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O facto provado n.

22 no processo do cozinheiro com VIH

Comunicado do G.A.T. – Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/SIDA – Pedro Santos,
associação de pessoas infectadas ou afectadas pelo VIH.

Sobre a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que dá razão ao hotel que cessou contrato com
cozinheiro com VIH e o comunicado do Conselho Superior da Magistratura

Portugal, 8 de Outubro de 2008

O GAT considera que num país onde um tribunal de primeira instância dá como provado que "O vírus
HIV pode ser transmitido nos casos de haver derrame de sangue, saliva, suor ou lágrimas sobre
alimentos servidos em cru ou consumidos por quem tenha na boca uma ferida na mucosa de qualquer
espécie" (convidamos a que analisem com atenção o uso do português na frase) e que tal decisão é
ratificada pela Tribunal da Relação, pelo Supremo Tribunal de Justiça e apoiada, em comunicado, pelo
Conselho Superior da Magistratura, estão reunidas as condições para excluir legalmente qualquer ser
humano com infecção VIH de todo o contacto social no nosso país, com base numa mentira científica.

Consideramos que só com o empenho dos melhores no conhecimento científico, político, direitos
humanos, jurídico, do estado de direito democrático e meios comunicação social se poderá mudar esta
lamentável situação.

Sozinhos incapazes de obstar à acumulação deste tipo de decisões legais, disparatadas, ignorantes e
danosas.

A manter-se este estado das coisas estão criadas as condições para um aumento exponencial da
discriminação, estigma e exclusão das pessoas que vivem com VIH.

O GAT subscreve também os textos abaixo, do Pedro Silvério Marques, fundador, e actualmente membro
do Conselho Consultivo, do GAT e o texto da Ana Abecasis e Anne-Mieke Vandamme publicado no
último número da revista do GAT "Acção & Tratamentos"
Texto 1
Entre o fundo e a forma

Lisboa 3 de Outubro de 2009

Pedro Silvério Marques

Fundador do GAT e actualmente membro do Conselho Científico do GAT

Confrontado com o caso – único na história da justiça portuguesa – de pedido de Justiça de um cidadão
seropositivo, por essa razão despedido pelo seu empregador, toda a estrutura judicial percorrida –
Tribunal de Trabalho, Relação de Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, com a "oportuna" cobertura do
Conselho Superior de Magistratura – tanto quanto é do conhecimento público através do documento
8843547 da Agência Lusa sobre Leis, Tribunal, Trabalho, Sociedade emitido às 18:09 do dia 02/10/2008
– justificaram com eventuais deficiências dos mecanismos processuais, deficientemente utilizados pelo
defensor do queixoso, a sua demissão do cumprimento das suas atribuições constitucionais mais básicas –
na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos
de interesses públicos e privados – como órgãos de soberania.

Ignorando que só se justificam como órgãos de soberania para "administrar a justiça em nome do povo" e
que no desenvolvimento da sua função jurisdicional lhes incube "assegurar a defesa dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos e reprimir a violação da legalidade" a estrutura judicial
recusou-se a proteger direitos constitucionais democráticos – Artigos 9.º, 13.º, 18.º, 26.º, 47.º, 53.º, 58.º,
59.º, 71.º, pelo menos – e a aplicar a legislação de protecção contra a discriminação – Lei n.º 134/99, D.R.
n.º 201, I Série-A, de 28 de Agosto, Decreto-Lei n.º 111/2000, D.R. n.º 152, I Série-A, de 4 de Julho, Lei
n.º 46/2006 de 28 de Agosto e Decreto-Lei n.º 34/2007 de 15 de Fevereiro – que, expressamente, proíbe e
pune a discriminação em razão da deficiência e da existência de risco agravado de saúde.

Discriminação, não – todos têm (más) razões

A culpa foi do trabalhador!

As declarações que constam no texto distribuído pela Agência Lusa a que nos referimos são um fino
exemplo de justificações enviesadas, contorcionismos jurídicos, relevar de culpas e endosso de
responsabilidades pela decisão final dos tribunais de considerar "justificada e legítima a decisão" do
Grupo Sana Hotels de terminar o contrato de trabalho com um cozinheiro portador do VIH.

A começar no eterno denunciador – o médico assistente, que não cumpriu o seu dever de
confidencialidade sobre o estado de saúde do seu doente, passando pela sempre singular figura do médico
do trabalho – a quem a dualidade de obediências faz, normalmente, esquecer a ética médica para
satisfazer o patrão que lhe paga – o patrão, pois claro, que diz que não sabia quando despediu mas que
invoca violação do dever de lealdade para dar por terminado o vinculo laboral, incluindo o advogado do
queixoso – que não terá apresentado qualquer parecer médico-científico e que só fez chegar à Relação um
parecer jurídico "fora de prazo" e que não terá recorrido adequada e atempadamente de factos fixados e
decisões anteriores.

Do comunicado da Lusa parece mesmo entender-se que o sistema judicial deu razão ao empregador
quando esclarece que o trabalhador "não foi objecto de despedimento com justa causa, antes a entidade
empregadora considerou a existência de caducidade do contrato de trabalho". Por causa da tal alegada
violação do dever de lealdade?

Ignorância e pareceres científicos

Este é mais um triste caso a documentar a ignorância dos sistemas judiciais e dos seus agentes como
referimos no último número do "Acção & Tratamentos".

Nas entrelinhas, desta e anteriores declarações da Lusa, entende-se que os mesmos documentos –
oriundos do Centro de Controlo de Doenças dos EUA (US CDC) – podem ter dignidade suficiente para o
tribunal considerar certos factos como provados – "O vírus HIV pode ser transmitido nos casos de haver
derrame de sangue, saliva, suor ou lágrimas sobre alimentos servidos em cru ou consumidos por quem
tenha na boca uma ferida na mucosa de qualquer espécie" – mas que já não satisfazem o seu alto critério
quando reduzem a probabilidade desses mesmos factos a zero – "nunca se conseguiu demonstrar que do
contacto com saliva, lágrimas ou suor resultasse a transmissão do VIH", que "ao secarem, o sangue ou
outros fluidos corporais humanos infectados com o VIH, reduz-se o risco teórico de transmissão
ambiental ao que tem sido observado – essencialmente zero" e, especificamente, que " em indústrias
como a da restauração não existe qualquer risco conhecido de transmissão do VIH através de contacto
a colegas de trabalho, clientes ou consumidores" (CDC, 1999 #3).

Parece claro que, na impassibilidade do seu Olimpo jurídico, intocáveis na responsabilidade pelas suas
decisões, os membros do sistema judicial envolvidos terão sido impecáveis a avaliar as imperfeições
processuais e acharam bastante e suficiente a sua ignorância médico-científica para se sentirem
confortavelmente capacitados a ditar uma sentença que não prestigia nenhum tribunal nem nenhum país.

As explicações avançadas pelo Conselho Superior da Magistratura constituem uma "pérola" cuja leitura
recomendamos aos distraídos que por aí andam a explicar que em Portugal "já não há discriminação das
pessoas que vivem com o VIH".

Regular os reguladores

Com a tempestade que vai pelo mundo fora em relação ao papel e funções dos reguladores e responsáveis
pelo cumprimento das ordenações éticas, profissionais e deontológicas e das Leis, é bem capaz de chegar
um momento em que as pessoas, os cidadãos que sentem que têm um dever de cidadania na denúncia que
fazem de situações como estas, comecem a pensar em quem deve começar a julgar os julgadores.
E, aí, o esquecimento das obrigações e justificações constitucionais e a responsabilidade solidária dos
órgãos do estado e dos órgãos de soberania pelo seu incumprimento talvez venha a merecer mais do que
um despacho de agência noticiosa, destinado a perder-se numa página esquecida de um qualquer jornal.

texto 2

Os pareceres dos peritos em VIH e as decisões dos tribunais

Ana Abecasis e Anne-Mieke Vandamme

Katholieke Universiteit Leuven

Laboratory for Clinical and Epidemiological Virology

AIDS Reference Laboratory

Rega Institute for Medical Research

Leuven, Belgium

Nas últimas décadas têm sido vários os casos jurídicos de discriminação relacionada com o estatuto de
seropositivo para o VIH e a possibilidade de transmissão do vírus

Nestes casos a opinião dos peritos pode ser extremamente valiosa e, muitas vezes, decisiva. Embora por
vezes tais pareceres científicos sejam solicitados noutros, os tribunais têm decidido sem consultar nenhum
perito.

O caso da Líbia

Provavelmente, o caso mais famoso em que o tribunal não aceitou a evidência científica e a opinião dos
peritos foi o que ocorreu na Líbia, no qual um membro – estrangeiro – da equipa médica de um hospital
foi preso durante oito anos acusado de infectar crianças nesse hospital.

Mesmo antes de ser anunciada a sua condenação à morte, foi publicado na Nature um estudo (de
Oliveira, et al. Nature. 2006; 444:836-7) que demonstrava que as estirpes do VIH 1 e do VHC que
tinham infectado as crianças já circulavam e eram prevalentes naquele hospital antes da chegada do
médico acusado. No entanto o tribunal ignorou o estudo científico e só em resultado de negociações
políticas é que o acusado foi libertado.

Mas o que é um facto é que casos jurídicos anteriores já tinham demonstrado a importância da evidência
científica e da opinião dos peritos. Embora o caso do dentista da Florida tenha sido o primeiro
profundamente fundamentado na evidência científica da transmissão, nessa altura o tribunal não
considerou os dados apresentados (Ou, et al. Science. 1992; 256:1165). No entanto, as companhias de
seguros usaram-nos para acordar, extrajudicialmente, as indemnizações devidas.

O primeiro caso em que um relatório médico científico foi utilizado na justiça foi um caso de violação
ocorrido na Suécia (Albert, et al. J Virol. 994; 68:5918-24), tendo o relatório do perito contribuído para a
condenação do acusado.

O do cozinheiro português

Um tribunal português deu razão a um hotel no despedimento de um cozinheiro com infecção VIH,
considerando-o legítimo e justificado porque o estatuto de positivo para o VIH do empregado podia
representar um risco para a saúde pública. A opinião dos peritos foi solicitada e, depois, ignorada.

O relatório científico apresentado em tribunal incluía documentação do Centro de Controlo de Doenças


dos EUA (US CDC) onde se afirma que "o VIH 1 pode ser encontrado na saliva, lágrimas e sangue", que
"nunca se conseguiu demonstrar que do contacto com saliva, lágrimas ou suor resultasse a transmissão do
VIH", que "ao secarem, o sangue ou outros fluidos corporais humanos infectados com o VIH, reduz-se o
risco teórico de transmissão ambiental ao que tem sido observado – essencialmente zero" e,
especificamente, que " em indústrias como a da restauração não existe qualquer risco conhecido de
transmissão do VIH através de contacto a colegas de trabalho, clientes ou consumidores" (CDC, 1999
#3).

O tribunal decidiu utilizar apenas a parte do relatório que menciona que " o VIH 1 pode ser encontrado na
saliva, lágrimas e sangue" ao que juntou a sua própria interpretação. Segundo os argumentos dos juízes
"mesmo que a informação (do CDC) refira que nunca alguém foi infectado por um contacto ambiental,
esta afirmação não é relevante para a discussão. A questão em análise" segundo o tribunal "não é avaliar o
risco conhecido, mas excluir a possibilidade de risco". Estas afirmações, para além de cientificamente
erradas e incorrectas, só contribuem para a discriminação das pessoas com infecção VIH.

Este caso recente é apenas a ponta do iceberg uma vez que a maioria dos casos semelhantes ficam por
conhecer pois as pessoas dificilmente apresentam queixa contra os seus empregadores. Para evitar
decisões jurídicas baseadas em falsas premissas e com impactos negativos na integração das pessoas
VIH+ na sociedade, torna-se necessário criar um procedimento estandardizado a propósito de como
devem ser considerados os pareceres dos peritos

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