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uçò DE

LI NGUISTICA GERAL
(Ediçãq revista e coårrigid pelo autor) Q .
as
Premussas Hrstórrcas da a
l.||'lgU|SÍ|Cõ Moderna ·
1.1. Para oferecer uma idéia panorâmica da lingüística moderna toma-se neces— ,
Sário, antes de tudo, Colocála no seu contexto histórico, tanto mediato quanto
imediato e, após ter procurado quais os motivos e intuições do passado que servem
de base a teorias e orientações atuais, apresentar destas uma síntese orgânica, que
permita formular uma série de propostas satisfatórias a respeito do problema fun-
damental: "Que se entende, hoje, por linguagem?"
1.2. Comecemos por uma observação óbvia: quem quer que depois de ter seguido
um curso de lingüística em uma universidade italiana, se detenha no estudo da cha-
mada lingüística moderna, entendendo como tal as várias correntes surgidas das
primeiras décadas do nosso século, é surpreendido pela diferença entre os proble-
mas e os argumentos desta e daquela. É envolvido, por assim dizer, numa sensação
de novidade, mais aparente do que real, quando confronta a pesquisa lingüística do
século XIX com as formulações da lingüística "modema”, como se entre estas duas
existisse uma evidente rutura.
, Há mais ainda: quem procurar um Seguro nexo condutor entre as várias expe-
riências da lingüística moderna e imaginar que poderá encontrar uma explicação
coerente de certos fatos em manuais introdutórios, se sentirá frustrado e perceberá
que os manuais, introduzindo o leitor, na realidade, numa detemiinada visão da
lingüística, oferecem não um panorama completo mas sim setorial, com desconhe-
cirrrento freqüente de algumas orientações que outros manuais, por seu tumo, põem
emevidência. · '
A lingüística modema apresenta uma tal variedade de temas, concepções e
hipóteses (formuladas muitas vezes numa linguagem que não hesitaríamos em clas-
silicar de esotérica), que o iniciante, apesar de fascinado, não deixa de ficar tam-
« bem aturdido. Daí os lingüistas deproñssão educados para trabalhar segundo
2 LIÇÕES DE LINGÜIŠTICA GERALV
cnones tradicionais lhe darem seguidamente um valor negativo, colocando em re-
levo a escassa validade operacional, devida ao abismo existente entre arcabouço
teórico e resultados práticos. A lingüística tradicional, a chamada histórica, era mais
concreta, é o que se ouve dizer em muitos lugares, especialmente na Itália; mal-
grado existissem nela divergências até mesmo fundamentais, como entre os defen-
sores da lingüística genealógica e os da lingüística geográfica, havia um acordo subs-
tancial na escolha dos temas a enfrentar. Quem teria jamais discutido, por exemplo,
sobre a teoria da sintaxe?
1.3. Primeiramente foi assinalado o caráter de aparente novidade, próprio da
güística moderna. Ora, é oportuno distinguir entre novidade efetiva e desenvolvi-
mento, com roupagem modema, de temas já conhecidos. Isto posto, não há dúvida
de que a lingüística moderna encara, de um lado, problemas sobre a natureza e
estrutura da linguagem que a lingüística tradicional havia desprezado; por outro
lado, ela não se ocupa absolutamente com indagações históricas; ou então, procura
justiñcar a história (desenvolvimento) partindo da descrição (estrutura).'Entretanto,
é evidente, antes de tudo, que, dado o caráter abstrato e quase filosófico dessas ,
preocupações, a lingüística atual deve reelaborar e desenvolver a seu modo tais
temas e problemas que, constituindo-se em interesses culturais particulares, caduca- a
ram e não foram considerados como objetos de ciência, principalmente na segunda
metade do século XIX. _
1.4. É opinião comum, introduzida na realidade pelos estudiosos desses períodos,
que a lingüística científica é aquela que se segue à difusão da comparação como
estudo sistemático das correspondências entre as línguas. Mas se a esta visão, tão
legítima quanto estreita, opusermos uma outra que considera lingüística qualquer
forma de reflexão sobre a linguagem, a lingüística modema parecer-nos-á um re .
I torno a temas essenciais da especulação lingüística do século XVIII, a qual, por sua
vez, reelaborava motivos intrinsecamente ligados às discussões mantidas já na anti-
güidade clássica sobre a origem e as características da linguagem.
- Distinguindo portanto a lingüística histórica e comparada da lingüística geral,
teremos o seguinte quadro da sucessão dos interesses lingüísticos através dos tem-
A pos: . _. A
a) Da antiguidade clássica até 0 Renascimento predominam problemas de
definição, relativos, por exemplo, à essência da linguagem e às categorias das lín-
guas, e problemas de descrição. Até o Renascimento quem se ocupou de línguas `
teorizou sobre a linguagem e descreveu língua, baseado freqüentemente no que já,
fora teorizado, por ele mesmo ou por outros. '
b) No Renascirnento, mesmo não descurando por completo a preocupação
teórica, há predominância de uma outra, que não fora absolutamente ignorada an-
tes: a histórico-comparativa. Comparamse línguas diversas ou também fases histó- .
ricas de uma língua e se procura a explicação de fatos históricos. Exemplo
PRENIISSAS HISTÓFHCAS DA LINGÚIŠTICA MODERNA 3
disto é a indagação por que o latim se transformou em italiano, francês, espanhol,
etc. Muitas soluções da lingüística histórica do século XIX já tinham sido anuncia-
das no Renascimento mas, como é óbvio, com um reduzidíssimo instrumental teó-
rico. Formulavase de fato uma hipótese sobre a evolução natural das línguas, ou
as modificações eram atribuídas a influxos de substratos ou superstratos (ex.: para
as línguas romnicas,—a influência de um superstrato germânico). Estas mesmas
questões predominam até o final do século XVII.
C) No século XVIII problemas antigos são retomados, discute-se novamente,
por exemplo, a teoria e descrição. Esta é, com efeito, a época da gramática geral e
da descrição de algumas das línguas modernas. De acordo com esta temática, não é
surpreendente que na lingüística do século XVIII sejam encontradas várias questões
passíveis de ser julgadas atuais. Quem ler, por exemplo, Hermes, de James Harrisl,
das obras lingüísticas mais importantes do século, poderá ter a impressão, ao
menos no que diz respeito à colocação de certos problemas, de se achar diante de
um trabalho de nossos dias.
d) Com o século XIX temos, de certo modo, um retomo à problemática do A
Renascimento, estando o interesse voltado principalmente para comparação e his-
tória. Quem, entretanto, baseandose no preconceito de que somente agora esti-
vesse nascendo um método históricocrítico, fizesse coincidir com este século o nas-
cimento da lingüística moderna, certamente estaria ignorando a especulação pre-
cedente e sobretudo identificaria a lingüística moderna com a histórico-compara
tivajecomo se fosse esta a nossa verdadeira disciplina. Todavia apenas um motivo,
não novo, é retomado, e além do mais — enquanto solicitado pelo contexto his-
tórico particular — oposto aos da lingüística do século XVIII.
e) A lingüística atual é novamente dominada pelas questões seguintes: 1) o
problema da teoria, com várias orientações e teorias da linguagem diferentes entre
si; 2) o problema da descrição e da aplicação, com propostas de questões práticas °
também no âmbito da lingüística histórica. A lingüística atual, portanto, reelabora,
mas à maneira de tese e antítese, a problemática do século XVIII. “
Com respeito à lingüística atual — sobretudo teórica, descritiva, sincrônica
(referente a determinada fase de uma língua) e não diacrônica (relativa ao estudo
da língua através do tempo)- a lingüística imediatamente precedente pode ser
considerada como uma espécie de parêntese no longo desenvolvimento dos pro-d
blemas lingüísticos, a partir da antiguidade, isto é, desde quando esses problemas
foram postos pela primeira vez no mundo ocidental, uma vez que, neste nosso pa-
norama, se omite deliberadamente, pela nenhuma repercussão em nossa cultura, a
obra dos gramáticos hindus antigos, particulannente a de Pnini.
‘ J. Harris, Hermes or a Philosophícal Inquíry Concerníng Language and Uníversal
Grammar [HermeS ou pesquisa filosófica sobre a linguagem e a gramática universal], Londres,
1751.
V4 LIÇÕES DE LINGÙIŠTICA GÉRAL
1.5. No Renascimento e no século XIX prevaleceu o historicismo, e é natural que
dessa natureza fosse também a lingüística de tal período, enquanto a preocupação
que hoje domina a disciplina, de modo geral, é, como dissemos, de caráter teórico
e descritivo. Por este motivo a lingüística moderna, em sua colocação essencial, não
é absolutamente nova, antes retorna às suas tradições mais antigas. Trata-se de um
retorno não declarado explicitamente e até mesmo por vezes ignorado pelos pró-
prios lingüistas. _ `
1.5.1. O esquema seguinte mostra a sucessão e a intercessão das orientações da
lingüística através dos tempos:
Origens > Renascimento > Século XVIII Século XIX Século XX
— —> Renascimento > Séc. XVIII
Teoria e - Teoria e - Teoria e
descrição Comimïaçao descrição Compãlagwi descrição
e historia ,e histona _
1.5.2. Eis alguns exemplos. _ V
A distinção entre "signiticante" (isto é, a parte material do signo lingüístico)
e "signiÍicado" (ou seja, o conteúdo mental do próprio signo lingüístico) é atri-
buída, a maior parte das vezes, a Ferdinand de Saussure, que todavia detinia 0 "sig-
niñcante" como "imagem acústica", de natureza psíquica e não física. Mas tal dis-
tinção é muito antiga: ela já aparece, com outras palavras, no De iriterpreratione
de Aristóteles, que distingue o que está na voz rd év r xpwvñ daquilo que está na
alma rò év 7f] gbvxfy. _Nem ao menos se fala daquilo que está fora do homem; o que
está na voz é símbolo do que está na alma. Tal distinção se torna explícita na gra-
mática dos estóicos, que distinguem entre Onuoïvov e U‘!]]JOLLlJÓ/JEVOV e, fora destes,
(isso é fora do signo), rrpõvyuo, “Coisa". Só se explica que esta distinção seja atri-
buída a Saussure porque se interrompeu a linha teórica no decorrer dos séculos.
1.5.3. Uma outra distinção queparece recentíssima é aquela que se estabelece en-
tre a linguagem que tem por objeto realidades extralingüísticas (chamá-la-emos
"p1imária") e a que tem por objeto a própria linguagem ou "metalinguagem"2. Por
exemplo: a (
casa A casa tem dois andares (linguagem "primá1'ia")
{ Casa tem quatro letras
casa . .
Casa se pronuncia com S sonoro ou S surdo ("metalmguagem")
° Vejase ainda o capítulo 12.
PREMISSAS HISTÓRICAS DA LINGÚIŠTICA MODERNA 5
Também esta distinção entre uso primário das palavras e uso "reÍ1exivo"
` (aplicado às próprias palavras) não é nova, pois aparece já em forma explícita no
De magistro de Santo Agostinho, onde, a respeito de verbum, se diz que é uma pa-
lavra (verbum), do mesmo modo que o são "caSaÏ’, "cão", "livro”, e que significa
"pa1avra" ("verbum"). Depois, tal distinção é retomada outras vezes na história das
reflexões sobre linguagem, p_articu1an'nente na lógica medieval, que distingue a sup e
posítio forrmzlis "hipótese forma1" ou "funCional" (consideração da linguagem
como linguagem primária) da suppOsitíO`mJ1teríz1lis "hipótese material" (considera-
ção da linguagem como "meta]inguagem’.’). `
Trata-se ainda de um retomo a questões já existentes; isto nos deveria con-
vencer de que muitos motivos e problemas da lingüística atual não são "novos"
mas, retomados e redescobertos no curso da história, voltam hoje a ser postos à luz.
1.5.4. Um outro exemplo é a distinção entre sincroniae diacronia (cf 1.4, e) tam-
bém atribuída a Saussure, mas que já se acha, por exemplo, nas notas acrescentadas
à edição francesa da obra já citada de Harris (cf 1.4, C), traduzida por François
Thurot, no quarto ano da República. Em uma das longas notas que ajunta à tradu-
ção, Thurot declara que, ao apresentar o verbo francês, adotará não O ponto de
vista etimológico, mas o da "ordem sistemática", atual, do verbo francês, ou seja,
a descrição de um estado é oposta à história da língua.
Esta distinção aflora também no século XIX, num autor muito interessante
e a que Saussure deve muitíssimo: Georg von der Gabelentz, autor da densa obra
Díe Sprzzchwíssenschzft, Ihre Aufgzbe, Methoderz und bisherigerz Ergebnisse (A lin-
güzsticu, seus objetivos, métodos e recentes resultados), editada em 1891 e, após a
morte do autor ocorrida em 1893, reeditada em 1901, com reelaboraço de A. von
der Schulenburg, sobre a qual se reproduz a edição de 1969.
Gabelentz distingue explicitamente entre fatos simultâneos (gleíchzeítíg "con-
temporâneos, sincrònicos") e fatos que se sucedem um depois do outro, sucessivos
(aufeirzanderfolgend "sucessivoS, diacrôr1icos"), e Saussure, na obra Cours de lín-
guístíque générale (Curso de lingüística geral), publicação póstuma de 19163, re-
torna estas definições e as traduz por faits synchroníques e termes Successíß. E
depois de Gabelentz, Dittrich, em uma obra de 1904 sobre a psicologia da lingua-
gem, faz distinção entre as duas formas de lingüística, que chama respectivamente
Synchronístisch e metuchronístisclf.
3 Consu1tese a tradução italiana desse livro, dotada de amplo comentário, feita por T.
de Mauro,`COrS0 dí lzrtguístiezz generule, Laterza, Bari, 1968.
‘ Trata-se da obra Grundzüge der Spruchpsychologíe [Furzdumentos derpsícologiu da
linguagem], onde se declara que o objetivo da psicologia da língua é entender “a língua como
produto humano . . . no seu condicionamento através da organização psicofísica e da atividade
da coletividade lingüística?
6 LIÇÕES DE LINGUIŠTICA GERAL
.l.5.5.l Uma outra distinção moderna que, na realidade, vem desde a antiguidade e_
que, por vezes, —é retomada até com a mesma roupagem daquele tempo, é a que diz
respeito a lzngua enquanto saber, técnica, e falar enquanto realização da técnica
lingüística concreta — na terminologia saussuriana, entre langue a parole ou, segundo
a oposição afim proposta recentemente por A. Noam Chomsky, entre competence
(competência) e performance (desempenho). _
— Na realidade, esta distinção, também atribuída correntemente a Saussure,
está implícita em toda a gramática desde que existe uma disciplina gramatical, por-
que nenhuma gramática jamais descreveu o falar, o desempenho, mas sempre pre-
tendeu descrever a lmgua, o saber lingüístico, a langue, a competência. lsto, natu-
ralmente, de modo implícito. Depois, de modo explícito, a distinção aparece na
Encíclopédía das ciências filosóficas de Hegel, parágrafo 459, dedicado à lingua-
gem. A fórmula de Hegel é muitíssimo simples: "Die }@e und ihr System, die
‘ Spracl1e", ‘o falar e seu sistema, a língua’. O cursivo é do próprio Hegel, e parece »
indicar um uso técnico para esses termos, ainda correntes com O mesmo valor na
língua alemã. Entretanto, na obra de Gabelentz acima citada, esta distinção não é
apenas formulada mas também discutida e tomada como fundamento de uma dis ·
tinção correspondente entre disciplinas lingüísticas, descritivas e históricas.
Gabelentz distingue na "1inguagem" (Sprache) o "falar" (Rede), a "língua"
(Einzelsprache) e a “faCuldade da linguagem" (Sprachvermögem); no Curso de lin· `
gúzstica geral de Saussure, achamse, através de conceitos praticamente análogos a
estes, os termos parole, langue e faculte de langage. Poder-se-ia obter daí O seguinte
A esquema:
Rede (Saussure, parole)
Spraclze [ Einzelspraclze (língua determinada; Saussure, langue) ' · —
Sprach vermögen (Saussure, faculte de langage) .
Esta distinção é entendida por Gabelentz como fundamento defuma outra,
[ entre as disciplinas lingüísticas que, no seu entender, deveriam ser subdivididas em:
a)A lingüística descritiva, isto é, uma disciplina que explica o falar e por isso des-
creve o sistema que o regula;- b) lingüística histórico-comparativa, que procura
explicar historicamente a língua; C) lingüística geral, cujo objeto é a faculdade da
linguagem em geral. ’
_l.5.6. Ouve-se falar freqüentemente da teoria da arbitrariedade do signo lingüís-
tico (arbítraíre du Signe; na terminologia de Saussure), segundo a qual as palavras
consideradas em si não são motivadas naturalmente, isto é, não existe relação de
causa entre a palavra e. a coisa significada ou designada. A palavra mesa não se asse-
melha de modo nenhum ao objeto "meSa" nem ao respectivo conceito, e neste sen-
tido é arbitrária. Esta teoria também foi atribuída a Saussure. Em recente artigo
PRENIISSAS H\STÓF\ICAS DA L|NGÚ\'STlCA MODERNA « 7
sobre oproblemas, demonstrei que se trata, porém, de uma tradição iniciada com
Aristóteles e que o arbitraire du signe é a fonna modema da teoria aristotélica se-
gundo a qual o signo funciona não naturalmente, mas rroró OUI/Ü'IL]Tl1’]V "segundo
uma instituição", de acordo com as tradições estabelecidas socialmente. Encontrei
também uma tradição ininterrupta, através de Boécio e da filosofia escolástica até a
época modema, da determinação do signo como arbitrário. E também o termo "ar-
bitrário" remonta à antiguidade, àsNOCtes atticae de Aulo Gélio. Novamente intro-
duzido por Júlio César Escalígero em lugar de ex instituto, ex institutione (cor-
rente na filosofia e na especulação lingüística medieval), foi depois retomado por
muitos autores, dentre os quais podemos recordar Hobbes, no De homíne (1658) e
Schottel, na sua gramática alemã Ausführlíche Arbeit von der Teutschen Haubt
Sprache (1663). A expressão "arbitrariedade do signo" ocorre entretanto não ape-
nas como noção, mas também como termo, a partir de obras em língua latina até
obras em línguas modernas.
1.5.7. Assim procedendo, pode-se chegar a descobrir também os precedentes de
problemas científicos particulares, como ocorre com certas noções gramaticais.
Em recente artigo sobre categorias de pessoa, Émile Benvenisteó sustenta que as
pessoas gramaticais são somente a primeira e a segunda, porque a terceira é, ao con-
trário, a não-pessoa; a primeira e a segunda, de fato, enquanto pessoas que parti-
cipam efetivamente do diálogo, são, na realidade, pessoas, enquanto a terceira, ou
melhor, a chamada terceira pessoa, enquanto aquilo de que se fala, não éÏ necessa-
riamente pessoa, mas pode ser uma coisa qualquer, ainda uma idéia abstrata: numa
análise extrema, todo o resto do mundo.
Também esta teoria e esta interpretação das pessoas gramaticais se encontram
na obra já citada de Harris: em pequena nota ao pé de página, ele sustenta que exis-
tem somente a primeira e a segunda pessoas, enquanto a terceira é a não-pessoa
(aliás Harris encampa expressamente uma tese de Apolônio Díscolo).
1.6. Tudo o que dissemos não pretende diminuir os méritos da lingüística moder-
na, mas mostrar que ela não está fora da tradição, como se ouve dizer seguidamente,
e que, ao contrário, retoma posições teóricas sobre a linguagem existentes desde ai
' ‘ E. Coseriu, L’arbitraire Clu Sígne, Zur Spätgeschichte eines aristotelíschen Begríffes [A
arbitrariedade do signo. Sobre a história tardia de um conceito arítotelico], Archiv fir das
Studium der neueren Sprachen und Literaturen, CXIX, vol. 204, N. 2, 81-112, 1967 (Agora
inserido em Tradíciórz y novedad en la Cíencía del lenguaje, p. 13-61. Gredos, Madrid, 1977.)
° E. Benveniste interessou-se pela primeira vez por esta questão em Structures des
relatíons de personne dansle verbe [Estruturas de relações de pessoa no verbo], Bulletin de la
Société de Linguistique, XLIII, vol. 1, N. 126, 946 e numa segunda vez em La nature des
pronoms [A natureza dos pronomes] no volume de homenagem For Roman Jakobson (Haia,
1956). Ambos os artigos se acham agora recolhidos em Problèmes de línguístique generale
[Problemas de lingüística geral], Paris, 1966. Desta obra existe tradução para o português de
Maria da Glória Novak e Luiza Neri, com revisão de Isaac N. Salum, Companhia Editora
Nacional, São Paulo, 1976. _
8 d LIÇÕES DE LINGÚIŠTICA GERAL .
antiguidade: o abismo e a ruptura, portanto, dizem respeito apenas à lingüística
imediatamente precedente, e, em particular, à lingüística dos últimos decênios do
século XIX. Se, porém, em certo sentido, a lingüística moderna é antiga no que
concerne aos temas e é, por isso mesmo, tradicional, isto não significa que o seja
também em seu desenvolvimento. Poder-se-ia entretanto objetar que também a
· organização atual das disciplinas lingüísticas retoma de certo modo a tradicional,
criada pelos gregos. Para estes, são quatro as disciplinas lingüísticas: enquanto a
primeira delas, não denominada de modo específico, é identificável com a teoria,
as outras três receberam um nome e se constituíram me-smo em objeto de estudo,
na Antiguidade e na Idade M(ll3îgïãfïl¿ŽÍlCd, retórica e dialética.
Ao lado da teoria ou filosofia da linguagem, a gramática tinha a tarefa de
descrever a língua independentemente das circunstâncias do seu uso (hoje 'se diria
aproximadamente, com terminologia gerativa, de maneira livre do contexto,
COntext—free). Por exemplo, a formação dos tempos do verbo, do singular e do
plural, do masculino e do feminino, etc., são fatos lingüísticos que valem para ê
qualquer circunstância, independentes de circunstâncias determinadas.
A retórica pretendia, por seu tumo, estudar a língua em usos específicos_e
com finalidade determinada; ocupava-se, portanto, por exemplo, das circunstâncias
objetivas concernentes ao próprio objeto do falar, e daí derivava a distinção entre os
diversos estilos, segundo a qualidade ea natureza do objeto em questão. _
A dialética finalmente estudava o uso da linguagem enquanto meio apto a
descobrir a verdade, numa discussão em que se opõem tese e antítese.
Ora, destas disciplinas, a gramática, bem ou mal, persiste viva, pelo menos
como disciplina prática, nas escolas; quanto à retórica (em grande parte eliminada
do ensino, sobretudo devida à influência exercida pela filosofia idealista nas Con-
cepções lingüísticas do ·século passado e mais ainda do nosso), teve sua importância
ressaltada nestes últimos tempos, provocando um movimento de retorno a ela por
vários caminhos, entre os quais prevaleceu primeiramente a chamada ‘Ïestilística da ‘
lmgue", representada sobretudo pela obra de Charles Ballyl, um dos responsáveis
do Curso de Saussure, isto é, o estudo das características afetivas e expressivas de
determinados sistemas lingüísticos. Entre os lógicos, desempenha mais ou menus o
mesmo papel da retórica antiga a chamada pragmática, ou seja, o estudo da lingua-
gem em seu uso na vida prática (nas relações humanas).
A dialética, ao contrário, abandonada como disciplina no século passado
(depois de 1830 também no ensino universitário, recorde-se que o uso da palavra
tese, para indicar o trabalho de doutorado, provém da dialética, pois que se apresen-
— tava, de fato, uma determinada tese, que era defendida), foi retomada pelos lógicos
modernos noestudo da sintaxe lógica da linguagem. A grumziticzz, retórica e dialé-
tica correspondem, respectivamente, na distinção proposta por Rudolf Carnap e por
' I 7 Veja-se especialmente C. Bally, Línguístique générale et línguístíque frunçaíse [Lin-
'gúístícu geral e lingüística francesa], 4.3 ed., Francke, Berne, 1965. Há tradução italiana com
apêndice de C. Segre, I1 Saggiatore, Milano, 1963. `
PREMISSAS HISTÓRICAS DA LINGÜIŠTICA MODERNA 9
outros lógicos modernos, a semântica (que trata, na realidade, da gramática em
geral), pragmática e sintaxe lógica da linguagem. —
1.7. Assinalamos os problemas lingüísticos da época clássica, da Idade Média e do
século XVIII, e recordamos também que certas noções ou distinções se aproximam
de Hegel e Gabelentz. Ao menos em certo sentido, estas idéias e posições estiveram
presentes também quando a lingüística foi dominada por outros interesses; por isso
devemos modificar nosso esquema do desenvolvimento das idéias lingüísticas e ter
presente que a problemática lingüística é e foi sempre complexa. De fato, quando se
afirma que o objetivo essencial da lingüística é a teoria ou a descrição, isto não
implica a ausência total de temas históricos: eles são apenas/menos importantes e,
obviamente, com respeito ao problema principal da descrição, a história lingüística
se faz só de modo parcial e em função da própria descrição, lnversamente, quando
os objetivos essenciais da lingüística foram a comparação e a história, a descrição
certamente daí não desapareceu, mas passou, por assim dizer, ao segundo plano e,
no caso, foi feita em função da história. Assim, se no século XIX a linha principal
de desenvolvimento da lingüística passa pela lingüística histórica, pela comparação
lingüística, pela história das línguas e pela gramática histórica, ao mesmo tempo se
desenrola, debaixo desta mesma linha, a lingüísticaßeórica e descritiva, que con-
tinua a tradição do século XVIII, tradição mais antiga e jamais desaparecida, a que
pertencem estudiosos da envergadura de um Humboldt, na primeira metade do
referido século, e de um Steinthal e Gabelentz, na segunda metade. Deste ponto de
vista, a lingüística atual constitui um retorno, em primeiro plano, à lingüística
teórica e descritiva; de certo modo, ela retoma a problemática do século XVIII,
porém em outras direções, impostas pela ampla experiência do século XIX, quando
a lingüística histórica se tinha tornado a lingüística por excelênciaê
{ 1.8. Recapitulando: os temas teóricos e descritivos da lingüística atual recuam à
_Antigüidade e à Idade Média, e sobretudo ao século XVHI; os históricos e compara-
tivos, à lingüística do Renascimento e do século XIX. Isto no que tange ao contexto
histórico geral da lingüística atual. Entretanto, no que conceme ao contexto histó-
rico imediato, necessário se faz ter presente que a lingüística atual constitui uma
reação à lingüística imediatamente precedente. Para compreender nas suas raízes
dialéticas a lingüística do início do século até hoje, é preciso lembrar uma reação
decisiva a determinada ideologia, a dos neogramáticos, que outra coisa não era
senão a forma que a ideologia evolucionista e positivista assumiu na lingüística.
Não será surpreendente, portanto, que as reações a ideologias dos neogramá-
ticos sejam contemporâneas, na lingüística, a outras reações que se manifestam
paralelamente em outros setores da cultura, e, de modo particular, na filosofia.
FiXarseá, como data inicial, o período em torno de 1900, durante o qual foram
várias as reações ao positivismo, desde a Estétícu de Croceg até o chamado intui-
‘ B. Croce, Estetícrz come scíenzz del! espressíone e línguístíca generzzle [Estétíca como
Cíénciz da expressão e lingüística geral], Laterza, Bari, l1.“ ed., 1965.
10 —_ LIÇÕES DE LINGÚIŠTICA GERAL
cíonismo ou vitalísmo de Bcrgson, ·à fenomenologia de Husserl (a obra em que se
fundam e têm início as indagações lógicas de Husserl apareceu justamente em 1900,
como reação àlogica e à gnoseologia do positivismo).
Veremos em que sentido é possível afirmar que, em suas raízes, alingüística
atual, vista neste contexto ideológico geral,pode ser interpretada como uma reação
ao positivismo. Tanto na lingüística quanto nas outras disciplinas, sob várias formas,
segundo o objeto específico de cada uma, os princípios fundamentais sobre os quais
tal reação se articula são, como veremos, os mesmos. —

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