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A epistemologia narrativa
Abstract This study aims to discuss the nar- Resumo Este trabalho objetiva contribuir pa-
rative epistemology contained in the medical ra a discussão acerca das características nar-
practice. It was based upon a bibliographic re- rativas do discurso clínico. Para tanto parte de
view and a semiotic analysis of medical charts uma revisão bibliográfica e da análise semió-
belonging to The Medical Genetic Center José tica de prontuários do Centro de Genética Mé-
Carlos Cabral de Almeida/Genetic Depart- dica José Carlos Cabral de Almeida, do Depar-
ment/Fernandes Figueira Institute, a mater- tamento de Genética, do Instituto Fernandes
nal-infant care unity of The Oswaldo Cruz Figueira, unidade materno-infantil da Fun-
Foundation. All the analysed charts referred dação Oswaldo Cruz. Todos os prontuários uti-
to children diagnosed with Down syndrome lizados são referentes a portadores da síndrome
that are being or were attended in the Down’s de Down atendidos no Ambulatório Especia-
Syndrome Outpatient of the above cited uni- lizado de Síndrome de Down da referida uni-
ty. The article appraises: the question con- dade. O artigo aborda: a questão da possível
cerning the possible opposition between nar- oposição entre narrativa e ciência; a apresen-
rative and science; a review of multiple authors tação dos principais autores e de seus traba-
and their works about narrative and medical lhos que versam sobre narrativa e conhecimen-
knowledge; the narrative epistemology con- to médico; a exemplificação da epistemologia
tained in the clinical discourse, using as ex- narrativa embutida no discurso médico, via a
ample of such assumption one chart and one apresentação de um prontuário, assim como
pedigree. The conclusion highlights how nar- de um heredograma. A conclusão enfatiza a
rative is important to the process of diagnosis importância da narrativa para o processo de
and treatment, and affirms the construction diagnose e tratamento, assim como a constru-
1 Centro de Genética of a plot, by the physician, where biological, ção de um enredo por parte do médico onde se
Médica José Carlos Cabral
de Almeida, Departamento
social and cultural interactions make them- fazem presentes complexas interações biológi-
de Genética, Instituto selves present. cas, culturais e sociais.
Fernandes Figueira/ Key words Medicine, Narrative, Medical dis- Palavras-chave Medicina, Narrativa, Dis-
Fiocruz. Av. Rui Barbosa
716, Flamengo, 22250-020
course, Down syndrome curso médico, Síndrome de Down
Rio de Janeiro RJ.
oscarmc@unisys.com.br
2 Instituto de Medicina
Social,Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
kenneth@uerj.br
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Cardoso, M. H. C. A; Camargo Jr., K. R. & Llerena Jr, J. C.
mo europeu, deram lugar a novos tipos de desor- mente doenças diagnosticadas, que são plena-
dem, inseguranças e incertezas e, concomitan- mente compreendidas na sua progressão fisio-
temente, a novas asserções de fronteiras identi- lógica, operam desta maneira, isto é, tomam um
ficatórias. rumo esperado, só que, às vezes, este rumo é
A atomização das pessoas em identidades modificado por um caso individual.
étnicas em conflitos, segundo ela, emparelha-se Ela conclui, numa espécie de retorno ao
à fragmentação do sistema de assistência médi- ponto de partida, sublinhando que é o medo do
ca à saúde em frias “linhas de produção”, da pro- contágio pelo “Outro” que, hoje, todos temem.
fissão médica em subespecialidades e do corpo E esse temor atiça o fogo repressivo das lingua-
humano em sistemas de órgãos. Ao invés de mo- gens do corpo e aquelas, do corpo político. A
ver-se no sentido de uma compreensão mais analogia se restabelece e o círculo se fecha.
unificada de psyche e soma, a organização supe- Hunter (1991), por sua vez, toma como pon-
respecializada dos profissionais médicos traba- to de partida para seu trabalho, a articulação en-
lha na direção oposta. Entretanto não é a defesa tre literatura e medicina. Sua ênfase recai sobre
de um “idealismo holístico” que impulsiona o a característica eminentemente hermenêutica
trabalho de Epstein, mas a necessidade episte- embutida na construção do saber médico, via a
mológica de mostrar as influências culturais na similitude do que chama de “círculo diagnósti-
linguagem médica e de como as concepções por co” com o “círculo hermenêutico” proposto por
ela veiculadas pressionam as ideologias sociais, Dilthey (Hunter, 1991). Seu “Sherlock-médico”,
estabelecendo uma certeza acerca de uma defi- poder-se-ia dizer, deveria ser um hermeneuta.
nição objetiva do que é “normal” no que tange Para Hunter, indiscutivelmente, medicina
ao corpo humano. não é uma ciência, mas, sim, uma atividade ra-
Nesse sentido, ela centra-se nas histórias cional, utilizadora da ciência, situada entre di-
médicas que os clínicos fazem de seus pacien- versos níveis disciplinares, e interpretativa. Por
tes, para mostrar que elas, tanto quanto as et- isso, segundo ela, para explicar o que é a medici-
nográficas, ficcionais ou históricas surgem por na e melhor definir sua racionalidade, a litera-
determinadas razões e exigem práticas interpre- tura fornece uma analogia metodológica mais
tativas. Embora o corpo humano possa ser des- frutífera do que as ciências naturais e sociais.
crito como um conjunto de órgãos, fluidos e Porque não só a metáfora da leitura utilizada
processos fisiológicos, ele é mais que isso, deven- para a interpretação do estado do doente é uma
do, no seu entender, ser estudado como uma su- metáfora literária, mas, sobretudo, porque a me-
perfície cultural sobre a qual se mapearam ex- dicina já possui algo em comum com a literatu-
pectativas sociais e significados ideológicos. ra e os estudos literários: o uso da linguagem fi-
Para Epstein, os relatos de casos médicos gurativa e da organização narrativa dos eventos
operacionalizam as características convencio- da doença. A narrativa do caso médico, afirma,
nais dos escritos históricos e literários, isto é, da é central para a epistemologia e prática da me-
narrativa. Em conseqüência, ela afirma que o dicina; é um constructo desta epistemologia, ne-
sucesso ou fracasso do relato clínico, na qualida- cessário à investigação racional num domínio
de de uma descrição oficial da etiologia e evo- onde a experiência subjetiva (e relatos subjetivos
lução da doença, constitui um paradigma geral daquela experiência por outra pessoa) são os da-
para as narrativas sobre o corpo humano. Po- dos básicos e originais da assistência clínica.
rém, eles não podem e nem devem ser lidos co- A narração médica da história do paciente,
mo uma descrição analítica, porque sempre im- tal como a de Sherlock Holmes ao reconstruir
plicitamente interpretam no processo de sua es- um crime, de acordo com a autora, é a incorpo-
trutura narrativa. Ao verter a experiência do do- ração de uma hipótese diagnóstica, isto é, tam-
ente num texto clínico, o médico também tem bém a reconstrução daquilo que aconteceu de
que interpretar esta experiência a fim de produ- errado. Ela utiliza a apresentação de caso, numa
zir uma explanação da diagnose, assim como sessão clínica, para referendar essa analogia, di-
persuadir seus leitores de que o diagnóstico está zendo que esta se ordena de acordo com uma
correto na base não só da evidência, mas tam- conclusão não declarada e prossegue reportan-
bém do apelo retórico: as maneiras pelas quais do “negações” e detalhes “não percebidos”, con-
as rupturas na experiência foram incluídas e em duzindo a audiência além das possibilidades
quais reconstruções construiu-se um quadro clí- que foram descartadas, para centrar o foco nos
nico cujos mistérios foram resolvidos (Epstein, sinais de uma conclusiva e lógica diagnose. As-
1995). É importante sinalizar, diz ela, que so- sim, a experimentação estaria vedada tanto ao
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específica de produção sígnica; ele assinala ape- O cariótipo remete também para a idéia de
nas uma modalidade de produção ou interpre- símbolo. Ele envia não só para o emparelhar das
tação textual. Conforme assinala Eco (1994) o características herdadas do pai e mãe, como
modo simbólico pressupõe um processo de “in- para a imagem do acasalamento. Nele está pois
venção” aplicado a um “reconhecimento”. presente a “teologia” do nascimento, a necessi-
Como em qualquer outra doença cromos- dade do par homem/mulher para a reprodução
sômica, na síndrome de Down, os dados fami- da espécie. Na célula os cromossomos aparecem,
liares são de fundamental importância à indica- tal como os recursos tecnológicos (cultura ce-
ção da investigação citogenética, com vistas a lular, técnicas de bandeamento, de hibridização
esclarecer o cariótipo. in situ, microscopia eletrônica, fotomicrografia
Embora os especialistas estejam acostuma- e etc.) os “revelam”. Eles compõem um texto
dos a analisar as dispersões cromossômicas di- onde estão escritos os sinais da hereditariedade
retamente ao microscópio, por vezes, para me- e da individualidade. São partes constitutivas da
lhor sistematizar e pesquisar processos que po- materialidade dos corpos, expressando-se via
dem ser responsáveis por determinadas anoma- suas superfícies. Já o ideograma, utilizando uma
lias genéticas, costumam proceder ao recorte imagem análoga a do bastão (figura 2), faz “uso”
dos cromossomos de uma fotomicrografia e ar- do primeiro texto – os cromossomos como apa-
ranjá-los em pares segundo uma classificação recem no cariótipo –, como se cada segmento
padronizada, internacionalmente acordada. A contivesse toda a verdade, sem contudo, como
figura que se forma é o cariótipo (figura 1), ter- é óbvio, permitir a qualquer um enunciar o que
mo também usado para designar o conjunto quiser a seu respeito. O pensamento da ciência
dos cromossomos de um indivíduo ou de uma é a autoridade que preside a interpretação e pro-
espécie (Thompson et al., 1993). duz o texto, nele buscando a legitimidade de
Atualmente, o cariótipo é encarado como suas assunções. E nesse ponto reencontra-se a
integrante obrigatório do processo de diagnose proposição de Eco (1994): trata-se de um pro-
da doença (Cunningham, 1996; Stratford & cesso de “invenção” aplicado a um “reconheci-
Gunn, 1996; Selikowitz, 1997; Pueschel, 1998; mento”.
Hassold & Patterson, 1999), apesar deste ser, Os dados familiares também são dispostos
claramente, na imensa maioria dos casos, feito num diagrama que, em todos os prontuários
a partir do exame físico do paciente. examinados, precede as anotações referentes aos
dados físicos pessoais da criança (peso, altura,
perímetro encefálico), a história da gestação,
parto e da evolução da doença. É o heredogra-
Figura 1 ma composto por símbolos padronizados, onde
Metáfase com cromossomos se tem a utilização de um texto, com base nou-
tro – a história familiar do paciente, no qual,
mais uma vez, é a autoridade do especialista
quem dita aquilo que ele deve conter e como
deve ser lido.
Os “símbolos” representam objetos ou rela-
ções abstratas, como as fórmulas lógicas, quí-
micas, algébricas e o diagrama. Se emprega-se a
palavra criança, alterando a ordenação das le-
tras que a formam, o termo fica irreconhecível.
Mas se ela for escrita ou pronunciada de dife-
rentes modos (escrita em letra de forma ou cur-
siva, por exemplo, assim como pronunciada de
acordo com o acento regional), a variedade das
formas de expressão não transforma a compre-
ensão do conteúdo, pelo menos no nível mais
elementar de significação. Já com o diagrama
as operações encetadas na expressão modifi-
cam o conteúdo e, variando de acordo com as
regras, o resultado fornece informações novas
sobre este. Eles não são naturais, no sentido de
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Figura 3
Árvore genealógica da família de Macabeus
Mattathias
John Hyrcanus
d. 104 B.C.
Aristobulus I Alexander
Alexandra
d. 103 B.C. d. 76B.C.
Hyrcanus II Aristobulus II
d. 30 B.C. d. 49 B.C.
ciente, muito embora ambas se refiram à mesma se nele que os casos médicos são apresentados,
doença. A história que os pacientes narram é o rela- quer oralmente ou escritos em revistas especia-
to originário e motivado que eles (ou os responsá- lizadas. É nele que se encontra o enredo da do-
veis por eles) fazem de suas experiências de adoeci- ença e do tratamento, cujo autor é basicamente
mento; a do médico é aquela construída a partir de o médico. Nesse texto, imagens, números, grá-
“recortes” das narrativas que lhes foram apresenta- ficos se misturam. Não parece, tanto quanto o
das, salientando as partes da história pessoal e fami- heredograma que dele faz parte, constituir-se
liar do doente que lhes interessam e, também, a par- numa narração, no entanto, neles o ato de nar-
tir dos sinais e sintomas das enfermidades nos cor- rar é meticuloso, cuidadoso e revelador não só
pos. A primeira diz respeito aos efeitos da enfermi- dos fatos físicos, como Hunter (1991) aponta,
dade numa vida e é uma cronologia simples, com mas também da inserção social, dos hábitos ali-
uma etiologia implícita dos acontecimentos da do- mentares, da maneira de carrear as queixas e/
ença; a segunda pode não ser estritamente cronológi- ou sintomas. Ele é minimalista, econômico, mas
ca, porém começando com o passado bem próximo, indubitavelmente individualizado e, por isso,
lança-se ao futuro e conta o processo de diagnose. não é um texto atemporal ou supra-histórico.
O prontuário médico, por outro lado, é o depo- Nele encontram-se dados relativos à moradia,
sitório desta primeira narrativa médica. É com ba- existência ou não de famílias grandes, ocorrên-
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31a 27a
7a 6a 6a 9/
V
cias na evolução da doença, progressos e retro- pírico, no qual o ato de narrar não se reporta aos
cessos no desenvolvimento da enfermidade, nas- ditames propugnados pelos procedimentos ci-
cimento, morte. Os fatos são dispostos e dão entíficos da história, mas nem por isso deixa de
conta de rupturas e continuidades, estabelecen- ser menos verdadeira.
do relações causais entre umas e outras, nem João nasceu no dia 16 de fevereiro de 1996,
que seja pelo indício de mudanças de medica- pesando 3,350 kg e medindo 52cm. Sua mãe ha-
ção e/ou requisição de novos exames. via tido duas filhas antes dele. A mais velha ti-
Não se pretende afirmar que todos os pron- nha 16 anos e a mais nova 12. Porém sua mãe já
tuários são iguais, até porque nem os pacientes, havia ficado grávida e tido dois abortos espontâ-
nem os médicos, nem as doenças, nem as insti- neos. Suas duas irmãs eram filhas do primeiro
tuições e as circunstâncias e finalidades são as casamento e ele do segundo. Sua mãe tinha 37
mesmas. Todavia, neles a epistemologia narra- anos e seu pai 28. Os dois haviam se separado lo-
tiva, embutida no processo de diagnose e de to- go no início de sua gestação. Sua mãe afirmava
mada de decisão, se exemplifica, mostrando o que em função disso havia tido sangramento e ti-
quanto ela é formadora da prática clínica. vera que tomar Dactil OB. Ela fizera várias vezes
O que se escreve a seguir, sem dúvidas, é o bHCG sempre com resultado negativo. Confir-
uma metanarrativa. Ela é, uma espécie de histó- mada a gravidez fez o pré-natal completo. João
ria fatual, do diagnóstico e da evolução de uma nasceu a termo e de parto cesáreo. A pediatra que
criança com síndrome de Down durante um o atendeu, encaminhou-o a uma neuropediatra e
período que vai de antes de seu nascimento até esta ao observar um quadro de hipotonia genera-
quase ao final de seu primeiro ano de vida. Esta lizada, presença da prega simiesca palmar e im-
história construiu-se em cima dos dados de um plantação capilar deficiente, encaminhou-o para
prontuário (figura 5), sendo os eventos enca- o Ambulatório de Síndrome de Down, do Depar-
deados seguindo a mesma ordenação pela qual tamento de Genética do Instituto Fernandes Fi-
foram anotados. A única informação inserida fo- gueira requisitando o cariótipo para confirmar o
ra da ordem dada pela notificação médica é a da diagnóstico de síndrome de Down.
razão da consulta, uma vez que ela estava anexa- A primeira consulta de João foi no dia 28 de
da ao prontuário, mas também contando uma junho de 1996. O exame revelou presença de epi-
história. Tratava-se de um breve relato de uma canto, redundância de pele cervical incluindo a
neurologista, dando conta do encaminhamento porção anterior do pescoço, prega simiesca e arco
ao Ambulatório de Síndrome de Down. É uma tibial plantar. Diante de tais evidências o diag-
história dos acontecimentos, tingida pelo em- nóstico foi confirmado. Recomendou-se: abertura
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Cardoso, M. H. C. A; Camargo Jr., K. R. & Llerena Jr, J. C.
Figura 5
Prontuário
de prontuário para torná-lo usuário do Ambula- do uso de Bactrim. De resto, encontrava-se sau-
tório, fisioterapia, estudo ecocardiográfico, ultra- dável, engatinhava para trás e começava a falar
sonografia abdominal e, também, a análise do ca- ‘papai’ e ‘mamãe’. Ao exame: ótimo.
riótipo. Narrou-se o prontuário de João, tendo por
Ao sair, a mãe de João não o levou até o servi- base a narração do médico que, por sua vez,
ço social, mas retornou com ele à consulta seguin- embasou-se na narrativa feita pela mãe dele.
te que havia sido marcada para o dia 27 de no- Apesar de todos os múltiplos níveis narrativos,
vembro. Ele havia aumentado de peso, estava em dos objetivos e visões desiguais de mundo, das
bom estado geral e o ecocardiograma era compa- formas distintas da narração, os procedimen-
tível com CIA pequena, tipo fossa oval. Ele já es- tos médicos, históricos e ficcionais, visualizam
tava sendo estimulado, fazendo fisioterapia e fo- e apresentam fenômenos da vida humana. Con-
noaudiologia na ABBR. Estava também sendo substanciam-se em matrizes de discursos, nas
acompanhado por uma psicóloga. Já havia firma- quais o relato caracteriza-se por ser ao mesmo
do a cabeça aos 5 meses e começava a querer sen- tempo figurativo – porque comporta persona-
tar. Foi, então, encaminhado para o serviço de gens que levam a cabo ações –, e inscrito dentro
cardiologia, reforçando-se a necessidade de ultra- de coordenadas espaciais e temporais – predo-
sonografia abdominal. minando a última sobre a primeira (Cardoso,
Quando João voltou, passado pouco mais de 1997).
dois meses, ia fazer um ano. Seu cariótipo ainda
não havia ficado pronto. O ecocardiograma con-
firmou FO patente e a ultra-sonografia foi consi- Doença e narrativa
derada normal. Durante o intervalo entre as duas
consultas havia sofrido uma internação acompa- Desde finais da década de 1960 as narrativas de
nhada pelo pediatra e, atualmente, estava fazen- doenças (illness narratives) assumiram papel
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história, é do presente para o passado e deste dor e do médico não se confunde com o ato de
para o futuro. vontade que cria a ficção. História e medicina
Ao exercitarem a função de produzir histó- estão em aberto, sempre passíveis de revisões. E
rias, tanto o historiador como o médico, assu- quem encaminha estas revisões são homens/
mem a narrativa como uma modalidade de es- mulheres, médicos(as) e historiadores(as), que
crita sobre a história, incluindo aí, os elementos examinam, interpretam, julgam, argumentam,
imaginários que penetram qualquer narração. através de diferenciados métodos, teorias e ca-
Isto, pelo contrário, não implica dizer que his- tegorias. Entretanto, espera-se, com modéstia,
tória e medicina são a mesma coisa e que am- isto é, sem a desmesura de quem pretende pro-
bas são ficção, mas tão somente que, se nas duas nunciar a palavra final, que a todos os demais
há a construção de um enredo, porque relacio- silencia em nome da verdade total e absoluta.
nam elementos dispersos e ligam eventos e/ou José Américo Pessanha (1988), ao discutir o
acontecimentos isolados, elas assim o fazem de caráter não ficcional da história, porém pon-
forma constrangida, construindo sua objetivi- tuando seu conteúdo narrativo, diz: Porque de
dade que é permanentemente confrontada e fato existiu, Napoleão se distingue de James Bond.
reformulada por novas e complexas interações Mas, o historiador que escreve sobre ele, organi-
biológicas, culturais, sociais, ecológicas... A zando e relacionando informações, interligando
criatividade é fundamental a qualquer posicio- “instantâneos”, montando seqüências e elos cau-
namento que se pretenda científico e os cientis- sais, inevitavelmente cria, imagina, fabula: é
tas não têm como predicado estar a serviço da narrador.
verdade, portanto não a traem. Todavia, o seu Os relatos históricos, tal como os médicos,
problema é com a história. E a verdade, no fun- não podem depender somente de seus supostos
do, é aquilo que a história faz (Stengers, 1997). conteúdos fatuais, pois as explicações que os
A historiografia da história e a história da homens produzem sobre si, os outros e as coi-
medicina demonstram que ambas buscam o sas são, na maioria das vezes, mais determina-
argumento mais forte e o mais persuasivo, po- das pelo que deixam de fora do que por aquilo
rém nunca vão encontrar o derradeiro. A obje- que nelas sobressai. E acresça-se, influenciadas
tividade não lhes é dada, mas sempre construí- pela auto-imagem que cada um faz de si; pela
da e (re)construída, pela confrontação dos tes- exigência de procurar por um sentido, portan-
temunhos que arrolam. O arbítrio do historia- to da “fábula” como forma de criação.
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