, enten- dade, pesquisa jetos de trabalho partam de
de as crianças como sujeitos coletiva em dife- questões do grupo, estejam di-
que têm uma história e que par- rentes fontes retamente ligados aos interesses
ticipam ativamente do mundo das crianças, possibilitem um con-
construindo e reconstruindo a cul- tato com práticas sociais reais e per-
tura na qual estão imersos. Ao se tornar mitam o estabelecimento de múltiplas
mais atento ao que surge do grupo, o professor relações, ampliando o conhecimento de pro-
amplia o diálogo com as crianças e se torna fessores, alunos, pais e comunidade escolar
importante na busca, na organização e na me- sobre um assunto específico. As etapas do tra-
diação dos conhecimentos. A procura de to- balho devem ser planejadas pelo professor e
dos por respostas às questões que surgem no negociadas com as crianças para que essas pos-
grupo mobiliza e torna a aprendizagem um sam acompanhar e participar ativamente de
desafio coletivo. E a escola pode ser um espa- todo o processo, dando sugestões, questionan-
ço de busca, de reflexão, que se vale de fon- do, buscando soluções, fontes de informação
tes e áreas de conhecimento diversas para e até mesmo avaliando. Os projetos exigem
entender um fenômeno natural, cultural e cooperação, interesse, curiosidade, pesquisa
social. Lugar onde as diferentes linguagens coletiva em diferentes fontes, registros do que
assumem grande importância, pois são as fer- está sendo pesquisado como: fotografias, de-
ramentas necessárias para ler, entender, in- senhos, pinturas, colagens, maquetes, insta-
terpretar e dizer o mundo. lações, teatro, dramatizações, etc. e os mais
variados tipos de textos escritos. Ao profes-
Uma escola comporta vários tipos de projetos. sor cabe a mediação de cada momento do pro-
A começar pelo projeto político-pedagógico cesso por meio de planejamento e
definidor da sua proposta. O projeto político- organização de propostas (de ação, represen-
pedagógico da escola se efetiva em ações orga- tação e tomada de consciência), pesquisa de
nizadas em diferentes projetos institucionais que fontes para subsidiar o trabalho, conhecimen-
podem ser de caráter permanente – como a or- to dos conteúdos, observação e reflexão so-
ganização e a utilização da biblioteca escolar ou bre os objetivos que devem ser
do centro de estudos de professores – , podem necessariamente trabalhados, registro das
surgir de questões amplas da comunidade esco- conquistas das crianças, etc. Como já referi-
lar, como Direitos Humanos, sendo trabalhado do, a duração de um projeto é variável em
ao longo de um ano letivo – ou podem tam- razão da sua grande dose de imprevisibilidade.
bém ser mais pontuais, como Feira de Ciênci-
O trabalho com projetos, por abordar um de-
as, Feira de Livro, Copa do Mundo, eleições.
terminado assunto de forma contextualizada,
Além dos projetos institucionais, há projetos por
amplia consideravelmente a gama de conhe-
segmento, por série/ano e por turma.
cimentos que podem ser ancorados ao tema
Os projetos de trabalho de uma turma tam- eleito, permitindo a interdisciplinaridade e a
bém podem ter caráter permanente, como a or- transversalidade, além da inserção da educa-
68 ganização de uma horta, ou uma duração menor, ção de forma ampla na cultura. Um projeto
pode desencadear outros e as diferentes for- professores, temos papel decisivo, não só na or-
mas de buscar as informações e de socializá- ganização e disposição dos recursos, mas também
las – jornal, livro, exposições, feiras, etc. – na distribuição do tempo, na forma de mediar as
permitem que os conhecimentos construídos relações, de se relacionar com as crianças e de
coletivamente circulem, estendam-se à comu- instigá-las na busca de conhecimento.
nidade e vice-versa. Quando compreendidos
Cabe à educação das séries/anos iniciais valo-
de forma dinâmica, os projetos podem se tor-
rizar as diferentes manifestações culturais, par-
nar apostas coletivas de amplificação cultural.
tir dos interesses e conhecimentos das crianças,
Vale lembrar que o trabalho com projetos tor- ampliá-los e expandi-los em projetos de traba-
na-se eficaz quando articulado com a propos- lho interdisciplinares. Cabe ainda pensar na
ta pedagógica da escola e quando, a partir de educação como espaço de humanização e de
uma reflexão coletiva dos professores, são luta contra a barbárie. Para Paulo Freire (1997,
estabelecidas as finalidades do trabalho e apon- p.26) “quando vivemos a autenticidade exigida
tada a construção de conceitos. pela prática de ensinar-aprender participamos
de uma experiência total, diretiva, política, ide-
Mais algumas reflexões...
ológica, gnosiológica, pedagógica, estética e éti-
Uma proposta pedagógica que envolva as di- ca, em que a boniteza deve achar-se de mãos
ferentes áreas do currículo de forma integrada dadas com a decência e com a seriedade”. A
se efetiva em espaços e tempos, por meio de educação é simultaneamente um ato político,
atividades realizadas por crianças e adultos em estético e ético. A política como ação do sujei-
interação. As condições do espaço, organiza- to na coletividade se efetiva com uma forma e
ção, recursos, diversidade de ambientes inter- um conteúdo que, por sua vez, são
nos e ao ar livre, limpeza, segurança, etc. são indissociáveis. Separar ética, política e estética
fundamentais, mas são as interações que qua- é desconhecer como se dá a própria ação
lificam o espaço. Um trabalho de qualidade educativa. Na prática pedagógica, a estética dos
para as crianças nas diferentes áreas do currí- espaços, dos materiais, dos gestos e das vozes dá
culo exige ambientes aconchegantes, seguros, visibilidade ao que e como se propõe à criança
encorajadores, desafiadores, criativos, alegres e, ainda, ao que o adulto pensa sobre ela e so-
e divertidos; nos quais as atividades elevem sua bre a educação dirigida a ela. O político permeia
auto-estima, valorizem e ampliem as suas lei- tudo isso pelas vozes que podem ser ouvidas
turas de mundo e seu universo cultural, agu- ou caladas, pela possibilidade de os sujeitos
cem a curiosidade, a capacidade de pensar, de expressarem-se, relacionarem-se, respeitarem-
decidir, de atuar, de criar, de imaginar, de ex- se, sensibilizarem-se e comprometerem-se com
pressar; nos quais jogos, brincadeiras, elemen- o outro e com o seu grupo social, aproprian-
tos da natureza, artes, expressão corporal, do-se de conhecimentos e inserindo-se nas di-
histórias contadas, imaginadas, dramatizadas, ferentes esferas culturais. O ensino fundamental
lidas, etc. estejam presentes. Os espaços dis- para as crianças de seis anos, como um dos pri-
poníveis para as atividades precisam ser com- meiros espaços públicos de convivência, é onde
preendidos como espaços sociais onde nós, tudo isso começa.

69
Referências Bibliográficas

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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares
Nacionais. Brasília:MEC/SEF, 1997.
______. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Vol. I, II e III. Brasília, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação, Resolução CEB nº 2, de 7
de abril de 1998.
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______. Estética da criação verbal. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1992b.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997.
KAMII, Constance. A criança e o número. Campinas, SP: Papirus, 1986.
PINTO, Manuel. A infância como construção social. In: PINTO, Manuel; SARMENTO, Ma-
nuel Jacinto(Coord.). As crianças:contextos e identidades. Centro de Estudos da Criança – Uni-
versidade do Minho, Braga, Portugal, 1997, p.33-73.
VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 4a. Edição, 1991.
______. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 5a. Reimpressão.
______. A Construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.

70
LETRAMENTO E
ALFABETIZAÇÃO: PENSANDO A
PRÁTICA PEDAGÓGICA
Telma Ferraz Leal 1
Eliana Borges Correia de Albuquerque 2
Artur Gomes de Morais 3

Quem foi que disse que eu escrevo para as elites?


Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond?
Eu escrevo para a Maria de Todo Dia.
Eu escrevo para o João Cara de Pão.
Para você, que está com este jornal na mão...
E de súbito descobre que a única novidade é a poesia.
O resto não passa de crônica policial-social-política.
E os jornais sempre proclamam que “a situação é crítica”!
Mas eu escrevo é para o João e a Maria
Que quase sempre estão em situação crítica!
E por isso as minhas palavras são quotidianas como o pão
nosso de cada dia
E a minha poesia é natural e simples como a água bebida
na concha da mão.

Mário Quintana

A criança e a linguagem: vivenciadas por crianças e adultos. Por meio


interação e inclusão social da oralidade, as crianças participam de dife-
rentes situações de interação social e apren-
s crianças, desde muito cedo, convi dem sobre elas próprias, sobre a natureza e sobre

A vem com a língua oral em diferentes


situações: os adultos que as cercam
falam perto delas e com elas. A linguagem ocu-
a sociedade. Vivenciando tais situações, as
crianças aprendem a falar muito cedo e, quan-
do chegam ao ensino fundamental, salvo al-
pa, assim, um papel central nas relações sociais gumas exceções, já conseguem interagir com
1
LEAL,Telma Ferraz. Doutora em Psicologia Cognitiva pela UFPE; Professora Adjunta do Centro de Educação da Universida-
de Federal de Pernambuco.
2
ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de. Doutora em Educação pela UFMG; Professora Adjunta do Centro de Educação
da Universidade Federal de Pernambuco.
3
MORAIS, Artur Gomes de. Doutor em Psicologia pela Universidad de Barcelona; Professor Adjunto do Centro de Educação 71
da Universidade Federal de Pernambuco.
autonomia. Na escola, no entanto, aprendem o desenvolvimento dos conhecimentos rela-
a produzir textos orais mais formais e se depa- tivos à aprendizagem da escrita alfabética, as-
ram com outros que não são comuns no dia-a- sim como daqueles ligados ao uso e à produção
dia de seus grupos familiares ou de sua da linguagem escrita.
comunidade. Na instituição escolar,
Nessa perspectiva, convidamos
portanto, elas ampliam suas ca-
professores e professoras a re-
pacidades de compreensão e Por meio da fletir sobre o papel do con-
produção de textos orais, o
oralidade, as crian- tato dos estudantes com
que favorece a convivência
ças participam de diferentes textos, em ati-
delas com uma variedade
vidades de leitura e es-
maior de contextos de diferentes situações
crita realizadas dentro e
interação e a sua reflexão de interação social e
sobre as diferenças entre fora da escola. No en-
aprendem sobre elas tanto, é preciso recordar
essas situações e sobre os
próprias, sobre a que esse contato por si só,
textos nelas produzidos.
natureza e sobre a sem mediação, não garan-
O mesmo ocorre em relação sociedade. te que nossas crianças e nos-
à escrita. As crianças e os ado- sos jovens se alfabetizem, ou
lescentes observam palavras escri- seja, que se apropriem do Sistema
tas em diferentes suportes, como de Escrita Alfabética. Desse modo, con-
placas, outdoors, rótulos de embalagens; es- sideramos relevante a distinção feita pela pro-
cutam histórias lidas por outras pessoas, etc. fessora Magda Soares (1998) entre alfabetização
Nessas experiências culturais com práticas de e letramento.
leitura e escrita, muitas vezes mediadas pela
oralidade, meninos e meninas vão se consti- O primeiro termo, alfabetização, corresponderia
tuindo como sujeitos letrados ao processo pelo qual se adquire uma tecnologia
– a escrita alfabética e as habilidades de utilizá-
Sabemos hoje (cf. Morais e Albuquerque, la para ler e para escrever. Dominar tal
2004) que as crianças que vivem em ambien- tecnologia envolve conhecimentos e destrezas
tes ricos em experiências de leitura e escrita, variados, como compreender o funcionamen-
não só se motivam para ler e escrever, mas
to do alfabeto, memorizar as convenções letra-
começam, desde cedo, a refletir sobre as ca-
som e dominar seu traçado, usando instrumentos
racterísticas dos diferentes textos que circulam
como lápis, papel ou outros que os substituam.
ao seu redor, sobre seus estilos, usos e finalida-
des. Disso deriva uma decisão pedagógica fun- Já o segundo termo, letramento, relaciona-se
damental: para reduzir as diferenças sociais, a ao exercício efetivo e competente daquela
escola precisa assegurar a todos os estudantes - tecnologia da escrita, nas situações em que
diariamente - a vivência de práticas reais de precisamos ler e produzir textos reais. Ainda
leitura e produção de textos diversificados. segundo a professora Magda Soares (1998, p.
Cabe, então, à instituição escolar, responsá- 47), “alfabetizar e letrar são duas ações distin-
vel pelo ensino da leitura e da escrita, ampli- tas, mas não inseparáveis, ao contrário: o ide-
ar as experiências das crianças e dos al seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a
adolescentes de modo que eles possam ler e ler e a escrever no contexto das práticas soci-
produzir diferentes textos com autonomia. ais da leitura e da escrita”.
Para isso, é importante que, desde a educa- Os professores(as), há algum tempo, vêm par-
72 ção infantil, a escola também se preocupe com ticipando desse debate, no centro do qual se
questionam as práticas de ensino restritas aos 1. situações de interação mediadas pela
velhos métodos de alfabetização e se busca escrita em que se busca causar algum
garantir que os meninos e as meninas possam, efeito sobre interlocutores em diferentes
desde cedo, alfabetizar-se e letrar-se, simulta- esferas de participação social (circulação
neamente. Resumindo o que foi descoberto de informações cotidianas, como, por
nos últimos 25 anos, Morais e Albuquerque exemplo, por meio de escrita e leitura
(2004) afirmam que para “alfabetizar letrando” de textos jornalísticos; comunicação
é necessário: (i) democratizar a vivência de direta entre pessoas e/ou empresas,
práticas de uso da leitura e da escrita; e (ii) mediante textos epistolares (cartas,
ajudar o estudante a, ativamente, reconstruir convites, avisos), circulação de saberes
essa invenção social que é a escrita alfabética. gerados em diferentes áreas de
conhecimento, por meio dos textos
Assim, a nossa proposta agora é refletir de for-
científicos; orientações e prescrições
ma mais aprofundada sobre aqueles aspectos
sobre como realizar atividades diversas
constitutivos de uma prática de alfabetização
ou como agir em determinados eventos,
na perspectiva do letramento.
mediante textos instrucionais; compar-
A leitura e a produção de tilhamento de desejos, emoções,
textos no ensino fundamental valoração da realidade vivida, expressão
da subjetividade, por meio dos textos
No início deste texto, foi mencionado que a literários; divulgação de eventos,
linguagem ocupa papel de destaque nas rela- produtos e serviços, mediante textos
ções sociais. Na nossa sociedade, a participa- publicitários; entre outros;
ção social é intensamente mediada pelo texto
escrito e os que dela participam se apropriam 2. situações voltadas para a construção e a
não apenas de suas convenções lingüísticas, sistematização do conhecimento,
mas, sobretudo, das práticas sociais em que os caracterizadas, sobretudo, pela leitura e
produção de gêneros textuais que usamos
diversos gêneros textuais circulam. Desse
como auxílio para organização e
modo, Bakhtin (2000, p. 279) chama a aten-
memorização, quando necessário, de
ção de que “cada esfera de utilização da língua
informações, tais como anotações,
elabora seus tipos relativamente estáveis de enun-
resumos, esquemas e outros gêneros que
ciados”. Ou seja, em cada tipo de situação de
utilizamos para estudar temas diversos;
interação, deparamo-nos com gêneros textu-
ais diferentes e distintos modos de usá-los. 3. situações voltadas para auto-avaliação e
expressão “para si próprio” de
Ao refletirmos sobre os usos que fazemos da
sentimentos, desejos, angústias, como
escrita no dia-a-dia, sabemos que tanto na sala
forma de auxílio ao crescimento pessoal
de aula quanto fora dela isso fica evidente.
e ao resgate de identidade, assim como
Qualquer cidadão lê e escreve cumprindo fi-
ao próprio ato de investigar-se e resolver
nalidades diversas e reais. Precisamos garantir
seus próprios dilemas, com utilização de
esse mesmo princípio, ao iniciarmos os estu-
diários pessoais, poemas, cartas íntimas
dantes no mundo da escrita. Desse modo, pro-
(sem destinatários);
pomos, assim como defendido em Leal e
Albuquerque (2005), que sejam contempla- 4. situações em que a escrita é utilizada para
das na escola: automonitoração de suas próprias ações, 73
para organização do dia-a-dia, para apoio (4)textos da ordem do expor, destinados à
mnemônico, tais como agendas, calen- construção e à divulgação do saber, tais
dários, cronogramas, entre outros. como notas de enciclopédia, artigos
voltados para temas científicos,
Reconhecendo essa diversidade e a necessi-
seminários, conferências; e
dade de investirmos na formação dos estudan-
tes para lidar de forma autônoma e crítica com (5)os textos da ordem do argumentar, que se
essas situações, Dolz e Schneuwly (2004) pro- destinam à defesa de pontos de vista, tais
põem que façamos uma classificação dos tex- como textos de opinião, diálogos
tos, com fins didáticos, com o propósito de argumentativos, cartas ao leitor, cartas
trabalharmos com uma gama variada de gê- de reclamação, cartas de solicitação.
neros textuais na escola, promovendo, assim, Nessa perspectiva, é importante que a es-
situações de leitura, produção de tex- cola, desde a educação infantil, pro-
tos e reflexões sobre os aspectos mova atividades que envolvam
sócio-discursivos dessa varieda- essa diversidade textual e le-
de textual. A leitura do texto vem os estudantes a cons-
Em sua prática, o professor literário é fonte de truir conhecimentos sobre
(a) deve ter algum critério prazer e precisa, os gêneros textuais e seus
para selecionar os textos que portanto, ser consi- usos na sociedade. As-
serão produzidos com os es- derada como meio sim, mesmo as crianças
tudantes. Existe variedade? ou os adolescentes que
para garantir o
Os meninos e meninas po- não conseguem ainda ler
direito de lazer das e escrever convencional-
dem conviver com um uni-
verso rico de gêneros textuais crianças e dos mente de forma autônoma,
que apresentam características dis- adolescentes podem fazê-lo por meio de
tintas e cumprem finalidades uma outra pessoa.
diversificadas? Em relação ao primeiro agrupamento citado
Dolz e Schneuwly ajudam-nos a refletir sobre pelos autores – textos da ordem do narrar –,
esse tema. Tais autores defendem que devería- por exemplo, podemos citar várias razões que
mos propiciar em todos os anos o contato com: justificam a necessidade de garantir que os es-
(1)textos da ordem do narrar, que seriam tudantes tenham acesso a esses textos: a lite-
aqueles destinados à recriação da ratura é um bem cultural da humanidade e
realidade, tais como contos, fábulas, deve estar disponível para qualquer cidadão;
lendas; a leitura do texto literário é fonte de prazer e
precisa, portanto, ser considerada como meio
(2)textos da ordem do relatar, que seriam para garantir o direito de lazer das crianças e
aqueles destinados à documentação e à dos adolescentes; a leitura do texto literário
memorização das ações humanas, tais promove no ser humano a fantasia, conduzin-
como notícias, diários, relatos históricos; do-o ao mundo do sonho; possibilita, ainda,
(3)textos da ordem do descrever ações, que que os valores e os papéis sociais sejam
seriam os que se destinam a instruir como ressignificados, influenciando a construção de
realizar atividades e a prescrever e regular sua identidade; por fim, sem termos a preten-
modos de comportamento, tais como são de esgotar tais razões, promove a motiva-
74 receitas, regras de jogo, regulamentos; ção para que crianças e adolescentes aprendam
a ler e possibilita inseri-los em comunidades escrito, formulam hipóteses sobre como a his-
de leitores. tória terminará, comparam o conteúdo e o
No entanto, sabemos que, em nosso país, nem estilo daquele texto com o de outros que já
todas as crianças e adolescentes têm a oportu- conheceram previamente, etc.
nidade de conviver com livros de literatura in- Como você tem observado essas condutas em
fantil e juvenil antes e fora da escola e, com sua sala de aula? Além das histórias infantis e
isso, destacamos a importância de o professor juvenis, que outros textos você julga que po-
garantir em sua rotina pedagógica a prática de dem ser lidos e produzidos com nossas crian-
ler livros de literatura. As atividades de leitura ças e adolescentes? Para melhor refletirmos
descritas, por exemplo, no último capítulo des- sobre as possibilidades de trabalho com dife-
se documento, têm sido atividades rentes textos, apresentamos três relatos de ex-
constitutivas da prática de muitos docentes da periências de professoras dos anos/séries iniciais
educação infantil e dos anos/séries iniciais do do ensino fundamental.
ensino fundamental. Essas atividades, realiza-
das muitas vezes diariamente, envolvem, so- Exemplo 1: A trajetória do Menino
bretudo, a leitura de textos literários e de outros Maluquinho
materiais que interessam aos estudantes e que A professora Udenilza Pereira da Silva, da 3ª
fazem parte do universo infantil e juvenil. série, relatou uma experiência4 vivenciada em
Momentos diários de leituras compartilhadas, sua escola, que envolveu textos da ordem do
onde o professor lê para seu grupo, possibili- narrar (contos), do relatar (biografia) e do ar-
tando que os estudantes possam, inclusive, ob- gumentar (resenha crítica), além de gêneros
servar o escrito e as ilustrações, são de grande de outras esferas de circulação. Essa experiên-
importância nesse processo. Pesquisas realiza- cia contou com a participação de todas as tur-
das em diversos países demonstram que meni- mas da escola.
nos e meninas que desde cedo escutam histórias Como uma das ações da escola para o
lidas e/ou contadas por adultos, ou que brin- ano de 2002, resolvemos (professoras,
cam de ler e escrever (quando ainda não do- coordenadoras, diretora) fazer uma feira
minaram o sistema de escrita alfabética), literária, com o objetivo de desenvolver nos
adquirem um conhecimento sobre a lingua- alunos o gosto pela leitura e o prazer da
gem escrita e sobre os usos dos diferentes gê- escrita. Cada professora ficou responsável
neros textuais, antes mesmo de estarem por escolher um autor de textos literários,
alfabetizadas (cf. Teberosky, 1995). É por meio que não poderia ser repetido.
de atividades como essas que meninos e me- Cada turma, tendo escolhido um autor que
ninas vão gradativamente construindo idéias agradasse ao grupo, planejaria uma homena-
cada vez mais elaboradas sobre o que é ler e gem a ser feita na feira literária da escola. Fi-
escrever. Tais momentos possibilitam, inclu- cou combinado também que cada turma
sive, que eles se apropriem de estratégias de escreveria um livro para ser doado à bibliote-
leitura típicas de um leitor experiente (cf. Solé, ca, para que outras crianças pudessem conhe-
2000). Assim, por exemplo, ao se defronta- cer um pouco mais sobre o autor e ler os textos
rem com um texto num livro de histórias, ela- produzidos por eles próprios. Udenilza conta
boram antecipações sobre o que está ali que sua turma escolheu as obras de Ziraldo.

4
Relato publicado em Guimarães, G.L. e Leal, T.F.(2002). 75
Para a realização de tal atividade, foram aluno fez sua autobiografia oralmente, resgatan-
pegos alguns livros desse autor. Uma do, assim, seus conhecimentos prévios”.
grande dificuldade existente para a As informações sobre a vida do autor foram
realização do trabalho foi a não-existência, pesquisadas na Internet pela educadora de
na escola, de livros de Ziraldo. Por isso, apoio (coordenadora pedagógica da escola) e
foram pegos livros emprestados de outras levadas para a sala pela professora. Verifica-
escolas (2 escolas). Após essa fase, li cada mos que, nessa etapa do projeto, os meninos e
livro conseguido, selecionando 5 deles para as meninas leram textos com diferentes finali-
serem trabalhados com a turma, que foram: dades: divertir-se e apreciar as obras do autor
"Pelegrino e Petrônio", "Os dez amigos", por meio da leitura dos contos; selecionar in-
"O Menino Maluquinho", "O bebê em formações para escrever a biografia mediante
forma de gente" e "Dodó". leitura dos textos da Internet; aprender como
A professora contou que, em cada dia, ela lia se organizam as biografias por meio da leitura
uma obra para a turma, que se deleitava com da biografia de outra autora, Cecília Meireles.
as histórias de Ziraldo, e depois as crianças in- A produção oral das autobiografias, por sua vez,
ventavam histórias baseadas no conto lido, foi uma atividade importante para desenvol-
aproveitando os personagens, ou construindo ver capacidades de organização do texto oral
versões diferentes da contada pelo autor. A e ativar nos estudantes conhecimentos de ou-
empolgação era grande, tanto dos estudantes tros gêneros já conhecidos por eles (relato pes-
quanto da professora. soal) , os quais podiam ser usados nessa nova
tarefa. Levar os estudantes a perceber que as
Eu não conhecia a história do Menino
capacidades e os conhecimentos dos quais eles
Maluquinho, uma das mais conhecidas
dispõem, relativos aos textos orais, podem ser
obras de Ziraldo, por isso, confesso que
transferidos para a produção de textos escritos
me “apaixonei” pelas aventuras do
é outro objetivo especialmente importante nos
personagem, sendo elas, literalmente,
anos/séries iniciais do ensino fundamental. Por
malucas. Além de eu ter gostado bastante fim, ao escreverem a biografia, os estudantes
da história, consegui perceber que os estavam desenvolvendo diferentes capacida-
alunos se sentiram também envolvidos des textuais, referentes à organização das in-
pela trajetória do personagem mais formações no papel e às características da
famoso do autor. escrita, diferenciando-as do momento em que
O livro produzido pelos estudantes foi organi- produziram oralmente suas autobiografias.
zado em três partes. Na primeira, eles escreve- Para a produção das resenhas, também foi rea-
ram a biografia de Ziraldo; na segunda, lizado um trabalho prévio, como conta a pro-
produziram resenhas de três livros lidos, com fessora: “para a produção de resenhas, foi
o objetivo de que outras crianças quisessem citada como exemplo a resenha esportiva e a
lê-los também; e, na terceira parte, foram co- resenha de novela, para que os alunos tives-
locados os textos dos estudantes (um texto de sem uma noção maior sobre o gênero. Após
cada um, escolhido por eles entre os que fo- isso, eles produziram resenhas coletivas, com
ram elaborados no decorrer do projeto). a minha ajuda”.
Para a produção da biografia, Udenilza conta No caso das resenhas que as crianças estavam
que, antes de passar para a escrita do texto, “os produzindo, havia diferenças marcantes em
alunos tiveram acesso a um livro onde havia a relação às resenhas apresentadas. No entan-
76 biografia de Cecília Meireles e, em seguida, cada to, elas estavam aprendendo que poderiam
transpor conhecimentos de alguns gêneros de diferentes níveis. Um outro ponto
escritos para outros. Por um lado, o fato de a satisfatório foi a participação das crianças
professora ter produzido as resenhas coletiva- que ainda não dominam a leitura
mente foi uma boa alternativa, pois nesse tipo fluentemente, pois, por meio das imagens,
de situação podemos fazer os estudantes per- elas sentiram prazer de ler e compreender
ceberem as estratégias usadas para escrever o para, com isso, passar o que trabalharam
texto, relendo partes dele para dar continui- para o público visitante da feira literária.
dade, pensando sobre as palavras que devem Como disse a professora, um dado importan-
ser usadas, decidindo sobre a organização das
te dessa experiência foi a sua realização com
sentenças, enfim, sobre como expressar por es-
meninos e meninas de diferentes idades da
crito o que queremos dizer. Por outro lado,
mesma escola. Na educação infantil, por
como eles estavam escrevendo uma resenha
exemplo, os estudantes também estavam len-
crítica com fins de persuadir, precisavam pen-
do e elaborando os mesmos gêneros textuais
sar em como estruturar o texto de modo que
produzidos pelos estudantes de Udenilza.
esse evidenciasse a qualidade dos contos lidos
Obviamente, aquelas crianças estavam desen-
e como valeria a pena lê-los. Assim, a profes-
volvendo outras capacidades e se aproprian-
sora tinha condições de enfocar a dimensão
do de outros conhecimentos. Ou estavam se
argumentativa da situação.
apropriando de alguns conhecimentos e de-
Para finalizar o trabalho, a professora organizou senvolvendo capacidades similares aos dos
com eles os textos, elaboraram a capa, fizeram estudantes de Udenilza, mas com um nível
ilustrações e ensaiaram uma dramatização do de apropriação diferente.
Menino Maluquinho a ser apresentada na feira
literária. Assim, eles se envolveram nas ativi- Exemplo 2: Dicionário – prazer em
dades de forma intensa e aprenderam muito conhecer
sobre o autor, sobre as obras e desenvolveram
capacidades relativas à produção e à compre- No exemplo 1, vimos situações em que os alu-
ensão de textos. A leitura dos diversos livros e nos e a professora leram e produziram textos da
a produção certamente aumentaram o reper- ordem do narrar, do relatar e do argumentar. E
tório de conhecimentos dos meninos e meni- os da ordem do expor? Bem, sabemos que esses
nas sobre textos literários e contribuíram para textos são muito freqüentes no contexto esco-
que eles se engajassem em práticas de uso da lar. Pesquisamos temas de ciências, geografia,
linguagem com interesse e prazer. A partici- entre outras áreas do conhecimento e, para isso,
pação dessas crianças na feira literária, ouvin- nos deparamos com notas de enciclopédia, ar-
do o que os outros colegas tinham para mostrar tigos científicos de revistas, textos didáticos, etc.
sobre outros autores e outras obras também foi Na escola, precisamos ajudar as crianças e os
um momento riquíssimo para lidar com esses adolescentes a usar esses textos que servem para
textos e com a cultura literária. Para concluir, aprendermos conceitos, para construirmos co-
a professora diz que: nhecimentos sobre o homem, sobre a natureza,
sobre a sociedade.
O trabalho realizado foi de extrema
importância para mim, pois consegui Um gênero textual também importante é o
provocar nos estudantes um grande interesse verbete, pois aprender a consultar dicionário e
pela leitura e produção de diferentes gêneros compreender as informações nele disponibili-
textuais, apesar de muitas dificuldades de se zadas depende de contatos com tal suporte tex-
trabalhar com uma turma com 38 crianças tual. A professora Verônica Barros, da 4ª série, 77
contou como introduziu o trabalho com dici- de duas páginas seguidas e eles então
onários na sua turma.5 descobriram a função daquelas palavrinhas
No dia em que os dicionários chegaram, a vermelhas (os “cabeços”). Em vez de ficar
professora aproveitou para conversar com seus lendo as palavras uma depois da outra, na
alunos: quem já tinha dicionário em casa? Já página, descobriram que dava para saber
tinham usado ou visto alguém usando? O que se uma palavra que queríamos encontrar
sabiam sobre o dicionário? Para que servia? Sua estava naquela folha, olhando apenas para
turma recebeu o dicionário escolar e ela então as tais palavras destacadas no alto.
apresentou para os alunos esse novo material. Verônica, por meio dessa atividade, desper-
Eis o que ela relatou: tou nas crianças a curiosidade para explorar
Convidei os estudantes de minha 4a série o dicionário recebido e perceber suas utilida-
para irmos folheando o dicionário e des. Mas ela não parou aí; aproveitou o inte-
conversando. Eles se deram conta de que, resse e, em outro dia, realizou um jogo com o
tanto antes quanto depois das seções dicionário:
dedicadas aos verbetes de cada letra, havia Num outro dia, na mesma semana, fiz
várias outras coisas. Vimos que o dicionário uma atividade de busca de palavras, para
tinha uma seção de abreviaturas, um orientá-los a usar os tais ‘cabeços’. Num
resumo de noções de gramática, quadros jogo em grupos, eu dizia a cada vez uma
de conjugação de verbos, lista de grupos palavra para eles procurarem. Ganhava
indígenas do Brasil distribuídos pelos ponto a equipe que me dissesse primeiro
estados, lista de países com suas moedas e qual era a página onde estava a palavra.
adjetivos pátrios, onomatopéias, coletivos, Depois de acharem e dizerem os cabeços,
unidades de medida, além de outras seções liam o verbete completo e víamos os
(sobre obras literárias, presidentes do significados. Eles então prestaram atenção
Brasil, maiores rios de nosso país, etc.). a outras novidades. Notaram que os
Eu mesma não tinha parado, antes, para diferentes significados eram separados por
ver todos esses detalhes. Os alunos também números, que tinha umas letrinhas
viram que, na seção de verbetes de cada (abreviaturas) que eles não conheciam, que
letra, apareciam as formas que a letra teve as palavras (os verbetes) apareciam com
ao longo da história, em diferentes línguas as sílabas separadas.
ou com diferentes formatos e que a primeira
“palavra” era a própria letra e sua definição. Chamamos para a reflexão o dado de que,
Às vezes, a mesma grafia, por exemplo, como bem relatam professores e demais estu-
A, correspondia não só ao nome da letra, diosos, tais atividades não bastam para que
mas tinha outros significados também. É crianças e adolescentes se familiarizem com esse
preciso dizer que eles já dominavam a suporte textual. No entanto, é um bom come-
ordem alfabética e tinham feito consultas ço. É importante propiciar ainda situações em
no único dicionário que tínhamos na sala que eles usem o dicionário para descobrir os
de aula, até aquele dia. Mas, na exploração significados de palavras utilizadas nos textos
do novo dicionário, paramos para ver que com os quais se deparam, para decidir sobre a
em cada página apareciam destacadas, em ortografia das palavras, para escolher, entre di-
vermelho, duas palavras. Chamei a ferentes significados de uma palavra, qual é o
atenção para a primeira e a última palavra mais apropriado para um determinado
78 5
Esse relato foi publicado em Leal e Brandão (2005).
contexto. A idéia, porém, de brincar com o Então, alguns arriscaram:
dicionário, constitui uma boa alternativa para - Pega os copos e faz assim...
aproximar os estudantes desse tipo de suporte Então, eu falei:
textual de modo lúdico. - Assim como? Como fizemos? É só
dizer como fizemos... E aí?… Vamos!
Exemplo 3: Brincando também se aprende Grande foi o meu espanto, porque as cri-
Outra professora também preocupada em pro- anças não sabiam descrever o que elas pró-
mover a aprendizagem de modo prazeroso é prias fizeram e acompanharam passo a
Silene Alves Santana. Ela relatou uma seqüên- passo. Então, refleti: “E agora?” A minha
cia de atividades em que objetivou trabalhar intenção era servir de escriba para elas, uma
com instruções de confecção de brinquedos vez que não escreviam de forma convenci-
com material de sucata.3 Sua turma tinha vinte onal. Daí, pensei: além de ser um escriba,
crianças em torno de quatro anos de idade. A preciso ser também um ajudador na cons-
idéia era produzir brinquedos de sucata e ensi- trução do texto. Percebi que, no trabalho
nar a outras crianças como fazer seus próprios da oralidade, o texto instrucional flui me-
brinquedos. O primeiro brinquedo produzido foi lhor (...). Então, refleti que, para que eles
o chocalho. A professora já estava com o mate- compreendessem como redigir esse texto,
rial e, juntamente com as crianças, foi montan- precisaríamos de outros conhecimentos pré-
do o brinquedo. Em seguida, ela desafiou os vios, algo que desconsideramos totalmente
alunos para que ensinassem a outras crianças nesse momento. Com minha interferência,
como produzir seus próprios chocalhos. Coleti- conseguimos concluir o texto. Porém, ao
vamente, os meninos e as meninas elaboraram fazermos os outros brinquedos escolhidos (a
o texto, com muita ajuda da professora, que peteca, o cavalo de pau, os pés de lata, o
percebeu que, embora eles soubessem explicar bilboquê e os pratos falantes), conseguimos
oralmente como fazer os brinquedos, apresen- descrever melhor a produção dos brinque-
tavam dificuldades de organizar o texto escrito. dos, pois antes tivemos a preocupação de
– Gente, agora precisamos escrever sobre mostrar modelos de outros textos construídos
como produzimos este “chocalho”. por outras crianças.
Precisa ficar muito claro como fizemos, Ao perceber que os conhecimentos
para que crianças da outra turma possam construídos nas situações de uso da oralidade
ler e fazer os seus. não eram suficientes, a professora levou tex-
– Vamos lá! Primeiro vamos escrever, tos instrucionais de outra escola onde esse pro-
listar quais os materiais utilizamos. Esse jeto havia sido realizado e passou a lê-los para
momento do registro da lista de material
a turma. Assim, a etapa de montagem dos brin-
foi muito fácil e prazeroso. Logo, todos
quedos foi mediada pelo texto escrito. A pro-
falaram em coro. Porém, quando
fessora lia as orientações escritas por outros
perguntei “E agora? Precisamos
descrever como fizemos. Vamos! Como estudantes da escola enquanto os de sua tur-
foi?”, as crianças sentiram muitas ma iam montando os brinquedos. A finalida-
dificuldades. Umas perguntavam: de de leitura era similar ao que acontece fora
– Como foi que a gente fez?! da escola, pois é exatamente dessa forma que
– Vocês precisam falar para que eu nós lemos receitas culinárias, instruções de jo-
escreva e outras crianças que não estão gos e outros textos dessa espécie (textos da
presentes possam fazer o brinquedo. ordem do descrever ações). A tarefa de ditar o
79
texto para a professora, então, ficou mais fácil maneira mecânica, repetitiva, na qual os estu-
para as crianças. dantes eram levados a memorizar segmentos
Um destaque que podemos fazer nesse exem- das palavras (letras ou sílabas) ou mesmo pa-
plo é a realização da experiência por crianças lavras inteiras, sem entender a lógica que rela-
de quatro anos de idade. Nesse caso, elas dita- cionava as partes pronunciadas (pauta sonora)
vam para a professora os textos e eram ouvin- e a seqüência de letras correspondente.
tes da leitura que a professora fazia. Nesses Hoje, entendendo que há um conjunto de
momentos, estavam aprendendo muito sobre
conhecimentos a ser construídos, temos con-
a linguagem usada para escrever e sobre as prá-
dições de promover desafios que levem as cri-
ticas diversificadas de uso da escrita. No en-
tanto, não era objetivo da professora, nessa anças e os adolescentes a compreender que a
seqüência de atividades, vivenciar situações escrita possui relação com a pauta sonora. Essa
para que as crianças pensassem também sobre é uma descoberta que nem sempre é realizada
como registrar esses textos. Ou seja, ela não espontaneamente, razão pela qual se torna
estava abordando, nesse projeto, a apropria- imprescindível ajudarmos os estudantes a des-
ção do sistema alfabético de escrita. cobrir os princípios que regem aquela relação
Trazemos à tona tal discussão porque consi- enigmática: a relação entre as partes faladas e
deramos que se quisermos que nossos estudan- as partes escritas das palavras.
tes se insiram nas práticas sociais em que o texto Ferreiro (1985) diz que para chegar à compre-
escrito está presente de modo autônomo, pre- ensão da correspondência entre as letras –
cisamos promover, além do acesso aos textos unidades gráficas mínimas – e os fonemas –
mediado pelos adultos, momentos em que cri- unidades sonoras mínimas, é preciso realizar uma
anças e adolescentes possam pensar sobre
operação cognitiva complexa. Nas escritas al-
como notar (registrar) os textos no papel. Ou
fabéticas, essa empreitada envolve entender:
seja, consideramos fundamental, como já dis-
semos, ajudá-los a construir os conhecimen- z o que a escrita representa das palavras fa-
tos sobre nosso sistema de escrita. ladas (isto é, que as letras representam os
sons e não os significados ou outras carac-
A apropriação do sistema alfa- terísticas físicas das coisas às quais aquelas
bético de escrita de maneira
palavras orais se referem);
lúdica e reflexiva
z como a escrita cria essas representações (isto
É importante que nos recordemos de como foi a é, descobrir que a escrita funciona “tradu-
nossa experiência de estudante numa classe de
zindo”, por meio das letras, segmentos so-
alfabetização. Será que pudemos vivenciar o pra-
noros pequenos, os fonemas, que estão no
zer de escutar, ler e produzir histórias e outros
textos variados naquela etapa inicial, quando interior das sílabas).
ainda não dominavámos o registro da escrita al- Para realizar essa tarefa, o estudante necessita
fabética? Recebemos ajuda para entender como elaborar em sua mente um princípio de esta-
as letras registram os sons da fala? Ou precisa- bilização e igualação das unidades orais e es-
mos descobrir isso por conta própria, à medida critas. Isto é, as crianças e os adolescentes
que copiavámos e recopiavámos listas de síla- precisam observar, por exemplo, que uma le-
bas ou palavras que não compreendíamos? tra (digamos, A) é algo estável, que sempre
Sabemos que durante muito tempo o ensino aparece em determinada posição no interior
80 do nosso sistema de escrita foi feito de uma de uma determinada palavra, e não é apenas
“a letra do nome de uma pessoa ou de uma considerar relações de ordem, de permanência e
coisa”. Precisam compreender que aquela le- relações termo a termo.
tra aparece sempre quando a palavra em ques- Ilustrando as relações de ordem, poderíamos
tão contém um som /a/ naquele ponto, quando dizer, de maneira simplificada, por exemplo,
pronunciamos a palavra lentamente, etc. Isto que aos poucos a criança entende que CA
requer “olhar para o interior das palavras es- não pode ser o mesmo que AC, “que a ordem
critas”, analisando suas unidades gráficas e re- muda as coisas, quando escrevemos”. Ela ne-
fletindo sobre elas. Como explicam Teberosky cessita perceber que a ordem em que registra-
e Ribera (2004), para desenvolver essas capa- mos no papel as letras corresponde à ordem
cidades, é preciso focar os signos gráficos do em que pronunciamos os segmentos sonoros.
sistema alfabético. O fato de as letras serem
Ao remetermo-nos às relações de permanên-
estáveis, de aparecerem sempre na mesma po-
cia, estamos evidenciando que o estudante
sição no interior de uma palavra escrita, ajuda
compreenderá que C é um símbolo que subs-
a criança ou o adolescente a desenvolver as
titui algo (os sons /k/ ou /s/), independente-
capacidades de analisar a palavra oral (aquela
mente de C aparecer manuscrito ou com outro
a que a notação escrita se refere) em seus seg-
formato autorizado para ser C. Isso significa
mentos menores. Torna-se, portanto, funda-
que ele entenderá que há uma constância no
mental para os estudantes conhecer as letras e
registro gráfico dos segmentos sonoros. A isso
refletir sobre suas relações com os sons.
denominamos correspondência grafofônica.
A partir dos estudos hoje disponíveis, pode- A essa lista de descobertas, é preciso acrescen-
mos promover atividades que ajudem as cri- tar algo: ao desenvolver suas habilidades de
anças e os adolescentes a se familiarizar com reflexão fonológica, o estudante descobre que
as letras, por um lado, e a perceber que a cada o CA de casa é igual ao CA de cavalo, porque
letra (ou conjunto de letras, no caso dos as palavras orais /kaza/ e /kavalu/ “começam
dígrafos) corresponde uma unidade sonora parecido, quando falamos, embora se refiram
(com poucas exceções, como a que acontece a coisas bem diferentes no mundo real”. As-
em táxi, em que uma letra – x – representa sim, fica evidenciado para ele que há uma re-
dois fonemas). lação termo a termo, ou seja, a palavra é
Se consultarmos Morais (2005), verificaremos segmentada em unidades silábicas e a cada sí-
que, para dominar a notação alfabética, o es- laba pronunciada registramos uma seqüência
tudante precisa entender as relações entre o de letras a ela correspondente.
todo escrito e o todo falado, ou seja, entre as Em várias atividades de reflexão sobre o siste-
palavras faladas e as palavras escritas, e entre ma de escrita, a tomada de consciência acerca
as partes do escrito (sílabas e letras) e as do desses princípios ocorre quando os estudantes
falado (sílabas e fonemas, que correspondem também percebem que a sílaba, que pode ser
às menores unidades das palavras). Para en- segmentada oralmente, possui regularidades
tender essas relações, no entanto, a criança que facilitam a sua representação (ou notação)
ou o adolescente precisa vir a tratar as letras gráfica. Perceber que em toda sílaba de nossa
como classes de objetos substitutos, isto é, pre- língua há uma vogal é uma aprendizagem
cisa entender que as letras substituem algo, os importante e parece favorecer a tarefa de ten-
segmentos sonoros mínimos, que chamamos tar encontrar as outras unidades no interior
de fonemas. Para compreender o funciona- desse segmento. Precisamos, portanto, aju-
mento da escrita alfabética, ele ou ela precisa dar nossos estudantes a observar “o interior
81
das palavras”, analisando a variedade e a e cantigas de roda, recitamos parlendas, poe-
quantidade de letras que as compõem, sua mas, quadrinhas, desafiamos os colegas com
ordem, os casos de letras que se repetem, etc. diferentes adivinhações, estamos nos envol-
Nessa perspectiva, outra atividade importan- vendo com a linguagem de uma forma lúdica
te para ajudar o estudante a tomar consci- e prazerosa. Elas citam, ainda, diferentes tipos
ência desses princípios é a de fazê-lo perceber de jogos que fazem parte da nossa cultura e
que uma mesma unidade gráfica (a letra), envolvem a linguagem: “Quem nunca brin-
em diferentes contextos, mantém relações cou, fora da escola, do jogo da forca, ou de
com um mesmo valor sonoro ou um valor adedonha,6 ou de palavras cruzadas; dentre
sonoro aproximado. Nesse sentido, Gallart outras brincadeiras? Todos esses jogos envol-
(2004, p.46) atenta vem a formação de palavras e, com isso, po-
dem ajudar no processo de alfabetização”.
partindo da aprendizagem de palavras pró-
ximas, como os próprios nomes, os meni- Outros jogos, criados com o propósito de alfa-
nos e as meninas são capazes de incrementar betizar crianças e adolescentes, também po-
seu universo de palavras e sons a partir de dem ser poderosos aliados dos professores.
letras e sons conhecidos. Ao mesmo tempo Podemos citar, para fins de exemplificação, três
em que se vão desenvolvendo nesse proces- tipos de jogos: (i) os que contemplam ativida-
so, são capazes de gerar outras palavras, des de análise fonológica sem fazer correspon-
jogando com as letras, as sílabas e os sons, dência com a escrita; (ii) os que possibilitam a
e dotando-os de sentido com os demais a reflexão sobre os princípios do sistema alfabé-
cada nova palavra gerada. tico, ajudando os estudantes a pensar sobre as
correspondências grafofônicas (isto é, as rela-
É por tal motivo que sugerimos muitas, cons-
ções letra-som); (iii) os que ajudam a sistema-
tantes e variadas atividades com palavras sig-
tizar essas correspondências grafofônicas.
nificativas para as crianças e adolescentes e com
as quais eles se deparem com freqüência. Tais Os jogos fonológicos são aqueles em que os
palavras estáveis (ou fixas) ajudam o estudan- estudantes são levados a refletir sobre as se-
te a ir percebendo as regularidades do nosso melhanças e diferenças sonoras entre as pala-
sistema de escrita e a utilizar conhecimentos vras. Nesse tipo de atividade, eles começam a
(adquiridos quando as leram e escreveram), ao perceber que nem sempre o foco de atenção
se defrontarem com novas palavras que te- deve ser dirigido aos significados. No caso da
nham semelhanças com aquelas que, em sua apropriação do sistema alfabético, é fundamen-
mente, estão mais estáveis e sobre as quais re- tal entender que é preciso atentar para a pau-
fletiram mais. ta sonora para encontrar a lógica da escrita.

Outras estratégias didáticas que podem auxili- Os jogos favorecem a reflexão sobre os princí-
ar as crianças e os adolescentes a se apropriar pios do sistema alfabético são aqueles em que
do sistema alfabético de escrita assumem a for- as crianças são convidadas a manipular uni-
ma de brincadeiras com a língua. Leal, dades sonoras/gráficas (palavras, sílabas, pala-
Albuquerque e Rios (2004) lembram que brin- vras), a comparar palavras ou partes delas, a
car com a língua faz parte das atividades que usar pistas para ler e escrever palavras.
realizamos fora da escola desde muito cedo. As Por fim, os jogos que auxiliam a sistematiza-
autoras lembram que, quando cantamos músicas ção das correspondências grafofônicas são

82 6
Também chamado de “animal, fruta, pessoa” ou de “stop”.
aqueles que ajudam os meninos e as meninas produzir os textos que compartilhamos soci-
a consolidar e automatizar as correspondên- almente como cidadãos.
cias entre as letras e os sons, pois, muitas ve- Buscamos, neste texto, enfatizar que o en-
zes, temos estudantes que entendem a tendimento sobre como funciona a nossa
lógica da escrita, mas ainda não do- escrita pressupõe ter familiaridade e se
minam todas as correspondências, apropriar das diferentes práticas so-
trocam letras, omitem ou esquecem “Alfabetizar ciais em que os textos circulam, por
o valor sonoro relacionado a algu- letrando” um lado; desenvolver conhecimen-
mas delas. é um desafio tos e capacidades cognitivas e es-
permanente. tratégias diversificadas para lidar
Fazendo um balanço... com os textos nessas diferentes situ-
ações, por outro lado e, aliado a tudo
“Alfabetizar letrando” é um desafio per- isso, desenvolver conhecimentos sobre
manente. Implica refletir sobre as práticas e como registrar (notar) no papel o que se pre-
as concepções por nós adotadas ao iniciar- tende comunicar e sobre como transformar o
mos nossas crianças e nossos adolescentes no registro gráfico em pauta sonora, ou seja, apro-
mundo da escrita, analisarmos e recriarmos priar-se do sistema alfabético de escrita.
nossas metodologias de ensino, a fim de ga- Como educadores, precisamos aprofundar a
rantir, o mais cedo e da forma mais eficaz pos- reflexão aqui apresentada, dando continui-
sível, esse duplo direito: de não apenas ler e dade e ampliando esse debate tão rico e ne-
registrar autonomamente palavras numa escri- cessário. Como você pensa em fazê-lo,
ta alfabética, mas de poder ler-compreender e juntamente com seus colegas?

83
Referências Bibliográficas

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85
86
A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
PEDAGÓGICO: ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO COMO EIXOS
ORIENTADORES
Cecília Goulart 1

Foi aí que nasci: Nasci na sala do 3º ano, sendo


professora D. Emerenciana Barbosa, que Deus tenha.
Até então, era analfabeto e despretensioso. Lembro-
me: nesse dia de julho, o sol que descia da serra era
bravo e parado. A aula era de Geografia, e a
professora traçava no quadro-negro nomes de países
distantes. As cidades vinham surgindo na ponte dos
nomes, e Paris era uma torre ao lado de uma ponte e
de um rio, a Inglaterra não se enxergava bem no
nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam
misteriosamente, trazendo países inteiros. Então,
nasci. De repente nasci, isto é, senti vontade de
escrever. Nunca pensara no que podia sair do papel e
do lápis, a não ser bonecos sem pescoço, com cinco
riscos representando as mãos. Nesse momento, porém,
minha mão avançou para a carteira à procura de um
objeto, achou-o, apertou-o irresistivelmente, escreveu
alguma coisa parecida com a narração de uma viagem
de Turmalinas ao Pólo Norte.

Carlos Drumonnd de Andrade

uitas perguntas aparecem para nós, podemos fazer lá e o que não podemos? O que

M professoras, no momento de orga


nizar e planejar o trabalho, a ação
pedagógica: para que serve a escola? Qual é o
vamos aprender?
Nosso diálogo neste texto trata da organiza-
ção do trabalho pedagógico nos anos/séries
seu papel social? O que fazer para que as crian- iniciais do ensino fundamental de nove anos,
ças aprendam mais e melhor? considerando que a cada ano recomeçamos
E as crianças? Será que também surgem per- nossa ação educativa com novas crianças e
guntas para elas? Como é a escola? O que adolescentes num mundo em constante mu-
acontece lá dentro? Como acontece? O que dança. Daí a necessidade de estudo contínuo,

1
GOULART, Cecília. Doutora em Letras – Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). 87
demandando, assim, atualização e revisão de Dúvidas, apreensões e desejos mobilizam to-
nossas práticas. dos os que se envolvem em novas experiênci-
as. E nós, professores/professoras, a cada ano
O modo como organizamos o trabalho peda-
vivemos novas experiências e novos modos de
gógico está ligado ao sentido que atribuímos à
viver a prática pedagógica porque trabalhamos
escola e à sua função social; aos modos como
com pessoas, com crianças - trabalhamos en-
entendemos a criança; aos sentidos que da-
tão com sujeitos vivos e pulsantes, e com co-
mos à infância e à adolescência e aos proces-
nhecimentos em constante ampliação, revisão
sos de ensino-aprendizagem. Está ligado do e transformação. Que diferença de uma fábri-
mesmo modo a outras instâncias, relaciona- ca, onde o que se almeja é a homogeneidade,
das aos bairros em que as escolas estão locali- o padrão! Na fábrica, um produto de uma mes-
zadas; ao espaço físico da própria escola e às ma série deve ser rigorosamente igual ao outro
atividades que aí ocorrem; às características in- para que passe pelo controle de qualidade!
dividuais do(a)s professore(a)s e às peculiari-
dades de suas formações profissionais e Na escola e na vida, encontramos a multipli-
cidade de sujeitos e de modos de viver, pensar
histórias de vida - muitos fatores então
e ser. Mas encontramos também característi-
condicionam a organização do trabalho pe-
cas e marcas que nos identificam: como seres
dagógico. Em síntese, está ligado à nossa con-
humanos, como pertencentes a um período his-
cepção de educação: educar para quê? Como?
tórico, a uma região geográfica, e a tantos ou-
Liga-se em conseqüência à construção de su-
tros agrupamentos que se entrelaçam. E por
jeitos cidadãos que cada vez mais adentram
que isso acontece? Porque somos sujeitos cul-
os espaços sociais, participando e atuando no
turais, não somos sujeitos errantes: criamos
sentido da sua transformação.
vínculos, sentimentos, mundos, literatura, te-
E nós, professores e professoras, nos pergun- orias, moda, receitas culinárias, filosofia, brin-
tamos: como se constrói a educação como prá- cadeiras, jogos, arte, máquinas – tudo nos
tica de liberdade, no sentido de Paulo Freire? enreda e nos diz que, mesmo sem caminhos
Educar para que as crianças e os adolescentes traçados, como de modo geral acontece com
possam cada vez mais compreender o mundo os animais, construímos história e histórias,
em que vivem por meio do trabalho pedagó- cultura e culturas que nos enraízam, nos en-
gico com os conhecimentos que têm e com volvem e nos identificam.
aqueles conhecimentos de que vão, aos pou- E a escola faz parte dessas criações humanas. É
cos, se apropriando pelo sentido vivo que pos- a instituição, o lugar de nos fortalecermos, de
suem e pelos interesses e desejos que geram. nos entranharmos nessa história com cada uma
Nessa perspectiva, nossas crianças e jovens vão de nossas histórias, de nos fazermos fortes por-
se sentindo cada vez mais livres para transitar que nos integramos socialmente, compreen-
socialmente porque entendem melhor a com- dendo a força e a capacidade criadora do ser
plexidade do mundo. Ao mesmo tempo, vão humano. Compreendendo também a vida e a
se sentindo cada vez mais integrados e fortale- luta dos homens através dos tempos, os conhe-
cidos pela dimensão de cidadania que a prática cimentos produzidos e os modos de produção,
de trabalho organizado e colaborativo abre para as desigualdades criadas e as diferenças.
todos. As experiências pedagógicas coletivas de E nós sabemos bem disso porque convivemos
que participam sinalizam a partilha e a cons- diariamente com crianças e adolescentes que
trução cooperativa de ações comuns – e o va- trazem experiências e histórias que não são en-
88 lor de todos e de cada um se revela. cantadas, são vividas concretamente, muitas
vezes dramaticamente. Às vezes, pre- compreender e sistematizar determina-
ocupadas em demasia com os con- dos conhecimentos. Espera-se, tam-
teúdos de ensino, não paramos Às vezes, bém, que tenha condições, por
para conhecer nossos alunos, preocupadas em exemplo, de permanecer mais
para ouvir os conteúdos tão tempo concentrada em uma
demasia com os
significativos de suas vidas. E atividade, além de ter certa
conteúdos de en- autonomia em relação à satis-
aprendizagem envolve sensi-
bilidade e mudança! Como sino, não paramos fação de necessidades básicas
diz Barbosa (1990), aprendi- para conhecer e à convivência social. É im-
zagem envolve risco, e não nos nossos alunos. portante observar que essas res-
dispomos a correr ricos com qual- postas variam de criança para
quer pessoa - se não conseguimos de- criança e a escola deve lidar de modo
senvolver relações de confiança e afeto com atento com essas e muitas outras diferenças.
os alunos, dificilmente construímos uma rela- Nossa experiência na escola mostra-nos que a
ção de ensino-aprendizagem. criança de seis anos encontra-se no espaço de
A escola é, então, lugar de encontro de mui- interseção da educação infantil com o ensino
tas pessoas; lugar de partilha de conhecimen- fundamental. Sendo assim, o planejamento de
tos, idéias, crenças, sentimentos, lugar de ensino deve prever aquelas diferenças e tam-
conflitos, portanto, uma vez que acolhe pes- bém atividades que alternem movimentos,
soas diferentes, com valores e saberes diferen- tempos e espaços.
tes. É na tensão viva e dinâmica desse É importante que não haja rupturas na passa-
movimento que organizamos a principal fun- gem da educação infantil para o ensino fun-
ção social da escola: ensinar e aprender - pro- damental, mas que haja continuidade dos
fessoras, crianças, funcionários, famílias e todas processos de aprendizagem. Em relação às cri-
as demais pessoas que fazem parte da comuni- anças que não freqüentaram espaços
dade escolar. educativos de educação infantil, habituadas,
Nosso objetivo é convidar o professor(a), para portanto, às atividades do cotidiano de suas
conversar sobre princípios e questões relevan- casas e espaços próximos, também aprenden-
tes para a organização do trabalho pedagógico do e dando sentidos à realidade viva do mun-
no ensino fundamental de nove anos, consi- do que as cerca, o mesmo cuidado deve ser
derando as primeiras séries ou anos iniciais des- tomado. É essencial que elas possam sentir a
se nível de ensino, com ênfase no trabalho com escola como um espaço diferente de seus la-
as crianças de seis anos. Sua experiência pro- res, visto que aquele se organiza como um es-
fissional é fundamental para esta conversa. paço público e não privado como a casa, mas
se sintam acolhidas e também possam conti-
A ênfase na criança de seis anos nuar aprendendo criativamente.
Parafraseando Vinícius de Moraes, a criança A escola potencializa, desse modo, a vivência
de seis anos está naquela “idade inquieta” em da infância pelas crianças, etapa essa tão im-
que já não é uma pequena criança, e não é portante da vida, em que se aprende tanto.
ainda uma criança grande. Do ponto de vista Assim, considerando a participação ativa das
escolar, espera-se que a criança de seis anos crianças de seis a dez anos de idade na escola,
possa ser iniciada no processo formal de alfa- em espaços e tempos adequados à singularidade
betização, visto que possui condições de dessa fase da vida, a experiência de aprender 89
ganha significado social na perspectiva da a formação de pessoas íntegras e integradas à
constituição da autonomia e da cidadania, sociedade por meio da participação cidadã, de
como mencionamos anteriormente. Na forma autônoma e crítica.
interação com seus pares e com os professores, A escola como instituição está marcada pela
por meio de variadas e dinâmicas atividades, organização político-pedagógica que envolve
as crianças vivenciam os processos de apren- os conhecimentos que ali são trabalhados para
der, e também de ensinar, com empenho, res- que as crianças aprendam. Isso acontece de
ponsabilidade e alegria. tal modo que tem um valor estruturante na
Assim, a escola pode ser (sempre) um lugar de formação social das pessoas, dando-lhes identi-
afirmação do que as crianças e os adolescentes dade também pela aprendizagem de modos de
já são e sabem, ao mesmo tempo em que os ação e interação que são socialmente valoriza-
leva a mudanças significativas, a novos conhe- dos. Ou seja, o processo de escolarização mar-
cimentos, por meio da aprendizagem, em rela- ca-nos no sentido de ampliar a compreensão
ção à compreensão do grupo a que pertencem da dinâmica social, das variadas forças e conhe-
na escola e à compreensão de novas possibili- cimentos que disputam poder na sociedade, das
dades de vida, de modo geral. diferentes interpretações de conteúdos, fatos,
objetos, fenômenos e comportamentos sociais.
A escola como espaço social Nossa responsabilidade política de educadores
pedagogicamente organizado leva-nos a investir cada vez mais na qualidade
de nossa atuação profissional.
A organização do trabalho pedagógico carac-
teriza-se como uma dimensão muito importan- Os critérios de organização das crianças em
te para o desenvolvimento do projeto classes/turmas/grupos e de arrumação das car-
político-pedagógico da escola como um teiras, dos grupos e dos materiais nas salas
todo. O projeto político-pedagógi- de aula; o planejamento do tempo
co, como sabemos, é um instru- para brincadeiras livres e da
mento que nos dá direções, hora da refeição; a progra-
nos aponta caminhos, pre- A organização do mação de atividades e os
modos como elas são pro-
vendo, de forma flexível, trabalho pedagógico
postas e desenvolvidas –
modos de caminhar. O caracteriza-se como
tudo isso influencia na
projeto é um eixo uma dimensão muito forma como o projeto
organizador da ação de importante para o pedagógico se desenro-
todos que fazem parte da desenvolvimento do la. Trabalhos coletivos
comunidade escolar. constroem-se coletiva-
projeto político-
Apresenta quem somos e mente; espaços demo-
pedagógico da escola
nossos papéis, nossos valo- cráticos reorganizam-se
res e modos de pensar os pro- com a participação de todos,
cessos de ensino-aprendizagem, inclusive decidindo normas, li-
além do que desejamos com o traba- mites, horários, distribuição de tare-
lho pedagógico. Um projeto político-pedagó- fas... Se as crianças participarem, desde o
gico é como uma radiografia do movimento início dessa organização, terão a oportunida-
que a escola realiza e pretende realizar para al- de de desenvolver o sentimento de
cançar seu objetivo mais importante: educar, pertencimento ao grupo e de responsabilida-
90 promovendo a produção de conhecimentos e de pelas decisões tomadas.
Todos aqueles que integram a comunidade organizativos. Organizar por quê? Para quê?
escolar precisam participar da organização do Como? O que é necessário?
trabalho pedagógico. Todos podem agir para A organização do trabalho pedagógico, então,
que o trabalho pedagógico de ensinar e deve ser pensada em função do que as
aprender aconteça; todos se benefi- crianças sabem, dos seus universos de
ciam dele e se comprometem com Ensinar- conhecimentos, em relação aos co-
ele. Dessa forma, a partir da defini- aprender nhecimentos e conteúdos que consi-
ção de objetivos a ser alcançados envolve certa deramos importantes que elas
na série, ou no ano, ou no ciclo es- intimidade aprendam. No caso das séries/anos ini-
colar, estabelecem-se rotinas de ati- ciais do ensino fundamental, a apren-
vidades a ser realizadas; definem-se os dizagem da língua escrita; o
materiais necessários; e atitudes a ser desen- desenvolvimento do raciocínio matemático e
volvidas para o bom andamento dos proces- a sua expressão em linguagem matemática; a
sos de ensino-aprendizagem. A integração ampliação de experiências com temáticas li-
família-escola desempenha papel de destaque gadas a muitas áreas do conhecimento; a com-
nesse processo. É certo que nem todas as famí- preensão de aspectos da realidade com a
lias participam, ou podem participar, da mes- utilização de diversas formas de expressão e
ma maneira, mas vale a pena inclui-las no registro – tudo deve ser trabalhado de forma
planejamento escolar, por meio de solicitações que as crianças possam, ludicamente, ir cons-
sobre seus modos de funcionamento, seus gos- truindo outros modos de entender a realida-
tos, suas histórias, profissões, tudo isso está li- de, estabelecendo novas condições de vida e
gado às histórias de vida das crianças. de ação.
Na mesma direção anteriormente delineada, Os planejamentos de ensino, os planos de
os professores, também coletivamente, orga- aula e os projetos de trabalho são, portanto,
nizam-se para estudar e planejar, além de ava- frutos de reflexões coletivas e individuais cujo
liar os caminhos traçados e os resultados objetivo é a aprendizagem das crianças. Por
alcançados – avaliar a organização do traba- isso, devem ser pensados a longo, médio e
lho como um todo. O movimento do conjun- curto prazos, abrindo espaço para alterações,
to de professores e dos demais participantes da substituições e para novas e inesperadas situ-
vida escolar indica a disposição de, continua- ações que acontecem nas salas de aula e no
mente, rever posições, metodologias, modos entorno delas, que podem trazer significati-
de enfrentar surpresas e dificuldades. vas contribuições para a reflexão das crian-
Ensinar-aprender envolve certa intimidade. ças, gerando novos temas de interesse, novos
Os/as professore(a)s também devem se expor conhecimentos e novas formas de interpre-
como pessoas que são, narrando fatos de suas tar a realidade.
histórias. Aprendemos com os outros: históri-
A organização discursiva da
as puxam histórias e envolvem-nos, gerando,
escola e suas implicações: a
assim, relações de confiança e cumplicidade,
importância do reconhecimento
básicas para consistentes relações de ensino-
de diferentes modos de falar
aprendizagem.
Descobrir e refletir sobre o que as crianças e os Somos profissionais formados para educar cri-
adolescentes já sabem, sobre suas histórias e anças e adolescentes e temos competência para
seus processos, e também sobre o que deseja- isso. Ao provocarmos situações pedagógicas
mos que aprendam, fazem parte de processos que levem os alunos a construir conhecimentos, 91
por meio do trabalho com diversos conteúdos, idades, e até mesmo de diferentes gêneros, uti-
utilizamos principalmente a linguagem verbal, lizam a língua de maneiras diferentes. A isto
oral e escrita. os lingüistas chamam de fenômeno da varia-
Entre as muitas marcas que caracterizam os ção lingüística. As diferentes maneiras de fa-
modos de lidar com os conteúdos, conhe- lar uma mesma língua são chamadas de
cimentos, tempos e espaços que or- variedades lingüísticas. A variação
ganizam a escola, está o que acontece em todos os níveis da
chamamos de organização língua: sintático (p.ex. deter-
discursiva (cf. Goulart, Pessoas de minadas construções e mo-
2003, p. 267). Tal organi- dos de organizar o discurso
zação se expressa: (i) no
diferentes classes são mais usados, ou me-
movimento discursivo sociais, regiões geográ- nos usados, em determi-
das aulas – falando, ou- ficas, idades, e até nadas variedades da
vindo, escrevendo, len- língua); semântico
do, das mais variadas
mesmo de diferentes (p.ex. usam-se palavras
maneiras –, e também gêneros, utilizam a e expressões diferentes
(ii) nos padrões de tex- língua de maneiras para designar a mesma
tos que caracterizam a es- coisa; ou certas palavras e
cola e são produzidos por ela:
diferentes. expressões têm valores dife-
conversas, rodinhas, diários de rentes em diferentes varieda-
classe, cronogramas, projetos de des); morfológico (p.ex. palavras
trabalho, exercícios e seus enunciados, re- derivadas ou compostas são formadas
latórios, planos de curso e de aula, programas, em determinada variedade, mas não existem
livros didáticos, entre outros. Essa organização em outras); e fonológico (p.ex. diferentes ma-
discursiva faz parte da cultura escolar e exerce neiras de pronunciar as palavras, diferentes so-
um papel relevante nos processos de ensinar e taques e entonações, nas diferentes
aprender. variedades). Do ponto de vista da lingüística,
A atividade discursiva permeia todas as ações todas essas variedades são legítimas e corretas.
humanas (Bakhtin, 1992), penetrando nos Cada uma é usada de acordo com aspectos
mais ínfimos espaços sociais. Assim, a lingua- discursivos que lhe são próprios.
gem tem um papel marcante na constituição A questão, entretanto, é complicada porque,
de nossas vidas. A linguagem oral em que as do ponto de vista social, as variedades não têm
crianças e os adolescentes se expressam está o mesmo valor: uma variedade da língua é con-
impregnada de marcas de seus grupos sociais siderada “a certa, a melhor”, e, com base nela,
de origem, valores e conhecimentos. Logo, avaliam-se outras que, ligadas a grupos sociais
seus modos de falar são legítimos e fazem parte populares, são consideradas negativamente. Do
de seu repertório cultural, de vida – são mo- ponto de vista lingüístico, essa avaliação é equi-
dos de ler a realidade. É a partir desses modos vocada. O que acontece é que se avaliam as
de falar/modos de ser que o trabalho pedagó- variedades tendo como parâmetro os aspectos
gico deve ser organizado, de forma que tenha discursivos da variedade eleita como padrão.
sentido para os estudantes. Analisando-se essa “eleição” do ponto de vista
A língua oral não é falada de forma homogê- histórico e político, muita coisa se esclarece.
nea pela população brasileira. Pessoas de dife- Numa sociedade tão desigual como a brasilei-
92 rentes classes sociais, regiões geográficas, ra, a língua também é um grande marcador
social. A variedade de prestígio – a chamada culturas, de todas as classes sociais rea-
língua padrão ou norma culta – se superpõe às lizam isso de um e meio a três anos de
outras variedades. É preciso deixar claro, no idade. Isso é uma prova de inteligência.
entanto, que nem mesmo os falantes de uma
Toda criança aprende uma língua, e
mesma variedade da língua a falam de forma
não fala um amontoado de sons. (grifos
homogênea – podemos dizer que há variação
dentro da variação. Esse é um ponto que me- do autor)
rece muita atenção na escola para que não se
O letramento como horizonte
neguem as marcas de identidade cultural das
para a organização do trabalho
crianças e dos adolescentes.
pedagógico, a relação língua
É no processo de interlocução que as crianças e oral-língua escrita e a aprendi-
os adolescentes se constituem como produtores zagem da escrita
de textos orais. Acertando e errando, ou
melhor, acertando e tentando acer- A tendência da língua oral é ir-se afas-
tando da linguagem escrita, uma vez
tar, as crianças vão buscando re-
que essa última é alterada de for-
gularidades na língua, ao Não se pode
ma muito lenta, enquanto a pri-
depreenderem suas normas. esperar que meira está em permanente
Assim, uma criança é capaz de todas as crianças mudança. Embora seja natu-
falar “fazi”, em vez de “fiz”, ou
aprendam tudo o ral que as crianças, no come-
“di”, em vez de “deu”, e tam-
que lhes é fala- ço da aprendizagem, busquem
bém usar “desvestir”, para ex- estabelecer referências entre a
pressar “tirar a roupa”, porque do, ao mesmo
fala (que conhecem) e a escrita
conhece “tampar/destampar”, tempo
(que querem conhecer), é impor-
“abotoar/desabotoar”, entre outras. tante ir mostrando às crianças que há
A criança e o jovem recriam a linguagem vários modos de falar, mas só há um modo de
verbal oral falada à sua volta como forma de escrever, do ponto de vista ortográfico. Assim,
participação na sociedade. A linguagem é re- por exemplo, as seguintes palavras podem ser
criada por meio dessa mesma participação – faladas como está escrito (ainda que de modo
os outros, isto é, os seus interlo-cutores, têm grosseiro), ao lado da palavra convencional-
mente escrita:
um papel muito importante no processo da
criança e do jovem, mas quem refaz a lingua- MALDADE > maudadi, maudadji, mardadi,
gem é a criança, é o jovem. É o seu trabalho, madadi, maldadji, mardade
agindo com a linguagem e sobre a linguagem, MESMO > mesmu, mermu, meijmo, mezmo,
que os torna seres falantes e participantes no memu, mezmu
universo social. Aprender a escrever sem medo de “errar” é
Cagliari (1985, p. 52) afirma que: importante. Os tropeços fazem parte de qual-
quer processo de aprendizagem. Isto não quer
Aprender a falar é, sem dúvida, a tarefa
dizer que a professora não deva mostrar às cri-
mais complexa que o homem realiza na anças os problemas e os equívocos observa-
sua vida. É a manifestação mais elevada dos, levando-as a compreender as motivações
da racionalidade humana. As crianças de dos problemas e equívocos encontrados. Pelo
todos os lugares do mundo, de todas as contrário, o professor deve apresentar as 93
dificuldades da escrita e conversar sobre elas. qualquer nível de ensino, é um professor de
Como afirma Abaurre (1985), ninguém pode linguagem.
errar o que não sabe. Não se pode esperar que Desta forma, o professor que trabalha com
todas as crianças aprendam tudo o que lhes é os conteúdos de história, de biologia, de
falado, ao mesmo tempo. Não. As crianças têm matemática, ou de outra área qualquer, preci-
ritmos diferentes e modos diferentes de apre- sa pensar-se como professor(a) de linguagem
ender o conhecimento. Por isso, é importante – é principalmente com a linguagem verbal
abordar as mesmas questões muitas vezes, e de que as relações de ensino-aprendizagem acon-
maneiras diferentes, em momentos diferentes, tecem, por meio de diálogos, exposições orais,
com recursos diferentes. atividades de leitura e de escrita, análise de
É esperado que as crianças passem um longo imagens, de quadros, gráficos e problemas,
tempo cometendo “erros” ortográficos (mes- entre outras atividades. Todos somos respon-
mo escribas proficientes têm dúvidas...), antes sáveis pelo trabalho com a linguagem, seja na
de estabilizarem o conhecimento das conven- primeira série/ano escolar ou nas últimas séri-
ções da língua escrita. Mais do que isso: é pre- es/anos do ensino fundamental.
ciso que esse tempo seja permitido, para que Pensar na organização da escola em fun-
elas possam descobrir as possibilidades, ção de crianças das séries/anos inici-
as convenções e as artimanhas do ais do ensino fundamental, com
sistema alfabético-ortográfico. As ênfase nas crianças de seis anos,
escritas de textos espontâneos Todo professor, envolve concebê-las no senti-
pelas crianças são uma grande de qualquer nível do da inserção no mundo le-
fonte de informação sobre o que de ensino, é um trado. Esse mundo é construído
elas sabem e sobre os conteú- professor de lin- com base nos valores da escrita
dos que precisam ser trabalha- nas práticas e relações sociais,
dos para que aprofundem cada vez
guagem.
embora nem sempre esteja pre-
mais a análise e o conhecimento da sente materialmente.
língua.
As crianças e os adolescentes de zonas ur-
Na escola se aprendem novos modos de falar, banas de modo geral têm grande contato com
de ler a realidade quando: conhecemos outras esse mundo, tendo em vista que as cidades são
formas de viver, falar e se comportar; apren- marcadas pela escrita de vários modos, desde
demos conteúdos das diferentes disciplinas, placas de muitos tipos e tamanhos até grafittis
como história, ciências, geografia, matemáti- nos muros e paredes, passando por nomes de
ca, filosofia, entre outras; entramos em conta- estabelecimentos comerciais, trajetos de ôni-
to com a literatura; conhecemos outras bus, invólucros e embalagens várias, e mesmo
expressões da arte, artes cênicas e plásticas, roupas que ganham inscrições e mensagens
artes ligadas ao movimento e ao ritmo, como também variadas. As crianças de áreas rurais,
a dança e a música. São diferentes modos de por sua vez, podem ter afastamento maior da
ler, mostrar e falar da realidade – precisamos linguagem escrita, pelas peculiaridades dessas
penetrar neles para apreendê-los, contemplan- áreas.
do-os, observando-os, conversando, ouvindo O atravessamento da linguagem escrita na vida
leituras sobre seus autores, as épocas em que das pessoas se mostra muitas vezes de modo su-
foram produzidos e como foram produzidos. til: pela convivência com pessoas letradas, pela
94 Consideramos, então, que todo professor, de valorização que a escrita possui em determinados
grupos, fazendo parte do seu cotidiano de relevantes. É importante conversar com as cri-
modo trivial. anças sobre o que se vai escrever, ler textos
E quando a criança entra na escola? De que que contribuam para que elas possam expan-
conhecimentos ela precisa para escrever, para dir seus conhecimentos sobre os temas,
produzir textos com valor social? provocá-las a refletir sobre os textos que vão
elaborar. Isso pode ser feito desde muito cedo,
Pode parecer banal, mas o primeiro conheci- com crianças muito pequenas. Drummond, na
mento necessário para que se escreva é saber epígrafe deste texto, mostra como uma profes-
que se utilizam letras para escrever. Nem to- sora entusiasmada, desenhando e falando so-
das as crianças sabem disso quando chegam à bre diferentes cidades e lugares do mundo,
escola. Depois, saber que essas letras se organi- levou o menino analfabeto do interior de Mi-
zam com base em convenções, de acordo com nas Gerais, de um lugarejo onde havia uma
um sistema de escrita de base alfabética. Apren- praça, a escola, a igreja e a cadeia, a ter desejo
dem que se escreve da esquerda para a direita e de escrever, desejo de viajar escrevendo, ou
de cima para baixo. Aos poucos, as crian- de escrever viajando... Assim o menino
ças vão observando os diferentes pa- se sentiu nascendo para o mundo:
drões de sílaba e outras marcas Foi aí que nasci: nasci na sala do
diferentes de letras que apare- É importante 3o ano.
cem nos textos (sinais de pon- conversar com as
tuação, acentuação). Tudo É importante observar o que
crianças sobre o que nos diz Abaurre (1987, p.
isso precisa ser trabalhado de
várias maneiras pela profes- se vai escrever, ler 49), ao defender que as cri-
sora com as crianças para textos que contribuam anças aprendam a escrever
que cada vez mais seus co- para que elas possam com a própria escrita, explo-
nhecimentos sobre a língua rando todas as suas possibili-
expandir seus
escrita vão crescendo. dades, vivenciando o conflito
conhecimentos entre o idiossincrático e o con-
Para escrever, é preciso, também, vencional: “A leitura e a escrita po-
ter um conhecimento textual: o modo dem surgir de forma espontânea e
como cada tipo de texto se organiza no papel, significativa já na pré-escola, prescindindo da
as diferentes características discursivas dos condução e treinamento rígidos pressupostos
diversos tipos de texto (partes que os compõem, pelo uso das cartilhas.”
tempos verbais característicos, etc.), informa-
ções relevantes, modos de iniciá-los, de terminá- Tentando ler os vários sinais da realidade, in-
los, entre tantas outras. Com certeza, tais cluindo caracteres da escrita, as crianças vão
características não são rígidas, mas há determi- se aproximando de modos de ler. Aprende-se
nados padrões que se vão constituindo cultu- a ler com a leitura. Quando a criança entra na
ralmente, uma vez que a escrita tem uma longa escola, a sua leitura de mundo (Freire, 1982)
história social (Tolchinsky-Landsman, 1990). já está bastante desenvolvida. Como apren-
der a ler as letras e entre as letras, como diz o
Um outro conhecimento fundamental para a poeta (Queirós, 2001, p. 71)?
produção de textos é o conhecimento de mun-
do: ninguém dá o que não tem. É preciso co- O espaço da sala de aula deve ser um espaço
nhecer o tema, fato ou assunto sobre o qual se de formação de leitores. Um espaço, portan-
vai falar ou escrever, para que se alcance coe- to, com muitas leituras. Leituras das crian-
são temática, para que se construam textos ças, leituras dos professores. Leituras de livros,
95
jornais, panfletos, músicas, poesias e do que mais familiares e suas relações, perguntando
mais se tornar significativo. Leituras de vários aos colegas e aos professores, enfim, criando
autores e com várias intenções. É com a leitu- estratégias de leitura que lhe vão permitindo
ra abundante da escrita do mundo que apren- arriscar mais e melhor. É preciso ter espaço para
demos a ler (Barbosa, 1990). arriscar, em conseqüência, é preciso ter espa-
ço, não só para acertar, mas para expor hipó-
Mas como ler sem saber ler? É no contato com
teses, dúvidas – espaço para discutir
materiais escritos e com a mediação de um lei-
possibilidades de leitura que levem a criança a
tor mais experiente, a criança vai buscando
compreender o sentido do que está escrito: pensar, interagir, discordar e concordar.

z explorando as possibilidades de signifi- Aprende-se a ler com a leitura, como foi dito,
cação; mas os caminhos não parecem ser os mesmos
para todas as crianças. Enquanto alguns alu-
z relacionando características dos textos; nos atentam mais para os elementos menores
z familiarizando-se com as letras, as palavras, (como as letras, os sons, os tipos de sílabas) e
as frases e as outras marcas que compõem as suas relações com o texto, outros já prestam
os textos escritos; mais atenção ao texto como um todo e às suas
marcas maiores (como o modo de organização
z elaborando hipóteses sobre o que está
escrito a partir do que já conhece; no papel, por exemplo).

z refletindo sobre as muitas questões que Diante do exposto, o trabalho do(a)


a professora destaca como significativas professor(a) é o de proporcionar atividades e
para o aprendizado da leitura de seus questionamentos que considerem as
alunos. microanálises, isto é, análises que tenham
como ponto de partida os elementos meno-
Foucambert (1994, p. 31) afirma ser uma gran- res do texto (letra, fonema, sílaba), e tam-
de contribuição para a compreensão do ensi- bém as macroanálises, ou seja, aquelas que
no da leitura que: têm como ponto de partida as características
Na fase de aprendizado, o meio deve mais globais do texto, tais como: o modo
proporcionar à criança toda a ajuda para como o texto se organiza no papel; o tipo e a
utilizar textos ‘verdadeiros’ e não temática do texto a partir do título; os porta-
simplificar os textos para adaptá-los às dores de texto e o tipo de texto a eles relaci-
possibilidades atuais do aprendiz. onados; e, quando houver, as
Não se aprende primeiro a ler ilustrações, as imagens. O mais
palavras, depois frases, importante é não perder de vis-
mais adiante textos, e, É preciso ter ta o sentido dos textos.
finalmente, textos dos espaço para arriscar, É preciso que as crianças te-
quais se precisa. em conseqüência, é nham acesso e contato in-
Aos poucos, com interven- preciso ter espaço, tenso com diferentes textos
ções significativas do(a) não só para acertar, para que possam explorá-los,
professor(a) e de outras cri- mas para expor hipó- perguntando sobre eles, ten-
anças e adultos, a leitura da tando adivinhar seus conteú-
teses, dúvidas
criança vai se ampliando dos, observando sua organização
(Kleiman, 1989): antecipando sig- e suas marcas, para que possam ela-
96 nificados, identificando elementos já bora saberes sobre as suas características
e ampliando seus conhecimentos de mundo. de planejamentos. É imprescindível que to-
É preciso ler muito para as crianças (não só dos se sintam à vontade e tenham espaços
para aquelas das séries/anos iniciais), para que para manifestar seus gostos e desgostos, suas
elas aprendam sobre a língua escrita e pos- alegrias e contrariedades, suas possibilidades
sam estabelecer diferenças entre as modali- e limites, seus sim e seus não. Se as cartilhas
dades oral e escrita. Quando a criança e os livros didáticos forem convidados para a
aprende a escrever, forçosamente, analisa a sala de aula, que seja como material auxiliar
linguagem verbal, o que a leva a ampliar, tam- da turma – a direção da organização do tra-
bém, os conhecimentos da linguagem oral. balho pedagógico é dos professores, em con-
Do mesmo modo, é preciso conversar muito junto com os alunos e a comunidade escolar.
com as crianças: sobre as intenções de quem Para finalizar, considerando os encaminha-
escreve, para que e para quem se escreve, so- mentos e as questões apresentadas, em fun-
bre os conhecimentos construídos e em cons- ção da organização do trabalho pedagógico
trução. É preciso, enfim, reafirmar no ensino fundamental, destacamos que as
incessantemente a condição de produtoras de ações desenvolvidas na educação infantil,
sentido e, logo, de autoras e leitoras das cri- pela ênfase na oralidade e em outras formas
anças. de expressão, por meio da participação ativa
Do ponto de vista do método de trabalho, se das crianças em atividades interativas e
queremos trabalhar no sentido de uma socie- lúdicas, podem ser um bom caminho para
dade democrática, é relevante a criação de orientar os processos de ensino-aprendizagem
espaços pedagógicos em que tanto o/a ao longo do ensino fundamental – a escola
professor(a) quanto os estudantes possam ela- precisa ser séria, mas não precisa ser sisuda,
borar propostas de atividades, de projetos e como dizia Paulo Freire.

97
Referências Bibliográficas

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TOLCHINSKY-LANDSMAN, L. Lo práctico, lo científico y lo literario: tres componentes en la
noción de ‘alfabetismo’, 1990. (mimeo)

98
AVALIAÇÃO E APRENDIZAGEM NA
ESCOLA: A PRÁTICA PEDAGÓGICA
COMO EIXO DA REFLEXÃO
Telma Ferraz Leal 1
Eliana Borges Correia de Albuquerque 2
Artur Gomes de Morais 3

O medo de amar é o medo de ser


De a todo momento escolher
Com acerto e precisão
A melhor direção
..................................
O medo de amar é não arriscar
Esperando que façam por nós
O que é nosso dever
Recusar o poder

Beto Guedes e Fernando Brant. O medo de amar é o


medo de ser livre.

Beto Guedes

A escola e a avaliação que eles aprendam tudo o que é importante,


mas pode possibilitar que eles se apropriem de
prender com prazer, aprender brin

A cando, brincar aprendendo, aprender


a aprender, aprender a crescer: a es-
cola é, sim, espaço de aprendizagem. Mas o que
diferentes conhecimentos gerados pela socie-
dade. De fato, não é simples selecionar o que
ensinar no ensino fundamental, mas precisa-
mos refletir sobre quais saberes poderão ser mais
as crianças e os jovens aprendem na escola? relevantes para o convívio diário dos meni-
Sem dúvida, aprendem conceitos, aprendem nos e meninas que freqüentam nossas escolas
sobre a natureza e a sociedade. A escola difi- e para a sua inserção cada vez mais plena nes-
cilmente conseguirá propiciar situações para sa sociedade letrada, pois eles têm o direito de

1
LEAL,Telma Ferraz. Doutora em Psicologia Cognitiva pela UFPE; Professora Adjunta do Centro de Educação da Universidade
Federal de Pernambuco.
2
ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de. Doutora em Educação pela UFMG; Professora Adjunta do Centro de Educação
da Universidade Federal de Pernambuco.
3
MORAIS, Artur Gomes de. Doutor em Psicologia pela Universidad de Barcelona; Professor Adjunto do Centro de Educação
da Universidade Federal de Pernambuco. 99
aprender os conteúdos das diferentes áreas de que também podem ser identificadas em di-
conhecimento que lhes assegurem cidadania ferentes áreas ou capacidades: capacidades
no convívio dentro e fora da escola. cognitivas e lingüísticas, motoras, de equi-
Assim, é fundamental que cada professor se líbrio pessoal, de inserção social e de rela-
ção interpessoal.
sinta desafiado a repensar o tempo pedagógi-
co, analisando se ensina o que é de direito para Esse pressuposto vem sendo explicitado mui-
os estudantes e se a seleção de conteúdos, ca- to freqüentemente no meio educacional. Mas
pacidades e habilidades é de fato importante podemos perguntar: Em que medida, de fato,
naquele momento, considerando que esses isso vem sendo considerado no cotidiano da
estudantes são crianças ou adolescentes que sala de aula?
apresentam características singulares dessas Muitas vezes, o professor investe suficientemen-
etapas de desenvolvimento. te na dimensão cognitiva do desenvolvimen-
Reconhecemos a necessidade da circulação de to e não dedica atenção à dimensão afetiva.
informações e conhecimentos, mas não que- Outras vezes, faz o inverso: cuida da criança
remos que as crianças e os jovens que freqüen- com carinho e atenção, mas sem planejar ade-
tam nossas escolas aprendam conceitos ou quadamente como vai ajudá-la a progredir na
teorias científicas desarticuladas das funções aprendizagem para alcançar as metas que de-
sociais. Queremos que eles pensem sobre a so- vem ser atingidas do ponto de vista cognitivo.
ciedade, interajam para transformá-la e cons- Por isso, Solé (2004, p. 53) reitera que
truam identidades pessoais e sociais, vivendo
a infância e a adolescência de modo pleno. não se trata de compartimentos estanques;
à medida que meninos e meninas se mos-
O professor, portanto, como defendem San- tram mais competentes na área cognitiva,
tos e Paraíso (1996, p. 37), precisa atentar para suas possibilidades de inserir-se socialmente
o fato de que “o currículo constrói identida- aumentam, bem como as relações
des e subjetividades: junto com os conteúdos interpessoais que podem estabelecer e
das disciplinas escolares; e também adquirem- tudo isso muda a maneira como vêem a
se na escola percepções, disposições e valores si mesmos.
que orientam os comportamentos e estruturam
Por outro lado, se eles adquirem mais seguran-
personalidades”. Ou seja, quando ocupamos
ça nas relações, perdem o medo de errar, se
esse espaço social – escola –, lidamos com se-
lançam mais e, conseqüentemente, aprendem
res em desenvolvimento que estão em proces- mais.
so de construção de identidades, que
aprendem sobre a sociedade, sobre os outros e Assim, propomos que cada professor, ao pla-
sobre si próprios. nejar as situações didáticas, reflita sobre os es-
tudantes, considerando o desenvolvimento
E como essa tomada de consciência pode-
integral deles, contemplando as característi-
ria modificar a prática pedagógica de cada
professor? cas culturais dos grupos a que pertencem e as
características individuais, tanto no que se re-
Pensando sobre essa questão, Solé (2004, fere aos modos como interagem na escola,
p. 53) ressalta a dimensão integradora da edu- quanto às bagagens de saberes de que dis-
cação. Ela nos lembra que:
põem. Caso determinada criança esteja com
no processo de desenvolvimento ocorrem dificuldade de inserir-se no grupo-classe, é
100 mudanças que afetam essa globalidade e papel do professor planejar estratégias para
que ela supere tal dificuldade; caso algum es- Enfim, na escola, é preciso ter objetivos de
tudante esteja com auto-estima baixa, e, por- diferentes dimensões que ajudem os estudan-
tanto, demonstre medo de expor seus tes a participar de modo autônomo, crítico e
sentimentos e conhecimentos, é preciso tam- ousado na sociedade. Para tal, a seleção do
bém pensar em como favorecer o desenvolvi- que ensinar precisa contemplar e priorizar
mento dele. objetos que os ajudem a desenvolver capaci-
Em síntese, como nos diz Solé (2004, p. 53), dades nessa direção.
“o desenvolvimento afeta todas as capacida- Santos e Paraíso (1996, p. 38-39), a esse res-
des humanas e todas devem ser levadas em con- peito, alertam que “o currículo deve dar voz às
ta durante a elaboração de um projeto culturas que foram sistematicamente excluídas
educativo”, principalmente se nesse projeto pela escola, como a cultura indígena, a cultu-
educativo o professor busca intervir na forma- ra negra, a cultura infanto-juvenil, a cultura
ção cidadã dos estudantes. rural, a cultura da classe trabalhadora e todas
as manifestações das chamadas culturas nega-
E o que significa, para o professor, intervir na
das”. Desse modo, o professor pode ajudar as
formação cidadã das crianças e adolescentes?
crianças e os jovens a entender os processos
Concebemos que significa pensar em como
de exclusão e a valorizar sua própria história,
ajudá-los a interagir na sociedade de modo
o que pode ter impactos no aumento da auto-
confiante e crítico; implica fazer com que eles
estima e da confiança em si próprios.
tomem consciência das contradições so-
ciais e desenvolvam valores para a É nessa mesma linha de pensamen-
construção de uma sociedade jus- to que Silva (2003, p.10) apon-
ta, igualitária e democrática; im- ta que “o espaço educativo se
plica fazer com que eles Tradicionalmente, transforma em ambiente de
adquiram autoconfi-ança as práticas de avalia- superação de desafios peda-
quanto a si próprios, reconhe- gógicos que dinamiza e sig-
ção desenvolvidas na
cendo que suas histórias estão nifica a aprendizagem, que
escola têm se consti- passa a ser compreendida
inseridas na história dos gru-
tuído em práticas de como construção de conhe-
pos sociais dos quais participam;
significa instrumentalizá-los para
exclusão cimentos e desenvolvimento
de competências em vista da for-
que tenham acesso a uma ampla
mação cidadã”.
gama de situações sociais e entendam
os processos históricos que os excluem de E como pode o professor superar os desafios
outras situações e possam intervir nessa reali- pedagógicos? Para superar dificuldades, é ne-
dade; implica ajudá-los a dominar os instru- cessário avaliar sistematicamente o ensino e a
mentos de participação nessas diferentes aprendizagem. Tradicionalmente, no entan-
situações, como, por exemplo, ler e escrever to, as práticas de avaliação desenvolvidas na
com autonomia; significa ajudá-los a se apro- escola têm se constituído em práticas de ex-
priar dos conhecimentos construídos pela hu- clusão: avalia-se para medir a aprendizagem
manidade; implica possibilitar que eles dos estudantes e classificá-los em aptos ou não
exerçam o direito de vivenciar as experiên- aptos a prosseguir os estudos. Para que não te-
cias próprias da faixa etária a que pertencem, nhamos essa prática excludente, é preciso que
como, por exemplo, brincar e interagir de os professores reconheçam a necessidade de
modo lúdico. avaliar com diferentes finalidades: 101
z conhecer as crianças e os adolescentes, z se o estudante está se engajando no pro-
considerando as características da infân- cesso educativo e, em caso negativo,
cia e da adolescência e o contexto ex- quais são os motivos para o não-
tra-escolar; engajamento;
z conhecê-los em atuação nos tempos e z se o estudante está realizando as tarefas
espaços da escola, identificando as es- propostas e, em caso negativo, quais são
tratégias que usam para atender às de- os motivos para a não-realização;
mandas escolares e, assim, alterar, z se o professor está adotando boas estra-
quando necessário, as condições nas tégias didáticas e, em caso negativo,
quais é realizado o trabalho pedagógico; quais são os motivos para a não adoção;
z conhecer e potencializar a sua identi- z se o professor utiliza recursos didáticos
dade; adequados e, em caso negativo, quais são
z conhecer e acompanhar o seu desenvol- os motivos para a não-utilização;
vimento; z se ele mantém boa relação ou não com
z identificar os conhecimentos prévios dos os meninos e meninas e os motivos para
estudantes, nas diferentes áreas do co- a manutenção dessas relações de apren-
nhecimento e trabalhar a partir deles; dizagem;
z identificar os avanços e encorajá-los a z se a escola dispõe de espaço adequado,
continuar construindo conhecimentos se administra apropriadamente os con-
nas diferentes áreas do conhecimento e flitos e, em caso negativo, quais são os
desenvolvendo capacidades; motivos para a sua não-administração;
z conhecer as hipóteses e concepções de- z se a família garante a freqüência escolar
les sobre os objetos de ensino nas dife- da criança ou jovens, se os incentiva a
rentes áreas do conhecimento e levá-los participar das atividades escolares e, em
a refletir sobre elas; caso negativo, quais são os motivos para
o não-incentivo;
z conhecer as dificuldades e planejar ati-
vidades que os ajudem a superá-las; z se a escola garante aos estudantes e suas
famílias o direito de se informar e discu-
z verificar se eles aprenderam o que foi en-
tir sobre as metas de cada etapa de estu-
sinado e decidir se é preciso retomar os
dos, sobre os avanços e dificuldades
conteúdos;
reveladas no dia-a-dia.
z saber se as estratégias de ensino estão
Nessa perspectiva, os resultados do não-aten-
sendo eficientes e modificá-las quando
dimento das metas escolares esperadas em de-
necessário.
terminado período do tempo são vistos como
Diferentemente do que muitos professores decorrentes de diferentes fatores sobre os quais
vivenciaram como estudantes ou em seu pro- é necessário refletir. A responsabilidade, en-
cesso de formação docente, é preciso que, em tão, de tomar as decisões para a melhoria do
suas práticas de ensino, elaborem diferentes es- ensino, passa a ser de toda a comunidade. Ou
tratégias e oportunidades de aprendizagem e seja, o baixo rendimento do estudante deve
avaliem se estão sendo adequadas. Assim, não ser analisado e as estratégias para que ele apren-
apenas o estudante é avaliado, mas o trabalho da devem ser pensadas pelo professor, junta-
102 do professor e a escola. É necessário avaliar: mente com a direção da escola, a coordenação
pedagógica e a família. Pode-se, então, mudar aos aspectos cognitivos do desenvolvimento,
as estratégias didáticas; possibilitar atendimen- veremos que a reprovação tem impactos ne-
to individualizado; garantir a presença do es- gativos, pois provoca, muitas vezes, a evasão
tudante em sala de aula, no caso dos faltosos, escolar e a baixa auto-estima, o que dificulta o
entre outras estratégias, tais como a de pro- próprio processo de aprendizagem posterior.
porcionar maior tempo para que a aprendiza-
Com esse princípio de respeito, no entanto,
gem ocorra, tema que abordaremos a seguir.
não estamos defendendo que devamos espe-
A ampliação do ensino funda- rar que o estudante aprenda sozinho, “quan-
mental para nove anos e a do vier a consegui-lo”, mas sim criar condições
questão do tempo escolar: propícias de aprendizagem e reconhecer quan-
alguns cuidados a ter em conta do ele está em vias de consolidar os conheci-
mentos esperados ou quando não está
A ampliação do ensino fundamental para nove conseguindo caminhar nessa direção, dentro
anos representa um avanço importantíssimo do período previsto. Estabelecer metas claras
na busca de inclusão e êxito das crianças das a ser alcançadas é, portanto, um requisito bá-
camadas populares em nossos sistemas escola- sico para ensinar e para avaliar, conforme dis-
res. Ao iniciarem o ensino fundamental um cutiremos a seguir.
ano antes, aqueles estudantes passam a ter mais
oportunidades para cedo começar a se apro- Avaliando: a definição de me-
priar de uma série de conhecimentos, entre os tas, a observação e o registro
quais tem um lugar especial o domínio da es- no processo de ensino
crita alfabética e das práticas letradas de ler- e aprendizagem
compreender e produzir textos. No
entanto, é preciso planejar e avaliar bem Concordando com o princípio do atendimen-
aquilo que estamos ensinando e o to à diversidade, Silva (2003, p.11) cha-
que as crianças e os adolescen- ma a atenção para que a avaliação,
tes estão aprendendo desde o numa perspectiva formativa re-
início da escolarização. É É preciso não guladora, deve reconhecer as
preciso não perder tempo, perder tempo, não diferentes trajetórias de vida
não deixar para os anos se- deixar para os anos dos estudantes e, para isso,
guintes o que devemos as- seguintes o que é preciso flexibilizar os ob-
segurar desde a entrada devemos assegurar jetivos, os conteúdos, as
das crianças, aos seis anos, formas de ensinar e de ava-
desde a entrada das
na escola. liar; em outras palavras,
crianças, aos seis
E o que fazer com os que não contextualizar e recriar o cur-
anos, na escola. rículo. É necessário dominar o
atingirem as metas estabelecidas?
Muitos professores, preocupados que se ensina e saber qual é a rele-
com a progressão das crianças e jovens, vância social e cognitiva do ensinado
defendem que é melhor que eles repitam o ano para definir o que vai se tornar material a ser
do que progridam sem conseguir acompanhar avaliado.
os colegas de sala. A mudança das práticas de avaliação é então
A partir de uma concepção de que devemos acompanhada por uma transformação do en-
assegurar a todos a possibilidade de aprendiza- sino, da gestão da aula, do cuidado com as cri-
gem e de que a escola não deve se ater apenas anças e os adolescentes em dificuldade. Para 103
que isto ocorra, existe um ponto de partida quanto aquelas programadas para indivíduos ou
fundamental. Como menciona Leal (2003, grupos de estudantes que ainda não as alcança-
p. 20), a seleção consciente do que devemos ram (ou que estão muito avançados) e mere-
ensinar cem, portanto, um atendimento diferenciado
em relação ao conjunto da turma.
é o primeiro passo a ser dado para a cons-
trução de uma aprendizagem significativa A fim de que as informações observadas não
na escola. Em decorrência dessa tomada se dispersem ou sejam esquecidas e para que
de posição em relação ao que é realmente tenhamos melhores condições de refletir so-
importante, é que podemos organizar nos- bre o ensino e a aprendizagem, necessitamos
so tempo na sala de aula e definir o que proceder ao registro periódico da situação de
iremos avaliar e as formas que adotaremos cada estudante em relação aos objetivos tra-
para avaliar. çados nos diferentes eixos de ensino.
Na busca de sermos justos e eficientes como Empregando instrumentos variados, as práti-
educadores, precisamos garantir a coerência cas avaliativas mais defendidas atualmente
entre as metas que planejamos, o que ensina- compartilham esse ponto comum: o registro
mos e o que avaliamos. A clareza sobre o que escrito de informações mais qualitativas sobre
vamos ensinar permitirá, em cada etapa ou o que as crianças e os adolescentes estão apren-
nível de ensino, delimitar as expectativas de dendo. As formas de registro qualitativo escri-
aprendizagem, das quais dependem tanto nos- to permitem que:
sos critérios de avaliação quanto o nível de z os professores comparem os saberes alcan-
exigência. çados em diferentes momentos da trajetó-
Portanto, faz-se necessário definir um perfil de ria vivenciada;
saída de cada etapa de ensino e assegurar es- z os professores acompanhem coletivamen-
forços para compreender os processos de cons- te, de forma compartilhada, os progressos
trução de conhecimentos das crianças e dos estudantes com quem trabalham a cada
adolescentes. Essa complexa tarefa pressupõe ano;
uma atitude permanente de observação e re-
gistro. Sim, independentemente dos instru- z os estudantes realizem auto-avaliação, re-
mentos utilizados, a avaliação (quando não se fletindo, dessa forma, sobre os próprios co-
limita a produzir notas ou conceitos para fins de nhecimentos e sobre suas estratégias de
aprovação-reprovação ou certificação de estudos) aprendizagem, de modo que possam
constitui sempre processo contínuo de observa- redefinir os modos de estudar e de se apro-
ção dos avanços, das descobertas, das hipóteses priar dos saberes;
em construção e das dificuldades demonstradas z as famílias acompanhem sistematicamen-
pelos meninos e meninas na escola. te os estudantes, podendo, assim, dar su-
Nesse processo, realizamos um diagnóstico do gestões à escola sobre como ajudar as
que os estudantes já sabem, ao iniciarmos uma crianças e os adolescentes e discutir suas
etapa de ensino, e dos conhecimentos que vão próprias estratégias para auxiliá-los;
construindo ao longo do período. Morais z os coordenadores pedagógicos (assistentes
(2005) afirma que o mapeamento dos saberes pedagógicos, equipe técnica) conheçam o
já construídos dá ao docente “um retrato” da que vem sendo ensinado/aprendido pelos
situação de cada estudante, permitindo-lhe estudantes e possam planejar os processos
104 ajustar o ensino e planejar tanto metas coletivas formativos dos professores.
A diversificação dos instrumentos avaliativos, Para ajudar as crianças e os adolescentes nessa
por sua vez, viabiliza um maior número e tomada de consciência de suas conquistas,
variedade de informações sobre o dificuldades e possibilidades, além do
trabalho docente e sobre os próprio diálogo (com o profes-
percursos de aprendizagem, sor e os colegas), precisamos
assim como uma possibili- A diversificação valermo-nos de recursos que
dade de reflexão acerca dos instrumentos documentem, que materi-
de como os conheci- avaliativos, por sua alizem a sua trajetória.
mentos estão sendo vez, viabiliza um maior Como dito, os portfolios,
concebidos pelas cri- número e variedade de que vêm, nos últimos
anças e adolescentes. anos, sendo utilizados
informações sobre o
Entender a lógica uti- por um número cada vez
lizada pelos estudantes é trabalho docente e maior de professores, têm
um primeiro passo para sobre os percursos sido um dos meios de con-
saber como intervir e de aprendizagem cretizar tais práticas (cf.
ajudá-los a se aproximar dos Hernández, 1988). Mas o que
conceitos que devem ser apro- é um portfolio?
priados por eles. Hernández (2000, p. 166) define portfolio
O uso de portfolios, por exemplo, pode ser útil como sendo:
para que os estudantes, sob orientação dos pro- Um continente de diferentes tipos de docu-
fessores, possam analisar suas próprias produ- mentos (anotações pessoais, experiências de
ções, refletindo sobre os conteúdos aprendidos aula, trabalhos pontuais, controles de
e sobre o que falta aprender, ou seja, possam aprendizagem, conexões com outros temas
visualizar seus próprios percursos e explicitar fora da escola, representações visuais, etc.)
para os professores suas estratégias de aprendi- que proporciona evidências dos conheci-
zagem e suas concepções sobre os objetos de mentos que foram sendo construídos, as es-
ensino. tratégias utilizadas para aprender e a
Tal prática é especialmente relevante por pro- disposição de quem o elabora para conti-
piciar a idéia de que não cabe apenas ao pro- nuar aprendendo.
fessor avaliar o processo de aprendizagem e de Ferraz (1998, p. 50) também se refere ao
ensino. Tal concepção é contrária às orienta-
portfolio como esse conjunto de documentos
ções dadas em uma perspectiva tradicional,
que auxiliam tanto os estudantes quanto os
com seus fins excludentes de classificar e sele-
professores e familiares a acompanhar o pro-
cionar estudantes aptos e não-aptos, que sem-
cesso de aprendizagem: Para ela, o portfolio:
pre foi promotora de heteronomia: como só o
professor julgava os produtos do estudante, esse Compreende todo o processo de arquiva-
último introjetava a idéia de que era incapaz mento e organização de registros elabora-
de avaliar o que fazia, pois só o adulto-profes- dos pelos alunos, construídos ao longo do
sor sabia o certo. Se queremos que crianças e ano letivo: textos, desenhos, relatórios ou
adolescentes sejam cada vez mais autônomos, outros materiais produzidos por eles e que
precisamos promover, no cotidiano, situações
permitam acompanhar suas dificuldades e
em que o estudante reflete, ele próprio, sobre
seus saberes e atitudes, vivenciando uma ava- avanços na matéria. Periodicamente, ele
liação contínua e formativa da trajetória de [o professor] discute com cada estudante
sua aprendizagem. sobre os registros feitos. O portfolio, que 105
pode ser apresentado numa pasta, tem ain- Assim, em cada página, que corresponde a
da uma vantagem: a de servir como um cada estudante, os professores encontram es-
elo significativo entre o professor, o aluno paços, com títulos referentes aos principais as-
e seus pais. pectos a ser avaliados, para fazerem as
anotações, com indicação da data da observa-
Vemos, assim, que a materialidade dos portfolios
ção e do instrumento utilizado para analisar o
permite não só ao professor, mas, sobretudo,
que está sendo foco da avaliação.
ao estudante (e sua família), comparar o que
se sabia de início com o que foi se construindo Por meio dessa visualização, o professor pode
ao longo de determinada etapa escolar. Como acompanhar cada estudante e refletir sobre
se pode inferir, para se prestar à finalidade de quais estratégias didáticas estão sendo boas e
auto-avaliação pelo estudante, a confecção quais não estão ajudando no processo de
desse tipo de recurso precisa contar com a par- aprendizagem. Pode pensar, também, em es-
ticipação dele na periódica seleção, registro de tratégias para organizar agrupamentos de es-
comentários e reflexão sobre o que conseguiu tudantes para trabalhos diversificados e em
aprender. alternativas ou tarefas para acompanhamento
individual, quando isso for necessário.
Ao procederem à seleção das produções cons-
tarão no portfolio, tanto os estudantes quanto Para delimitar o que registrar, no entanto, é
os professores precisam revisitar as situações em fundamental, a partir de objetivos relevantes,
que os trabalhos foram produzidos e retomar definir as metas prioritárias e construir instru-
os conceitos trabalhados. O portfolio é, por- mentos de avaliação que permitam ao estu-
tanto, um facilitador da reconstrução e dante evidenciar o que pensa sobre o que está
reelaboração, por parte de cada estudante, de sendo aprendido. No próximo tópico, os ins-
seu processo de aprendizagem ao longo de um trumentos de avaliação serão foco de debate.
período de ensino. Assim, a relevância não
Instrumentos de avaliação:
está no portfolio em si, mas no que o estudante
avaliar produtos ou refletir
aprendeu ao construí-lo, ou seja, ele constitui sobre os processos e percursos
um meio para se atingir um fim. Dessa forma, de aprendizagem?
é importante pensar que não basta selecionar,
ordenar evidências de aprendizagens e colocá- Como obter as informações de que necessita-
las num formato para serem apresentadas, mas mos para acompanhar os percursos dos estu-
refletir sobre o que foi aprendido e sobre as dantes? Como apreender os modos como eles
estratégias usadas para aprender. representam os conceitos? Como saber o que
pensam sobre o que ensinamos para pensar-
Os diários de classe ampliados, por outro lado,
mos nas possibilidades pedagógicas que asse-
também são muito valiosos para o acompanha-
gurariam a qualidade do ensino-aprendizagem?
mento do processo ensino-aprendizagem. Nes-
Como proceder para que os estudantes evi-
sa forma de registro qualitativa, caracterizada
denciem seus avanços e suas dificuldades?
pela presença, nos diários de classe, de espa-
Como analisar as respostas que eles dão, bus-
ços para anotações sobre os estudantes, é fun-
cando apreender a lógica utilizada por eles na
damental que os professores e equipe
realização das tarefas propostas?
pedagógica reflitam sobre o que deve ser
priorizado em cada etapa de ensino e plane- Os instrumentos utilizados podem ser variados,
jem como organizar as anotações referentes mas, em nossa perspectiva, precisam diagnos-
aos percursos de aprendizagem das crianças e ticar sistematicamente a construção de sabe-
106 adolescentes. res específicos, capacidades, habilidades, além
de aspectos ligados ao desenvolvimento pes- textos para que tentem ler e depois conversar
soal e social. sobre o que entenderam. No caso das crianças
Em relação à apropriação dos sabe- em fase de aprendizagem do sistema al-
res, não é suficiente sabermos se fabético, podemos, também, pedir
os estudantes dominam ou não que escrevam palavras, mos-
determinado conhecimento trando as relações entre as
Não é suficiente partes escritas e as orais; en-
ou se desenvolveram ou
não determinada capaci- sabermos se os tre muitas outras ativida-
dade. É preciso entender estudantes dominam des possíveis.
o que sabem sobre o que ou não determinado A partir da análise desses
ensinamos, como eles es- conhecimento ou se materiais, podemos fazer
tão pensando, o que já desenvolveram ou não os registros de acompa-
aprenderam e o que falta nhamento. Se pensarmos
determinada
aprender. Essa mudança de nas competências de leitu-
postura é o que diferencia os capacidade.
ra e de produção de textos que
professores que olham apenas o devem ser construídas no primei-
produto da aprendizagem (respostas ro ano da escolarização do ensino fun-
finais dadas pelos estudantes) e os que ana- damental, poderemos, por exemplo, registrar
lisam os processos (as estratégias usadas para se cada estudante compreende textos lidos
enfrentar os desafios). pela professora, extraindo as informações prin-
Nessa perspectiva, os instrumentos usados, cipais (quem, o que, quando, onde, por que,
além de diagnosticar, servem para fazer o pro- etc); compreende textos mais longos lidos pela
fessor repensar sua prática, ou seja, podem ter professora, elaborando inferências e apreenden-
uma dimensão formativa do docente, princi- do o sentido global do texto; lê textos curtos
palmente se ocorrem momentos coletivos de com autonomia, podendo extrair informações
discussão sobre os trabalhos dos estudantes. principais; demonstra interesse em ler, em bus-
car consultar livros e outros suportes textuais;
Para diagnosticar os avanços, assim como as elabora textos que serão registrados pela profes-
lacunas na aprendizagem, podemos valermo- sora, organizando as informações e estabelecen-
nos tanto das produções escritas e orais diárias do relações entre partes do texto, em
dos estudantes (os textos e escritas de pala- atendimento a diferentes finalidades e destina-
vras que produzem a cada dia na sala de aula;
tários; escreve textos curtos dos gêneros que
o que comentam, escrevem ou lêem ao parti-
foram explorados nas aulas...
ciparem das atividades na classe) quanto de
instrumentos específicos (tarefas, fichas, etc.) Essa forma de avaliar se distancia, em muito,
que nos forneçam dados mais controlados e das que priorizam o registro de quantidade de
sistemáticos sobre o domínio dos saberes e erros que os estudantes cometem quando es-
conteúdos das diferentes áreas de conheci- crevem textos; ou das práticas em que são feitas
mento a que se referem os objetivos e as me- as contagens de quantidade de questões que
tas de ensino. conseguem responder após a leitura de um tex-
to; ou mesmo das centradas nas anotações de
Nas tarefas ou fichas usadas para avaliar as ca-
como os estudantes lêem em voz alta, com ênfase
pacidades na área de língua portuguesa, pode-
apenas na decodificação e na entonação.
mos, por exemplo, pedir que os estudantes
escrevam textos (indicando, obviamente, fi- Se mudarmos a área de conhecimento, podemos,
também, encontrar exemplos que diferenciam as 107
nalidades e destinatários); podemos entregar
propostas em que os professores simplesmente e registrar os percursos de aprendizagem dos
assinalam o que está certo e errado daquelas em estudantes de maneira que ele possa ajustar o
que os professores tentam entender os percur- ensino a eles oferecido. É necessário, porém,
sos de aprendizagem e, assim, refletir sobre os não perdermos de vista o papel da auto-avali-
processos de aprendizagem. ação do professor.
Na área de matemática, por exemplo, temos Para atuarmos em qualquer esfera social, pre-
como um dos objetivos o trabalho com classi- cisamos, como já dissemos, planejar nossas
ficações.4 Ou seja, temos como uma das metas ações de modo que encontremos as melhores
levar os estudantes a aprender a classificar e estratégias para atingir nossos alvos e atender
refletir sobre critérios de classificação. Essa se- às metas a que nos propomos. Para que me-
leção de conteúdo está fundamentada na idéia lhoremos nossas estratégias de ação e consiga-
de que cotidianamente classificamos eventos mos cada vez mais conquistas, precisamos
e fenômenos da natureza e da sociedade. continuamente avaliar se tomamos as decisões
Freqüentemente lemos tabelas e gráficos, em certas, se usamos os instrumentos mais adequa-
que os dados são classificados e agrupados para dos, se conduzimos as situações da melhor
comparações e tomadas de decisão importan- maneira possível.
tes em diferentes esferas sociais, como a eco- Assim também acontece com os professores,
nomia, por exemplo. para melhorarmos nossa prática pedagógica,
Ao avaliarmos os estudantes em relação a precisamos avaliar sempre se estamos selecio-
esse aspecto, podemos registrar que tipos de nando adequadamente as prioridades, se
classificação são capazes de estabelecer: clas- estamos usando os recursos mais adequados,
sificação a partir de um critério único (ex. se estamos desenvolvendo as melhores estra-
ser menino ou menina), classificação a par- tégias, enfim, precisamos nos auto-avaliar.
tir de uma combinação de critérios (ser me- A auto-avaliação, então, precisa fazer parte do
nino ou menina, da 2ª ou 3ª série), cotidiano escolar, não apenas do estudante,
classificação com negação de uma categoria mas do professor, do coordenador pedagógico
(meninos e meninas, excluindo os que não e de todos que estão envolvidos no processo
gostam de jogar futebol), entre outras; se eles de ensino-aprendizagem.
conseguem descobrir os critérios de classifi-
cação usados em diferentes situações (ao Avaliando para melhorar a
analisarem reportagens, quadros e tabelas, aprendizagem: mais algumas
por exemplo); se eles são capazes de compa- idéias
rar e equalizar coleções...
Algumas redes de ensino vêm adotando mo-
Para chegarmos a esse registro, não podemos dalidades de registros escritos mais qualitati-
usar apenas instrumentos de múltipla escolha. vos, tomando-os instrumentos primordiais no
É preciso planejar situações em que os estudan- acompanhamento da aprendizagem e na to-
tes explicitem como chegaram a determinados mada de decisões para o avanço qualitativo
resultados e possam expor as estratégias adotadas das aprendizagens dos estudantes. Se, do pon-
para resolver problemas de classificação. to de vista oficial, tais registros significam um
Falamos até aqui de instrumentos utilizados grande avanço, é preciso ter cuidado em não
pelo professor para, ele próprio, diagnosticar transforma-los em tarefa burocrática. Como

4
Exemplo adaptado de uma ficha de acompanhamento de estudantes da Rede Municipal de Ensino de Camaragibe/PE,
108 elaborado por Gilda Lisboa Guimarães.
bem expuseram Oliveira e Morais (2005), es- “traduzir” em objetivos observáveis os conteú-
tudos já demonstraram a necessidade de os pro- dos formulados geralmente de modo muito “am-
fessores terem oportunidades de discutir plo” nos documentos curriculares ou planos
continuamente os objetivos e os instrumen- de curso. Só com esse nível de clareza e
tos de avaliação que passaram a usar, a fim de concretude podemos fazer o registro avaliativo
se apropriarem daqueles novos recursos e se- ao longo das semanas em que se dá o ensino-
rem, de fato, ajudados a reorganizar sua tarefa
aprendizagem, de forma que possamos corri-
de ensino ao empregá-los.
gir-realimentar o processo de ensino e não
Para que não haja um descompasso entre o perder as informações que detectamos sobre
registrado e o vivido/priorizado em sala de os meninos e as meninas no dia-a-dia.
aula, insistimos na necessidade de garantir
alguns cuidados aparentemente óbvios, mas Finalmente, e nunca é demais lembrar que,
nem sempre cumpridos. Em primeiro lugar, para que o estudante e sua família tenham voz,
recordemos, deve-se ter clareza sobre o que é devem participar efetivamente do processo de
necessário que os estudantes aprendam em avaliação. Necessitamos garantir que a família
cada etapa escolar, o que constitui um direi- conheça as expectativas da escola em relação
to deles. É preciso “não deixar o tempo pas- às crianças e aos adolescentes em cada unida-
sar”, mas sim monitorar, continuamente, os de e série (ou ano) e acompanhe a trajetória
progressos e as lacunas demonstrados pelos percorrida, podendo se posicionar junto à pro-
estudantes. Assim, poderemos ajustar a for- fessora, à turma e à escola. Se o estudante e
ma de ensinar, em lugar de esperar o fim do sua família sabem aonde a escola quer chegar,
período para, já sem ter muito por fazer, cons- se estão envolvidos no dia-a-dia de que são os
tatar se as crianças e os adolescentes apren- principais beneficiários, poderão participar com
deram ou não o que foi estabelecido. mais investimento e autonomia na busca do
Em segundo lugar, para que tenhamos clareza sucesso nessa empreitada que é o aprender.
sobre o que ensinar e avaliar, necessitamos

109
Referências Bibliográficas

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SOLÉ, Isabel. Das capacidades à prática educativa. In: COLL, César; MARTÍN, Elena. (Org.) Aprender
conteúdos & desenvolver capacidades. Trad. Cláudia Schilling. Porto Alegre: ArtMed, 2004.

110
MODALIDADES ORGANIZATIVAS
DO TRABALHO PEDAGÓGICO:
UMA POSSIBILIDADE
Alfredina Nery 1

Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã;
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros se cruzem
os fios do sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
.......................................

João Cabral de Melo Neto

s fins da educação, os objetivos pe professore(a)s. O que desenvolvemos aqui são

O dagógicos e os conhecimentos a ser


trabalhados no ensino fundamental,
especialmente com a criança de seis anos, são
processos de organização do trabalho pedagó-
gico. Portanto, os exemplos são apenas referên-
cias em que se destacam quatro modalidades de
amplamente discutidos nos outros capítulos organização dos conteúdos de trabalho com as
desta publicação. Neles há explicitação de de-
terminados pressupostos, atitudes, práticas e
formas de organizar o trabalho pedagógico. O
presente capítulo objetiva articular algumas
concepções e sugestões de práticas dos demais
textos, na tentativa de sinalizar possibilidades
cotidianas de trabalho.

Este capítulo não tem a intenção de propor ati-


vidades que devem ser seguidas pelo(a)s (Joseph Russafa)

1
NERY, Alfredina. Formada em Letras e Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo
– Professora universitária, formadora e consultora pedagógica na área de linguagem/ língua/leitura. 111
áreas do conhecimento –referenciadas na obra entre as pessoas é traduzida pelo fato de que
Ler e escrever na escola: o real, o possível e o apenas uma pode usar a palavra ou apenas a
necessário, de Delia Lerner –, nem sempre com palavra de uma delas é aquela que “vale”,
as mesmas denominações e/ou ações indicadas: como, por exemplo: o adulto e a criança; o
atividade permanente, seqüência didática, pro- professor e o estudante; o chefe e o subalter-
jeto e atividade de sistematização. no; o pai e o filho; o médico e o paciente. Evi-
dentemente, essas relações desiguais são
Este texto parte de uma concepção de lingua- reflexos de questões sociais mais amplas.
gem como interação, o que possibilita articu- Enfim, a linguagem não é apenas comunica-
lar as várias áreas do conhecimento, pois ção ou suporte de pensamento, é, principal-
considera o ser humano um ser de linguagem, mente, interação entre sujeitos; é lugar de
uma vez que esta constitui o sujeito em seu negociação de sentidos, de ideologia, de con-
contexto. A imagem a seguir é uma boa ana- flito, e as condições de produção de um texto
logia do que consideramos linguagem. (para que, o que, onde, quem, com quem,
quando, como) constituem seus sentidos, para
Na comparação, o novelo pode ser entendido além de sua matéria formal – palavras, linhas,
como o repertório de mundo, lingüístico e cores, formas, símbolos.
textual dos interlocutores, numa dada
situação de linguagem. O tecido sen- A linguagem é constitutiva do su-
do tricotado pode ser a Linguagem e jeito, ou seja, faz parte do processo
materialização do conceito de de identidade pessoal e social de
poder têm
“texto” que, na sua origem, está cada pessoa e, por isso, a escola
andado juntos precisa considerá-la na formação
relacionado à idéia de tessitura,
de fios que compõem o tecido. E na história da de pessoas que sejam capazes de
os sinais semicurvos, nas extremi- humanidade compreender mais e melhor o
dades das duas agulhas, lembram si- mundo, inclusive transformando-o.
nais gráficos das histórias em O estudo das linguagens, na escola, é,
quadrinhos, usados para indicar movimento ainda, fundamental tanto para as aprendiza-
no desenho, o que também dá a idéia de que gens dos conteúdos escolares, quanto para a
um texto é negociação de sentidos entre os ampliação da participação cidadã do estudan-
sujeitos da situação comunicativa. te na sociedade.
Por fim, podemos entender que o ponto de É com esse pressuposto que o presente capí-
intersecção entre as duas agulhas pode indi- tulo procura articular suas sugestões didáti-
car tanto contato dos interlocutores, como cas às discussões dos demais capítulos,
lugar de disputa, uma vez que lembram tam- considerando:
bém duas espadas em luta, como que sinali- z a singularidade da infância, na direção de
zando que há uma “arena” das palavras, no fazer a “entrada” da criança de seis anos
jogo social, confirmando as relações entre lin-
no ensino fundamental ser um ganho para
guagem e poder.
as demais e não o contrário;
Linguagem e poder têm andado juntos na his-
tória da humanidade. Ao mesmo tempo em z o brincar como “um modo de ser e estar no
que a palavra aproxima as pessoas, ela pode mundo”, levando em conta a função hu-
também afastá-las, pois estão em jogo relações manizadora da cultura e sua contribuição
112 de domínio. Muitas vezes a relação desigual para a formação da criança;
z as linguagens verbais, artísticas e científi- todo, tendo em vista o processo, as contradi-
cas como articuladoras de uma prática ções e as aproximações sucessivas, o planeja-
multidisciplinar, num contexto de mento pedagógico do(a) professor(a) começa,
letramento; coletivamente, a partir do que toda a escola
z o texto (nas várias linguagens), a partir do pensa e realiza em seu projeto pedagógico.
que os estudantes já conhecem, como usu- O planejamento da escola contempla, assim,
ários da língua, mesmo aqueles que ainda desde os critérios de organização das crianças
não têm autonomia para decifrar o escrito; em classes ou turmas, a definição de objetivos
z as relações entre letramento e alfabetiza- por série ou ano, bem como o planejamento
ção, para que se garanta que a criança se do tempo, espaço e materiais considerados nas
alfabetize numa perspectiva letrada; diferentes atividades e seus modos de organi-
zação: hora de sala de aula, brincadeiras livres,
z a aprendizagem dos conhecimentos das áre- hora da refeição, saídas didáticas, atividades
as das ciências sociais, das ciências natu- permanentes, seqüências didáticas, atividades
rais e das linguagens, relativos aos anos/ de sistematização, projetos etc.
séries do ensino fundamental, como
possibilitadores de a criança ampliar suas Um outro aspecto, muitas vezes negligencia-
referências de mundo; do, é a participação dos pais/ comunidade no
planejamento escolar. Não se pode esquecer
z a constituição de espaços coletivos de orga- que são suas histórias, suas profissões, seus
nização do trabalho pedagógico, o que in- modos de entender e agir no mundo que cons-
clui a decisão sobre normas, limites, tituem a identidade das crianças, nossos estu-
horários, distribuições de tarefas, etc. dantes na escola.
Com o objetivo de contextualizar suas E mais: se entendemos que o currículo
propostas, o capítulo inicia-se com escolar é construção da identida-
uma breve reflexão sobre o pla- de do estudante e espaço de
nejamento como um princípio O currículo conflito dos interesses da soci-
e uma prática deflagradora de escolar é constru- edade, o planejamento preci-
todo o trabalho na escola e na ção da identidade sa ser compreendido como
sala de aula, num movimen- processo coletivo e como fer-
to contínuo e
do estudante e
espaço de conflito ramenta de diálogo em que se
interdependente em que se considere a participação tam-
planeja, se registra e se avalia. dos interesses da bém dos estudantes no traba-
Em seguida, o texto arrola al- sociedade. lho a ser constituído, bem como
gumas possibilidades de trabalho, da comunidade escolar.
por meio das modalidades de organi-
zação de conteúdos, procurando articulá- O/a professor(a) planeja seu curso, le-
las também às contribuições dos demais vando em conta o plano/projeto da escola e
capítulos. Levanta ainda algumas possibilida- as crianças concretas de sua turma: seus co-
des de trabalho com a formação continuada nhecimentos, interesses, necessidades. Con-
de professores. sidera ainda as condições reais de seu trabalho,
sua trajetória profissional, bem como os obje-
O planejamento tivos pedagógicos para os estudantes dos anos
iniciais do ensino fundamental.
Por entender que a realidade precisa ser ob-
servada, analisada, comparada e reinserida no Em se tratando de planejamento, sabemos que 113
uma questão fundamental a ser enfrentada no um gênero textual, um assunto/tema de uma
trabalho cotidiano diz respeito ao tempo, que área curricular, de modo que os estudantes
é sempre escasso, por isto, há necessidade de tenham a oportunidade de conhecer diferen-
qualificá-lo didaticamente. Nesse sentido, o tes maneiras de ler, de brincar, de produzir tex-
tempo deve ser organizado de forma flexível, tos, de fazer arte, etc. Tenham, ainda, a
possibilitando que se retomem perspectivas e oportunidade de falar sobre o lido/vivido com
aspectos dos conhecimentos tratados em dife- outros, numa verdadeira “comunidade”.
rentes situações didáticas. Outro aspecto é o
fato de as pessoas aprenderem de formas dife- 2 - Sugestões
rentes, porque têm tempos também diferentes “Você sabia?” – momento em que se discu-
de aprendizagem. Variar, então, a forma de tem assuntos/temas de interesse das crianças.
organizar o trabalho e seu tempo didático pode “Como viviam os dinossauros?” “Por que a
criar oportunidades diferenciadas para cada água do mar é salgada?” “Como as crianças in-
estudante, o que pode representar um ganho dígenas brincam?”. Cada estudante ou grupo
significativo na direção da formação de todos, pode se encarregar de tentar descobrir respos-
sem excluir nenhum estudante. tas para as perguntas. O professor também pode
trazer, para esse momento, suas observações
As modalidades de organização
sobre o que mais mobiliza sua turma, em ter-
do trabalho pedagógico
mos de curiosidade científica. É hora de trazer
As atividades discutidas a seguir levam em conta conteúdos das outras áreas curriculares: histó-
algumas possibilidades de integração/articulação ria, geografia, ciências, matemática, educação
entre as áreas do conhecimento, não só como física, como objeto de leitura e discussão.
processo de trabalho do(a) professor(a), na sala Notícia da hora: momento reservado às notí-
de aula, como da própria escola, como coletivi- cias que mais chamaram a atenção das crian-
dade. Selecionamos quatro modalidades que ças na semana. Hora de exercitar o relato oral
nos parecem contribuir bastante com a organi- da criança que, por sua vez, vai aprendendo,
zação do tempo pedagógico: atividade perma- cada vez mais, a fazê-lo, fazendo. Momento or-
nente, seqüências didáticas, projetos e ganizado para também o professor selecionar no-
atividades de sistematização. tícias que não mobilizaram as crianças, mas que
Ressalte-se, já de início que, no capítulo Ava- se inserem para se discutir em sala, na tentativa
liação e aprendizagemna escola: a prática pedagó- de ampliar as referências do grupo- classe.
gica como eixo da reflexão, há um instrumento Nossa semana foi assim... momento em que
sugerido, denominado diários de classe ampliados. se retoma, de forma sucinta, o trabalho desen-
Acreditamos que as quatro modalidades, a seguir volvido e se auxilia as crianças no relato e na
discutidas, podem constar dos referidos diários, síntese do que aprenderam; em que a memó-
como forma de avaliação e acompanhamento do ria de um pode/deve ser complementada com
processo dos estudantes, com ênfase tanto no a fala do outro; em que o professor faz uma
engajamento de cada criança da turma, quanto em síntese escrita na lousa ou em cópias no papel
suas aprendizagens conceituais mais específicas. ou no retroprojetor. Enfim, é hora de sistema-
tizar, um pouco mais, as aprendizagens da se-
At ividade permanente mana: o que sabíamos? O que aprendemos? O
que queremos aprender mais?
1 - O que é
“Vamos brincar?” momento em que se “brinca
Trabalho regular, diário, semanal ou quinze- por brincar”, em pequenos grupos, meninas
114 nal que objetiva uma familiaridade maior com com meninos, só meninas, só meninos, em
duplas, em trios, sozinhos. É hora de o professor/ contar como se brincava em sua época, can-
a professora garantir a brincadeira, organizan- tar com as crianças. É a família enriquecendo
do, com as crianças, tempos, espaços e materi- seus laços com a escola e com as crianças. É a
ais para esse fim. É hora de observar as crianças família compartilhando seus saberes.
nesse “importante fazer”. É hora de registrar
Descobri na Internet – para as crianças que
essas observações para que possam ajudar o/a
têm acesso em casa ou na comunidade à rede
professor(a) a planejar outras atividades, a par-
tir de um maior conhecimento sobre a turma, mundial de computadores, é possível reservar
sobre cada criança. um momento para as descobertas que realizam,
a partir dessa ferramenta de informação. De-
Fazendo arte: momento reservado para as cri- vagar, o/a professor(a) pode ajuda-las a seleci-
anças conhecerem um artista específico (mú- onar informações e a ter uma visão mais crítica
sico, poeta, pintor, escultor, etc.): sua obra, sobre o que circula na Internet.
sua vida. Pode ser hora ainda de “fazer à moda
de...”, em que as crianças realizam releituras Leitura diária feita pelo(a) professor(a) –
de artistas e obras. Pode também ser momen- momento em que se lê para as crianças. É mo-
to de autoria de cada criança, por meio de sua mento de o leitor experiente ajudar a ampliar o
expressão verbal, plástica, sonora. repertório dos leitores iniciantes. É possível,
Cantando e se encantando – momento em por exemplo, ler uma história longa em capí-
que se privilegiam as músicas que as crianças tulos, como se liam os folhetins, como se
conhecem e gostam de cantar, sozinhas, todas acompanha uma novela na TV, mas também
juntas. É hora também de ouvir músicas de se pode ler histórias curtas, como fábulas, crô-
estilos e compositores variados, como forma nicas, etc. Ou ler poemas, com muita
de ampliação de repertório e gosto musical. expressividade, enfatizando aqueles cuja so-
No mundo da arte – momento em que se or- noridade das palavras, cujo jogo verbal são
ganizam idas dos estudantes a exposições, as tônicas da construção poética. É possível
apresentações de filmes, peças teatrais, grupos ler ainda o quadro de um pintor: suas formas,
musicais. Para isso, planejar com as crianças cores, linhas.
toda a atividade, fazendo o roteiro da saída, o Roda semanal de leitura – com as possibilida-
que e como observar. Na volta, avaliar a ativi- des referidas e outras ainda, como, por exem-
dade, ouvindo o que as crianças sentiram e plo, quando as crianças selecionam, de própria
pensaram a respeito e organizando registros, escolha, em casa, na biblioteca (de classe, da
com blocões, cadernos coletivos ou murais. escola ou da cidade) livros/textos/gibis para ler
Comunidade, muito prazer! – momento em em dias e horários predeterminados. Podem
que se convidam artistas da região ou profissi- depois conversar sobre o que leram para seus
onais especializados (bombeiros, eletricistas, colegas. São leitores influenciando leitores.
engenheiros, professores, repentistas, contado- São leitores partilhando leituras.
res de histórias, etc.) para irem à escola e faze-
rem uma apresentação/palestra/conversa. O
evento demanda ação das crianças junto com OLHO VIVO
o/a professor(a): elaborar o cronograma, sele- É possível planejar uma atividade diária ou
cionar as pessoas, fazer o convite, organizar a semanal de leitura cuja finalidade seja fa-
apresentação da pessoa, avaliar a atividade, etc. zer o estudante conhecer melhor um deter-
A família também ensina... momento em que minado gênero de texto. Escolhido o gênero
se convidam mãe, pai, avô, avó, tio, tia para textual, determinar por quanto tempo e
contar histórias, fazer uma receita culinária, como se vai lê-lo, em situações em que: 115
z o/a professor(a) leia com a turma, de Seqüência didática
forma compartilhada;
z a criança, individualmente, tenha
1 - O que é
autonomia de leitura. Nesse caso, o/ Sem que haja um produto, como nos proje-
a professor(a) pode também ler, nes- tos, as seqüências didáticas pressupõem um tra-
te momento, uma vez que ele é um
balho pedagógico organizado em uma
importante modelo de leitor para o
estudante — é possível explicitar, in-
determinada seqüência, durante um determi-
clusive, aos meninos/meninas por nado período estruturado pelo(a) professor(a),
quais razões todos lerão, inclusive criando-se, assim, uma modalidade de apren-
ele/ela; dizagem mais orgânica. Os planos de aula, em
geral, seguem essa organização didática.
z os estudantes lêem em dupla, nego-
ciando sentidos. A seqüência didática permite, por exemplo,
que se leiam textos relacionados a um mesmo
Mas é preciso tomar cuidado! Entendemos tema, de um mesmo autor, de um mesmo gê-
a leitura, nessa modalidade de organiza- nero; ou ainda que se escolha uma brincadei-
ção didática, como uma atividade em si, ra e se aprenda sua origem e como se brinca;
na direção de formar leitores, por isso o ou também que se organizem atividades de arte
importante é o convívio com os textos. para conhecer mais as várias expressões artís-
Não é ler para ... dramatizar, resumir, res- ticas, como o teatro, a pintura, a música, etc;
ponder perguntas sobre o lido, fazer um ou que se estudem conteúdos das várias áreas
desenho do que se leu. É ler por ler. É ler do conhecimento do ensino fundamental, de
para ampliar o repertório textual. Ou seja, forma interdisciplinar.
a ênfase aqui é no processo de leitura e
não no produto; assim, a avaliação desse 2 - Sugestões
trabalho toma outro caráter. Assim,
priorizamos duas sugestões de avaliação: Lendo Fábula

1 - elaboração de uma “Ficha de leitores”, Objetivo:trabalhar com as estratégias de leitu-


com dados sobre as leituras feitas. Em dias, ra, no sentido de a criança ir tomando consci-
previamente marcados, comentam-se com ência de que o processo de ler prevê seleção,
a turma as fichas, instigando comentários antecipação, inferência e verificação de aspec-
gerais sobre os assuntos lidos e, ainda, se
tos do texto que se lê.
quiser, os próprios processos de leitura dos O urso e as abelhas
estudantes (como tem sido a atividade
Um urso topou com uma árvore caída
permanente? têm gostado? têm aprovei-
que servia de depósito de mel para um
tado? de que forma? etc.);
enxame de abelhas. Começou a farejar
2 – Ao término de um tempo determina- o tronco quando uma das abelhas do
do (mês? bimestre? semestre?), o/a enxame voltou do campo de trevos.
professor(a), junto com as crianças, avalia Adivinhando o que ele queria, deu uma
o trabalho realizado. Assim também o faz picada daquelas no urso e depois desa-
com seus pares professores. Então, a es- pareceu no buraco do tronco. O urso
cola avalia o processo e todos decidem ficou louco de raiva e se pôs a arranhar
sobre a continuidade da atividade e even- o tronco com as garras na esperança de
116 tuais alterações/ampliações, etc. destruir o ninho. A única coisa que
conseguiu foi fazer o enxame inteiro sair contos de fadas ou outras histórias tradicionais
atrás dele. O urso fugiu a toda a e não,exatamente, fábulas. Essa é apenas uma
velocidade e só se salvou porque boa oportunidade de os leitores se aproxima-
mergulhou de cabeça num lago. rem do gênero textual “fábula” – afinal, a clas-
Moral da história: Mais vale suportar um só sificação dos gêneros textuais também não é
ferimento em silêncio que perder o controle e aca- tão tranqüila, mesmo entre os especialistas.
bar todo machucado. (Fábulas de Esopo/compi- 3 – Em relação ao autor, conte às crianças
lação: Russel Ash e Berbard Higton; tradução quem foi Esopo: um escravo que teria vivido
Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das na Grécia, no século V a.C., considerado o
Letrinhas, 1994) maior divulgador de fábulas. No entanto, não
se sabe nem se ele realmente existiu. Pode ser
Desenvolvimento do trabalho que algumas crianças se lembrem de Monteiro
Os três momentos de trabalho, a seguir, repre- Lobato, que também escreveu suas versões de
sentam um modo de ler diferente, por exem- algumas fábulas. Incentive-as para que falem
plo, do que foi proposto na atividade a respeito.
permanente. Agora se trata de fazer uma espé- 4 – Em seguida, leia os títulos de algumas fá-
cie de “modelagem” das estratégias que um lei- bulas presentes no livro, perguntando se as cri-
tor proficiente faz para compreender o que lê. anças conhecem algumas delas. Seria
Um bom começo é acomodar as crianças de interessante ouvir algumas dessas histórias con-
forma que se sintam confortáveis para a leitura. tadas pelas crianças.
Momento A - Antes da leitura Se esse momento, em que se explicitam os
conhecimentos dos estudantes, for rico em
Atividades cujo objetivo é trazer o repertório discussão, as crianças possivelmente estarão
do leitor (seus conhecimentos prévios) para a mais motivadas, inclusive, para prosseguirem
compreensão textual, discutindo os elemen- com a leitura. Se você registrar as reflexões
tos contextualizadores do texto: autor, porta- feitas, em forma de cartaz, por exemplo, pode-
dor, título, sumário, capas, assunto/tema, rão, no momento C, discutir as hipóteses le-
ilustrações: vantadas, o que é fundamental para o processo
1 – Mostre a capa e quarta-capa do livro em de leitura: fazer antecipações iniciais que se vão
que está publicada a fábula, discutindo suas ou não confirmando ao longo da leitura.
ilustrações (ou então use outro livro de fábu-
las, em que há essa fábula, mesmo em outra Momento B – durante a leitura
versão, ou outra fábula ainda...). Mostre tam- Atividades cuja finalidade é apresentar alguns
bém as ilustrações internas. Provavelmente, as objetivos orientadores do ato de ler, por meio
crianças já conseguirão relacioná-las a históri- de um levantamento de aspectos que auxili-
as de seu repertório. Pergunte, a partir dessas em a construção dos sentidos do texto: o tema,
primeiras indicações, se sabem o que se vai ler, o gênero textual em suas funções e caracterís-
nesse momento. ticas, os recursos expressivos utilizados pelo
2 – Quando ler o título do livro, “Fábulas de autor. Dessa forma, você estabelece com os
Esopo”, é bem possível que muitas crianças estudantes alguns objetivos para antecipar as-
explicitem que conhecem fábulas sim. Peça, pectos importantes do texto, por meio de um
então, que algumas contem algumas histórias mapa textual que ajude os leitores na compre-
que conheçam. Não há problema se forem ensão global do que vão ler. 117
1 – Antes de realizar a leitura da fábula, em também sobre os comportamentos humanos
voz alta, para as crianças, peça que prestem em determinadas situações. As crianças conhe-
atenção: cem algum filme em que essas situações tam-
bém são apresentadas. Como foi isso? Essa
- em quem participa da história e como
discussão vai deixando claro para os estudan-
agem;
tes uma das características da fábula como gê-
- nos três momentos da narrativa; nero textual.
- no ensinamento presente na fábula. 4 – Converse sobre os três momentos da his-
2 – Leia, expressivamente, a história. tória: a ação do urso procurando mel; a picada
da abelha e a reação do urso; o ataque maciço
Momento C – depois da leitura das abelhas. Sabemos que o enredo de uma
narrativa ficcional tradicional articula-se em
Atividades cujos objetivos são ampliar as re-
torno de uma situação inicial, uma complica-
ferências culturais dos leitores, especialmente
ção/desequilíbrio e um desfecho. Evidente-
os conteúdos das várias áreas do conhecimen-
mente que essa nomenclatura não precisa ser
to implicadas no texto, refletindo sobre seus
explicitada para as crianças, mas provavelmen-
aspectos polêmicos e, ainda, discutir as pers-
te, ao conhecer mais essas narrativas, eles irão
pectivas do narrador e do leitor. É também mo-
mento de ensinar o estudante a fazer paráfrases se apropriando da concepção de que esses ele-
(orais ou escritas) do que leu e produzir textos mentos fazem parte do gênero textual.
em outras linguagens (desenho, pintura, 5 – Faça com as crianças, oralmente, alguns
dramatização, etc.); exercícios de substituição de certas palavras ou
1 – Discuta as hipóteses das crianças levanta- expressões do texto, para que percebam cer-
das no momento A: confirmaram-se? Total- tos recursos lingüísticos usados pelo autor:
mente? Parcialmente? Não se confirmaram? a) “O urso começou a farejar o tronco”.
Por quê? Veja que não é reduzir ao “acertou Que outra palavra poderia ser usada?
ou errou”, mas valorizar os conhecimentos dos Cheirar? Qual a diferença entre “chei-
leitores. rar” e “farejar”? Parece que “farejar” é
2 – Converse com as crianças sobre as perso- mais próprio de bicho, de animal.
nagens da história: urso e abelhas. Pergunte b) “A abelha deu uma picada daquelas no
se sabem qual é uma das comidas prediletas urso”. Como seria outra forma de dizer
dos ursos, para que percebam que esse é o isso? A abelha deu uma enorme picada
motivo inicial da discórdia entre o urso e a no urso? A abelha deu uma picada mui-
abelha que o picou primeiro. Aproveite para to grande no urso? outras possibilidades?
retomar o título da fábula, o qual confirma o
tema da história. Se as crianças se lembrarem c) “O urso ficou louco de raiva”. Como as
de outras fábulas, vão perceber que, em geral, crianças diriam isso, com outras palavras?
muitas delas têm como título o nome dos ani- O urso ficou muito bravo mesmo? O urso
mais que são personagens: “A lebre e a tarta- ficou com muita raiva? Outras possibili-
ruga”, “O leão e o rato”, “O burro e o cão”, “O dades?
galo e a raposa”, etc. 6 – Proponha uma questão para as crianças:
3 – Discuta como a abelha agiu para defender se houvesse um diálogo na fábula entre o urso e
sua moradia e como o urso agiu sob o coman- a abelha, como poderia ser ele? Essa é uma boa
118 do da raiva. Problematize a questão, falando oportunidade de discutir as formas de diálogo
das narrativas e, se quiser, até mesmo a dife- urso e das abelhas. Solicite que, primeiramen-
rença entre um diálogo oral e um escrito. te, as crianças falem a respeito. Depois, anote
7 – Faça uma lista de títulos de fábulas que as aspectos que devem ser considerados numa
crianças conhecem, salientando quem são os descrição mais minuciosa desse espaço. Não
personagens e que comportamentos huma- se esquecer de que a “floresta” nas histórias tra-
nos representam. Sabemos que a fábula é uma dicionais, que tanto encanta as crianças, tem
narrativa curta, que faz uma crítica a certos toda uma magia que aflora nossa imaginação,
comportamentos humanos por meio de per- nossas sensações e até mesmo nossos medos.
sonagens que são animais. Nela há sempre Assim, a maquete poderia contemplar, de al-
uma moral, que pode vir explícita no texto guma forma, as representações sobre esse es-
ou não. paço tão especial.

8 – Leia de novo a moral da fábula “O urso e Brincadeiras de ontem e de


as abelhas” e peça que as crianças comentam- hoje: outra seqüência didática
na: concordam com ela? Por quê? Discordam?
Por quê? Já viveram alguma situação pareci- Objetivo:compreender o brincar como ação
da? Conhecem alguém que viveu? Como foi? humana fundamental para o desenvolvimen-
Faça uma lista de provérbios que os estudan- to da pessoa e dos grupos sociais, em diferen-
tes conhecem, explicando que os provérbios tes épocas e espaços.
são frases prontas que vieram das fábulas e aca- Desenvolvimento do trabalho:
baram por ficar independentes das histórias.
1 – Comece perguntando quais são as brinca-
9 – Peça que as crianças façam paráfrases orais
deiras preferidas das crianças. Faça uma rela-
da fábula. Lembre-se de que esse momento é
ção dos nomes das brincadeiras citadas, em um
para recontar com as próprias palavras, sem
cartaz, e guarde para uma discussão posterior.
fugir do texto. Um leitor pode ajudar o outro.
2 – Reserve dias, horários e materiais (se for o
10 – Peça que as crianças imitem a cena em
que o urso corre para o lago, com as abelhas caso) para as crianças vivenciarem as brinca-
atacando-o. A expressão corporal é uma im- deiras mais citadas.
portante linguagem humana, especialmente na 3 – Durante as brincadeiras – das quais você
infância. Aproveitem o momento para se di- pode participar ou não – registre como as cri-
vertir com as diferentes maneiras por meio das anças se organizam para brincar; quem fica de
quais as crianças representam o urso em seu fora e por quê; quais as negociações mais fre-
desespero para se safar do ataque das abelhas. qüentes entre elas; como vai a sociabilidade
11 – Solicite, depois, que os estudantes dese- da turma, etc. Procure analisar esse momento
nhem esse mesmo momento. É enriquecedor a fim de que sejam incorporadas as contradi-
que as crianças possam se expressar a partir de ções e as tensões sempre presentes nas rela-
várias e diferentes linguagens. Em seguida, se ções humanas. Ou dito de outra forma: tomar
tiver a edição indicada, mostre a ilustração da cuidado para não ser moralista e “pregar ser-
fábula que há no livro em que há exatamente mão”, na direção de um “bom” comportamento
esse episódio. Conversem a respeito, especial- das crianças, de modo que simplifique o que é
mente sobre as diferentes possibilidades de ilus- complexo.
trar uma mesma cena. Veja o que diz a respeito um trecho do capí-
12 – Organize com as crianças uma maquete tulo O brincar como um modo de ser e estar
da floresta onde teria acontecido a história do no mundo: 119
Compartilhando brincadeiras com as cri- permanente, é “brincar por brincar”. É “brin-
anças, sendo cúmplice, parceiro, apoian- car como experiência de cultura”, mesmo con-
do-as, respeitando-as e contribuindo para siderando que o espaço escolar é um contexto
ampliar seu repertório. Observando-as específico que também constrói suas relações
para melhor conhecê-las, compreendendo com as crianças, diferentemente da rua, da
seus universos e referências culturais, seus casa, etc.
modos próprios de sentir, pensar e agir, suas
4. b – Uma outra maneira de trabalhar o “de-
formas de se relacionar com os outros. Per-
pois da brincadeira” é solicitar que as crianças
cebendo as alianças, amizades, hierarqui-
as e relações de poder entre pares. façam colagens, pinturas, modelagens que re-
Estabelecendo pontes, com base nessas ob- presentem o que viveram, o que experimen-
servações, entre o que se aprende no brincar taram, o que sentiram quando estavam
e em outras atividades, fornecendo para as brincando.
crianças a possibilidade de enriquecerem-nas 5. a – Solicite que a turma pesquise – em casa,
mutuamente. Centrando a ação pedagógi- na biblioteca da escola/da cidade, na Internet,
ca no diálogo com as crianças e os adoles- com familiares e amigos – livros que tratem de
centes, trocando saberes e experiências, brincadeiras de crianças. Marcar dia para que
trazendo a dimensão da imaginação e da todos tragam suas contribuições e socializem
criação para a prática cotidiana de ensinar uns com os outros. Conversar a respeito das
e aprender. brincadeiras pesquisadas. Comparar com a lis-
Enfim, é preciso deixar que as crianças e os ta feita no item 1 desta seqüência.
adolescentes brinquem e aprender com eles 5. b – Se possível, mostre às crianças uma re-
a rir, a inverter a ordem, a representar, a produção do famoso quadro de Bruegel “Brin-
imitar, a sonhar e a imaginar. E no encon- cadeiras de rapazes”, que foi pintado em 1560
tro com eles, incorporando a dimensão hu- e está em um museu de Viena, na Áustria. É
mana do brincar, da poesia e da arte, uma aldeia medieval, pequena e antiga, em
construir o percurso da ampliação e da afir- que há muitos brinquedos e brincadeiras.
mação de conhecimentos sobre o mundo. Veja, então, se sua turma reconhece algu-
Dessa forma abriremos o caminho para que mas delas: pula-sela? Roda arco? Cambalho-
nós, adultos e crianças, nos reconheçamos ta? Quais mais?
como sujeitos e atores sociais plenos,
fazedores da nossa história e do mundo que 5. c – Se possível, mostre também reprodu-
nos cerca. ções de telas de Portinari, como “Jogos Infan-
tis” (1945), “Brincadeiras infantis” (1942),
4. a – Quando terminarem de brincar e de con-
“Meninos soltando pipas” (1943), “Menino
versar a respeito do que se passou, é momento
com pião” (1947), “Futebol” (1935) cujos te-
de ouvir as crianças: o que fizeram, como se
mas são a infância e o brincar. Discuta for-
sentiram, o que tiveram que negociar com o
mas, imagens, cores usadas pelo artista.
outro, etc. Lembre-se de que o comentário é
um gênero textual que prevê uma certa expli- Obs.: há um livro muito interessante, chama-
cação (sobre um fato, um texto escrito, um fil- do “Brinquedos e Brincadeiras”, de Nereide
me, etc.) e a opinião de quem comenta. Schiaro Santa Rosa (Editora Moderna, 2001),
Novamente, veja que há uma diferença entre que traz muitas reproduções de pinturas e es-
o que se propõe aqui e a atividade permanen- culturas de artistas brasileiros e estrangeiros
120 te, anteriormente explicitada. Na atividade sobre o tema. Vale a pena conhecer!
6 – Peça que os estudantes pesquisem a res- de livro. Essa escolha passa, é lógico, por
peito das brincadeiras dos pais, avós, tios, pri- todo um procedimento de escrita que
mos mais velhos, em seus tempos de criança. pressupõe um planejamento: para que se
Solicite que gravem, escrevam ou peçam para vai escrever, quem é o leitor previsto para
o livro, o que e como escrever. Prevê ain-
alguém escrever as regras de como se brincava da versões do mesmo texto até se chegar
cada uma das brincadeiras. à versão final para que as regras estejam
bem explicadas tendo em vista o leitor. E
7 – Em dia e hora, previamente marcados, or- finalmente, pensar no dia de lançamento
ganize a turma em pequenos grupos para que do livro, junto à comunidade escolar. Lem-
contem uns para os outros a respeito das brin- brar que todo esse trabalho deve envol-
cadeiras pesquisadas. ver as crianças integralmente, tanto na
elaboração das regras das brincadeiras que
8 – Solicite que cada grupo explique para o constarão da publicação e na confecção
grande grupo uma ou duas brincadeiras, entre do objeto “livro” – capas, página de ros-
todas as trazidas pelas crianças, em momento to, dedicatória, prefácio, sumário, ilustra-
ções –, quanto na organização do
reservado especialmente para isso. lançamento do livro: convites aos familia-
9 - Proceda, junto com as crianças, a uma se- res, às outras turmas da escola, à impren-
sa local; o papel do “mestre de cerimônia”
leção das “brincadeiras de antigamente”, en-
que faz a abertura do evento e explica
tre aquelas que foram apresentadas. Aproveite
todos os momentos, etc.
para categorizar as brincadeiras trazidas, com
alguns critérios, como: brincadeiras com o cor- Projeto
po, brincadeiras com bola/sem bola, brinca-
deiras de meninas/meninos/ambos (e outros 1 - O que é
critérios estabelecidos por você e sua turma).
Façam depois uma votação das brincadeiras já Essa modalidade de organização do trabalho pe-
conhecidas e experimentadas pelas crianças, dagógico prevê um produto final cujo planeja-
usando, para a contagem dos votos, gráficos e mento tem objetivos claros, dimensionamento
tabelas. Essa é uma boa oportunidade para tra- do tempo, divisão de tarefas e, por fim, a avalia-
balhar a linguagem gráfica da matemática. ção final em função do que se pretendia. Tudo
isso feito de forma compartilhada e com cada
10 – Organize espaço, tempo e materiais para estudante tendo autonomia pessoal e respon-
que as crianças brinquem as “brincadeiras de sabilidade coletiva para o bom desenvolvimen-
antigamente”. Se possível, convide familiares to do projeto.
dos estudantes para esse momento. Cada fa-
miliar pode ficar em um pequeno grupo para O projeto é um trabalho articulado em que as
também brincar. crianças usam de forma interativa as quatro
atividades lingüísticas básicas — falar/ouvir,
escrever/ler— , a partir de muitos e variados
gêneros textuais, nas várias áreas do conheci-
OLHO VIVO mento, tendo em vista uma situação didática que
É possível proceder a um processo de es- pode ser mais significativa para elas. Marcamos
colha das brincadeiras, pelas crianças, para com um asterisco (*) alguns gêneros textuais
que se elabore uma coletânea, cujo título que serão mais detalhadamente trabalhados na
poderia ser, por exemplo, “Brincadeiras de
sempre: as brincadeiras preferidas da tur- modalidade “Atividade de sistematização”.
ma.....”. Mas agora é outra história. O tra- Ressalte-se que isso poderia ter sido feito tam-
balho pode ser um projeto de produção bém nas outras modalidades organizativas, 121
uma vez que a atividade de sistematização é - o artesanato local;
entendida como uma “parada” para estudar - os artistas da região: poetas, cantadores,
mais, para enfatizar e sistematizar conhecimen- contadores de histórias, repentistas, pin-
tos das crianças relativos a temas/assuntos, gê- tores, etc.;
neros textuais, aquisição da base alfabética,
convenções da escrita, etc. - as atrações turísticas (toda cidade as tem,
mesmo que seus moradores, muitas ve-
2 - Sugestões zes, não saibam ou não percebam esse
potencial...).
Projeto: Nossa cidade, nossa casa
3 – Auxilie os grupos com a sua pesquisa e tam-
Produto:uma mostra que expresse a cultura e
bém peça para que as crianças pesquisem com
a produção artística do bairro, da cidade ou
familiares, amigos e moradores mais antigos seus
do município em que a escola se localiza. O
conhecimentos sobre a cultura local e até mes-
acervo pode ser verbal (oral e/ou escrito),
mo se há disponibilidade de objetos que pos-
imagético (fotografias, colagens, desenhos, etc),
fílmico (gravações em fitas de vídeo). Pode ser sam ser emprestados para a mostra cultural/
também uma exposição de obras da cultura acervo. Um gênero textual para esse momento
local: esculturas, quadros, peças de tecido, pode ser a entrevista oral ou escrita (*).
utensílios variados etc. 4 – Proporcione ainda visitas a locais da cida-
Objetivo: propiciar que o estudante conheça de que possam contribuir para a pesquisa das
mais o lugar em que vive, percebendo-se como crianças, como a sede da prefeitura, o jornal
parte dele. da região, etc. Para essa saída da escola, é pos-
sível elaborar com as crianças uma carta-re-
Desenvolvimento do trabalho querimento (*) para reservar/marcar a ida a
esses lugares.
1 – Discuta com os estudantes o projeto: ob-
jetivos, etapas, necessidade de envolvimento 5 – Enfatize bastante com os estudantes a
de todos, responsabilidade de cada um e pro- questão das mudanças históricas havidas en-
duto final. Discuta o projeto com os pais/co- tre o “antigamente” e o “hoje”. Organize com
munidade no sentido de ter a adesão deles em eles, um cartaz que possa ir registrando as
relação à finalidade desse trabalho, assim como contribuições das pesquisas, ao longo do de-
possíveis contribuições. senvolvimento do projeto, na direção de
compreenderem um importante conceito
2 – Organize as crianças em grupos para que que se refere às permanências e mudanças
cada um faça uma pesquisa. As categorias po- do contexto histórico e geográfico.
deriam ser, por exemplo:
- a breve história da cidade;
- o museu; OLHO VIVO
- a biblioteca; A partir do século XX, são consideradas
- os grupos de dança; fontes históricas vários registros como
músicas, mapas, gráficos, pinturas, gravu-
- os grupos musicais; ras, fotografias, ferramentas, utensílios,
- as comidas típicas; festas, rituais, edificações, literatura oral
e escrita, etc. Nesse sentido, os estudan-
- o teatro (ou grupos de teatro mesmo sem tes podem enriquecer suas pesquisas com
122 sede física)
um farto material, entendendo, inclusive, pensar em vários produtos finais possíveis. Su-
não só que são parte da história que está gerimos que os registros escritos de determina-
sendo construída, como também podem das ações sejam considerados produtos finais:
viver o papel do historiador, quando in- listas (*), agenda, quadros e tabelas, regula-
vestigam e encontram documentação his- mento, arquivos temáticos, cartas, coleções,
tórica, a partir dessas fontes variadas. portfolios.
6 – Ajude os estudantes nos planos de traba- Objetivo:conhecer mais as rotinas escolares
lho para que possam ter autonomia de traba- como organizadoras das ações cotidianas e todo
lho e cumprir o cronograma estabelecido. seu potencial de aprendizagem, não somente
Defina com eles quais os dias da semana serão em relação à leitura, à escrita e aos conteú-
reservados para o projeto, quanto tempo o pro- dos específicos das áreas curriculares, mas tam-
jeto vai durar, que grupo vai fazer o que, para bém no que diz respeito às relações
que, onde, como e quando.
interpessoais, aos valores, às normas, às atitu-
7 – Ao longo do desenvolvimento do proje- des e aos procedimentos.
to, marque as datas em que discutirão os an-
damentos das pesquisas, os registros (orais ou Desenvolvimento do trabalho
escritos) do que as crianças estão aprendendo
com o trabalho, o trabalho em cada grupo, bem 1 – Discuta com os estudantes o projeto: ob-
como os produtos finais: painel fotográfico? jetivos, necessidade de envolvimento de todos,
Audição de músicas, declamadores, contado- responsabilidade de cada um e produtos finais.
res de histórias? Apresentação de dança e/ou Discuta o projeto com os pais/comunidade, no
de teatro? Exposição de objetos culturais? Fei- sentido de ter a adesão deles em relação à fi-
ra de comidas típicas? Enfim, são muitas as nalidade desse trabalho , assim como possíveis
possibilidades...
contribuições.
8 – Os produtos finais podem ser apresenta-
dos tanto num mesmo dia, previamente esta- 2 – Solicite que as crianças fiquem atentas ao
belecido, quanto em dias diferentes, também que fazem na escola e ao que pode ser tema de
acordados em consonância com os estudantes trabalho do projeto, como, por exemplo:
e a comunidade. - organizar listas para saber quem são os
presentes e faltosos, os horários, o car-
dápio da merenda, a divisão de tarefas/
OLHO VIVO responsabilidades de cada um, os livros
do acervo da classe, os brinquedos do
É bom lembrar que um projeto pode de- cantinho da brincadeira, etc.;
mandar outros projetos para ampliação
- agenda para comunicar os endereços das
de alguns aspectos. Um projeto compor-
crianças, os materiais que serão usados
ta, assim, uma grande flexibilidade no seu
em determinados dias ou atividades, os
desenvolvimento, a depender dos nossos
recados para os pais, etc.;
objetivos, dos interesses e necessidades
das crianças e, por fim, do envolvimento - quadros e tabelas para organizar dados de
de todos. forma visual: leituras realizadas na ativi-
dade permanente, tarefas realizadas e
Projeto: nossa rotina, nossas aprendizagens
pendências, planos de trabalho, dados
Produtos:dada a especificidade desse projeto de outros projetos ou das seqüências di-
– trabalhar as rotinas escolares –, podemos dáticas, etc.; 123
- regulamento para registrar e divulgar nor- Tal prática é especialmente relevante por
mas de comportamento, regras de con- propiciar a idéia de que não cabe apenas
vivência discutidas com a turma, etc.; ao professor avaliar o processo de aprendi-
zagem e de ensino. Tal concepção é con-
- arquivos temáticos para organizar estudos/
trária às orientações dadas em uma
pesquisas feitas sobre temas/assuntos re-
perspectiva tradicional, com seus fins
lativos às áreas curriculares, como, por
excludentes de classificar e selecionar estu-
exemplo: “A vida dos sapos”, “O corpo
dantes aptos e não-aptos, que sempre foi
cresce”, “A Terra e o Universo”, “A ci-
promotora de heteronomia: como só o pro-
dade grande e a cidade pequena”, “Os
fessor é quem julgava os produtos do estu-
contos de fadas”, “A Amazônia”, “A te-
dante, este introjetava a idéia de que era
levisão”, etc.;
incapaz de avaliar o que fazia, que só o
- cartas para que os estudantes se comu- adulto-professor sabia o certo. Se queremos
niquem com outras turmas, relatando o formar crianças e adolescentes que venham
que estão aprendendo; a ser cada vez mais autônomos, precisa-
- coleções para coletar e organizar “obje- mos promover, no cotidiano, situações em
que o estudante reflete, ele próprio, sobre
tos” (tampinhas, figurinhas...), “gêneros
seus saberes e atitudes, vivenciando uma
textuais” (poemas, fábulas, contos de as-
avaliação contínua e formativa da trajetó-
sombração...). Essa última categorização
ria de sua aprendizagem.
pode ser objeto de comunicação oral dos
alunos, em dias e horários marcados, 3 – Organizar os recursos, como impressora,
com antecedência. Dessa forma, as cri- xerox, mimeógrafo, papel carbono para repro-
anças aprendem a se comunicar oralmen- dução de textos (quando for necessário), e
te, com mais propriedade, a partir de uma materiais diversos para os diferentes momen-
situação real, com interlocutores reais e a tos e produtos finais do projeto, como: papéis/
partir de uma preparação prévia; folhas de tamanhos diferentes, lápis, canetas
coloridas, caixas de papelão de tamanhos di-
- portfolios para registrar e avaliar as ativi-
ferentes, cola, etc.
dades feitas, o que se aprendeu, o que
mais se quer/ se deve aprender. Veja o 4 – Trabalhar, por exemplo, com os diferen-
que dizem, a respeito, os autores do ca- tes gêneros textuais e seus portadores/supor-
pítulo Avaliação e aprendizagem na esco- tes, nas atividades de sistematização, como
la: a prática pedagógica como eixo da forma de fazer uma espécie de zoom em cada
reflexão: um, considerando que a produção de textos
acontecerá em situações reais, para
- O uso de portfolios, por exemplo, pode interlocutores concretos, de forma coerente
ser útil para fazer com que os estudantes, com a concepção de linguagem como
sob orientação dos professores, possam ana- interação.
lisar suas próprias produções, refletindo
sobre os conteúdos aprendidos e sobre o Projeto: Água: minha vida/nossa vida
que falta aprender, ou seja, possam Produto:cartazes temáticos do projeto (*). Es-
visualizar seus próprios percursos e colha com as crianças e a direção/coordena-
explicitar para os professores suas estraté- ção da escola um lugar específico em que serão
gias de aprendizagem e suas concepções afixados os cartazes produzidos ao longo do
124 sobre os objetos de ensino. projeto. Peça que os estudantes elaborem uma
legenda que explique que, naquele espaço, - as nações indígenas e sua proximidade aos
sempre haverá cartazes temáticos como forma cursos de água;
de ir registrando as descobertas realizadas ao - o(s) rio(s) da região em que vivem os estu-
longo do projeto. dantes e seu significado para a população.
Objetivo:refletir sobre as relações entre a hu- 3.a – Faça mais cartazes sobre o projeto,
manidade e a água, no sentido da preservação enfatizando, nesse momento, as relações “hu-
ambiental e da sobrevivência humana, bem manidade/homem” já referidas e outras que
como produzir sínteses a respeito das investi- considerarem importantes.
gações das crianças.
4 – Faça você, professor(a), uma pesquisa so-
Desenvolvimento do trabalho bre poetas, pintores, músicos e outros artistas
que tenham tematizado a água em suas obras
1 – Discuta com os estudantes o projeto: ob- (incluindo a falta dela). Traga para a turma o
jetivo, necessidade de envolvimento de to- que for possível mostrar dessa pesquisa. Essa é
dos, responsabilidade de cada um e produto uma boa oportunidade de conversar a respei-
final. Discuta o projeto com os pais/comuni- to dos simbolismos ligados à relação entre a
dade, no sentido de ter a adesão deles em rela- humanidade e a água: os artistas, com sua sen-
ção à finalidade desse trabalho , assim como sibilidade, captam questões primordiais que
possíveis contribuições. afetam a todos.
2 – Com o objetivo de os estudantes falarem Veja, como ilustração dessa idéia, um trecho
espontaneamente sobre o assunto, inicie a re- de um belo poema de Manoel de Barros, nos-
flexão conversando com eles sobre os proble- so poeta pantaneiro:
mas relativos, por exemplo: Águas
- à escassez da água no planeta e em certas Desde o começo dos tempos águas e
regiões; chão se amam.
- aos efeitos da poluição sobre as fontes de Eles se entram amorosamente
água; E se fecundam.
- ao consumo exagerado em algumas regiões; Nascem formas rudimentares de seres e
de plantas
- ao desperdício na nossa higiene e limpeza.
Filhos dessa fecundação.
2. a – Faça com as crianças cartazes sobre es- Nascem peixes para habitar os rios
ses temas levantados e afixem no lugar já re- E nascem pássaros para habitar as
servado para isso. árvores.
3 – Para ampliar essa primeira reflexão, peça Águas ainda ajudam na formação das
que as crianças pesquisem a respeito da rela- conchas e dos caranguejos.
ção do homem com a água, no que se refere As águas são a epifania da Natureza.
ao desenvolvimento da agricultura e do co- Agora penso nas águas do Pantanal
mércio, como, por exemplo: Nos nossos rios infantis
- os rios Tigres e Eufrates, que ficam às mar- Que ainda procuram declives para
gens do Rio Nilo e foram fundamentais correr.
para a civilização egípcia antiga; [...]
(poema escrito para a Empresa de
- o Rio São Francisco, no Brasil, e seu pa- Saneamento do Governo do Estado de
pel para as populações ribeirinhas; Mato Grosso do Sul – Sanesul)
125
5 – A partir das três reflexões anteriores e pro- 8 – No fim do projeto, cujo tempo foi determi-
curando aproximar mais as crianças da respon- nado por vocês, elaborar uma grande síntese,
sabilidade individual em relação à preservação em forma de colagens, por exemplo, e divul-
da água no planeta, é possível discutir uma si-
gar para a escola e a comunidade.
tuação-problema que será foco da investiga-
ção das crianças como, por exemplo: de que Atividades de sistematização
forma o lugar em que vivo cuida da água do
planeta? Não precisa ser exatamente essa a 1 - O que é
questão. Faça com os estudantes uma rela-
ção de questões que sejam mais próximas do São atividades destinadas à sistematização de
contexto em que eles vivem e selecionem uma conhecimentos das crianças ao fixarem con-
para o trabalho. teúdos que estão sendo trabalhados. Em rela-
6 – Escolhido o tema do projeto, iniciem a ção à alfabetização, são os conteúdos relativos
investigação e seus registros em cartazes. Su- à base alfabética da língua ou ainda às conven-
pondo que a questão seja a explicitada no item ções da escrita ou aos conhecimentos textuais.
anterior, é possível organizar as crianças para Em outras áreas curriculares, podem ser con-
diferentes pesquisas: teúdos que ajudem a compreender ou trabalhar
outros assuntos/temas, como as misturas de
- o uso da água na região ou município: que
rios abastecem a cidade? Há um órgão cores como geradoras de outras cores, a diversi-
municipal de saneamento básico? Há dade do mundo animal para compreender as
Organizações Não-Governamentais relações interdependentes da vida no planeta,
(ONGs) que trabalham com a questão? o conhecimento de aspectos do corpo humano
O que pensam os moradores sobre o como forma de cuidar melhor da própria saúde,
abastecimento de água na cidade? Essas etc. Lembrar ainda que as atividades de siste-
podem ser algumas fontes de pesquisa... matização podem ser lúdicas, como os jogos.
- o uso da água na família dos estudantes: 2 - Sugestões
há água encanada na casa? Como a
água é usada na família? É possível ain- A - Oficina de produção de textos (para os
da fazer pesquisa de medição, com con- projetos, por exemplo)
ta de água e também com vasilhas para
Em que se selecionam alguns gêneros textu-
saber com quantos copos de água, por
ais, para que as meninas e meninos escrevam,
exemplo, se lava uma louça do almoço...
tendo em vista um projeto e, portanto, uma de-
- o uso da água na escola: qual é a capaci- terminada finalidade e um determinado leitor:
dade dos reservatórios/caixas de água as crianças da mesma classe, de outra classe, de
que há na escola? como é o uso da água outra escola ou, ainda, os pais e a comunidade.
pelos vários setores da escola? como os
funcionários usam a água? e os alunos? O que importa é reservar momentos, previa-
mente acordados com o grupo, em que se de-
7 – Em dias, previamente, marcados, as crian- cida, coletivamente, para que, para quem, o
ças trazem até onde conseguiram pesquisar, que e como escrever.
comparam suas investigações e vão constru-
indo respostas para o tema do projeto. Essas Para isso, é necessário também que as crianças
126 respostas vão sendo divulgadas nos cartazes. tenham modelos/referências de textos e assuntos/
temas do que se vai escrever. E mais: que se sentido de ser divulgado também na mostra
viva a escrita como um processo: planejando a cultural.
produção, em função do projeto; fazendo vá- No primeiro caso, as respostas vão ser traba-
rias versões até a versão final; discutindo pos- lhadas para alimentar o tema do projeto. No
sibilidades melhores ou mais eficazes de segundo, a produção deve ser trabalhada, a
expressão de certas palavras, enunciados, idéi- partir da idéia de que muitos vão ler (por
as, tendo em vista o leitor do texto. exemplo,numa pequena publicação, talvez,
com o título “Nossos entrevistados”) ou ouvir
a) Dois gêneros textuais para o projeto (se for entrevista gravada para ser ouvida na
“Nossa cidade, nossa casa” mostra pelos interessados, o que requer uma
qualidade de audição).
A entrevista (oral ou escrita)
A linguagem
Quanto à situação de produção do texto
como se trata de uma situação formal de texto
crianças pesquisando, para um projeto da es- em que há assimetria entre entrevistado e
cola, a cultura local, por meio de seus mora- entrevistador, essa é uma boa oportunidade de
dores, representantes legais, governantes; as crianças exercitarem uma “linguagem de
produtos finais a ser divulgados para a escola e domingo”, ou seja, falar de forma mais cuida-
comunidade. (Elementos da situação: quem/ da, procurando não usar gíria, escolhendo
para quem, com que finalidade e lugar de cir- melhor as expressões que vai usar. Essa ques-
culação da produção). tão também deve ser objeto de discussão com
os estudantes. Sabemos que, mesmo com os
Escolher as pessoas que serão entrevistadas,
pequenos, isso é possível, pois também na
entrar em contato, marcando hora e local da
vida, não só na linguagem, eles vivem situa-
entrevista. Prepara-la, fazendo uma lista de
ções formais ou informais.
perguntas ou pauta para o diálogo. Também
reservar um espaço para o entrevistado falar Carta-requerimento
livremente, sem pergunta específica. Anotar Quanto à situação de produção do texto
ou gravar as respostas. a mesma do gênero textual anterior. E mais:
Roteiro para a realização da entrevista escolher as instituições e pessoas para quem
serão endereçadas as cartas, pesquisando no-
explicação do entrevistador sobre o projeto e suas
mes e cargos, endereço completo, e, por fim,
finalidades para o entrevistado conhecer o con-
subscrevendo o envelope, com destinatário e
texto de sua contribuição; dados do entrevista- remetente.
do (nome completo, idade, tempo na cidade,
profissão, etc); o que conhece sobre a cultura Organização do texto da carta
local e como participa dela; quais contribuições ler cartas variadas, especialmente, as cartas
pensa ser possível oferecer ao projeto. pessoais, para distingui-las da carta-requeri-
mento que é mais formal e argumentativa,
Organização do texto
porque é para um adulto “não-familiar” e é
A entrevista, nesse projeto, pode ter duas fi- necessário convencê-lo a aceitar a demanda
nalidades: ser um instrumento de coleta de feita pelos autores da carta. A diagramação da
dados para o projeto, tendo um caráter “in- carta é um modelo fechado, em que constam:
terno” a ele; ser um texto a ser publicado, no data; expressão de polidez, como: “Prezado”, 127
“Ilustríssimo”, “Caro” mais nome do desti- A linguagem
natário e cargo; corpo da carta; fórmula de des- seleção de objetos, nomes de pessoas, ingredi-
pedida e assinatura/nome do(s) remetente(s). entes (a depender do que trata a lista). E ain-
A linguagem da seus quantitativos, como por exemplo, o
acervo da classe: 6 livros de fábulas, 8 gibis, 4
como se trata de uma situação formal de tex- livros com imagens, etc (em diagramação ho-
to, a linguagem deve ser trabalhada, tendo em rizontal) ou em diagramação vertical:
vista vocabulário específico, polidez e seguran-
- 6 livros de fábulas;
ça na argumentação. As várias questões lin-
güísticas para uma produção textual precisam - 8 gibis;
ser discutidas/ensinadas para as crianças: - 4 livros com imagens; etc.
- Podemos tratar a pessoa de você? Por quê?
c) Um suporte de texto para o Projeto:
- Quais palavras serão usadas para conven- “Água: minha vida/nossa vida”
cer a pessoa da necessidade de permitir a
Cartaz
ida dos estudantes aos locais de pesquisa/
estudo? É conveniente dizer “nós exigi- Quanto à situação de produção do texto
mos”? Que diferença há quando dizemos o cartaz, socialmente, é usado para divulgar
“solicitamos”, “pedimos”? eventos: festas, exposições, espetáculos, etc. Na
escola, o cartaz é usado também para registrar
- Como vamos explicar o projeto para o
e divulgar estudos/descobertas dos estudantes.
destinatário da carta? Vamos contar tudo?
Em ambos os casos, há a necessidade de ser
É possível fazê-lo numa carta? Como va- bem compreendido pelos leitores, e bem tra-
mos sintetizar a explicação, sem perder a balhadas sua finalidade. No caso do projeto
essência do projeto? acima referido, ele prevê vários “cartazes
Enfim, são muitas as possibilidades de refle- temáticos” que divulgarão as várias descober-
xão sobre a linguagem que se usa para escre- tas das crianças.
ver ou falar, tendo em vista a situação de Organização do texto
comunicação... analisar cartazes variados, selecionados pelo(a)
professor(a) e pelos alunos, atentando para suas
b) Um gênero textual para o projeto
condições de produção e suas características.
“Nossa rotina, nossas aprendizagens”
As produções podem ser feitas em duplas, em
Lista forma de primeira versão e, depois revisadas,
coletivamente, para elaboração de uma segun-
Quanto à situação de produção do texto da versão, levando em conta tanto o sistema
crianças e professor(a) vivendo o cotidiano de de escrita e suas convenções, quanto a orga-
trabalho na sala de aula, necessitando organi- nização do gênero textual.
zar dados. A linguagem
Organização do texto as várias questões lingüísticas para a produção
identificação da necessidade da lista cujos cri- textual de um cartaz precisam ser discutidas/
térios e disposição gráfica (vertical? horizon- ensinadas para as crianças:
tal?) são discutidos com as crianças, bem como - necessidade de a informação ser sintética,
o título da lista que representa a unidade para poder ser lida, rapidamente, por um
128 temática do texto. leitor transeunte;
- palavras e expressões argumentativas de linguagem”, espera-se que as questões do
para convencer o leitor a se interessar ler/ escrever e do falar/ouvir tenham sido com-
pelo tema do cartaz ; preendidas, em relação a todas as áreas do co-
- expressões chamativas para atrair a aten- nhecimento do Ensino Fundamental —
ção do leitor; ciências sociais, ciências naturais e as lingua-
gens —, na perspectiva de que os conteúdos
- diagramação/tamanho e tipo de letra que
estejam articulados a partir do eixo da lingua-
sejam legíveis à distância;
gem.
- presença ou não de ilustrações.
Esclareça-se também que as modalidades de
B - Jogos para alfabetização ou outras áreas organização do trabalho pedagógico sugeridas
Podemos considerar atividades de sistematiza- não se restringem ao trabalho com as crianças
ção, como foi sugerido no capítulo Letramento de 6 anos, por isto podem estar presentes em
e alfabetização: pensando a prática pedagógica: todo o Ensino Fundamental (e outros segui-
- atividades com palavras significativas; mentos), a partir dos mesmos princípios, na
perspectiva de aprofundar e sistematizar deter-
- brincadeiras com a língua: músicas, can- minados conteúdos ou trazer outros tantos
tigas de roda, parlendas, poemas, conteúdos, considerados relevantes pelo gru-
quadrinhas, adivinhas, palavras cruza-
po-escola e/ou sistema de ensino ao qual a
das, adedonha, etc.;
mesma se vincula.
- “três tipos de jogos: (1) os que contem-
plam atividades de análise fonológica Outro aspecto do trabalho com as modalida-
sem fazer correspondência com a escri- des organizativas é a sua extrema flexibilida-
ta; (2) os que levam a refletir sobre os de, a depender dos objetivos e necessidades
princípios do sistema alfabético, ajudan- do(a) professor(a), turma, escola. É possível
do os estudantes a pensar sobre as cor- escolher uma modalidade para uma determi-
respondências grafofônicas (isto é, as nada área do conhecimento, outra para um
relações letra-som); (3) os que ajudam a gênero textual ou outra ainda para um certo
sistematizar essas correspondências tema/assunto, durante um tempo fixado e isto
grafofônicas.” se alterar, num outro momento. É possível
trabalhar com as quatro modalidades para um
No capítulo “O brincar como um modo de ser e mesmo tema/assunto ou área ou gênero. Evi-
estar no mundo”, há sugestões de atividades dentemente, não se trata de mudar de uma
lúdicas como recursos pedagógicos: “bingos, modalidade para outra, como forma simples-
enigmas, palavras cruzadas para trabalhar co- mente de variar, mas sim de o/a professor(a) ir
nhecimentos de leitura e escrita, jogos ma- pesquisando as potencialidades dessas práticas,
temáticos envolvendo conceitos de número, no que se refere à realidade de seu trabalho
jogos de perguntas e respostas sobre conheci- pedagógico e ao tempo de aprendizagem de
mentos científicos, jogos teatrais com ênfase no cada estudante, em particular e da turma,
uso da linguagem verbal e gestual”, que tam- em geral.
bém constituem atividades de sistematização. As sugestões feitas são apenas possibilidades
que não substituem as intenções e ações do(a)
Algumas considerações ainda
professor(a) em seus conhecimentos e sua ati-
Como o princípio maior que regeu a elaboração tude investigativa, em relação aos estudantes,
desse capítulo é que “todo professor é professor uma vez que é ele/ela quem conhece sua turma, 129
observa-a, registra suas descobertas e debate- de linguagens pode ser objeto de reflexão na
as com seus pares, também educadores. formação, uma vez que a leitura de várias lin-
Enfim, as possibilidades de trabalho foram guagens é essencial na sociedade em que vi-
sugeridas nesse e nos demais capítulos, sem vemos. Saber ver uma imagem, um filme é tão
perder de vista que as decisões finais quem toma necessário quanto aprender a ler e a escrever.
é sempre o/a professor(a), o que, sem dúvida, “...as imagens, assim como as palavras são as
será potencializado se ele/ela o fizer, junto com matérias de que somos feitos” (Manguel, 2001).
seus pares, num permanente processo de apren- O uso desse material pode ser uma boa opor-
der e de ensinar, coletivamente. Nosso pro- tunidade de trabalho coletivo. Os próprios
pósito foi contribuir com nossas reflexões, professores/professoras de uma mesma escola
estudos e práticas, tal qual um artesão que tece ou ainda de escolas diferentes, numa mesma
seu trabalho, no diálogo com outros profissio- Diretoria de Ensino ou Secretaria de Educa-
nais. Bem-vindos à roda! ção podem elaborar pequenas resenhas e/ou
roteiros de discussão, com os filmes e vídeos
Algumas possibilidades para a aqui apresentados. Esse material produzido
formação continuada pode fazer parte do acervo da biblioteca ou
Tendo em vista, uma concepção de formação videoteca das escolas.
continuada de professor que tem na prática Novamente, enfatizamos que apresentaremos
docente o seu foco de reflexão e de ação, as sugestões de trabalho com vídeos e filmes, en-
sugestões a seguir podem ser desenvolvidas, tendendo-as como processos de ensino, sem-
tanto em situações de formação dos professo- pre contextualizados, sempre inacabados, e
res na própria escola, em horário coletivo – não exemplos únicos e definitivos, para se-
em que os educadores discutem suas práticas – rem seguidos.
quanto em formação orientada pelo sistema
de ensino local. Para isso, é necessário que se Sugestões de filmes comerciais
constitua um acervo de formação, não só com com temáticas que interessam a
esses materiais, mas também com outros que educadores, e programas
possam contribuir para essa finalidade. educativos específicos dos
Programas “Proinfantil” e
Como o material Letra Viva é videográfico,
“Letra V iva”
Viva”
há que se pensar na especificidade dessa lin-
guagem, bem como formas de abordá-la, em
filmes relacionados a “infância e cultura”
situação de formação continuada de docen-
tes. 1 - A hora da estrela – direção: Suzana Amaral
O trabalho com vídeos pedagógicos pressu- 2 - Adeus meninos – direção: Louis Malle - 1987
põe debater seus objetivos, conteúdos,
3 - Anna dos 6 aos 18 – direção: Nikita
metodologia e linguagem específica, o que Mikhalkov - 1979
demanda preparação prévia, para que se pos-
sa antecipar questões, levantar temas e esta- 4 - Kiriku e a feiticeira – direção: Michel Ocelot
belecer relações entre o programa e a – 1998
formação. 5 - Linéia no jardim de Monet – direção:
No que se refere à linguagem, os programas Christina Bjork e Lena Anderson – 1992
em vídeo e os filmes articulam texto escrito, 6 - Quando tudo começa – direção: Bertrand
130 falado, som e imagens e esse entrecruzamento Tavernier – 1999
7 - Coleção Crianças Criativas – Vídeos 13 - Estatuto do futuro – CECIP – 1997
Multirio:
14 - O lobo que virou bolo – Realização:
z Shakespeare: histórias animadas
Produção: S4C / BBC / Soyufilm / CINDEDI
Christmas Film 15 - Promessas de um novo mundo – Dire-
z Um Sonho de Criança
ção: B. Z. Goldberg, Justine Shapiro e Carlos
Título original: A child´s dream Bolado - 2001
Direção: Danièle Roy
z Viva a Diferença 16 - Um ambiente para a infância – Realiza-
Título original: Different is beautiful ção: CINDEDI
Direção: Anne Bramard-Blagny
17 - Vídeos do acervo da Central de Produ-
z O Que é Isso?
ções UFRGS/FACED/Porto Alegre:
Título original: What is that?
Direção: Ulpu Tolonen z no 401 - Do Brique ao Brincar e aprender
z OMundo Encantado de Richard Scarry
z no 421 - Caixas temáticas
Título original: The Busy World of
Richard Scarry Vídeos relacionados aos “Contextos de
Direção: Greg Bailey e Pascal Morelli
aprendizagem e trabalho docente”
Filmes relacionados a crianças, adultos e
1 - Vídeos Multrio:
a gestão da educação para a infância.
z Matilda
1 - A classe operária vai ao paraíso – direção: Produção: Czech Television / ANIMA
Eliso Petri, Itália, 1971
s.r.o.
2 - A invenção da infância – direção: Liliana Direção: Josef Lamka
Sulzbach, Brasil, 2000 z As Crianças Perguntam
3 - O garoto – direção: Charles Chaplin, Esta- Produção: Brown Bag Films
dos Unidos, 1921 Direção: Darragh O. Connell
4 - Tempos modernos – direção: Charles z Os Multoches
Chaplin, Estados Unidos, 1936 Produção: France 2 / B. Productions
Direção: Joanne Marie Ciano
5 - Cinema Paradiso – direção: Giuseppe
z E se eu fosse um bicho?
Tornatore, Itália, 1989
Produção: Télé Images Nature
6 - O carteiro e o poeta – Michael Radford, Direção: Frédéric Lepage e Eric
1994
Gonzalez
7 - O nome da rosa – Umberto Eco, 1999 z Maça Verde
8 - Sociedade dos poetas mortos – Peter Way, Título original: Green animations
1989 z Grupo dos Cinco
9 - Abril despedaçado – Walter Salles, 2001 Produção: ABC Natural History Unit
Direção: Nick Hilligoss
10 - Jardim Secreto - Agnieszka Holland, 1993
z O Divertido Mundo dos Bichos
11 - Dá um sorriso pra titia - Diane Paterson Produção: Alizé Productions
12 - Haroldo vira gigante - Crokett Johnson Direção: Robi Engler 131
Resenha crítica: uma possibilidade mundo: desemprego, pobreza, desajustes fami-
liares, governantes ineptos, instituições com
Fazer uma resenha é sintetizar propriedades de novos papéis, etc.
um objeto/ acontecimento/texto/obra cultural,
levantando seus aspectos relevantes. A finali- Roteiro de discussão: outra
dade da resenha “dirige” sua elaboração: para possibilidade
quem é? onde será publicada?
O(s) elaborador (es) dos roteiros pode (m) le-
A resenha crítica traz apreciações, julgamen- var em conta os três momentos já referidos
tos de quem a elaborou sobre as idéias do nesse capítulo, em relação às estratégias de lei-
autor, o valor da obra, além de um resumo tura. Vamos exemplificar também com o fil-
que apresente os pontos essenciais da obra me “Quando tudo começa”.
resenhada.
Momento A –Antes do filme
Veja um exemplo, que elaboramos, com o fil-
me “Quando tudo começa” Levantar alguns indicadores e conhecimentos
prévios dos professores/professoras que contri-
buam para a compreensão do que se vai assistir:
QUANDO TUDO COMEÇA
1 – Direção/produção/data ou outros indicadores
Gênero: drama importantes:
Direção: Berthand Tavernier - o diretor Bertrand Tavernier é francês cujas
Filme francês, 117 minutos, colorido, produ- críticas cinematográficas foram publicadas nos
zido em 1999, recebeu Prêmio da Crítica do famosos “Cahiers du Cinema” e também foi
Festival de Berlim,nesse mesmo ano. assistente de Godard, o famoso diretor do ci-
nema francês;
O filme é considerado um semidocumentário,
porque é baseado em histórias reais de profes- - o filme recebeu o Prêmio da Critica no Festi-
sores de uma escola pública de uma região da val de Berlim, em 1999.
França, com crianças de educação infantil 2 – Gênero do filme: semidocumentário, pois
cujos pais vivem uma situação de miséria e Tavernier recria histórias reais que ouviu de
desemprego. professoras francesas, no interior da França, em
suas dificuldades, numa “nova” França, com
O filme, sensível e realista, apresenta uma sé-
altos índices de desemprego.
rie de situações enfrentadas pelo diretor e sua
equipe no trabalho, sempre às voltas com um 3 – Assunto/tema:
sentimento de impotência diante da realida- - discutir o título do filme, para levantar hipó-
de das crianças e da escola como um todo. teses sobre seu tema. O que esperam encon-
A vida pessoal do diretor entrelaça-se com seu trar numa película com esse nome?
trabalho na escola, em função das crianças e 4 – Levantamento dos objetivos de leitura/de aná-
suas famílias. É comovente acompanhar a luta lise do que se vai assistir, relacionados a seguir,
de Daniel, das professoras e da pediatra que no momento B.
insistem e se envolvem com as questões de cada
criança. Momento B - Durante o filme
Alguns episódios demonstram que, também na Em que os professores/professoras assistem à
França, a Educação sofre com os males que película, cujo foco está nos objetivos estabele-
132 afetam a sociedade contemporânea em todo cidos, no momento anterior:
1 - A relação entre “escola e família”; z As práticas pedagógicas da escola: o dire-
2 - A escola como instituição na França; tor participa das atividades pedagógicas
com as crianças/ as crianças cantam e
3 - As práticas pedagógicas da escola; gesticulam/ a língua oral é objeto de
4 - O papel do diretor da escola. ensino e aprendizagem/ o diretor con-
É possível organizar o grupo que assiste ao fil- versa com a professora que puxou o ca-
me, de forma que cada um preste mais aten- belo de um menino.
ção em um objetivo acima explicitado, z O papel do diretor da escola:sua função
anotando aspectos, para depois poder alimen- pedagógica/ os vários afazeres na escola/
tar a discussão, no momento C. É desejável
o carinho com as crianças/ a participa-
que o assistir ao filme tenha algumas pausas,
em que se retorne a fita em algum episódio ou ção nas instâncias superiores/ sua rela-
que se repitam certos momentos, pois a finali- ção com as famílias, etc
dade de uma atividade como essa é sempre 3 – A forma como o roteiro do filme vai “cos-
educativa e não recreativa apenas. turando” a vida do diretor da escola e seu tra-
balho: Daniel é apresentado como pessoa e
Momento C – Depois do filme
não apenas como profissional/ o diretor tem
1 – Refletir sobre as expectativas que tinham, uma vida modesta com a mulher e o filho dela/
a partir do título e outros indicadores discuti- a origem do diretor também é popular: seu pai
dos no momento A. era mineiro/ sua vida profissional é fonte de
inspiração para escrever e expressar suas dúvi-
2 – Conversar sobre cada objetivo de análise
das, angústias, sonhos/ sua dedicação intensa
do momento B, a partir das anotações feitas
pelo grupo: com o trabalho, etc.

z A relação entre “escola e família”: de 4 – As semelhanças e diferenças entre a realida-


que forma os problemas financeiros das de pedagógica mostrada no filme e a do Brasil:
famílias afetam as crianças na escola/ o - semelhanças: problemas de infra-estrutura da
problema de criança que sofre maus tra- escola/ uma professora mais velha tem nostal-
tos/ a falta de aula prejudica as mães, pois gia da educação de antigamente/escola depre-
precisam trabalhar/ a mãe que mata os dada/ o pai caminhoneiro leva o caminhão
filhos e se suicida/ a porta da escola como para as crianças conhecerem/reuniões burocrá-
lugar de conversa das famílias, que in- ticas que não ajudam/ reuniões pedagógicas
clui seus problemas e dificuldades/ o di- para tratar das questões das crianças/trabalho
retor que vai até a casa de uma das com a oralidade da criança/ser ou não sindi-
crianças para ajudar, etc.
calizado/ festa na escola/ solidariedade das co-
z A escola como instituição na França: o fato legas e diretor, quando a professora deixa de ir
de ser uma escola pública e cooperati- à escola por alguns dias devido à morte da alu-
va/ a inspetoria/ a promoção funcional na Laetitia/a comunidade ajuda na festa;
do diretor por meio de nota/ a relação
entre a escola e a saúde/ a escola e a as- - diferenças: escola pública e cooperativa, com
sistência social/ a reunião do diretor com espaço físico mais adequado, o que nem sem-
as professoras/ o depoimento da profes- pre é realidade brasileira/ inspetor assiste à aula
sora mais velha sobre as diferenças en- do diretor/ atividades pedagógicas do diretor/
tre a escola “ de antes” e a atual escola a pediatra faz trabalho conjunto com a escola/
na França, etc. promoção do diretor, por meio de nota. 133
5- Conversar sobre a atividade final do filme: Títulos dos programas:
crianças organizando a festa junto com o dire-
tor, sua mulher e filho, professoras, comuni- 1. Junto se aprende melhor
dade. As crianças se divertem muito 2. Leitura também é coisa de criança
preparando a festa, especialmente, no traba-
3. Infância, cultura e educação
lho com as tintas.
6- Discutir ainda a linguagem cinematográfi- 4. Saberes que produzem saberes
ca do filme: 5. Para ser cidadão da cultura letrada
- a paisagem francesa, compondo uma espécie 6. Escrita também é coisa de criança
de quadros de pintura, sempre num clima frio,
europeu; 7. O planejamento na prática pedagógica
- músicas leves de fundo; 8. Planejamento: uma atividade é só uma
atividade
- as cenas com as crianças: olhos, sorrisos, vo-
zes compondo o universo infantil e encan- 9. Para aprender a escrever
tando o espectador. 10. Crianças: protagonistas da produção cultural
7- E se os professores/professoras do grupo fi-
Temas: diversidade cultural, avaliação dos
zessem um filme sobre ensino/educação: que
saberes das crianças, planejamento, interação
tema escolheriam? Que roteiro inicial fariam?
Contar com alguém que entende mais do as- e trabalho em colaboração, propostas de pro-
sunto poderia ajudar bastante... Bom traba- dução e leitura das crianças, produções infan-
lho!!! Bom filme!!! tis de diferentes tipos

PROGRAMA LETRA VIVA


VIVA Resenha crítica: uma possibilidade

Acervo do Letra Viva:programas de vídeo pro- Programa: “Saberes que produzem saberes”
postos, a partir de cenas que contemplam as Duração: 30’ e 53’
reflexões de um grupo de professoras da Edu-
Conteúdos: o que sabem e pensam as crian-
cação Infantil e Ensino Fundamental, o que
constitui um importante instrumento de for- ças; como comunicam seus saberes; as propos-
mação, por meio do qual o/a professor(a) pode tas pedagógicas para ampliar os conhecimentos
ampliar suas estratégias didáticas, ao das crianças.
repertoriar outros procedimentos, constituin- O programa selecionado é o segundo episódio
do seu aprendizado, também tendo em vista da série “Letra Viva” cujos temas são os sabe-
o fazer do outro. res das crianças sobre a escrita e quais inter-
Objetivo: refletir sobre práticas de leitura/es- venções pedagógicas são importantes para que
crita e de diferentes linguagens se possa ampliar os conhecimentos dos estu-
dantes a respeito.
Organização do programa:são dez programas em
que professoras de Educação Infantil e Ensino O programa apresenta (como nos demais) um
Fundamental, em contexto de formação con- grupo de professoras de Educação Infantil e
tinuada, enfocam suas práticas pedagógicas, Ensino Fundamental, em situação de formação
tendo como pano de fundo, cenas de sala de continuada, discutindo suas práticas pedagógi-
aula, com professoras e estudantes, em situa- cas. Assim, não é apenas “o que discutem” que
ções de aprendizagem/ensino que são referên- é importante, mas “para quê” e “como” o fa-
134 cias para a discussão do grupo de formação. zem. A situação de formação retratada pode ser
também objeto de nossas reflexões: a uma vez que não é um filme comercial ao qual
“horizontalidade” da conversa das cinco pro- assistimos no cinema ou até mesmo em casa.
fessoras, ou seja, todas têm voz, sem que haja A abordagem, necessariamente, será prepara-
uma hierarquia rígida de coordenação. Outro da, a partir da seleção de aspectos, temas ou
aspecto é a escolha de mostrar “cenas de cenas em que se pára a fita, para que o grupo
aprendizagem explícita”, como objeto de em formação possa discutir, de forma mais
estudo do grupo, com elas mesmas e suas cri- aprofundada, no momento, ou até mesmo,
anças, em situações na escola, ou outras edu- demandando mais pesquisas e estudos, em oca-
cadoras cujas práticas também acabam por siões futuras.
recomendar.
Quanto ao programa “Saberes que produzem
As professoras refletem sobre seu trabalho de saberes”:
forma clara, objetiva e firme, admitindo até
1 – Começar discutindo o título do programa,
mesmo equívocos do passado, como, por exem-
levantando, entre outras, questões, como: que
plo, etiquetar portas, janelas, armários com seus
saberes podem ser esses? como um saber pode
nomes, acreditando que, assim, estavam aju-
dando as crianças a terem contato com a es- produzir outro? Professor(a) ensina estudante
e o inverso também é verdadeiro?
crita, desconsiderando, porém, os sociais da
mesma ou a língua fora dos muros da escola. 2 – Analisar a relação entre a música de Sandra
Perez e Luiz Tati “Já sabe” que abre o progra-
O foco da investigação pedagógica é também ma e o tema do programa. Analisar também os
muito enfatizado, para que o/a professor(a) pos- aspectos não verbais dessa abertura: crianças
sa, cada vez mais, saber olhar, saber compreen- brincando, cantando, conversando, lendo,
der o que realizam as crianças. Nesse sentido, o desenhando.
programa investe na idéia de processo do edu-
3 – Refletir sobre os três grandes temas do pro-
cador que aprende com sua turma, com sua
grama:
prática e com seus pares.
a) o que as crianças sabem e pensam
Roteiro de discussão: outra possibilidade sobre a escrita. Algumas cenas que
Programa: “Saberes que produzem saberes” explicitam esses saberes:

Objetivo: refletir sobre os processos de traba- - criança lê as regras da brincadeira do “Pula


lho pedagógico, levando em conta um mate- elástico”;
rial videográfico. - professora escrevendo na lousa a reprodução
das crianças, a partir de um conto lido e co-
Desenvolvimento do trabalho nhecido delas;
Um bom encaminhamento para trabalhar com - um livro produzido em um projeto com a tur-
os programas da Série “Letra Viva” pode ser ma de uma das professoras do grupo de forma-
organizar os professores/professoras em gru- ção, em que há a integração de várias
pos, para que cada um se responsabilize por linguagens, a partir da das propostas de um
assistir a um programa da série, preparando a “Projeto”;
discussão para os demais, por exemplo, por - professora faz leitura compartilhada com as
meio de um roteiro, como estamos aqui, pro- crianças;
curando fazê-lo. - as escritas de crianças da turma de uma das
Um aspecto importante do trabalho com professoras do grupo de formação, mostradas
vídeos pedagógicos é a forma de abordá-lo, em vídeo e analisadas por elas. 135
b) como as crianças comunicam seus - professoras do grupo mostram seus registros
saberes sobre a escrita. Algumas sobre o que sabem as crianças, por exemplo,
cenas: um registro em forma de uma ficha que traz
dados sócio-econômicos das crianças e suas
- criança lê a própria produção; aprendizagens;
- quando a criança fala também demonstra o - o comentário de uma professora da Univer-
que sabe sobre a escrita/leitura; sidade Federal de Rondônia sobre a necessi-
- criança escreve diferentes textos: lista, repro- dade de investigação do(a) professor(a);
dução de história, piada etc - apresentador finaliza, defendendo que a in-
vestigação é fundamental e isso pode ser feito,
c) o papel de investigação do(a)
por meio de uma observação cuidadosa, aná-
professor(a) sobre o que as crianças
lises e registros sistemáticos.
sabem, para que as propostas pedagó-
gicas sejam mais produtivas. Algumas 4 – Analisar mais detalhadamente a cena em
cenas: que uma das professoras do grupo mostra, em
vídeo, as produções escrita de sua turma e a
- a fala de uma das professoras do grupo em evolução de algumas crianças. Seu trabalho
que enfatiza que para investigar o que sabem explicita a necessidade de articular a apren-
as crianças, o/a professor(a) precisa saber an- dizagem do sistema de escrita e a aprendiza-
tes quais são os seus próprios saberes (daí o tí- gem da linguagem que se escreve (textos e
tulo do programa); gêneros), especialmente por meio de textos
- como e para que se usa a escrita fora da escola, memorizados:
ou seja, seus usos sociais e não apenas escolares; a parlenda “Hoje é domingo”; listas de títulos
- investigação em situações formais ou no co- de Contos de Fadas, de animais, de doces da
tidiano. A necessidade de o registro exercer história “João e Maria”; piadas.
várias funções: síntese, inferência, desenvol- a) Qual é a atitude da professora diante
vimento da prática docente (objeto de outro dessas escritas?
programa da série); b) Como ela as interpreta?
- o apresentador do programa fala que o con- c) Como ela explicita alguns avanços de
texto cultural, os pais e as brincadeiras das cri- algumas crianças?
anças sinalizam seus saberes diferentes; 5 - Para concluir esse momento de trabalho,
- uma das professoras do grupo explicita que é relacionar esse programa aos demais como
necessário saber o que sabem as crianças para forma de compreender a série como um todo.
se poder agir sobre isso;

136
Referências Bibliográficas

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Educação a Distância. 2005.
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137
Ficha Técnica

Coordenação do grupo de trabalho responsável pela elaboração do documento


Jeanete Beauchamp
Sandra Denise Pagel
Aricélia Ribeiro do Nascimento

Grupo de trabalho responsável pela elaboração do documento


Aricélia Ribeiro do Nascimento
Cecília Correia Lima Sobreira de Sampaio
Cleyde de Alencar Tormena
Jeanete Beauchamp
Karina Risek Lopes
Luciana Soares Sargio
Maria Eneida Costa dos Santos
Roberta de Oliveira
Roseana Pereira Mendes
Sandra Denise Pagel
Stela Maris Lagos Oliveira
Telma Maria Moreira
Vania Elichirigoity Barbosa
Vitória Líbia Barreto de Faria

Revisão de texto
Alfredina Nery
Luciana Soares Sargio

Apoio administrativo
Miriam Sampaio de Oliveira
Paulo Alves da Silva

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