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Para historiador, o saber de hoje passa pela

imagem
SHEILA SCHVARZMAN
Especial para a Folha de S.Paulo

Num momento em que um filme como "Olga" desencadeia críticas negativas e defensores
apaixonados, é bom ter por perto Marc Ferro, o historiador francês que, nos anos 70, passou a
utilizar o cinema como objeto de estudo.

Na próxima semana, o historiador participa do Recine, no Rio, depois fala no Sesc Paulista, em
São Paulo, e se apresentará também na Unicamp. Ferro traz de novo à discussão os usos e
abusos da imagem, não se limitando apenas às formas de representação da história pelo cinema
mas também de como o cinema e a televisão se converteram em produtores autorizados de
interpretações históricas, superando os livros.

Autor de extensa bibliografia sobre a história contemporânea, Ferro não se limitou a criticar
imagens. Ele é também um produtor de documentários e programas de televisão.

É no trânsito entre a observação crítica das imagens e a sua construção que pôde realizar seus
trabalhos mais significativos, como o programa "Histoire Parallèle", onde comparava cinejornais
produzidos durante a guerra pelos diferentes países beligerantes, ou seus livros, onde a
"história" dos historiadores tem o mesmo estatuto dos mitos, fábulas e filmes.

No Rio, Ferro vai participar de um colóquio sobre "Cinema Revolucionário". Mostrará seu filme
sobre Lênin, feito em 1970 a partir de documentos fílmicos inéditos, além de filmes de um
minuto onde sintetiza em imagens a história do século 20. Leia abaixo trechos da entrevista de
Ferro à Folha, por telefone, de Paris.

Folha - O que há de particular nos filmes sobre as revoluções?

Marc Ferro - Em geral, os filmes mostram como os indivíduos reagem a um evento


revolucionário de cuja organização não participaram. No documentário sobre Lênin, utilizei
imagens de arquivo que eram, em grande medida, desconhecidas. O filme não tem narrador,
pois um comentário, nesse caso, seria necessariamente ideológico. O comentário foi feito apenas
de frases de Lênin.

Folha - Mas o senhor crê que essa é a melhor forma de ser fiel ao pensamento do
sujeito em questão?

Ferro - Sim. Lênin comenta a situação mundial de 1910 a 1930, e essas frases permitem
conhecer outras situações históricas e examinar como o cinema representa os fenômenos
históricos. Por outro lado, foi fazendo esse filme que eu percebi que é impossível, mesmo no
documentário histórico, não utilizar processos dramáticos narrativos, e isso ao mesmo tempo
enriqueceu também a minha forma de encarar o meu trabalho como historiador. Permitiu
compreender que os filmes não são apenas reveladores de uma sociedade. A estrutura de um
roteiro tem modelos de narração, cujo processo dramático ajuda o imaginário do historiador.

Folha - Isso ajuda também a perceber como o cinema representa a história?


Ferro - Os filmes históricos americanos, feitos nos anos 50, glorificam a marcha para o Oeste ou
mostram o triunfo do Ocidente sobre o Oriente. "Sansão e Dalila", "Ben Hur" legitimam o
imperialismo americano primitivo, ou seja, a conquista do Oeste, e o cristianismo que vai junto.

Por outro lado, no caso da representação das revoluções, o cinema americano só mostra as
conseqüências negativas: crimes, abusos, violência. Eles não mostram as causas das revoluções,
ou por que elas existem. No sentido oposto, o cinema russo dos anos 20 mostra as causas e não
mostra as conseqüências. Exemplos são "A Mãe", de Pudovkin e "Encouraçado Potemkin", de
Eisenstein.

Assim, se observa como a direção, a escolha dos cenários e personagens é ideológica. Desta
forma, temos dois enfoques sobre a revolução totalmente inversos.

Folha - E o filme de Eric Rohmer, "A Inglesa e o Duque", introduz um outro ponto de
vista?

Ferro - O filme de Rohmer sobre o tema da revolução inova apenas do ponto de vista formal,
mas no conteúdo é o mais reacionário dos filmes reacionários.

Folha - Mas ele tem um ponto de vista interessante?

Ferro - Sim, sem dúvida, mas é sempre o modelo das boas e belas pessoas vítimas de gente
ruim e feia, da multidão ensandecida, do povo, ou seja, dentro da tradição contra-revolucionária,
muito comum no pós-guerra francês na historiografia, na literatura e no cinema, com Sacha
Guitry, por exemplo. Claro que Guitry é mais leve e muito menos bem cuidado esteticamente do
que Rohmer, e sua abordagem não tem a mesma densidade. Entretanto Rohmer, que é
conhecido como um bom cineasta, faz aqui um filme com o ponto de vista da direita. Ele revelou
nesse filme seus sentimentos políticos profundos.

Folha - O cinema está voltando a se engajar em causas políticas? Como o senhor vê


"Fahrenheit 11 de Setembro", de Michael Moore?

Ferro - Sim, parece que nos Estados Unidos há uma tendência a querer, como sempre, fazer do
cinema um agente político. Mas a questão que se coloca é se ele é eficaz politicamente, e isso
não há como medir ou controlar. Em geral, o cinema engajado é eficaz pelas críticas que faz e,
sobretudo, pela repercussão crítica positiva que ele obtém na imprensa.

São filmes bem vistos entre os intelectuais, mas não passam disso. Por outro lado, não há dúvida
de que se assiste hoje nos Estados Unidos, de novo, um cinema com tendências políticas, coisa
que não se ousa fazer na Europa. É o caso de Michael Moore, mas pode-se dizer que também é
o de Spielberg, com seu "A Lista de Schindler", que pode ser discutível do ponto de vista formal,
mas que resgatou um "justo", coisa que o envolvimento dos europeus não permitiu fazer até
hoje. A Europa não é capaz de ir até o fundo em seus problemas com a guerra. Mas isso
acontece também com os americanos, com relação ao problema negro e aos índios. São os
tabus de cada sociedade.

Folha - Os americanos jamais falam dos índios, e no entanto sempre falam do Oeste.

Ferro - Os americanos fizeram alguns filmes sobre o massacre dos índios ("O Pequeno Grande
Homem", e, mais recentemente, "Dança com Lobos"), mas isso não mudou em nada a situação
deles nos EUA. Eles continuam nas mesmas reservas de antes. Nada mudou. O cinema não tem
nenhuma influência política, ainda que deseje isso muitas vezes. Ele não tem a eficácia que se
imagina, ou ela não está exatamente ali onde se pensa que está.

Folha - Então, o que é específico do cinema de Michael Moore?

Ferro - O produto de Michael Moore é fazer dele mesmo um agente da verdade. E sem dúvida
está conseguindo alguma coisa.

Folha - O sr. aponta que a multiplicação das mídias não significou mais conhecimento
para os indivíduos, mas, ao contrário, a perda de referências. Por que isso acontece?

Ferro - Estamos numa situação em que, devido à multiplicidade de canais que produzem
informações, o indivíduo está exposto à incerteza. No noticiário há notícias, mas não há
comentários; nos programas de entrevistas há comentários, mas não há informação. E eles nunca
se comunicam.

O cinema traz uma outra dimensão ao conhecimento, porque aborda os problemas de um ângulo
diferente daqueles produzidos pelos outros canais. São recortes distintos, criativos.

Assim, temos sistemas de conhecimento que não se comunicam no interior de si mesmos, e


entre si. O indivíduo fica perdido, não compreende nada, ele zapeia, passando por um jornal, um
programa de variedades, cinco minutos de um documentário, e não vê claro, perde a lucidez
política.

Folha - E a internet?

Ferro - Nela, o indivíduo tem toda a liberdade de escolher aquilo que quer saber, mas ele não
tem referências para julgar se aquilo que encontra é necessário, útil ou correto. É como se
estivesse cego.

Folha - Diante dessa cegueira e da banalização do audiovisual, como é possível


decifrar as imagens?

Ferro - Hoje em dia, através da televisão e do cinema, as pessoas estão mais bem informadas
do que há 30 anos atrás. Isso produz uma chuva de informações que são bem gravadas pelo
público, mas que não são coordenadas, são totalmente disparatadas. Há 30 anos havia menos
informações, mas, como havia polarização ideológica, o indivíduo era chamado à aderir ou a
combater, e assim acreditava ver claro, enquanto hoje se sabe que não é possível ter clareza de
nada.

Folha - O que mudou com o cinema e a história?

Ferro - A história feita pelo cinema toma cada vez mais o lugar daquela feita pelos livros. Para
uma criança de hoje, a Segunda Guerra Mundial é a imagem que se pode pensar a partir dos
filmes, o saber passa necessariamente pela imagem, e vários historiadores entenderam que é
preciso fazer filmes e não apenas livros.

Folha - O sr. teve uma experiência nesse sentido.

Ferro - Sim, mas foi bem complicado e agora só faço emissões para televisão a partir de
documentos, como fiz com o "Histoire Paralèlle", onde comparamos cinejornais de atualidades
produzidos durante a Segunda Guerra Mundial pelos diferentes países envolvidos. O programa
mostrou um outro campo de batalha, onde os adversários se enfrentavam através de golpes de
imagem. Vendo essa lavagem cerebral é possível medir a força das mídias hoje, sobretudo a
americana.

Folha - Estamos assistindo, no Brasil, ao impacto de "Olga", filme sobre uma


revolucionária alemã que ajudou Prestes no levante comunista de 1935. Em meio a
suas ações, eles viveram também um romance. O filme privilegiou esse aspecto e
tornou muito sentimentais os demais aspectos.

Ferro - Há pouco tivemos na França um filme sobre Hitler que se converteu numa história de
amor. Chama-se "Hitler". No filme, vemos como ele obtinha crédito para o seu partido na
Alemanha nos anos 1920 e 1930, da mesma forma que as suas relações amorosas. Essa é a
tentação atual de todo cineasta. Não existe mais controle. Em nome de sua criatividade, eles
podem fazer qualquer coisa. Dessa forma, cria-se uma história paralela sem relação com o que
aconteceu.

Folha - Mas por que a história atrai tanto os cineastas?

Ferro - Por que as pessoas querem entender o que vivem. E como o filme lhes dá uma abertura
sobre algumas coisas, elas acreditam que essa abertura é a inteligibilidade total, embora seja
parcial e, sobretudo, falsa.

MARC FERRO
Onde e quando: Recine (tel.0/xx/21/2210-1052), dia 14, às 15h; Sesc Paulista (tel. 0/xx/11/
3179-3400) dia 16, às 19h30; Unicamp (tel.0/xx/19/ 3788-2121), dia 17, às 10h.

Sheila Schvarzman é doutora em história pela Unicamp, historiadora pelo Condephaat e autora de "Humberto Mauro
e as Imagens do Brasil (Edunesp, 2004)

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