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FACULDADE DE FILOSOFIA
FUNCHAL
1995
O mito não é uma pré-história; é uma
realidade intemporal, que se repete na
história. O facto de o nosso século en-
contrar de novo sentido no mito, conta-se
entre os bons prenúncios. Também hoje
o ser humano é arrastado por vigorosas
potências até ao alto mar, até ao fundo do
deserto e do seu mundo de máscaras. A
viagem perderá o seu carácter ameaçador,
se ele se lembrar da sua força divina.
Ernst Jünger
0. Introdução
1
natureza, especialmente a humana, continua a mostrar-se rebelde ao nosso
domínio. A história deixou de ter um sentido definido, e por vezes temos a
sensação de andar às voltas, arrastados em turbilhão. Hoje, os fantasmas dos
velhos deuses voltam a atormentar os nossos sonhos. Sentimos de novo nostal-
gia do centro, do paraíso perdido, e não há mitos suficientes, antigos ou novos,
que saciem a nossa sede.
Sentimos de novo — continuamos a sentir — nós homens do Ocidente, da
razão, da filosofia — necessidade de absoluto, de eternidade, de transcendência,
numa palavra, de sagrado, mas experimentamos simultaneamente a aguda cons-
ciência de que as redes que, através da história, fomos lançando em sua procura
vieram vazias. No Ocidente o sagrado tinha um nome, Deus, mas acabámos pro-
clamando a sua morte. Todos sabemos quão difícil é ressuscitar um cadáver, e
não é fácil, no contexto do pensamento contemporâneo, retomar algo como, por
exemplo, as provas racionais da existência de Deus. Por aqui os caminhos pare-
cem barrados.
Esgotado o discurso filosófico, a linguagem simbólica de que o mito é um
caso particular aparece-nos como aquele dizer originário que nos pode pôr de
novo em contacto mais íntimo com o cerne do real. No dizer de Mircea Eliade,
que tomaremos como nossa hipótese condutora, o símbolo manifesta o sagrado;
ele é importante não
2
Todavia, não nos é possível retomar a fé dos homens simples, que convivem
directa e imediatamente com os símbolos do sagrado. A nossa memória imensa,
para utilizar um termo de Paul Ricœur 3, no-lo impede; não podemos fazer tábua
rasa de mais de dois mil anos de história da racionalidade, e muito menos da mul-
tiplicidade das crenças e dos universos culturais, ou simbólicos, que a nossa ex-
pansão pelo planeta permitiu descobrir, e que prefiguram modos diversos e dís-
pares de dizer o sagrado. Se reconhecemos no mito e no símbolo uma possível
abertura para o Transcendente, reconhecemos também que o seu acesso nos está
dificultado, que ele só pode ser feito através de uma exegese e de duma herme-
nêutica que aproximem o dizer do mito da nossa compreensão. Este aproximar
depende também duma espécie de humilhação desta compreensão, filosófica e
judaico-cristã, isto é ocidental, demasiado habituada a considerar tudo do seu
próprio ponto de vista considerado como superior. Teremos que partir da hipó-
tese de que todos os mitos se equivalem à partida em valor, e de que nada tam-
bém permite colocar, a priori, o discurso filosófico a acima dos outros discursos,
embora, paradoxalmente, a nossa compreensão se faça a partir dele. Parece-nos
que estas condições são essenciais para que a interpretação dos mitos se torne
factor de transmutação da pessoa que recebe, interpreta e assimila a sua revela-
ção 4, isto é, seja factor de formação e não se limite a um aumento de informação.
O que acabámos de dizer de algum modo esboça o percurso que preten-
demos seguir, assim como o porquê do pensador escolhido para nos ajudar, Paul
Ricœur. Com efeito, a sua obra tem o carácter de uma verdadeira suma filosófica
do nosso tempo, congregando correntes de todas as épocas da história da filo-
sofia, e nesse sentido ele é um excelente representante da cultura ocidental e do
seu racionalismo crítico. Depois de passar pela fenomenologia husserliana, má-
3
xima representante de um pensamento sem pressupostos, completamente trans-
parente a si próprio, Ricœur sente necessidade, em dado momento do seu per-
curso filosófico, de recorrer aos mitos e aos símbolos, como reveladores de uma
dimensão da experiência que, sem eles, permaneceria fechada e dissimulada5. A
dimensão assim revelada pelos símbolos e mitos é a do mal, o qual representa
para Ricœur, que dessa maneira vai ao encontro de Mircea Eliade, “a experiên-
cia crítica por excelência do sagrado”6. Através da análise dos símbolos e mitos
do mal é a aventura espiritual da humanidade ocidental, o seu modo próprio de
relação com o sagrado, que é traçada nas obras onde Ricœur trata especialmente
do tema: La symbolique du mal — segunda parte de Finitude et culpabilité —
e alguns dos ensaios reunidos em O conflito das interpretações e Lectures 3.
Aux frontières de la philosophie, que serão a base do nosso trabalho.
Todavia, a humanidade ocidental não foi a única a se lançar numa demanda
do sagrado, e em certos aspectos o seu caso está mesmo longe de ser exemplar,
visto a sua história ser em grande parte a história de um progressivo afastamento
do sagrado, a ponto de ser talvez a única cultura a se definir como essencial-
mente laica. Neste aspecto, pareceu-nos que a reflexão de Ricœur sobre os sím-
bolos e mitos da área semítico-helénica, berço da cultura ocidental, deveria ser
complementada através do confronto com mitos de um universo cultural estra-
nho, como sejam por exemplo os da Índia. Num certo sentido, trata-se de pro-
longar o próprio trabalho de Ricœur, que procurou aproximar mitos de áreas cul-
turais diversas, como a Grécia, a Palestina e a Mesopotâmia, estabelecendo
mesmo um ciclo, em que mitos à partida divergentes se complementavam e ilumi-
navam mutuamente 7. Pensamos que este passo é necessário, não só numa pers-
pectiva de encontro com o primordial, com o «arcaico», no sentido da arché
4
grega, mas também porque está em causa uma das grandes questões sobre o fu-
turo da humanidade na era das comunicações globais: o problema da aproxima-
ção e do conflito entre culturas, pois na base de cada cultura encontra-se sempre
um conjunto de mitos fundadores.8 Até que ponto será possível traduzir os mitos
e, portanto, as vivências fundamentais de uma cultura em termos dos mitos e vi-
vências de outra cultura? Da resposta a esta questão depende o aparecimento de
um novo humanismo, caracterizado simultaneamente pelo alargamento do
horizonte cultural ocidental — talvez fosse mais próprio falar da sua transmuta-
ção — e por uma verdadeira aproximação entre as diversas culturas que formam
no seu conjunto o panorama espiritual do nosso mundo.
Como ajuda para este passo fora do mundo ocidental fomos buscar Mircea
Eliade, um nome que dispensa, tal como o de Paul Ricœur, apresentações. A sua
presença não constitui aqui um contraponto ao pensamento de Ricœur, e nesse
aspecto não será objecto de um tratamento autónomo. Trata-se sobretudo de
uma fonte conceituada de informações sobre universos culturais estranhos ao
Ocidente, que pretendemos usar para completar a reflexão ricœuriana acerca do
universo dos mitos e do seu dizer sobre o ser do homem e do mundo.
8“A função da classe particular de lendas que são os mitos […] é a de exprimir
dramaticamente a ideologia de que vive a sociedade, de manter na sua consciência não só
os valores que ela reconhece mas, principalmente, o seu ser e a sua própria estrutura, os
elementos, os vínculos, os equilíbrios, as tensões que a constituem, justificar, no fundo,
as regras e as práticas tradicionais sem as quais tudo o que é seu se dispersaria.” (Georges
DUMÉZIL, Heur et malheur du guerrier, Paris, P.U.F., 1969, p. 11, cit. em Victor
JABOUILLE, Iniciação à ciência dos mitos, pp. 34-35).
5
1. Do símbolo ao mito
6
portante para a compreensão da questão do símbolo, tal como é abordada neste
autor.
Na esteira da tradição teológica judaica e cristã, Ricœur recusa-se a fazer
do mal uma substância ou uma natureza.9 “O mal tem a significação de mal por-
que ele é obra de uma liberdade; eu sou o autor do mal.” 10 O mal não é nada em
si, mas uma relação invertida, uma preferência que não deveria existir, radicando
numa decisão, num acto do homem, ser criado naturalmente bom por Deus.
Todavia, isto não obsta a que seja possível discernir uma certa “realização” do
mal, uma certa presença que de algum modo ultrapassa o campo da mera decisão
pessoal de cada homem concreto. N’O conflito das interpretações, retomando a
teologia paulina da graça, diz Ricœur o seguinte:
7
história com sentido: «quanto mais»; e esta lei de sobreabundância
engloba por sua vez o «graças a» e o «apesar de». Aí está o milagre
do Logos. Dele procede o movimento retrógrado do verdadeiro. Da
maravilha nasce a necessidade que coloca retroactivamente o mal na
luz do ser. Aquilo que, na velha teodiceia, era apenas o expediente do
falso saber, torna-se a inteligência da esperança; a necessidade que
nós procuramos é o símbolo racional mais alto que esta inteligência da
esperança engendra.11
Apesar do mal, graças ao mal, com o mal, o Princípio das coisas faz bem;
quanto mais abunda o mal, mais sobreabunda o seu oposto, a graça. Esta justifi-
cação do mal, situada já no fim do percurso através dos mitos e dos símbolos do
mal, é ao mesmo tempo testemunho da sua existência e, de algum modo, defesa
da sua necessidade. Ela situa também, de forma inequívoca, a reflexão de Ricœur
no universo cultural judaico-cristão. Teremos oportunidade de voltar a este as-
pecto.
O texto anterior ao falar do trágico do mal, desse mal sempre já aí, aludia à
sua dimensão cósmica, mundana. “O homem, repetirá por diversas vezes Ricœur,
não começa o mal. Ele encontra-o. Para ele, começar, é continuar”12. Será apenas
através do mito, nomeadamente o mito da queda, que será possível imputar, não
sem ambiguidade, através de Adão, representante exemplar da humanidade, a
origem radical do mal ao homem. Mas mesmo no mito, e aí reside a sua ambi-
guidade, a serpente representa o mal já aí, o mal que o homem continua. Todavia,
na medida em que, de qualquer maneira, dá o seu consentimento ao mal, ini-
ciando-o ou continuando-o, o homem torna-se mau, culpado. De tal modo que
8
é unicamente através da condição actualmente má do coração do
homem que podemos discernir uma condição mais originária que
qualquer maldade: é através do ódio e da luta que podemos perceber
a estrutura intersubjectiva do respeito que constitui a diferença das
consciências; é através do mal-entendido e da mentira que a estrutura
originária da palavra revela a identidade e a alteridade das consciên-
cias; passa-se o mesmo com a tripla exigência de querer, de poder e de
valer, percebidas através da avareza, da tirania e da glória vã.
Resumindo, é sempre «através» do decaído que o originário transpa-
rece.13
9
reza e dos homens, procede um sentimento da absurdeza universal
que convida o homem a duvidar da sua destinação.15
O mal mostra-se nas falsas sínteses, nas totalizações violentas; a escolha dos ter-
mos é aqui significativa. Aquilo que assim se mostra, a vontade má do homem,
nós não temos conceito para pensá-lo. 17
Como ultrapassar este carácter elusivo do mal? Afinal, em que consiste a
experiência do mal? Não é, evidentemente, a experiência do sofrimento, da impo-
tência, de outras limitações próprias da condição humana. O homem é limitado,
falível mesmo, mas a limitação e a falibilidade não são o mal, nem são sequer ma-
les. Ricœur esforça-se por deixar isso bem claro na primeira parte do segundo
10
volume da Philosophie de la volonté, que tem por título, precisamente, L’homme
faillible.18
A experiência do mal, o acesso mais directo que nos é dado à realidade do
mal, é a experiência da culpa. O homem sabe que o mal existe em si, no mais ín-
timo do seu ser, porque se sente culpado, porque, sendo falível, falhou. Todavia,
também esta experiência da culpa não possui um carácter simples e linear. Existe
nela, evidentemente, um fundo emocional, de vivência directa: “a experiência de
que o penitente dá testemunho é uma experiência cega: permanece presa na
ganga da emoção, do medo, da angústia.”19 Mas esta afectividade não se esgota
em si mesma, mas fala, procura objectivar-se através da linguagem: “o testemu-
nho exprime, faz brotar a emoção que sem ele fechar-se-ia sobre si, como uma
impressão da alma; a linguagem é a luz da emoção; pelo testemunho a consciên-
cia de culpa é trazida para a luz da palavra”20; a consciência culpada confessa a
sua culpa. Ao fazê-lo, mostra que a culpabilidade é em si mesma uma noção
complexa, assente numa multiplicidade de estratos que se interpenetram mutua-
mente.
11
mente individualizada e interiorizada; este sentimento de culpabili-
dade remete para uma experiência mais fundamental, a do «pecado»,
que engloba todos os homens e designa a situação real do homem
perante Deus, quer o homem o saiba quer o ignore. É deste pecado
que o mito da queda conta a entrada no mundo; é ele que a especu-
lação sobre o pecado original procura erigir em doutrina. Mas, por
seu lado, o pecado é a correcção e mesmo a revolução duma concep-
ção mais arcaica da falta, a da «mancha» concebida à maneira duma
nódoa que infecta de fora. Culpabilidade, pecado, mancha constituem
assim uma diversidade primitiva na experiência: o sentimento não é
apenas cego enquanto que emocional, ele é equívoco, pesado de
significações múltiplas; é por isso que requer uma segunda vez a
linguagem, a fim de elucidar as crises subterrâneas da consciência da
falta.21
12
reflexão, mas “tem de notável o facto de ser simbólica do princípio ao fim”22,
exigindo uma prévia hermenêutica do símbolo para poder ser apropriada pela
filosofia.
Eis-nos introduzidos em pleno no problema do símbolo.
A filosofia, concebida como ética num sentido lato, isto é, como ciência da
normatividade, parte da situação do homem já decaído. Ela
É o homem que não conhece, ou conhece mal, e que age também mal. Mas o mal
pressupõe o bem, “se eu não compreendesse o «bom», também não compreen-
13
deria o «mau»” 24, e assim o estado de decadência pressupõe um estado ou pos-
sibilidade originária, a partir do qual houve a decadência. Este estado originário,
o ser fundamental do homem, é ainda acessível à filosofia, através da descrição
fenomenológica do querer e do involuntário nesse querer. Todavia,
24Ib., p. 161.
25Ib., p. 27: “La faute n’est pas un élément de l’ontologie fondamentale qui soit
homogène aux autres facteurs que la description pure découvre: motifs, pouvoirs,
conditions et limites. Elle ne peut être pensée que comme irruption, accident, chute. Elle
ne forme pas système avec les possibilités fondamentales contenues dans le vouloir et son
involontaire. Une genèse de la faute n’est pas possible a partir du volontaire ou de
l’involontaire, quoique chacun des traits de ce système circulaire (plaisir, puissance,
coutume, empire, refus, position de soi) constitue une invitation à la faute. Mais la faute
reste un corps étranger dans l’eidétique de l’homme. Il n’y a pas d’intelligibilité de
principe de cette défaillance, au sens où il y a une intelligibilité mutuelle des fonctions
involontaires et volontaires, au sens où leurs essences se complètent dans l’unité
humaine. La faute est l’absurde.”
26Ib., p. 159: “L’énigme dès lors c’est le «saut» lui-même du faillible au déjà déchu;
notre réflexion anthropologique restait en deçà de ce saut, mais l’éthique arrive trop tard;
pour le surprendre, il faudra partir à nouveaux frais, engager une réflexion d’un type
14
analítico, reflexivo da filosofia não consegue penetrar, muito embora se veja
obrigado a reconhecer, pelo testemunho que dela dá um discurso que opera por
meio de símbolos, isto é, um discurso alusivo, sincrético, imagético. Como rela-
cionar estes dois discursos? De que forma pode a filosofia integrar no seu seio,
«compreender», a linguagem do símbolo?
Ricœur sintetizará numa frase a resposta a esta questão: “o símbolo dá que
pensar.” Pesada de consequências, ela implicará o abandono de uma filosofia do
começo absoluto, de uma filosofia sem pressupostos, onde o pensamento seria
transparente a si mesmo. Uma filosofia que aceita o símbolo “parte da linguagem
que já aconteceu, e onde tudo de alguma maneira já foi dito; ela quer ser o pen-
samento com as suas pressuposições”27. N’O conflito das interpretações,
Ricœur acrescentará:
nouveau, portant sur l’aveu que la conscience en fait et sur les symboles du mal dans
lesquels elle exprime cet aveu.”
27Ib., p. 480: “Une méditation sur les symboles part du langage qui a déjà eu lieu,
et où tout a déjà été dit en quelque façon; elle veut être la pensée avec ses
présuppositions.”
28O conflito das interpretações, p. 283.
15
raízes linguísticas e culturais e na problematicidade da sua interpretação.29 Deste
modo,
Por outras palavras, Ricœur assume a sua condição de ocidental, situado e orien-
tado pela conjugação das culturas grega e judaico-cristã. Será esta a justificação
apresentada para limitar a sua investigação sobre a simbólica do mal à área cultu-
ral do Ocidente.
Atingimos aqui um dos pontos críticos deste trabalho. Com efeito, uma das
suas motivações, como já dissemos, é o problema da aproximação e do diálogo
entre culturas, visto na perspectiva do confronto entre as crenças fundamentais
sintetizadas nos mitos. A bem dizer, esse problema não se coloca para Paul
Ricœur, ao contrário do que nos parecia no início31: ele de facto aproxima mitos
de áreas culturais diversas, o mito babilónico da criação, o mito grego do deus
29Ib., p. 312.
30Finitude et culpabilité,p. 182: “Partir d’un symbolisme déjà là, c’est se donner de
quoi penser; mais c’est du même coup introduire une contingence radicale dans le
discours. D’abord il y a des symboles; je le rencontre, je les trouve; ce sont comme les
idées innées de l’ancienne philosophie. Pourquoi sont-ils tels ? Pourquoi sont-ils ? C’est
la contingence des cultures introduites dans le discours. De plus, je ne les connais pas
tous, mon champ d’investigation est orienté, et parce qu’il est orienté il est limité. Par
quoi est-il orienté ? Non seulement par ma situation propre dans l’univers des symboles,
mais paradoxalement par l’origine historique, géographique, culturelle de la question
philosophique elle-même.”
31Cf. p. 4.
16
mau e o mito também grego da alma exilada, o mito judaico da queda; todavia, o
universo em que se move é sempre, de facto, o universo ocidental, do qual se li-
mita a interrogar a memória. As culturas que interroga, para além da sua, são cul-
turas mortas, que não podem contestar as respostas que lhes são arrancadas. O
exemplo é flagrante em relação ao judaísmo, que aparece quase que exclusiva-
mente a desempenhar o papel de memória do cristianismo, sendo ignorado en-
quanto tradição viva e actual, que teria alguma coisa a dizer, por exemplo, acerca
do mito da queda, na medida em que nele o contraponto a Adão, ou segundo
Adão, não se concretizou numa figura histórica, à maneira de Cristo.
Este encerramento de horizontes é voluntário e necessário, para Ricœur. O
símbolo introduz uma contingência radical no discurso, na medida em que os
símbolos são um dado cultural e introduzem a contingência própria das culturas
no discurso universal da filosofia. A própria filosofia também está situada, fala
grego, como todos nós sabemos, a sua universalidade não passa portanto de uma
universalidade pretendida. Esta declaração de relatividade é, todavia, e de forma
estranha, argumento a favor de uma limitação, de um encerramento da in-
vestigação à nossa área cultural. As aproximações que se poderiam estabelecer
com culturas estranhas à nossa “permanecem arbitrárias enquanto não se esta-
belecem laços que gerem grandes obras, que renovem o nosso património, como
foi o caso entre a cultura hebraica e a cultura grega que se encontraram efecti-
vamente de forma decisiva para a constituição da nossa memória”32. Teremos
então que esperar o estabelecimento desses laços, dessas grandes obras; resta
saber como será isso possível sem uma série de aproximações prévias de carácter
mais ou menos arbitrário. Pode-se ainda perguntar porque razão, se se reconhece
32Ib.,pp. 184-185: “La science des religions «rapproche» des cultures qui ne se
sont pas rencontrées. Mais ces «rapprochements» restent arbitraires tant que des liens ne
se sont pas noués qui engendrent de grandes œuvres, lesquelles renouvellent notre
patrimoine, comme ce fut le cas entre la culture hebraïque et la culture grecque qui se sont
effectivement rencontrées de façon décisive pour la constitution de notre mémoire.”
17
o carácter contingente da nossa cultura, se teme a aproximação com outras cul-
turas devido ao carácter arbitrário dessa mesma aproximação.
Não nos parece admissível que numa problemática tão importante como a
do mal, que Ricœur procura compreender através do símbolo e do mito, se possa
ignorar deliberadamente o dizer das grandes culturas extra-europeias.
Reconhecemos que o passo fora da nossa cultura é um passo arriscado. Todavia,
sem passos desse tipo, mais ou menos ousados, mais ou menos radicais, mais ou
menos arbitrários, a nossa própria cultura não existiria. Seríamos ainda, ou gregos
ou judeus, ou outra coisa qualquer. Sem contar que as osmoses sempre se deram,
apesar de todas as barreiras, naturais ou artificiais. Assim, o cristianismo das ori-
gens propaga-se num meio constituído por uma cultura helenizada, mas que ha-
via perdido há muito a sua — se assim se pode dizer — pureza inicial, apresen-
tando-se contaminada por uma série de influências que, geograficamente, vão do
Próximo ao Extremo Oriente. No mundo contemporâneo vemo-nos confronta-
dos com a alternativa entre entendermo-nos ou exterminarmo-nos uns aos ou-
tros.
Assim, reconhecendo embora as dificuldades, o risco real de cair na arbi-
trariedade de que fala Ricœur, achamos necessário prolongar a sua reflexão so-
bre o símbolo e o mito para além do universo cultural do Ocidente grego e ju-
daico-cristão. Entraremos numa zona cujas referências desconhecemos, de ho-
mens que falam uma linguagem que não é a nossa, que vivem num mundo dife-
rente. Todavia, a nossa crença fundamental é de que, apesar de todas as diferen-
ças, eles são de facto homens, isto é, é possível encontrar entre eles alguém com
quem seja possível dialogar; tal como Ricœur noutro lado admite, são acessíveis à
nossa compreensão:
18
culturas. O meu campo de motivação está aberto ao humano no seu
conjunto. É o sentido do famoso dito: “nada do que é humano me é
estranho”. Sou capaz de todas as virtudes e de todos os vícios; não
existe signo do homem radicalmente incompreensível, nenhuma lín-
gua radicalmente intraduzível, nem obra de arte à qual o meu gosto
não possa se estender. A minha humanidade é esta acessibilidade de
princípio ao humano fora de mim. Ela faz de qualquer homem o meu
semelhante.33
33Ib., pp. 77-78: “L’ouverture de mon champ de motivation c’est mon accessibilité
de principe à toutes les valeurs de tous les hommes à travers toutes les cultures. Mon
champ de motivation est ouvert à l’humain dans son ensemble. C’est le sens du fameux
mot: « rien d’humain ne m’est étranger ». Je suis capable de toutes les vertus et de tous
les vices; il n’est point de signe de l’homme radicalement incompréhensible, point de
langue radicalement intraduisible, pas d’œuvre d’art à quoi mon goût ne puisse s’étendre.
Mon humanité est cette accessibilité de principe à l’humain hors de moi. Elle fait de tout
homme mon semblable.”
19
1.3. Mitos e símbolos primários
Precisamos agora justificar também uma outra opção, a que fizemos pela mi-
tologia em detrimento daquilo que Ricœur chama os símbolos primários do mal:
mancha, pecado, culpabilidade.
Em L’homme faillible, livro que antecede La symbolique du mal, Ricœur
procura estabelecer que a possibilidade do mal está inscrita na própria natureza
humana, na medida em que o homem é falível. “Dizer que o homem é falível é di-
zer que a limitação própria a um ser que não coincide consigo mesmo é a fra-
queza originária de onde o mal procede. Todavia, o mal só procede desta fra-
queza na medida em que ele se põe.”34 Esta posição do mal, esta passagem da
falibilidade à falta, é aquilo que a linguagem do testemunho, simbólica do prin-
cípio ao fim, descreve, não de uma forma homogénea mas através de diversos ní-
veis, ou estratos. Temos, mais próxima da especulação filosófica, a linguagem da
gnose, que procura racionalizar a experiência do mal, «explicá-la», e da qual o
pseudo-conceito de pecado original é, na opinião de Ricœur, tributário; a gnose
remete para os grandes mitos da origem, como o mito adâmico, mas estes não
constituem ainda a última camada: por baixo está a «confissão dos pecados», a
experiência penitencial de Israel, que se expressa nos símbolos primários da
mancha, do pecado e da culpabilidade. Esta disposição em estratos, todavia, não
possui um carácter estático.
34Ib., p. 162: “Dire que l’homme est faillible, c’est dire que la limitation propre à un
être qui ne coïncide pas avec lui-même est la faiblesse originaire d’où le mal procède. Et
pourtant le mal ne procède de cette faiblesse que parce qu’il se pose.”
20
da falta que possa fazer economia das elaborações segundas e
terceiras. É o círculo do testemunho, do mito e da especulação que é
necessário compreender. 35
Com que direito pretendemos nós romper este círculo e privilegiar o mito?
A análise que Ricœur faz aos símbolos primários do mal é das mais comple-
tas e exaustivas que se poderiam desejar. Lamentavelmente, esta riqueza é tam-
bém sinónimo de limitação: a reflexão desenvolve-se, de alguma maneira, em cir-
cuito fechado, nunca saindo realmente do universo judaico-cristão no seu sen-
tido mais estrito, o que se reflecte na inexistência de grandes aporias, análogas às
que se manifestarão mais adiante, aquando a análise dos mitos da origem e do fim
do mal, em que o confronto entre culturas distintas — Grécia, Israel,
Mesopotâmia — apresenta características mais evidentes. A experiência peni-
tencial judaica, de onde são recortados os símbolos primários do mal, é dissecada
até ao mais infímo pormenor, segundo um esquema que começa pela mancha, a
qual remete para o pecado, que recebe o remate da culpabilidade, embora esta
por sua vez pressuponha a mancha. Para dilucidar o ponto de partida, a mancha,
cuja riqueza simbólica faz com que ainda lhe estejamos ligados 36, Ricœur pro-
cura a ajuda da etnologia, pressupondo o seu carácter arcaico e, de algum modo,
universal. A partir da passagem da mancha para o pecado, começam as dificul-
dades. Reconhecendo que “o homem grego não acedeu nunca ao sentimento
do pecado, na sua qualidade própria e com a intensidade das quais unicamente o
35 Ib., p. 173: “C’est donc comme un tout qu’il faut prendre le langage élémentaire
de l’aveu, le langage développé du mythe et le langage élaboré de la gnose et de la contre-
gnose. Il n’y a pas d’autonomie de la spéculation et le mythe est lui-même second; mais il
n’y a pas non plus de conscience immédiate de la faute qui puisse faire l’économie des
élaborations seconde et tierce. C’est le cercle de l’aveu, du mythe et de la spéculation qu’il
faut comprendre.”
36Ib., p. 188.
21
povo de Israel dá o exemplo”37, Ricœur é obrigado a desenvolver a sua análise
posterior quase que exclusivamente dentro do universo judaico-cristão.
A única excepção notável prende-se com o contributo dos Gregos para a
noção de culpabilidade, através do discurso da imputação penal. Temos aqui um
dos episódios de simbiose que constituiram a nossa cultura, na medida em que a
experiência penitencial hebraica foi-nos transmitida através da tradução dos
seus termos fundamentais em grego, no vocabulário grego da culpabilidade.
37Ib., p. 195: “On pourrait alléguer en effet que l’homme grec n’a jamais accédé au
sentiment du péché, dans sa qualité propre et avec l’intensité dont seul le peuple d’Israël
donne l’exemple.”
38Ib., pp. 263-264: “L’élaboration du vocabulaire grec de la culpabilité par le canal
de la pénalité est un évenement culturel immense: l’aventure de l’hybris, de l’hamartema,
de l’adikia, c’est l’aventure même de notre conscience à nous, hommes d’Occident; la
Bible elle-même a influencé notre culture à travers la traduction grecque: or le choix des
équivalents grecs du péché biblique et de tous les concepts éthico-religieux d’origine
hébraïque est par lui-même une décision sur le sens de nos symboles; sur ce plan nous
sommes indivisément grecs et juifs; ainsi l’élaboration des concepts de la culpabilité, à
travers l’expérience juridique et pénale des Grecs, dépasse la simple histoire des
institutions pénales de la Grèce classique et appartient à cette histoire exemplaire de la
conscience éthico-religieuse dont nous retraçons ici les motivations principales.”
22
Todavia, este incidente permanece, apesar de tudo, marginal: “é preciso confes-
sar que se dispuséssemos apenas do testemunho da Grécia, nunca chegaríamos a
uma ideia minimamente coerente da sucessão tipológica da mancha, do pecado e
da culpabilidade.”39 Precisamente porque esta sucessão é exclusiva da expe-
riência judaico-cristã, aquela a que Ricœur tem acesso directo através da sua
condição de crente. Está-lhe negado o acesso a uma experiência análoga na
Grécia e na Mesopotâmia. Este facto explica ainda, de algum modo, o carácter
circular, atrás referido, das relações entre testemunho, mito e especulação: a
chave está precisamente na sombra poderosa que, em Ricœur, a linguagem do
testemunho, isto é, a linguagem da experiência penitencial judaico-cristão pro-
jecta sobre o mito e a especulação, sejam eles quais forem, desde que não sejam
solidários de outro testemunho, de outra experiência viva, como seriam os casos
das culturas árabe, indiana, ou chinesa. Compreende-se assim melhor as reticên-
cias de Ricœur em sair do seu universo cultural.
E todavia, precisamente ao analisar os mitos, o próprio Ricœur acaba por
quebrar o círculo. Os mitos, símbolos de segundo grau, retomam “as significações
analógicas espontaneamente formadas e imediatamente doadoras de sentido”40
que são os símbolos primários, e, ao mesmo tempo que as conservam no seu
essencial, dão-lhes espessura, consistência, direcção. Existe assim, de facto, um
forte laço entre mitos, símbolos primários e vivência cultural, mas isso significa
também que não são quaisquer símbolos primários que encaixam em qualquer
mito41; o que explica, a nosso ver, a surpresa, a admiração e a riqueza que nos
esperam ao ler a segunda parte de La symbolique du mal. Ao ser obrigado a ter
39Ib., p. 264: “Il faut avouer que si nous disposions seulement du témoignage de la
Grèce, jamais nous ne pourrions arriver à une idée un peu cohérente de la succession
typologique de la souillure, du péché et de la culpabilité.”
40Ib., p. 181.
41Em O conflito das interpretações, p. 278, ao falar da narração da queda, Ricœur
diz: “Esta narração tem um poder simbólico extraordinário, porque condensa num
arquétipo do homem tudo aquilo que é experimentado de modo fugaz e confessado de
modo alusivo pelo crente.”
23
em conta os mitos gregos e babilónios, Ricœur abre a porta à experiência vivida
desses povos, e vê-se obrigado a ultrapassar de algum modo o quadro dos
símbolos primários antes delineado. Daí as aporias, os impasses e os paradoxos,
mas também a riqueza de compreensão humana e as intuições poderosas que ca-
racterizam esta parte da obra de Ricœur. É esta riqueza de pensamento que gos-
taríamos de explorar e prolongar.
24
2. Os “mitos” do princípio e do fim
o ponto sensível e como que a «crise» deste laço que o mito explicita
à sua maneira; limitando-nos aos mitos relativos à origem e ao fim, te-
mos a possibilidade de aceder a um compreensão mais intensiva do
que extensiva do mito. Com efeito, é por ser o mal a experiência crí-
tica por excelência do sagrado, que a ameaça de dissolução do laço
do homem ao seu sagrado faz ressentir com a maior intensidade a de-
pendência do homem em relação às forças do seu sagrado. Desta
forma o mito da «crise» é ao mesmo tempo o mito da «totalidade»:
contando como as coisas começaram e como acabarão o mito repõe a
experiência do homem num todo que recebe da narrativa orientação
e sentido. Assim se exerce através do mito uma compreensão da rea-
25
lidade humana em totalidade por meio duma reminiscência e duma
expectação.42
26
2.1. A função simbólica dos mitos
43Ib., p. 181: “Je tiendrai le mythe pour une espèce de symbole, comme un
symbole développé en forme de récit, et articulé dans un temps et un espace non
coordonnables à ceux de l’histoire et de la géographie selon la méthode critique.”
44Ib., p. 310: “Comprendre le mythe comme mythe, c’est comprendre ce que le
mythe, avc son temps, son espace, ses événements, ses personnages, son drame, ajoute à
la fonction révélante des symboles primaires élaborés plus haut.”
27
moral, do destino humano e da realidade: a ordem é sempre algo a conquistar
sobre o caos, sobre a desordem, sendo esta contemporânea ou mesmo anterior e
primordial em relação àquela. Existem assim, nos símbolos e nos mitos, inti-
mamente associadas e relacionadas com a sua dimensão cósmica e onírica, uma
função retrospectiva e uma função prospectiva.
45Ib., p. 176: “C’est cette fonction du symbole comme jalon et comme guide du
«devenir soi-même» qui doit être reliée et non point opposée à la fonction «cosmique» des
symboles, telle qu’elle s’exprime dans les hiérophanies décrites para la phénoménologie
de la religion. Cosmos et Psyche sont les deux pôles de la même «expressivité»; je
m’exprime en exprimant le monde; j’explore ma propre sacralité en déchiffrant celle du
monde.”
28
Seria preciso compreender que não existem três formas incomunicá-
veis de símbolos; a estrutura da imagem poética é também a do sonho
quando este tira dos retalhos do nosso passado uma profecia do
nosso futuro e a das hierofanias que tornam manifesto o sagrado no
céu e nas águas, na vegetação e nas pedras. 46
29
Poder-se-ia contestar, em primeiro lugar, o alcance e a extensão desta des-
mitização no homem moderno. Mircea Eliade49, a quem Ricœur vai buscar a
própria definição de mito50, recenseia uma série de comportamentos contempo-
râneos que estão sob a égide de uma mitologia mais ou menos patente. Mais
concretamente, afirma:
Aquilo que ainda hoje, e em relação à maioria dos seres humanos, fornece
“modelos para a conduta humana e confere dessa forma significação e valor à
sua existência”52 continua a fazer parte do universo do mítico. Um dos domínios
privilegiados em que, segundo Eliade, o mito se refugiou é constituido pelo ro-
mance, pela narrativa a que Ricœur dedicará três volumes, sob o sugestivo título
Temps et récit. Aí, de algum modo, a oposição tão radical que aqui se estabelece
entre o tempo do mito e o tempo da história dilui-se na consideração das diver-
sas dimensões da temporalidade, e sobretudo na consideração de um tempo que
se torna humano na medida em que se articula sobre um modo narrativo, e de
30
uma narrativa que atinge a sua significação plena quando se torna uma condição
de existência temporal53. A narrativa, histórica ou de ficção, toma assim um poder
literalmente configurador, na medida em que se torna factor de repetição, de
retoma no plano da acção dos paradigmas que nela encontra o leitor.
Não estamos assim tão longe do tempo do mito, do tempo qualitativamente dife-
rente do tempo cronológico, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente re-
cuperável, fornecedor dos paradigmas que orientam a vida do homem
«primitivo».
Tudo isto leva-nos a colocar algumas reticências quanto ao projecto de
uma compreensão do mito como mito, ou de uma «conquista» da dimensão mí-
tica, a qual nos lembra demasiado outras conquistas. Preferimos pressupor, como
aliás o próprio Ricœur, que nos movemos no interior de uma cultura, com os seus
mitos e os seus símbolos, com a sua linguagem já aí, e admitir que aquilo que pen-
samos como compreensão dos mitos pode não ser mais do que o prolongamento
do nosso próprio mito. Não falava Lévi-Strauss, a propósito de uma ciência dos
mitos, do mito da mitologia? Não negamos o pensamento racional e científico em
prol de um pensamento mítico, mas deixamos em aberto a questão de saber quem
envolve ou pode envolver quem.
53Temps et récit, tome I, p. 85: “Que le temps devient temps humain dans la mesure
où il est articulé sur un mode narratif, et que le récit atteint sa signification plenière quand
il devient une condition de l’existence temporelle.”
54“La fonction narrative et l’expérience du temps”, em Archivio di filosofia, 80,
nº1, 1980, p. 363, cit. em Manuel SUMARES, Para além da necessidade, p. 284.
31
Para além das dimensões cósmica, onírica e imaginativa ou poética, o mito
partilha com o símbolo o seu carácter de signo em que o “sentido primeiro, literal,
patente, visa analogicamente um sentido segundo que é dado unicamente
através dele”55. Este sentido segundo não tem uma correspondência directa com
o sentido primeiro, não é dado numa tradução, como a alegoria, e Ricœur vai ter
um certo cuidado em distinguir tanto o símbolo como o mito da alegoria. O mito
engloba a humanidade no seu conjunto numa história exemplar, insere a
experiência humana num determinado movimento, numa determinada tensão en-
tre um Princípio e um Fim, e pretende atingir o enigma da existência humana.
Todos estes aspectos afastam-no da alegoria.
Assim, embora os mitos que nós reconhecemos como mitos estejam marca-
dos pela nossa história cultural e pelas interpretações que nela receberam, existe
neles um excesso de significação que impede de reduzi-los a essas interpreta-
32
ções, a esses discursos feitos, e os mantém abertos a novas apropriações. Para ser
esta reserva de sentido sempre disponível, “é preciso que o mito não seja nem
história acontecida num tempo e num lugar determinados, nem explicação”57. É
necessário, portanto, distinguir cuidadosamente mito e gnose, tal como já Platão
o fazia, ao inserir no seu discurso os célebres mitos platónicos, os quais começam
precisamente onde a explicação acaba. O mito não é a expressão mais ou menos
velada de um conhecimento qualquer, é símbolo, ou seja, algo que “abre e des-
cobre uma dimensão de experiência que, sem ele, permaneceria fechada e dissi-
mulada”58.
57Ib., p.312.
58Ib., p. 313: “Le symbole, avons-nous dit, ouvre et découvre une dimension
d’expérience qui, sans lui, resterait fermée et dissimulée.”
59Ib., pp. 318-321.
33
2. O mito da queda, que sobrevem como um acontecimento irracional no
centro de uma criação acabada e essencialmente boa. A salvação é uma peripé-
cia nova, que passa a ter um carácter histórico, distinto da criação, e é fruto das
iniciativas do crente e da divindade.
3. O mito trágico, tipo intermédio entre os dois anteriores, em que o mal de-
riva da acção do deus que tenta, cega e perde o homem. Impotente face a uma
falta que cometeu mas da qual não é culpado, só resta ao homem sujeitar-se e
compreender a necessidade, através do sentimento estético originado no espec-
táculo do trágico.
34
fim do mal, dirá que estes são narrações que “exploram a falha da realidade hu-
mana representada pela passagem, pelo salto, da inocência para a culpabilidade;
elas contam como o homem originariamente bom se tornou naquilo que é no
presente”62. Para além do seu carácter abusivo, na medida em que nem o mito
trágico nem o de criação falam propriamente de uma queda do homem de um es-
tado de inocência para um de culpabilidade, esta afirmação poderia sugerir uma
outra tipologia, agrupando o mito adâmico e o mito da alma exilada, os únicos
que se referem, de uma forma ou de outra, a um estado original do homem supe-
rior ao seu estado actual.
Como solucionar este conflito de tipologias? Tendo em conta o desenvol-
vimento do discurso do próprio Ricœur, parece-nos que a oposição ou conflito
fundamental que se joga nesses mitos, e que ecoa na história do pensamento
ocidental, é entre a exterioridade ou interioridade do mal em relação ao homem.
É o mal um produto da nossa liberdade, ou existe, pelo contrário, uma realidade
do mal anterior a qualquer decisão humana? Esta uma das questões persistentes
da filosofia e da teologia, de que um dos últimos avatares é o problema da in-
fluência dos determinismos na acção. Partindo do facto de que os mitos que
Ricœur analisa são mitos fundadores do Ocidente, parece-nos que a exploração
desta dicotomia será o melhor caminho para pormos em prática o nosso projecto
de confrontá-los com mitos de outra área cultural.
62Ib., p. 288.
35
2.2. O ciclo da exterioridade
63Ib., p. 299.
64Finitude et culpabilité, p. 449: “Pour l’auteur du Dialogue du maître et de son
serviteur, la souffrance n’est pas tellement injuste qu’insensée; par choc en retour elle
rend tout projet insensé; face à l’absurde tout est égal.”
36
alcançá-lo. Quando conseguiu, por fim, apoderar-se dele, o rei per-
guntou-lhe qual era a coisa que o homem deveria preferir a tudo e
considerar sem par. Imóvel e obstinado, o demónio não respondia.
Até que, por fim, coagido pelo vencedor, desatou a rir e proferiu as
seguintes palavras: “Raça efémera, e miserável, filha do acaso e da
dor! E tu, porque me obrigas a revelar-te o que mais te valeria igno-
rar? O que tu deverias preferir não o podes escolher: é não teres nas-
cido, não seres, seres nada. Já que isso te é impossivel, o melhor que
podes desejar é morrer, morrer depressa”.65
37
2.2.1. O drama de criação e a visão «ritual» do mundo
O mito babilónico da criação é talvez aquele em que a exterioridade do mal,
ou melhor dito, a conaturalidade do mal e do mundo, é afirmada na sua maior ex-
tensão. Tiamat é o princípio originário, o caos de onde provêm tanto os deuses
representantes da ordem como os representantes da desordem. Para instaurar a
ordem, o cosmos hierarquizado e diferenciado, Marduk, seu descendente, é obri-
gado a dar-lhe luta e a vencê-la, assim como aos deuses seus aliados. Aventa-se
assim a possibilidade de “que a Origem das coisas esteja de tal forma para além
do bem e do mal, que dê origem simultaneamente ao princípio tardio da ordem —
Marduk — e às figuras retardadas do monstruoso, e que ela deva ser destruída,
dominada enquanto que origem cega”68. O próprio homem é formado a partir
dos restos mortais do chefe dos deuses vencidos e deste modo a substância do
mal está entretecida com todos os níveis da realidade. Isto significa ainda que “o
mal é tão velho como o mais velho dos seres; que o mal é o passado do ser; que
ele é aquilo que foi vencido pela instituição do mundo; que Deus é o futuro do
ser”69.
Reconhecendo as forças do caos e da desordem em si e no mundo, resta-
lhe ao homem imitar o comportamento do deus fundador e instaurar a ordem,
seja ritualmente, através da repetição simbólica do drama original, seja através da
luta contra os inimigos da cidade, assimilados às ressurgentes forças do caos. “A
coerência do mito permite antecipar aquilo que se pode chamar uma teologia da
Guerra Santa; se o Rei é a figura do deus vencedor do caos, o Inimigo deveria
68Finitude et culpabilité, pp. 325-326: “Ce récit sauvage évoque une terrible
possibilité: que l’Origine des choses soit tellement par-delà le bien et le mal qu’elle
engendre à la fois le principe tardif de l’ordre — Mardouk — et les figures attardées du
monstrueux, et qu’elle doive être détruite, surmontée en tant qu’origine aveugle.”
69Ib., p. 326: “Que le mal est aussi vieux que le plus vieux des êtres; que le mal est
le passé de l’être; qu’il est ce qui a été vaincu par l’institution du monde; que Dieu est
l’avenir de l’être.”
38
ser a imagem na nossa história das potências do mal e a sua insolência represen-
tar uma ressurgência do antigo caos.”70
Para aquilatar do poder deste mito torna-se necessário seguir algumas das
suas reencarnações através da história. Ricœur avisa-nos que não nos devemos
enganar pela sua aparente simplicidade e forma primitiva, pois ele “anuncia tipo-
logicamente as ontogéneses mais subtis da filosofia moderna e principalmente as
do idealismo alemão”71. Para além destes avatares filosóficos, temos a referida
teologia da Guerra Santa, que teve o seu mais alto expoente na Idade Média
cristã e muçulmana, mas cujos ecos vão mais longe, desde a figura do Rei he-
braico ao nazismo; é também a mitologia dos heróis populares de todos os tem-
pos, a braços com todos os monstros possíveis ou imaginários. Trata-se sempre
de lutar e vencer uma qualquer representação do mal, que tanto pode assumir
forma exterior quanto interior ao homem, mas que é sempre algo anterior, algo já
aí.
Uma das características desta mitologia, notada por Ricœur, é o seu alhea-
mente em relação a considerações de carácter moral. O herói ou o deus vence ou
perde em função da sua força, seja ela a simples força física ou a superioridade de
ânimo, inteligência, astúcia, e não em função da sua bondade ou maldade. O que
impede Gilgamesh, o herói babilónio, de alcançar a imortalidade, não é qualquer
pecado cometido, mas o simples facto de não ter conseguido permanecer des-
perto durante o tempo de prova.72 É uma violência superior que permite a
Marduk vencer a violência de Tiamat: “no decurso da luta que opõe Marduk a
70Ib., p. 341: “La cohérence du mythe permet d’anticiper ce qu’on peut appeler une
théologie de la Guerre Sainte; si le Roi est la figure du dieu vainqueur du chaos, l’Ennemi
devrait être l’image dans notre histoire des puissances du mal et son insolence représenter
une résurgence du chaos ancien.”
71Ib., p. 324.
72Mircea ELIADE, Aspects du mythe, p. 164: “Parti à la quête de l’immortalité, le
héros mésopotamien Gilgamesh arrive dans l’île de l’Ancêtre mythique Ut-napishtin. Là,
il doit veiller six jours et six nuits, mais il ne réussit pas à passer cette épreuve initiatique
et il manque sa chance d’acquérir l’immortalité.”
39
Tiamat, Marduk aparece como potência bruta, tão pouco ética como a cólera de
Tiamat.”73 A acção, mesmo ritual ou sobretudo a acção ritual, é encarada no seu
aspecto de acção eficaz, de algo que produz ou não um efeito, e não numa pers-
pectiva de mérito ou demérito ético ou moral.
Existe uma certa grandeza nesta visão: é a imagem do guerreiro enfren-
tando o inimigo e sabendo que pode vencer ou morrer, mas sendo capaz, de
qualquer modo, de olhar a violência de face, forte no seu esforço para existir e
no seu desejo de ser. Talvez a salvação passe por aqui, como parece indicar
aquele episódio estranho da Bíblia que é a luta de Jacob com o anjo.
40
nhece-o quando afirma que nas tragédias de Sófocles, ao contrário das de
Ésquilo, o trágico não tem fim; “Sófocles é neste sentido mais puramente trágico
do que Ésquilo; o deus hostil faz-se sentir nele menos pela sua pressão do que
pela sua ausência que abandona o homem a si mesmo.” 76
À inescrutabilidade do divino corresponde a inescrutabilidade do homem,
expressa na “cegueira” que atinge o herói trágico. Os dois compõem uma es-
pécie de trágico do ser, que mergulha as suas raízes na teogonia e, portanto, no
mito de criação, e cuja ilustração mais pertinente é a cadeia de crimes que assola
a casa dos Átridas. “Esta crueldade em cadeia, que do crime gera o crime e que
figuram as Erínias, mergulha numa espécie de maldade fundamental da natureza
das coisas. A Erínia é culpabilisante, ouso dizer, porque ela é a culpabilidade do
ser.”77 Enquanto o mito de criação separava os dois polos e afirmava o primado
da ordem sobre o caos, a tragédia volta a baralhar as cartas, introduz o caos no
coração da ordem, na figura do deus que tanto pode ser fonte de bom conselho
quanto de cegueira e perdição.
76Ib., pp. 370-371: “Mais chez Sophocle il n’y a précisément plus de fin du
tragique: Sophocle en ce sens est plus purement tragique qu’Eschyle; le dieu hostile s’y
fait moins sentir par sa pression que par son absence qui abandonne l’homme à lui-
même.”
77Ib., p. 363: “Cette cruauté en chaîne, qui du crime engendre le crime et qui
figurent les Erinnyes, plonge dans une sorte de méchanceté fondamentale de la nature des
choses. L’Erinnye est culpabilisante, si j’ose dire, parce qu’elle est la culpabilité de
l’être.”
78Ib., p. 360: “Le mythe tragique tend à concentrer à la cime du divin le bien et le
mal. Le passage au tragique proprement dit est lié à la personnalisation progressive de ce
divin ambigu qui, tout en restant moira, involontaire hyper-divin, fatalité irrationnelle et
inéluctable, prend la forme quasi psychologique de la malveillance.”
41
A malevolência do divino assume a figura da fatalidade do mal que se abate
sobre o herói trágico. Este está predestinado a agir mal; é Orestes que deve matar
a mãe, ou Édipo que será o assassino do pai e partilhará o leito nupcial com a
mãe; nenhum deles, todavia, está disposto a deixar-se arrastar cegamente pela
fatalidade; todos eles erguem-se com todo o poder da sua liberdade contra o
destino, e a sua vontade é tão grande que por momentos o destino parece
hesitar; mas acaba, finalmente, por esmagá-los com todo o seu peso. “É ne-
cessário que o destino experimente primeiro a resistência da liberdade, ressalte
de algum modo sobre a dureza do herói, e finalmente o esmague para que nasça
a emoção trágica por excelência — o phobos.”79
Neste contexto, o momento ético do mal esboça-se, para ser de imediato
apagado. O herói não é completamente inocente, existe nele um certo orgulho,
uma desmesura, uma culpabilidade, que são, todavia, imediatamente anulados
pela predestinação, englobados na culpabilidade do deus que engana.
Ricœur manifesta uma certa fascinação pelo mito trágico, esse mito que está
antes e depois da visão ética representada pelo mito adâmico, que é, quase
poderíamos dizer, a sua sombra. Como ele diz,
a tragédia nunca acaba de morrer; morta duas vezes, pelo Logos filo-
sófico e pelo Kerigma Judaico-cristão, sobrevive à sua dupla morte. O
tema da cólera de Deus, último motivo da consciência trágica, é in-
vencível tanto pela argumentação do filósofo quanto pela do teó-
logo; pois não existe justificação racional da inocência de Deus;
qualquer explicação de estilo estóico ou leibniziano acaba por que-
79Ib., p. 361: “Il faut que le destin éprouve d’abord la résistence de la liberté,
rebondisse en quelque sorte sur la dureté du héros, et finalement l’écrase, pour que naisse
l’émotion tragique par excellence — le phobos.”
42
brar-se, como a ingénua argumentação dos amigos de Job, sobre o so-
frimento dos inocentes.80
80Ib., pp. 458-459: “C’est pourquoi la tragédie n’a jamais fini de mourir; tuée deux
fois, par le Logos philosophique et par le Kérygme judéo-chrétien, elle survit à sa double
mort. Le thème de la colère de Dieu, ultime motif de la conscience tragique, est invincible
à l’argumentation du philosophe comme du théologien; car il nest pas de justification
rationnelle de l’innocence de Dieu; toute explication de style stoïcien ou leibnizien vient se
briser, comme la naïve plaidorie des amis de Job, sur la souffrance des innocents.”
81Ib., p. 373: “Ces sentiments, nous le savons depuis Aristote, ce sont d’abord le
phobos tragique, cette crainte spécifique à laquelle nous accédons quand nous surprenons
la conjonction de la liberté et de la ruine empirique, puis le Eleos tragique, ce regard
miséricordieux qui n’accuse plus, qui ne condamne plus, mais qui prend pitié.”
82Ib., p. 455: “Comme dans la tragédie, la théophanie finale ne lui a rien expliqué,
mais a changé son regard; il est prêt à identifier sa liberté à la nécessité ennemie; il est prêt
à convertir liberté et nécessité en destin.”
83Ib., p. 370.
84Ib., p. 371.
85Ib., p. 455.
43
2.2.3. O mito da alma exilada e a salvação pelo conhecimento
Em princípio, o mito órfico da alma exilada num corpo mau está submetido
ao mesmo esquema de exterioridade do mal que os mitos anteriores. “Esse exílio,
com efeito, é prévio a toda a posição do mal por um homem responsável e livre.
O mito órfico é um mito de situação projectado sem dúvida mais tardiamente
num mito de origem, que volta a mergulhar na teomaquia próxima do mito cos-
mogónico e do mito trágico.”86
Todavia, esse mal que nos mitos anteriores atacava sobretudo de fora, na
figura do caos primordial ou do deus que engana, revela-se agora na experiência
da discordância íntima do homem, que o mito de situação vem confirmar cin-
dindo o homem em «corpo» e «alma», sendo este o aspecto que, na opinião de
Ricœur, o distingue de todos os outros mitos, inclusive o mito adâmico. Com
efeito, nenhum destes, mesmo fazendo “aparecer uma ruptura na condição do
ser-homem, nunca dividem o homem em duas realidades”87.
Parece então que este mito é o único que seja, no sentido próprio do
termo, um mito da «alma» e ao mesmo tempo um mito do «corpo».
Conta como «a alma», de origem divina, se tornou humana, — como o
«corpo», estranho a esta alma e mau de múltiplas maneiras, corres-
ponde a esta alma, — como a mistura da alma e do corpo é o aconte-
cimento que inaugura a humanidade do homem e faz do homem o lu-
gar do esquecimento, o lugar em que a diferença original da alma e do
corpo é abolida. Divino quando à alma, terrestre quanto ao corpo, o
homem é o esquecimento da diferença; o mito conta como isto acon-
teceu.88
44
O mito de origem vai projectar esta dualidade do homem num aconteci-
mento originário, nos Titãs que devoraram Diónisos e de cujas cinzas Zeus fez a
raça actual dos homens. O homem participa assim, simultaneamente, da natureza
titânica e da natureza divina; é um deus preso na carne dos Titãs. Este aconteci-
mento originário explica o esquecimento da dualidade constitutiva do homem,
apenas discernível fugazmente através do sonho, do êxtase, do amor e da
morte89, assim como que concentra a má escolha e o mau destino
Dá-se assim uma inflexão do mito da alma exilada numa direcção que o
aproxima nitidamente do mito adâmico, justificando a sua posterior sobreposição
na tradição do cristianismo. Por um lado, emerge aqui realmente a dimensão ética
do mal, ausente no mito de criação e apenas esboçada no mito trágico: o mal que
a alma expia na prisão do corpo é fruto de uma má acção, de uma má escolha, e é
ainda o mau agir que a mantém presa no corpo, enredada na malha das sucessi-
vas reencarnações. Por outro lado, o Titã representa o fundo de maldade impli-
45
cado em qualquer escolha actual. Significa, tal como a serpente no mito adâmico,
que o mal de algum modo já lá está, que o homem limita-se a continuá-lo. A re-
flexão platónica irá esbater ainda mais a exterioridade do mal representada pelo
corpo, fazendo deste o símbolo da passividade da alma, e inflectindo o simbo-
lismo do «corpo mau» na direcção do tema da «má escolha».91 O tema da
«injustiça da alma» sobrepõe-se ao da «maldade do desejo», colocando a origem
do mal para além da falibilidade ligada ao ser composto do homem.
Se o mito de criação poderia ser colocado sob o signo da acção, da acção
ritual e eficaz, e o mito trágico sob o signo do «sofrer para compreender», o mito
da alma exilada coloca-se resolutamente sob a égide do conhecimento:
91Ib., p. 475.
92Ib., p. 436: “Le mythe de l’âme exilée est par excetlence principe et promesse de
«connaissance», de «gnose»; les orphiques, dit Platon, ont «nommé» le corps; en
nommant le corps ils ont nommé l’âme; or l’acte par lequel l’homme s’aperçoit comme
âme, ou, pour mieux dire, se fait même que son âme et autre que son corps — autre que
le couple alternant de la vie et de la mort —, cet acte purificateur par excellence, c’est la
connaissance. Dans cette prise de conscience, dans cet éveil à soi de l’âme exilée, toute la
46
2.3. O mito adâmico e a visão «escatológica» da história
47
E no entanto, num certo sentido, o mito adâmico tornou-se para nós tão ou
mais estranho do que o mito da criação, ou qualquer dos outros. A experiência
penitencial de Israel, de que este mito é uma retoma segundo Ricœur 95, tornou-se
estranha ao espírito ocidental moderno, ocupado na conquista e no domínio da
natureza e no desenvolvimento narcísico da subjectividade. O mito da queda
desdobrava a Origem numa origem da bondade do criado e numa origem da
maldade da história, e dessa forma satisfazia a dupla confissão do crente judeu
na perfeição absoluta de Deus e na maldade radical do homem.96 Todavia, não
está aqui precisamente essa separação, essa distância que instaura a religião
como terror e a coloca sob a égide da pena e do castigo, e que o homem mo-
derno, a começar por Ricœur, recusa?97
O mito adâmico tem uma motivação decididamente moral:
É esta motivação moral que faz recair na figura de um homem exemplar, repre-
sentante de toda a humanidade, a origem do mal, e por aí também a origem de
todos os males. Como diz um certo livro de espiritualidade cristã99, “todos pe-
48
camos em Adão e todos pagamos as consequências: o castigo é universal, a to-
dos alcança”: dor, trabalhos, doenças, cansaço, frio, guerras, pestes, fome, morte,
corrupção, inferno. No entanto, é o próprio livro sagrado, a Bíblia, expondo o
progresso da experiência penitencial judaica, que põe em causa este peso her-
dado do pecado:
49
livro de Job não tem equivalente em nenhuma cultura; a queixa de
Job supõe a plena maturidade duma visão ética de Deus; mais Deus se
torna claro como legislador, mais se torna obscuro como criador.101
101Ib., p. 448-449: “Là où Dieu est aperçu comme origine de la justice et source de
la législation, le problème de la juste sanction est posé avec un caractère de gravité sans
précédent; la souffrance surgit comme énigme dès lors que l’exigence de justice ne peut
plus l’englober; cette énigme est le produit de la théologie éthique elle-même; c’est
pourquoi la virulence du livre de Job est sans équivalent dans aucune culture; la plainte de
Job suppose la pleine maturité d’une vision éthique de Dieu; plus Dieu devient clair
comme législateur, plus il devient obscur comme créateur.”
102Ib., p. 453: “N’est-ce pas le Dieu tragique que Job redécouvre? le Dieu
inescrutable de l’épouvante? Ce qui est tragique aussi, c’est le dénouement. «Souffrir
pour comprendre», disait le chœur grec. Job à son tour accède, par-delà toute vision
éthique, à une nouvelle dimension de la foi, celle de la foi invérifiable.”
103Ib., p. 412-416.
104O conflito das interpretações, p. 309.
50
vivência do mal sofre uma transmutação, uma alteração qualitativa: como em
Kant, na Religião nos limites da simples razão, a degradação, livre e fatal, do
homem pode ser compreendida como “a via dolorosa de qualquer vida ética de
carácter e de nível adultos”105;
51
2.4. A mitologia hindu: eterno retorno e libertação
Os mitos que analisámos até agora, longe de representarem uma visão in-
génua e primitiva do mundo ou do homem, pressupõem, como tivemos ocasião
de verificar, uma certa maturidade cultural, correlativa de uma experiência de
vida milenar. É o caso com o mito adâmico, retomando e sintetizando toda a ex-
periência israelita da mancha, do pecado e da culpabilidade, com os seus correla-
tos da purificação, da misericórdia e da justificação; é o caso com os mitos trá-
gico e da alma exilada, surgidos ou desenvolvidos no apogeu da civilização
grega; o próprio mito babilónio de criação tem por detrás todo o peso de uma
cultura, sendo o seu carácter aparentemente ingénuo, como sempre, enganador,
como se nota nas suas múltiplas sobrevivências. A preocupação de Ricœur não
é procurar os mitos originais, os mitos primitivos, mas os mitos significativos; o
seu pressuposto é que os mitos são símbolos de segundo grau, sobrepostos a
uma camada mais próxima da experiência representada pelos símbolos primários,
dos quais retomam e desenvolvem o sentido. Além disso, vimos que o ciclo não
terminava nos mitos, mas abarcava também um terceiro nível de elaboração, que
Ricœur designava por gnose, em que a direcção do pensamento inflectia do sím-
bolo para a especulação. Estes três níveis ou linguagens deveriam ser tomados
como um todo, qualquer elemento remetendo simultaneamente para os outros
dois.108
Estas observações preliminares ajudam-nos a encontrar um caminho no la-
birinto do pensamento hindu e da sua mitologia. Para começar, em nenhum outro
lado é talvez mais difícil estabelecer uma distinção entre as três linguagens que
acabámos de referir. Símbolo, mito e especulação entrelaçam-se tão mais in-
tricadamente no pensamento hindu quanto é certo que o mesmo não desenvol-
52
veu uma filosofia, isto é, um discurso que se pretende laico e que procura o seu
fundamento fora de quaisquer considerações de carácter religioso, isto é, fora de
qualquer relação com o sagrado, que apresenta na Índia uma enorme variedade
de manifestações. Desde o início, nos textos mais antigos ou mais “primitivos”,
como é o caso do Rigveda, encontram-se, a par da mitologia mais ingénua —
pelo menos a nossos olhos —, peças especulativas que rivalizam com as dos pré-
socráticos ou de outros pensadores mais tardios na história da filosofia ociden-
tal.109 O pensamento reflexivo e especulativo hindu, em vez de se autonomizar
109Cf.,
por exemplo, o hino “No princípio…”, Rigveda, X, cxxix, cit. em R. C.
ZAEHNER (ed. e trd.), Hindu scriptures, p. 11-12:
53
como no Ocidente, dando origem à filosofia, permaneceu intimamente ligado à
religião, ao mito e ao símbolo. Isto não obsta a que se distingam níveis nesse
pensamento, que vão desde a mitologia e folclore mais populares e vulgarizados,
até às grandes sínteses em que o homem hindu exprime de forma mais acabada e,
porque não, sistemática, as tensões que percorrem a sua experiência e a sua visão
global do mundo. São estas síntese que sobretudo nos interessam.
Esta citação de Mircea Eliade permite situar a nossa reflexão sobre os mitos
hindus num movimento paralelo ao da reflexão de Ricœur sobre a simbólica do
mal, ressaltando de imediato a sua diferença. Ricœur procura analisar as estrutu-
ras do voluntário e do seu involuntário a fim de situar o ponto em que a falibili-
dade humana permite a inserção do mal no mundo, compreendendo assim o es-
54
tado degradado da condição humana, tido como um pressuposto indiscutível a
partir da experiência penitencial judaico-cristã. Essa degradação situava o ho-
mem numa história, num percurso no final do qual, num «fim do tempo», se vis-
lumbraria a salvação tanto individual como colectiva, fruto da acção de um Deus
que se interessaria pessoalmente pelo homem e colaboraria com ele na salvação.
A reflexão hindu também se aplica a deslindar a estrutura da condição humana,
mas ignora à partida o mal e a sua contrapartida subjectiva, a culpabilidade,
como factores relevantes dessa condição; o conhecimento dos condicionamen-
tos, conscientes ou inconscientes, não visa estabelecer de uma vez por todas a
finitude e a fragilidade do homem como ser criado, mas, como disse Eliade, “ver
se existe ainda alguma coisa além desses condicionamentos”. De uma forma
ou de outra, o homem hindu acreditou sempre na possibilidade de alcançar um
estado de ser para além de todos os condicionamentos e, mais do que isso, de al-
cançá-lo de modo, digamos assim, imediato e permanente. Essa crença situa-se,
além disso, num plano diferente do da fé, entendida no sentido judaico-cristão,
na medida em que, para além de acreditar, o hindu desenvolveu técnicas especí-
ficas visando o domínio dos condicionamentos e a conquista do estado não-
condicionado.
Assim, mais do que o problema do mal, que como já dissemos está dema-
siado conotado culturalmente, a questão que podemos colocar aos mitos hindus,
como aliás aos outros mitos, o de criação, o trágico, o adâmico, o da alma exilada,
é a questão do homem e da sua inserção na totalidade, ou para utilizar uma ter-
minologia eliadiana que Ricœur também retoma, a questão do laço entre o ho-
mem e o seu sagrado, a nossa natureza e destino último. É nesta perspectiva que
iremos percorrer alguns mitos hindus que nos pareceram significativos, e ao dizer
isto queremos assumir toda a carga de subjectividade que a afirmação anterior
veicula. Com efeito, falta-nos uma visão de conjunto do pensamento hindu su-
55
ficientemente forte para podermos situar de forma rigorosa esses mitos em rela-
ção à totalidade de que fazem parte.
56
Um dia Indra recebe no palácio a visita de um rapaz esfarrapado, que não
era outro senão o próprio Vishnu disfarçado, a fim de dar uma lição ao Rei dos
Deuses. Tratando-o por “minha criança”, fala-lhe dos inumeráveis Indras que ti-
nham existido anteriormente, em inumeráveis universos. A vida e o reinado de
um Indra dura milhões de anos terrestres, mas durante um único dia e noite de
Brahma vivem 28 Indras. Um Brahma, por sua vez, vive uma existência que pode
ser contada em 108 anos de tais dias e noites de Brahma. E os Brahma sucedem-
se uns aos outros através do tempo sem fim. Continua Vishnu:
Vendo passar um carreiro de formigas, Vishnu ri-se e diz que cada uma das
formigas do carreiro outrora, numa anterior encarnação, tinha, por força da sua
virtude, ascendido à posição de Rei dos Deuses, isto é tinha sido um Indra, mas
agora, múltiplas transmigrações volvidas, voltara a ser formiga.
Esta visão terrível de universos arrastados, com as criaturas que os com-
põem, num ciclo infindável de criação e destruição faz cair Indra em si, levando-o
a compreender a futilidade das suas ambições. Recompensa soberanamente o
arquitecto divino e renuncia aos seus planos de aumentar ou construir um palá-
cio mais grandioso.
112Ib., p. 57.
57
O mito de Indra situa-se no quadro mais vasto de uma doutrina dos ciclos
cósmicos que constitui um autêntico mito especulativo do eterno retorno. O ci-
clo menor é constituído pelo yuga, que poderíamos traduzir por «idade», que se
sucede em conjuntos de quatro, desde o Krta yuga, mais ou menos correspon-
dente à Idade de Ouro de Hesíodo, até ao Kali yuga, a Idade de Ferro, aquela em
que nos encontramos, e em que o homem e a sociedade alcançam o ponto ex-
tremo de desintegração. Um conjunto destes quatro yugas compõe um
mahayuga, correspondente a 4.320.000 anos terrestres, e a vida e o reinado de
um Indra duram 71 destes mahayugas.113 Nesta perspectiva todas as grandes
realizações humanas, arte, impérios, instituições, descobertas, guerras, vitórias ou
derrotas, tornam-se vazias de qualquer significado, assemelhando-se às dunas do
deserto que se fazem e desfazem ao sabor do vento.
A antropologia hindu acompanha de perto a sua cosmologia. De acordo
com a escola Samkhya o homem enquanto composto psicofisiológico é parte in-
tegrante da Natureza, da prakrti, participando do seu carácter dinâmico e cria-
dor, não no sentido positivo que no Ocidente damos a estes dois termos, mas no
sentido de algo que está em perpétua transformação e em perpétua manifestação
de novas formas, tal caleidoscópio cósmico. Psicologicamente, o homem define-
se como uma série de potencialidades subconscientes, ou mesmo inconscientes,
os vâsanâ, que são actualizadas através das experiências.
113Ib., p. 59-62.
58
(por meio da linguagem, dos costumes, da civilização: transmissão
étnica e histórica); seja directamente (por meio da transmigração
kármica […]). Uma boa parte da experiência humana é devida a esta
herança racial e intelectual, a estas formas de acção e de pensamento
criadas pelo jogo dos vâsanâ. Estas forças subconscientes determi-
nam a vida da maioria dos homens.114
Desta forma, a vida humana normal não é senão um jogo de causas e efeitos
(karma) que se joga através de sucessivas gerações e reencarnações.
59
uma pausa, uma trégua breve, ínfima, o tempo de recuperar fôlego,
mas em seguida tudo continuava, e novamente éramos uma das mil
figuras da dança feroz, bêbeda e desesperada da vida. Ah! A aniqui-
lação não existia, aquilo não tinha fim.115
60
tável como o ser de Parménides, e é aí, no radicalmente incondicionado, que o
hindu coloca as suas esperanças.
Salientamos que estes mitos e especulações, ou mitos especulativos se qui-
sermos, radicam na experiência concreta de certos ascetas hindus, que podería-
mos colocar em paralelo com os profetas de Israel ou os poetas gregos, pelo pa-
pel que desempenharam no imaginário das respectivas culturas. São eles o yogi e
o renunciante (sannyasin), categorias que muitas vezes se confundiram. O
primeiro representa o conhecimento e a prática de certas técnicas milenares que,
no dizer de Patañjali, o grande compilador do Yoga, visam “a supressão dos es-
tados de consciência”117, o que não corresponde propriamente a um estado de
indiferenciação e aniquilação pura e simples.
117Ib.,p. 47.
118Ib., p. 107-108: “La délivrance n’est pas assimilable au «sommeil profond» de
l’existence prénatale, même si, apparamment, le recouvrement de la Totalité obtenue par
l’enstase indifferenciée ressemble à la béatitude de la préconscience fœtale de l’être
humain. Il faut toujours tenir compte de ce fait, qui est capital: le yogin travaille sur tous
les niveaux de la conscience et du subconscient en vue de s’ouvrir la voie vers le
transconscient (la connaissance-possession du Soi, du purusa). Il pénètre dans le
61
É esta uma das grandes descobertas da Índia,
«sommeil profond» et dans le «quatrième état» (turîya, l’état cataleptique) avec une
extrême lucidité, il ne sombre pas dans l’autohypnose. L’importance accordée par tous les
auteurs aux états yogiques de sur-conscience, nous indique que la réintégration finale se
fait en cette direction, et non pas dans une «transe» plus ou moins profonde.”
119Ib., p. 12: “Il est impossible, par exemple, de passer à côté d’une des plus
grandes découvertes de l’Inde: celle de la conscience-témoin, de la conscience dégagée de
ses structures psychophysiologiques et de leur conditionnement temporel, la conscience
du « délivré », c’est-à-dire de celui qui a réussi à s’affranchir de la temporalité et, partant,
connaît la vraie, l’indicible liberté. La conquête de cette liberté absolue, de la parfaite
spontanéité, constitue le but de toutes les philosophies et de toutes les techniques
mystiques indiennes, mais c’est surtout par le Yoga, par l’une des multiples formes du
Yoga, que l’Inde a cru pouvoir l’assurer.”
62
diversas seitas —, será concebida em termos dos diversos estádios da experiên-
cia yógica.
63
o palácio, a esposa, as funções de Rei dos Deuses, e retira-se para as montanhas,
a fim de praticar o mais terrível ascetismo, e alcançar da forma mais rápida a liber-
tação.
É o mesmo passo que Arjuna, no Bhagavadgita, está prestes a dar, ao con-
templar o exército que tem diante de si para combater, composto em grande
parte por familiares e amigos. Todavia, pode perguntar-se se um príncipe como
Arjuna pode abandonar assim uma causa justa, ou se um Rei dos Deuses pode
deixar da noite para o dia os seus deveres e abandonar o universo à sua sorte.
No caso de Arjuna, é mais uma vez o Ser Supremo, na sua encarnação humana
como Krishna, que vem esclarecer as coisas, propondo-se a si mesmo como mo-
delo:
que cada um deve seguir o seu próprio caminho e realizar a sua vo-
cação, ou seja, em suma, realizar o seu dever. Mas como a sua voca-
ção e o seu dever eram de continuar a ser Indra, retoma a sua identi-
dade e prossegue as suas aventuras heróicas, sem orgulho e sem pre-
64
sunção, pois compreendeu a futilidade de qualquer «situação»,
mesmo sendo ela a de Rei dos Deuses…122
65
A priori, todas as vias estão abertas, tanto
no alto como em baixo. Cada ser,
condicionado por uma delas, nada tem a
temer nem nada a esperar, senão aquilo
que derivará impessoalmente da natureza
dessa via. No sentido mais absoluto,
cada coisa e cada ser são abandonados a
si próprios.
Julius Evola
3. Conclusão
66
A questão é tão mais pertinente quanto é certo que para nós não estão em
causa apenas mitos abolidos e mortos, mas mitos que continuam a viver no cora-
ção e na alma de outros seres, humanos como nós mas diferentes de nós também,
não tanto na cor da pele como sobretudo nos mitos com que dizem o mundo e o
seu lugar no mundo.
Como dissemos logo na introdução, e ao contrário de Ricœur, não pode-
mos abordar o universo dos mitos a partir da perspectiva privilegiada de um de-
terminado mito, embora também não queiramos “fazer-nos puros espectadores,
sem peso, sem memória, sem perspectiva, e tudo olhar com uma igual simpa-
tia”127. A nossa intenção é decididamente, tal como a de Ricœur, uma intenção
hermenêutica, isto é, de compreensão de si e de apropriação, e não de indife-
rença. Todavia, em nós, de algum modo, o círculo encontra-se quebrado: quere-
mos ainda compreender para crer, mas aquela crença que devia servir de base ao
nosso compreender encontra-se desfeita precisamente pela multiplicidade dos
textos que dizem o ser do mundo e do homem, e que nos deixa perplexos e in-
terditos.
Interrogamo-nos assim a partir de ruínas, e com a consciência de que essas
ruínas derivam precisamente do modo como construímos o edifício. Não somos
nós os herdeiros do espírito crítico grego, que o cristianismo conservou e trans-
mitiu? Como sair deste impasse, como reconstruir a verdade, a sanidade e a vida?
Que podemos nós aproveitar destes mitos que, num certo sentido, já não passam
de meros restos, meros vestígios, mas que apesar de tudo ainda nos interpelam
tanto?
A questão é imponente, e não é nossa ambição resolvê-la cabalmente.
Todavia, é ela que orienta o sentido do diálogo que queremos continuar com
Et si nous avions quelque raison d’en élire un contre tous, qu’avions-nous besoin
de prêter tant d’attention et de compréhension à des mythes que nous dirions abolis et
morts?”
127Ib.
67
Ricœur, numa tentativa de, através dele, ver um pouco mais além. Parece-nos,
com efeito, que para lá da primazia declarada do mito adâmico e da salvação pela
esperança, uma outra direcção se esboça a partir da leitura do discurso de
Ricœur, onde é possível vislumbrar outra solução para o problema, mais consen-
tânea com o nosso estado de indigência espiritual e com o respeito que nos me-
recem outras formulações da relação do homem com o sagrado.
68
Ao fazer o percurso dos mitos, por diversas vezes o tema do desejo vem ao
de cima, quase sempre de forma significativa. No mito de criação, encontramo-lo
em relação com a história de Gilgamesh, que parte em busca da imortalidade. É
talvez onde o tema se encontre na sua forma mais nua, despojado de considera-
ções morais e religiosas no sentido habitual do termo, relacionado unicamente
com as possibilidades e limites humanos. Como diz Ricœur, “a demanda de
Gilgamesh não tem nada a ver com o pecado, mas unicamente com a morte, intei-
ramente despojada de sentido ético e com o desejo de imortalidade”128. O desejo
não tem conotação positiva ou negativa, a não ser relacionado com a capa-
cidade ou incapacidade do homem para realizá-lo, embora se esboce já o tema da
inveja divina que impõe limites:
128Ib., p. 333: “La quête de Gilgamesh n’a rien à voir avec le péché, mais seulement
avec la mort, entièrement dépouillée de sens éthique et avec le désir d’immortalité.”
129Ib., p. 334: “Il est vrai que Gilgamesh et son compagnon tuent le géant de la forêt
et encore le «taureau du ciel» envoyé contre eux pour avoir maudit les dieux. Mais ce
meurtre n’a aucune signification coupable; c’est encore dans la perspective du désir
d’éternité qu’il faut l’interpréter; il signifie que le désir de l’homme est de partager
l’immortalité des dieux; c’est la jalousie des dieux qui fait de ce désir d’immortalité la
transgression d’une limite, figurée par la destruction du géant et du taureau du ciel.”
69
sequências. “A libertação deve ser, por assim dizer, conquistada por meio de alta
luta”130, implicando uma atitude decididamente viril. Todavia, ao contrário da
Babilónia, em que o herói fracassa e é reduzido à sua condição humana, dema-
siado humana, a Índia viveu desde sempre sob o signo dos «libertos em vida»,
dos «homens-deuses» 131, daqueles que demandaram e alcançaram a imortalidade.
No mito trágico esboça-se também o tema do desejo, sob a forma da hybris,
a desmesura que não é unicamente humana, mas mergulha, através da figura do
deus que desencaminha, na própria maldade do ser, dos deuses que, “saídos da
luta e votados à dor, têm uma espécie de finitude, a que convém a imortais; há
uma história do divino; o divino devém, através de cólera e sofrimento”132; o trio
formado por Zeus, Prometeu e Io, no Prometeu encadeado de Ésquilo, é uma das
melhores representações plásticas desse encadeamento fatal entre desejo, cólera
e sofrimento a nível de todo o existente: deuses, titãs, humanos, a própria
natureza, na forma do Cáucaso informe ao qual Prometeu está encadeado. O
tema encontra-se também no pensamento hindu, como o mito de Indra o revela, e
como Mircea Eliade explica:
70
embora não exista aquela associação entre dor e culpabilidade que existe no
pensamento judaico e que Ricœur crê encontrar igualmente no pensamento
grego.
A maioria dos homens está condenada a permanecer imersa nesta dor cós-
mica, através do desejo que a mantém presa ao horizonte imediato da vida e dos
seus objectivos limitados, que a torna solidária com este Cosmos ilusório, alimen-
tando o jogo sem fim dos vâsanâ ou potencialidades subconscientes que de-
terminam a experiência, nesta e noutras vidas. “A verdade é oculta por este
eterno inimigo do sábio que, sob a forma do desejo, é um fogo insaciável. Tem a
sua sede nos sentidos, na percepção, no pensamento; é por eles que, mascarando
a verdade, desvia o espírito.” 134
Desenha-se aqui uma aproximação entre a Índia e o orfismo, prolongado no
pensamento platónico, que exprime este poder do desejo, ligado também à
ignorância e à ilusão, numa citação que Ricœur repete por diversas vezes: “o
espantoso desta prisão [a prisão das paixões corporais], a filosofia deu-se conta,
é que ela é obra do desejo e que aquele que mais concorre para carregar o enca-
deado com as suas cadeias é talvez ele próprio.”135 Tal como na Índia, a reitera-
ção ilimitada da existência presa do desejo e do sofrimento leva a uma ultrapas-
sagem da ideia de sobrevivência, substituída pela de libertação: é “à própria al-
ternância da vida e da morte, à reiteração, que é necessário subtrair-se; a alma
«divina», é a que pode ser liberta desta geração mútua dos estados contrários, da
«roda das gerações»”136.
No mito adâmico encontra-se também uma alusão a este ciclo infernal do
desejo, cuja origem radica precisamente na queda ou desvio representada pela
71
desobediência de Adão, fazendo uma vez mais do mal ou do sofrimento qual-
quer coisa de conatural à história e, através da figura da serpente, ao próprio
cosmos enquanto manifestação ou criação.
137Ib., p. 394: “L’ère ouverte à la liberté par la faute est une certaine expérience de
l’infini qui nous masque la situation finie de la créature, la finitude éthique de l’homme.
Désormais le mauvais infini du désir humain — le toujours autre, le toujours plus — qui
anime le mouvement des civilisations, l’appétit de plaisir, de possession, de pouvoir, de
connaissance — semble constituer la réalité humaine.”
138O conflito das interpretações, pp. 334-335.
139Finitude et culpabilité, pp. 310-311.
72
ção ou da libertação. É nesta perspectiva que eles não se limitam a descobrir o
desejo na raiz de todos os males que afectam o homem, mas podem ser vistos si-
multaneamente como uma espécie de pedagogia, orientando o esforço de existir
do homem numa determinada direcção, levando-o a escapar ao desejo cego que
o torna, tal como ao herói trágico, involuntariamente culpado.
Assim, o mito de criação alista o homem na acção criadora e ordenadora do
deus, o mito trágico rectifica a sua visão através dos sentimentos de piedade e
terror em relação ao sofrimento injustificado, o mito da alma exilada obriga-o a
separar e a purificar o desejo através do conhecimento, enquanto o mito adâmico
desvia a atenção do seu horizonte imediato e restrito para o inserir numa
totalidade que se anuncia como esperança e por isso mesmo é compatível com a
sua liberdade. Formulados desta maneira, é difícil preferir um ao outro, e não é de
estranhar que Ricœur acabe por englobá-los a todos, embora de forma subordi-
nada, no mito adâmico. Todavia, para além da esperança, esboça-se em Ricœur,
através da meditação sobre a figura de Job, uma outra perspectiva, que podería-
mos caracterizar como a do desejo rectificado, fruto de uma sabedoria que, tal
como a sabedoria trágica, não pode ser ensinada, mas orienta-se para uma
“renúncia aos próprios desejos cuja ferida gera a queixa: renúncia em primeiro
lugar ao desejo de ser recompensado pelas suas virtudes; renúncia ao desejo de
ser poupado pelo sofrimento”140.
Talvez estejamos finalmente a sair do mito, no sentido de alcançarmos uma
sabedoria emancipada de qualquer laço com um mito específico141, mas que pode
ser a lição de todos eles. Ricœur aponta aqui para um possível sobreposição da
73
sabedoria judaico-cristã com a sabedoria budista, mas também o sage hindu, com
o olhar purificado pela contemplação da sucessão infinita dos mundos, nos
mandava aceitar com equanimidade tanto o prazer como a dor, o sucesso como o
fracasso, renunciando ao fruto das acções. É-nos dado agir, mas a nossa acção,
como diz Lévinas, representante do outro lado da nossa tradição, “enquanto
que orientação absoluta para o Outro — enquanto sentido — só é possível na
paciência, a qual, levada ao limite, significa, para o Agente: renunciar a ser o
contemporâneo do resultado, agir sem entrar na Terra Prometida”142.
Chegados a este ponto, não nos é possível dizer muito mais. Este desejo
rectificado, não-narcísico, que talvez seja aquilo que possa ser propriamente
chamado amor, introduz-nos numa dimensão que talvez já não seja própriamente
humana, como o parecem querer significar uma série de formulações tradicionais
de carácter mais ou menos paradoxal: Jesus diz que “quem quiser salvar a sua
vida perdê-la-á” (Lucas, 9, 24), e o yogi, no final do percurso que o leva à liber-
tação, já não se encontra a si mesmo como homem. A nós, que continuamos hu-
manos, mas que estamos em vias de perder as ilusões, resta-nos, como a Ricœur,
“discernir no sofrimento um valor purgativo e educativo”143, uma rectificação
do olhar e do desejo, e contentarmo-nos no máximo com um Deus sem os atribu-
tos da «providência», um Deus que não nos protege mas nos entrega aos perigos
de uma vida digna de ser chamada humana 144.
74
BIBLIOGRAFIA
Outros textos
• AAVV, Mircea Eliade, Paris, Éditions de l’Herne, 1978.
• BIARDEAU, Madeleine, Clefs pour la pensée hindoue, Paris, Seghers, 1972.
75
• COSTA, José Miguel Stadler Dias, Anamnese e reconciliação. A teoria da
História em Paul Ricœur, Braga, 1990 (dissertação de mestrado em Filosofia
apresentada à Universidade Católica Portuguesa).
• DAVY, Marie-Madeleine, (dir.), Encyclopédie des mystiques, 4 vol., Paris,
Seghers, 1977, 1978.
• ESNOUL, Anne-Marie, e LACOMBE, Olivier (trd.), La Bhagavad Gîtâ, Paris,
Arthème Fayard, 1972.
• EVOLA, Julius, Revolta contra o mundo moderno, Lisboa, Publicações D.
Quixote, 1989.
• HAMILTON, Edith, A mitologia, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1983.
• HESSE, Hermann, O jogo das contas de vidro, Lisboa, Publicações D.
Quixote, 1989.
• JABOUILLE, Victor, Iniciação à ciência dos mitos, Lisboa, Editorial
Inquérito, 1994 (2.ª ed.).
• LÉVI-STRAUSS, Claude, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro, Tempo
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Morgana, 1972.
• MONGIN, Olivier, Paul Ricœur, Paris, Seuil, 1994.
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1988.
• SUMARES, Manuel, Para além da necessidade. O sujeito e a cultura na fi-
losofia de Paul Ricœur, Braga, Editora Eros, 1987.
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SUMARES, Quando ser sujeito não é sujeitar-se, Braga, Angelus Novus,
1993.
• TEIXEIRA, Joaquim de Sousa, “Paul Ricœur e a problemática do mal”, em
Didaskalia, 7(1977).
76
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de Paul Ricœur, Lisboa, 1993 (dissertação de doutoramento em Filosofia
apresentada à Universidade Católica Portuguesa).
• ZAEHNER, R. C., (ed. e trd.), Hindu scriptures, Londres, J. M. Dent & Sons,
1966.
77
ÍNDICE
0. INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 1
1. DO SÍMBOLO AO MITO...................................................................................................6
1.1. O problema do mal ..................................................................................................6
1.2. A simbólica do mal................................................................................................13
1.3. Mitos e símbolos primários...................................................................................20
2. OS “MITOS” DO PRINCÍPIO E DO FIM.....................................................................25
2.1. A função simbólica dos mitos..............................................................................27
2.1.1. Criteriologia do mito................................................................................27
2.1.2. Tipologia dos mitos..................................................................................33
2.2. O ciclo da exterioridade.......................................................................................36
2.2.1. O drama de criação e a visão «ritual» do mundo .................................38
2.2.2. O deus mau e a visão «trágica» da existência......................................40
2.2.3. O mito da alma exilada e a salvação pelo conhecimento ...................44
2.3. O mito adâmico e a visão «escatológica» da história.......................................47
2.4. A mitologia hindu: eterno retorno e libertação ................................................52
2.4.1. Mitos hindus do tempo e da eternidade ...............................................56
2.4.2. Eterno retorno e libertação.....................................................................59
2.4.3. A acção desinteressada...........................................................................63
3. CONCLUSÃO ...................................................................................................................66
3.1. O desejo rectificado ..............................................................................................68
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................76
78