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CASA DA ESPERANÇA

Ele já estava acostumado a trabalhar no farol daquela agitada avenida. Embora


fosse um garoto de 9 anos, sua maturidade espiritual era muito superior em
relação aos outros garotos que conviviam com ele e em muitos momentos,
impressionava até os adultos.
Ele possuía uma alegria única, mesmo diante das terríveis provas que a vida lhe
apresentava, filho de pai alcoólatra, já estava acostumado aos maus tratos
sofridos.
Enquanto sua mãe ainda era viva, muitas vezes presenciou as surras que o pai
lhe dava. Em muitos momentos quis fugir e não voltar mais, não compreendia o
motivo de tanto sofrimento, queria poder ter a mesma vida de muitos outros
garotos, que da rua observava, passeando com seus pais.
E quando sua mãe faleceu, jurou para si mesmo, que jamais se entregaria, que
continuaria mantendo a esperança viva, mesmo diante das maiores adversidades
e que lutaria para mudar o seu destino. E era o que fazia a cada manhã, enquanto
passava pelas vielas da favela em que morava, rumo ao seu trabalho.
E como ele trabalhava, tinha o aspecto frágil, porém era apenas a fisionomia, era
dotado de uma inteligência que chamava a atenção, sempre querendo aprender
algo diferente e na maioria das vezes, encantava os passantes com a sua
conversa.
Sonhava um dia se tornar médico, costumava dizer que queria ser um médico
que combateria as doenças do corpo através do amor. Sim, suas conversas
sempre impressionavam pelo alta elevação das palavras pronunciadas.
E assim, a vida seguia o seu curso. Muitas vezes, esse garoto ficou admirando
vitrines de lojas e padarias, desejando desfrutar de tudo aquilo. Mas quando
percebia que a melancolia ia se instalar, dizia para si mesmo: “Calma, logo eu
cresço e mudo o meu futuro”.
E lá ia o menino subir o morro novamente, voltando para casa e rezando para que
o pai estivesse dormindo.
Porém, quando não o encontrava bebendo, o encontrava com alguma mulher e
nessas horas, era obrigado a esperar do lado de fora de casa.
Sua sorte era dona Zilá, sua vizinha que sempre lhe oferecia alguma coisa para
aquecer o estômago enquanto esperava as horas passarem.
Nesses dias, conseguia entrar em casa, apenas altas horas da noite, tomava seu
banho e procurava deitar sem acordar o pai que ressoava ao lado, cheirando a
bebida.
Não conseguia sentir raiva do seu pai, porém, desejava do fundo da alma, acordar
e não mais encontrá-lo, acreditava o quanto isso lhe traria paz e sofria também,
com esse sentimento. Nessas horas, buscava a figura de sua mãe, sempre tão
carinhosa e entre as lágrimas que lhe molhavam a face, pronunciava mentalmente
a prece que sua mãe lhe ensinara. E isso tinha o poder de lhe acalmar a alma. Aí
dormia tranqüilamente...
Um dia ao voltar pra casa, encontrou seu pai completamente fora de si, havia
quebrado os poucos móveis que possuíam, parecia fora de si. Cheirava a bebida,
mas havia também, algo diferente que não conseguia detectar. Apenas percebia
que o pai estava agindo como um verdadeiro animal.
Ele não sabia o que fazer, sentiu medo e antes que o pudesse dar um passo, o pai
o viu e avançou sobre o seu frágil corpo.
Gritou, chorou, implorou, mas nada fez com que o seu pai parasse e depois dos
primeiros socos, de mais nada se lembrou, pois perderá os sentidos.
Quando acordou, apenas encontrou Dona Zilá, ao seu lado, parecendo o seu anjo
da guarda. Ela cuidava de suas feridas e como o seu corpo doía, conseguiu
apenas abraçar a velha senhora e chorar, enquanto Dona Zilá o acariciava como
um filho.
Seu pai havia desaparecido, deixando um rastro de destruição pra trás. E pela
primeira vez em sua vida, o garoto, sentiu uma imensa vontade de abandonar
tudo, de desistir de seus sonhos e se acreditar que a sua vida não tinha o menor
valor.
Sonhava trilhar um novo caminho, mas nenhuma oportunidade lhe surgia, sentia-
se cansado e agora conhecera um lado mais violento ainda de seu pai e temia
pelo seu futuro.
Dona Zilá cuidou da arrumação da casa, lhe trouxe bolo e o aconselhou a
aguardar o retorno do seu pai, sem ódio, que ficasse no seu canto, quieto e Deus
iria lhe proteger, porém, naquela noite o seu pai não retornou e o garoto despertou
com os primeiros raios do dia, sentindo como se um trator o tivesse atropelado.
Nesse dia, decidiu não ir trabalhar e apenas sair a andar pela rua, sem destino,
como a esperar que uma porta se abrisse a sua frente.
Caminhou por horas, não se importando com a fome ou com a dor do corpo,
apenas queria caminhar e fugir de todo o sofrimento.
Não lembrava o garoto alegre que encantava a todos, algo dentro de si estava
ferido e assim continuou a sua caminhada, pegando um ônibus, depois outro e
mais outro.
Quando percebeu, estava num lugar diferente, embora não conhecesse o bairro,
percebeu que estava muito longe de casa e sendo bem sincero, estava perdido,
mas isso não o desesperou, a sensação de perda já o acompanhava desde que
saíra pela manhã de casa.
Sem saber o porquê, parou diante de um grande portão, havia muitas crianças lá
dentro e também alguns adultos, todos pareciam muito felizes. Como já estava
acostumado a ficar admirando através da vitrine, deixou-se ficar em frente ao
portão, admirando a cena. Nisso, nem percebeu quando um senhor se aproximou
e tocou em seu ombro.
- Olá, você não gostaria de comer um belo pedaço de bolo e tomar um
refrigerante?
Mesmo sentindo que não havia necessidade de ter medo, o garoto apenas
abaixou os olhos e encabulado, nada respondeu.
O senhor, percebendo a situação, pegou carinhosamente em suas mãos e o
conduziu para onde se encontravam as outras crianças. E o garoto, mesmo
estando em um lugar estranho, sentia uma voz a lhe dizer para confiar e foi o que
vez.
Não apenas desfrutou de um delicioso lanche, como pode brincar com outros
garotos, estava tão feliz, que nem se lembrou das suas dores físicas. A alegria que
reinava no ambiente o preencheu por completo e pela primeira vez na vida, pode
agir como uma criança, uma criança feliz como sempre sonhou.
Nem viu as horas passarem e quando percebeu, o dia já estava terminando e
novamente o mesmo senhor se aproxima e continua a lhe sorrir. Embora nunca
tivesse visto esse senhor, tinha a sensação de o conhecê-lo há muito tempo e com
isso, sentia segurança de estar em sua companhia.
- Foi uma tarde muito agradável, não é? Não gostaria de conhecer a nossa casa?
E mais uma vez o senhor, percebendo o seu acanhamento, segurou
carinhosamente a sua mão e o conduziu às dependências, apresentando a casa.
A cada cômodo que entravam, o menino ficava encantando pelo ambiente que
surgia a sua frente, sentia uma imensa harmonia, jamais antes sentida. E
atentamente ouvia a explicação do senhor, de que aquela era uma casa de
caridade, que auxiliava crianças carentes, fornecendo alimentação, estudo, roupas
e acima de tudo amor.
Todos os trabalhadores eram voluntários e mesmo os recursos sendo escassos,
conseguiam cuidar atualmente de 32 crianças, sendo que a maioria morava na
própria casa desde bebês, abandonados pelos pais, alguns vinham à casa receber
ajuda e aprendizado, mas a noite, voltavam para suas famílias e também haviam
aqueles que fugiram da violência de seus próprios lares.
Ao ouvir isso, o garoto, como recordando de sua vida, desatou a chorar, sendo
imediatamente amparado pelo senhor. E quando conseguiu se acalmar, narrou
sua própria história.
- Meu querido, Deus sempre sabe o que faz. Nada em nossa vida, acontece por
acaso, porém, jamais estamos sozinhos, o Pai está sempre ao nosso lado.
Conhece a história de Jesus?
Como o garoto, conhecia muito pouco, o senhor narrou algumas passagens e
finalizou dizendo:
- O Mestre padeceu as maiores provações, mas jamais desanimou, mesmo entre
espinhos, conservou o amor e enquanto era crucificado, implorou que o Pai nos
perdoasse, porque não sabia o que fazíamos.
- O Mestre nos amou e nos ama muito, tenha certeza que a Sua figura está entre
nós. E como lhe disse, nada nessa vida acontece por acaso, cada dor vivida, nos
ajuda a evoluir espiritualmente, a resgatar erros do passado e a seguir o nosso
caminho.
Como o menino se mostrava fascinado pelos ensinamentos que se
abriam a sua frente, o senhor continuou:
- Muito dos sofrimentos que passamos e não compreendemos, são o caminho
utilizado pelo Pai, para que nosso Espírito possa evoluir e seguir a sua jornada.
Mas acredite, jamais ficamos sem o socorro da espiritualidade, nossos amigos
espirituais, estão sempre por perto.
- Amigos espirituais?
- Sim, podemos chamá-los de anjo da guarda. Já percebeu que quando você está
triste ou desesperado e faz uma prece sincera, pedindo ajuda, nunca fica sem
resposta?
- Sei sim, em muitos momentos, a Dona Zilá foi esse anjo pra mim.
- Sim, a espiritualidade se incumbiu de fazer com que ela se aproximasse.
- Espiritualidade?
- Espiritualidade sim, é... , pelo jeito temos muito aprendizado, em breve você
compreenderá o que é espiritismo.
- Espiritismo?
- Sim, não se preocupe, tudo tem o seu tempo, muitos serão os aprendizados.....
.......
Sim, muitos foram os aprendizados assimilados por aquele garoto, os anos
passaram e hoje o garoto se transformara em um homem. Realizara o seu sonho
de se tornar um médico, mas jamais abandonara aquela casa que o recebera
com muito amor. E naquela manhã, ele estava olhando as crianças brincarem no
jardim e relembrando o dia quando adentrou aquele portão.
Quanta coisa mudara em sua vida. Quantos ensinamentos vivenciados. O senhor
que lhe estendera a mão, já não estava mais fisicamente entre eles e agora era
sua responsabilidade cuidar pela manutenção da casa, mas não fazia disso uma
obrigação, desempenhava com amor e alegria a sua função. Ansiava levar a
muitos, a mesma esperança que um dia conheceu.
Outro fato, também lhe comovia, acabara de receber notícias do seu pai, que
durante anos, havia desaparecido e agora se encontrava doente num leito de
hospital. Seu coração batia acelerado ,diante do reencontro, na verdade, não
sabia como iria reagir, mas precisava resolver essa situação.
Antes de sair rumo ao hospital, recolheu-se em seu quarto e fez uma prece,
sentindo que uma imensa luz o envolvia e o encorajava.
Confiante saiu em direção ao hospital e ao chegar lá, percebeu que seu coração
batia mais forte.
Foi encaminhado a um corredor, onde se inalava um forte odor, parou em frente a
um quarto, onde haviam muitos leitos e num deles havia um senhor, de olhos fixos
na janela e cuja fisionomia estava abatida. O corpo sofria os maus tratos
provocados por muitos abusos.
Seu coração disparou, reconhecera, mesmo bem mais envelhecido, seu pai e uma
forte emoção lhe dominou, aproximou-se do leito, sem saber o que dizer ou se
seria reconhecido e quando estava de frente a cama, o senhor, como que por
aviso, virou-se e o encarou-o, porém, seu olhar não continha nenhuma raiva.
Ficaram se olhando por alguns instantes, até que sem que palavras fossem
necessárias, o senhor balbuciou:
- Meu filho, é o meu filho.
Palavras realmente não seriam necessárias, porque ambos trocaram
pela primeira vez em suas vidas, um longo e carinhoso abraço.
Não houve espaço para ressentimentos, ou cobranças, apenas o amor reinava.
Era como se os papéis tivessem se invertido, o pai violento de outrora,
assemelhava-se a um garoto frágil e enquanto chorava sem vergonha, abraçado
ao filho, lhe perdia perdão. O filho também chorava e buscava, com seus braços
aquecer aquele espírito sofredor.
Agora compreendera que ambos reencarnaram para devidos resgates que se
faziam necessários, que tudo pelo qual passarão era necessário e que o momento
que ambos hoje viviam, selava com amor as suas vidas.
Permaneceram ainda por muito tempo abraçados, agradecidos a Deus, pela
oportunidade de viverem esse momento.
E naquela tarde, quando o jovem, deixou as dependências do hospital, sentia
como se um peso saísse de suas costas, não guardava mágoa em seu coração e
faria o que pudesse para aproveitar ao máximo o tempo em que ambos ainda
ficariam juntos nessa existência.
Ao volante fez uma prece de agradecimento a espiritualidade e sentiu como se
uma suave música ecoasse pelo ar.
E com essa sensação, retornou a Casa da Esperança, afinal ainda havia muita
esperança para ser semeada pelo caminho....

Sônia Carvalho
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