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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO - FEUSP

A REDE DOS CIDADÃOS:

a política na Internet

Trabalho apresentado para obtenção do título de


doutorado, junto à Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo.

VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ

SÃO PAULO - 2001


2

A meu pai, que se foi poucos meses antes que este dia chegasse,
mas que deixou em mim, para sempre,
o sonho de buscar os sonhos.
Só concluí o trabalho por ti.
3

AGRADECIMENTOS ...............................................................................................................................................
PRIMEIRA APROXIMAÇÃO ..................................................................................................................................
1º CAPÍTULO ............................................................................................................................................................
PRINCÍPIOS DA CIDADANIA INTERATIVA e a rede democrática .....................................................................
1ª PARTE: DA IDÉIA DE REDE ..............................................................................................................................
2ª PARTE: INTERAÇÃO E COMPLEXO TECNOLÓGICO ...................................................................................
3ª PARTE: UTILIDADE OU UTILIZAÇÃO DA REDE? ........................................................................................
4ª PARTE: TAO DA POLÍTICA ..............................................................................................................................
5ª PARTE: A POLÍTICA É VIRTUAL .....................................................................................................................
2º CAPÍTULO ............................................................................................................................................................
A REDE E A SOCIEDADE CIVIL VIRTUAL .........................................................................................................
1ª PARTE: DO GLOBAL AO VIRTUAL .................................................................................................................
2ª PARTE: A REDE NÃO É UM PASTICHE ..........................................................................................................
3ª PARTE: ARCABOUÇO DA SOCIEDADE CIVIL VIRTUAL ............................................................................
4ª PARTE: O ARTEFATO POLÍTICO .....................................................................................................................
3º CAPÍTULO ............................................................................................................................................................
IDIOSSINCRASIAS DA RAZÃO IMAGÉTICA:Daguerre e o Palanque Eletrônico ...............................................
1ª PARTE: DAGUERREÓTIPO: A VISÃO SACRÍLEGA ......................................................................................
2ª PARTE: POLÍTICA A DISTÂNCIA .....................................................................................................................
3ª PARTE: PLEBISCITO VIRTUAL ........................................................................................................................
Conclusão..............................................................................................................................................................
Referências bibliográficas.....................................................................................................................................
4

AGRADECIMENTOS

Sempre concordei com o fato de que esta parte do trabalho é a mais difícil, pois, por mais
que se faça, as injustiças são evidentes. Mas, como a sensibilidade exige o reconhecimento,
deverei dizer o máximo, evitando errar o mínimo possível.

Em primeiro lugar, tive toda minha família que, literalmente, aturou-me por muitos anos na
busca deste trabalho que agora considero concluído. Sem dúvida, a tese foi obra coletiva;
ainda que tenha dividido muito mais minha impaciência, incompreensão, lamúrias, chatice
etc, nos anos que se seguiram. Uma rede onde distribuí o que tinha de melhor e pior –
alguns dirão que a balança pende para cá. Mas não importa, o fato é que chegamos todos
juntos. Em especial, minha pequena homenagem à minha mãe, Dalva, e ao meu irmão,
Wagner, a meu sobrinho, Wagner Jr, e a Sandra Mara Carrilho Andreatta pelo carinho
demonstrado nas revisões iniciais do trabalho.

E não por praxe, mas pelo mais sincero reconhecimento, agradeço pelo inestimável apoio,
compreensão e afeto que sempre demonstrou minha orientadora no projeto de doutorado,
no dia-a-dia e nas lições sobre a vida. Por sua capacidade de fiar e laçar, sua rede nunca
estará escassa de peixes ou pessoas.

Ao Professor Tullo Vigevani, um mestre nem sempre com tanto carinho e que me atura
desde o mestrado, só posso dizer que me sinto honrado de tê-lo como amigo. Pois nossas
andanças são antigas e desejo realmente um caminho de incontáveis encontros futuros.
Afinal, como sempre digo, a culpa disso tudo é exclusivamente dele. No melhor sentido, é
claro.

Ao Professor Nelson Pilletti, que considero um amigo, agradeço pela participação na


qualificação -, devo dizer que anseio saber, antes de mais nada, se a gramática está a
contento. Pois seu rigor ainda está em minha memória, e ainda que também tenha retido a
esperança de um dia ser agraciado com “los recuerdos del sur”.

Da mesma forma, sou muito grato ao Professor Amaury Cesar de Moraes por sua
colaboração no exame de qualificação, pois permitiu uma vibração nova e instigante ao
trabalho.
5

As amigas e os amigos que me rodeiam seriam demasiados para a citação. Porém, de uma
forma ou outra, alguns professores lidaram com meus papos e textos de forma direta. E é
evidente que também compartilho o trabalho com todos os amigos e amigas reais ou
virtuais.

Cito igualmente o contato enriquecedor com todos os professores do EDF, especialmente


os professores José Mário Pires Azanha, Celso de Rui Beiseguel e Jean de Lauand, que
acolheu meus textos em suas publicações – sou-lhe muito grato.

Enfim, tenho em alta conta o Programa de Pós-graduação, representado por todas as


pessoas que ali trabalham e fazem a máquina girar a nosso favor. E da forma mais sincera,
meu enorme carinho pelas meninas do EDF, Sandra, Xuxu e Márcia.

À outra Sandra, nossa Sandrinha, pela paciência enorme em ler e reler, sabe-se lá quantas
vezes, a tal tese: beijo carinhoso.

Ao Professor René de Sanchitis, pelas correções derradeiras dos originais.

Por último, mas não menos importante, agradeço ao CNPq que vem financiando meus
trabalhos desde o mestrado. Portanto, há quase uma década. Ou seja, uma prova de
aplicação em ciência, pesquisa e educação.
6

Criar meu web site


Fazer minha home page
Com quantos gigabytes
Se faz um jangada
Um barco que veleje...
Que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve um oriki do meu velho orixá
Ao porto de um disquete de um micro em Taipé...
Gilberto Gil – Pela Internet
7

PRIMEIRA APROXIMAÇÃO

Com algumas alterações o texto é resultado da tese de doutorado que defendi junto
à Faculdade de Educação da USP, em março de 2001. Seguindo orientação de parte da
banca, retirei todo o demonstrativo técnico (virtual) que havia desenvolvido para indicar a
relevância da pesquisa, depois, também eliminei o último capítulo do trabalho porque uma
parte deste foi publicada separadamente, como capítulo do livro Dialética do ciberespaço.

No trabalho, no entanto, argumento que é possível desenvolver-se um sentido


político a partir das práticas e interfaces que florescem do mundo virtual, e que sejam
próprias da democracia participativa e da cidadania interativa. O que nos remete à
discussão do significado da tecnologia e seus usos, especialmente sobre o significado
político que o conceito do virtual vem adquirindo, a exemplo da Internet: uma Internet
política. Porém, para que isso ocorra, é necessário que a educação esteja pautada por certos
princípios humanitários. Princípios que, por sua vez, enquadram-se perfeitamente nos
valores apregoados pelos direitos humanos e de acordo com a concepção de que são três os
momentos de sua efetivação: reconhecimento, defesa e promoção. Daí a incursão pela
Educação Política que problematiza o próprio desenvolvimento da ciência e os vários usos
da tecnologia, pois procuro destacar o a priori coletivo. Mais particularmente no caso da
Internet, a característica da abertura constante será demonstração clara e suficiente desse a
priori coletivo.

Assim, priorizei o aspecto da promoção de certos valores humanos, isto é, dos


direitos humanos. E também porque parto do referencial prático e teórico da Internet,
analisando-a como uma mídia apta a desenvolver esses valores. Mas não uma mídia no
sentido tradicional, em que há uma posição definida entre emissor e receptor da
informação (a exemplo do rádio, TV e outros), e sim como mídia ou meio democrático em
sua estrutura – exatamente porque rompe com essa divisão hierárquica ao permitir a todos,
indistintamente, que sejam produtores livres de mensagens políticas.

Aqui também devo esclarecer que houve uma opção pelos direitos políticos, no
bojo do complexo dos direitos humanos, por alguns motivos: i) por ser o conjunto dos
direitos humanos amplo demais para ser abordado de uma única vez; ii) assim como por
ser extenso o debate sobre a Educação em Direitos Humanos, o que me levou a optar pelos
8

direitos políticos, onde se enquadra perfeitamente a democracia; iii) e por uma forma de
Educação Para a Tolerância, uma vez que a democracia se sustenta no binômio dissenso-
consenso - tanto para a questão da ética na política real, quanto da ética no ciberespaço (ou
ciberética); e, iv) porque a Internet tem um componente estrutural democrático, que se
revela na possibilidade da produção de mensagens livres, ou melhor, permite a conjunção
das regras baseadas na comunicação um-um, um-todos, todos-um e todos-todos. O que, por
fim, também possibilita ao site – que hospeda o protótipo - ser visto como uma
demonstração empírica das alegações teóricas da tese. E nesse momento, creio, devo
alongar-me um pouco mais nas premissas aventadas:

a) é urgente a necessidade de aprofundarmos o debate e a prática da chamada Educação


em Direitos Humanos;

b) é preciso pensar o conjunto dos direitos humanos como um complexo, como uma rede,
na escola e na política;

c) os direitos humanos requerem uma formação substantiva para tolerar o diferente, o


outro, o dissidente;

d) a tolerância é um atributo democrático, uma construção política e social;

e) os direitos políticos são parte essencial do complexo da democracia, instituindo a


tolerância como mediadora do binômio dissenso-consenso – no mundo real ou virtual.

Com isto chegamos a algumas questões, ressaltando que:

• a promoção dos direitos humanos será tão mais eficaz quanto mais cedo o debate for
introduzido e sedimentado nas escolas;

• a concepção de que o outro é diferente requer uma Educação Para a Tolerância;

• a democracia é o melhor instrumento (forma de governo) para a promoção dos direitos


humanos;

• todas as práticas democráticas (políticas) são virtuais por definição, ou seja, requerem
substância, valores, objetivos e projetos delineados – para não serem meras sementes.
O virtual, portanto, não é o oposto do real, apenas uma forma de sua manifestação:
latente, mas dotado de eficácia;

• se a política se mede pelo grau de eficácia demonstrada, com a democracia e com os


direitos humanos a perspectiva não poderia ser outra;
9

• a eficácia é parte da estrutura do virtual, uma vez que não é o oposto do real e também
porque, se o virtual germina, estará sendo eficaz na busca da consecução da tolerância,
dada sua capacidade de auto-organização e de responder coletivamente (vide a prática
do flame). Assim, a política (virtù) é virtual (virtus) por excelência;

• a Internet, como expoente do virtual, está apta ao desenvolvimento desses valores


porque tem em sua estrutura elementos democráticos que facilitariam a formulação
coletiva das normas, colaborando com o aprofundamento da democracia. Portanto, a
Internet revigora a utopia da Democracia Radical, agora no plano virtual.

Cabe ainda, no entanto, uma breve justificativa sobre a afinidade eletiva que recaiu
sobre a concepção teórica e a respeito da disposição dos capítulos. Optei por apresentar
inicialmente todo o debate sobre a idéia de rede e sobre a Internet, diferenciando os termos,
porque o trabalho procura demonstrar como o mundo virtual é eficaz para o
desenvolvimento da tolerância – vendo-se na tolerância um elemento da política presente
na cidadania democrática e como atributo essencial dos direitos humanos. Por isso,
diferenciei o virtual do real – tal como no senso comum - para em seguida reafirmar que se
trata de faces da mesma realidade. Isto é, as relações políticas e suas imbricações no
mundo real são transportadas para o virtual. E ainda que não seja uma transferência
mecânica, a virtualidade e a eficácia estão tanto em um meio quanto no outro; pois, como
meio de comunicação, a Internet é estruturalmente democrática1.

Entendo, ainda, que a afirmação dos direitos humanos como uma rede – ou da
Educação Para a Tolerância, como parte de uma Educação em Direitos Humanos –, é
melhor compreendida se já tivermos definido conceitualmente o que é a idéia de rede e no
que difere da própria Internet. O que possibilita conjugar as simetrias e as diferenças (ou
características próprias) entre o mundo real (a Realpolitik, por exemplo) e o virtual (a
exemplo da Internet, vista como meio eficaz para o aprofundamento da democracia, na
forma da Democracia Radical Virtual – dado que mais uma vez justifica a elaboração do
site mencionado).

1
É curioso notar que até mesmo um partido como o PT (Partido dos Trabalhadores), sempre
relacionado à ação política e de certa forma distante dos chamados factóides (iniciativas para chamar a
atenção da mídia – como criar fatos políticos), acabou por se aproximar da lógica da máxima comunicação.
De acordo com a cartilha de marketing político utilizada pelos prefeitos eleitos em 2000: “fale direto com o
povo, visite as rádios e jornais. Como dizia o grande filósofo Abelardo Chacrinha Barbosa, ‘quem não se
comunica se estrumbica” (Mendonça, Spinelli & Lima, 14 jan. 2001).
10

Essa análise me instigou a incluir no protótipo, de maneira até mesmo pontual,


questões diretamente relacionadas à problemática dos direitos humanos, ou seja, o
conjunto complexo dos valores humanitários fundamentais que deveriam orientar nossa
prática social. Pois, se trato aqui da Rede dos Cidadãos, nada mais oportuno do que
abordar de forma direta e concreta as tantas questões teóricas suscitadas quando o
humanismo se depara com a tecnologia.

Assim, se posso indicar uma questão explicitamente vinculada à idéia de


transversalidade que a Internet sugere, e que incluí no site, mencionaria a questão da
Educação em Direitos Humanos — tal como descrevo em http://demo.meex.com.br,
denominado daqui por diante simplesmente de protótipo.

Ou, ainda, outra questão acerca de uma pesquisa não intencional, mas que acabei
desenvolvendo (por serendipidade), porque pretendia regularizar ou institucionalizar o site
junto aos poderes constituídos. Em minha vã tentativa, solicitando que visitassem o site,
enderecei e-mail a inúmeros deputados (especialmente os ditos progressistas) e para as
presidências dos três poderes. Mas, praticamente não obtive resposta. E, assim, diante do
fato, e também movido por apenas três retornos, incluí o descaso, como um dos produtos
da democracia representativa, no protótipo.

Para melhor compreensão do que vim argumentando, no entanto, dividi o trabalho


em quatro capítulos e um anexo – trazendo o protótipo impresso na íntegra, com todos os
campos interativos (links), questões e respostas já disponibilizadas. Ainda que o melhor
fosse acessá-lo diretamente na net, a fim de que se experimentasse a própria realidade
virtual e alguns de seus recursos democráticos.

No primeiro capítulo, portanto, tento uma primeira abordagem (ou aproximação) do


objeto geral: a cidadania, como prática democrática, sofre influências da tecnologia? Daí
chamá-lo Cidadania Interativa, uma vez que também inicio o debate sobre a idéia da rede.

No segundo capítulo, minha intenção foi aprofundar a temática principalmente no


que diz respeito aos conceitos básicos e os vários sentidos adotados quando se fala da
Internet como um novo espaço público, agora virtual, tendo destacado o que mais se ajusta
aos propósitos da tese. Por isso dei o título de A Rede para o capítulo.

No terceiro, ainda dentro do mapa conceitual, tomei as eleições presidenciais de


1988 como marco da nova realidade que o virtual nos emplaca, no Brasil. Dei atenção
11

especial para o programa chamado Pé Na Estrada, desenvolvido pelo Partido da Social


Democracia Brasileiro (PSDB), como um exemplo do que denomino de virtualização da
política2. Fato que por si só nos coloca a necessidade de elaborarmos ou compreendermos
adequadamente a nova razão política que vem sendo gerada, a exemplo do que significa a
razão imagética para a era da televisão.

Por fim, espero ter contribuído para fortalecer a percepção de que a maior
dificuldade não está no reconhecimento de que se trata de um meio aberto, público e de
infindáveis oportunidades democráticas (inclusive em decorrência de suas características
técnicas especiais), mas sim de que a abertura e a acentralidade (a só aparente falta de
controle), não são sinônimos de indiferença, intolerância e, enfim, das mais habituais
desigualdades, oportunismos e personalismos que vivenciamos no dia-a-dia da prática
política.

2
Devo descatar o primeiro debate brasileiro, pela TV, também transmitido pela Internet, em MG,
entre Célio Castro (PSB) e João Leite (PSDB), no segundo turno das eleições para prefeito de Belo
Horizonte, em 2000. O debate foi promovido pelo UOL e pela Folha Online. Na Internet:
http://www.uol.com.br/uolnews/ult334au19.shl.
12

1º CAPÍTULO

PRINCÍPIOS DA CIDADANIA INTERATIVA


e a rede democrática

Não se discute a utilidade da Internet, mas seu projeto

Já na atmosfera do novo milênio, em 2001, ainda nos perguntamos se o computador faz


bem ou mal. Não me parece uma simples coincidência o despertar maciço de tantas
religiões, quando estamos prestes a superar num único momento um século e um milênio3.
É um momento histórico inigualável que muitos confundem com um presente místico. E,
de fato, as insaciáveis transformações tecnológicas atuais (no sentido amplo), para alguns
parece o fim do mundo. No que, talvez, tenham certa razão. Quiçá, de certo mundo.
Principalmente se pensarmos que a natureza humana está cada vez mais distante do
cotidiano dos que não querem ou não conseguem acompanhar o ritmo dessas
transformações.

Mas o que será esse tal ritmo de transformações? O que ele esconde? Por que tanto medo,
insegurança, incerteza? O que mudou em nós? Não nos reconhecemos mais nas coisas e
processos que criamos e demos prosseguimento? A cultura do futuro certo e progressivo
não está mais disponível? Não teremos nem mesmo um sentido de vida assegurado como
contraponto de nossas incongruências?

Se compararmos as sociedades naturais com as sociedades complexas, ou a natureza


humana com o que se convencionou chamar de segunda natureza (alteração do natural
pelo recurso teleológico humano), vemos que as distâncias entre elas talvez nunca
diminuam. Segundo Lévi-Strauss, entrevistado por Charbonnier (1989, p. 36),

Os primitivos fabricam pouca ordem em sua cultura. Nós os chamamos hoje de


subdesenvolvidos. Mas fabricam pouca entropia em sua sociedade. Em resumo, essas
sociedades são igualitárias, de tipo mecânico, regidas pela regra de unanimidade (...) Ao
contrário, os civilizados fabricam muita ordem em sua cultura, como nos mostram o
maquinismo e as grandes obras da civilização, mas fabricam também muita entropia em

3
Mas, infelizmente, a cultura popular não absorveu o mesmo tanto de conhecimento científico quanto
de religiões exóticas.
13

sua sociedade: conflitos sociais, lutas políticas, todas as coisas contra as quais vimos que
os primitivos se previnem de maneira talvez mais consciente e sistemática do que teríamos
suposto.

Este é o pressuposto, o ponto de partida, que tanto nos aflige hoje. A ele estamos
condicionados, submetidos, mas não subjugados. A escolha, a diferenciação, os meios e os
conflitos, a que faz referência Lévi-Strauss, constituíram parte das decisões técnicas da
humanidade. Um caminho imposto por nós mesmos; parecendo, de certo modo, um ponto
de chegada. Mas, por outro lado, se não estamos subjugados, porque foi simplesmente o
que sempre quisemos e fizemos, pode-se dizer que há espaços de manobra para novos e
outros sujeitos individuais e coletivos, ou seja,

As técnicas não determinam, elas condicionam. Abrem um largo leque de novas


possibilidades das quais somente um pequeno número é selecionado ou percebido pelos
atores sociais. Se as técnicas não fossem elas mesmas condensações da inteligência
coletiva humana, poder-se-ia dizer que a técnica propõe e que os homens dispõem (Lévy,
1996, p. 101).

Na submersão técnica se encontra o cidadão interativo, formado no ambiente inclusivo da


cidadania democrática, reflexiva e interativa.

A CIDADANIA INTERATIVA

Pode-se dizer que há vários sentidos, expressos ou embutidos, em expressões como


cidadania democrática (onde é clara a demanda pelo fim da exclusão social), cidadania
reflexiva (a que se quer construir em sociedades altamente complexas), cidadania ativa
(em que se ressalta a demanda pela participação popular nos assuntos de Estado).

É comum aos livros didáticos, dicionários, artigos e livros especializados, relacionar o


cidadão a funções sociais e políticas, como: trabalhador, consumidor, contribuinte, eleitor,
sujeito de direitos e deveres, governante potencial4 etc.

O fato é que, atualmente, o espaço público incorporou novas modalidades de participação e


seus cidadãos utilizam-se cada vez mais de meios tecnológicos para se manifestarem
politicamente – realidade marcante em países desenvolvidos, mas numa escala crescente
também no Brasil. Este parece ser o desafio: como absorver de forma interativa, coletiva e
criativa, a tecnologia que cada vez se faz mais presente?

4
Canivez, 1991.
14

E quanto ao humanismo5? Pode-se dizer que a vida como ela é já o feriu há tempos:
opondo, por exemplo, ética e política. Mas, fugindo do maniqueísmo, para tomar de um
caso, tornou-se evidente o uso revolucionário da Internet em Chiapas, México. Para fugir
do cerco do exército mexicano, que seria letal, os zapatistas emitiram pedidos de socorro
através da Internet, a fim de que a comunidade internacional pressionasse o governo a não
cometer o genocídio político. Parece que foi o primeiro caso de Habeas Corpus Tecno-
preventivo em nome de uma coletividade política. O governo não teve como resistir6. Em
Seatle, nos EUA, em 1999, na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), a net
também mobilizou a participação social em defesa dos países do Terceiro Mundo,
denunciando a desigualdade social e clamando por medidas econômicas favoráveis. E
também na apreciação do projeto das multinacionais, junto à OCDE, em 1997 – com
intensa mobilização virtual, a fim de se garantir a participação presencial, e com fins
semelhantes aos de Seatle.

No Brasil, por nossa vez, tem-se perguntado como unir índios e robôs. De início, pensa-se
que é pura provocação, depois se vê ali o mesmo problema. Na questão, o problema antigo
ressurgiu quando se pôs fogo no índio pataxó, Galdino dos Santos. Um caso de polícia,
mas também de política, não resolvido: o índio estava em Brasília exigindo demarcação de
suas terras. Já o problema novo, a metáfora do índio-robô, pode ser melhor acessado nos
endereços eletrônicos (E-mail) de algumas tribos brasileiras7.

A piada popular também já incorporou esse sentido. Unindo a corrupção (um dos aspectos
mais nefastos da tradição política brasileira) com a modernidade ilusória que está presente
na grande maioria dos discursos (basicamente quando políticos corruptos acessam a
modernidade via Internet), o ditado popular diz que o fulano arroub@, mas faz. O original
era rouba, mas faz.

Neste aspecto, está claro que a tecnologia nunca foi tão politizada como hoje e que, mais
cedo ou mais tarde, o usuário será chamado à ação política8. Porque a cidadania interativa

5
Refiro-me exclusivamente à filosofia humanista que prega a volta ao passado de redenção e glória,
que desconsidera o uso realmente político da tecnologia (Sábato, 1993, pp. 19-20, 24-5).
6
Veja-se o site da Frente Zapatista de Libertação Nacional (FZLN), acessado por mais de 300.000
pessoas, em http://spin.com.mx/~floresu/FZLN/, e do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN),
com textos, manifestos e artigos publicados em http://spin.com.mx/~floresu/FZLN/archivo/ezln/index.htm.
7
Como exemplo: http://www.conservation.org.br/proj/xingu.html
8
Um interlocutor espanhol que conheci na Internet, o filósofo e jornalista Javier Villate, adverte em
troca de e-mails para um sentido complementar: “Para lo que puede servir Internet, en el ámbito
estrictamente político, es, como he dicho, para dos cuestiones fundamentales: 1) para ampliar la deliberación
más allá de los pequeños grupos de representantes, dando opción de voz a los individuos y los grupos
15

requer não só um indivíduo conhecedor da lógica política, mas também um sujeito capaz
de imaginar a democracia eletrônica (virtual). Principalmente quando traz para si a
capacidade de imprimir um uso político para a rede9.

A intercessão entre política e tecnologia, como veremos adiante, se dá em duas dimensões


confluentes: da tecnologia que resulta ser política (o virtual que se expressa na virtù10 da
Realpolitik11) e vice-versa, a política que é virtual (uma potência latente que pode se
realizar num novo contrato social e político12).

Neste caso, cabe uma questão preliminar: a relação entre tecnologia e política estabelece
nova forma de representação ou será apenas um novo meio, uma nova forma de mediação?
A crítica à democracia eletrônica tem dito que basta a programação eletrônica, softwear,
para aparentar a representação e que não há, portanto, livre manifestação popular. Daí que,
nessa nova relação, é central a figura do sujeito13. De forma mais ampla, no entanto, tem
recrudescido a crítica à democracia como ideal e prática.

Com o que temos outras questões de fundo: a rede é democrática?; a rede é política?; a
própria relação política está estruturada no formato rede?. Não é o caso de se buscar
respostas prontas, até porque a inovação tecnológica é constante e fluida, mas se pode
indicar a relação entre democracia e rede que se dará num movimento pendular que
oscila entre oposição e composição, como veremos.

sociales, de forma que puedan participar, si quieren y cuando quieran, en el proceso de deliberación; y 2)
para controlar lo que hacen los representantes, con mecanismos adecuados de acceso a la información y
rendición de cuentas a través de foros públicos electrónicos. Todo este conjunto es lo que denomino espacios
públicos o plazas públicas”. (Não há referência bibliográfica, porque se trata justamente de troca de e-mail).
9
Algumas dessas considerações estavam disponíveis no site CIDADANIA INTERATIVA — Grupo de
Estudos Virtual (http://www.unesp.br/www_unesp/polos/marilia/pesquisa/cidi10.htm) sobre Cidadania,
Democracia e participação. A página contou com a assessoria especial da empresa “MEEX Consultoria” -
Campinas, São Paulo. Infelizmente, o link foi desabilitado sem meu conhecimento.
10
Maquiavel, N. O Príncipe, 1989. Agradeço à Prof.ª Maria Victoria Benevides pela lembrança de que
a virtù se refere a uma qualidade masculina, acentuada pela coragem, força, liderança e decisão. Mas ressalto
que, na citação de Petrarca e que encerra o Príncipe, o sentido expresso é o de valor.
11
Quanto à Realpolitik, ela resulta do malogro das revoluções européias do ano de 1848 (...) A figura
romântica do herói, a paixão do romantismo pelo entusiasmo revolucionário cedem lugar a uma análise
mais fria das relações de força, justificando compromissos políticos (...) O pivô da Realpolitik está nessa
política de resultados, que exclui os princípios (...) O problema da Realpolitik está, pois, em que renegando
o que caracteriza a proposta revolucionária, a pretexto de garantir certos resultados, acreditando numa
idéia mais ou menos linear de progresso, graças à qual concessões hoje obtidas se somarão a outras
amanhã, pensando, finalmente, que o detentor do poder é bom, e sensível aos reclamos da justiça, ou
prudente, e pode ceder um pouco para melhor assegurar sua dominação, ou tolo, e não notará que corrói
seu próprio poder, ela erra enquanto política liberal ou democrática, e abre a via justamente para a reação
conservadora, no caso Bismarck (Ribeiro, 1993, p. 142).
12
Arendt, 1994.
13
Aspecto mencionado, mas não aprofundado, por Pierre Lévy.
16

Uma segunda perspectiva (decorrente da complexidade da relação anterior) aponta a


necessidade de recontextualizarmos os dois fundamentos (rede-democrática e
cidadania), agora relacionando-os de forma mais ampla no mapa conceitual e político que
envolve a experiência política e tecnológica atual, sintetizada nos seguintes termos:
cidadão, indivíduo, interface, informação/extensão14, liberalismo e representação; em
contraposição/composição aos conceitos de cidadania ativa15, coletividades,
interação/educação, formação/comunicação, democracia e mediação.

Seguindo a análise entre díades, podemos encontrar uma oposição histórica entre pares,
como: salário X honorário, aprender X apreender etc. Para tomar a análise da díade mais
importante do debate político até recentemente, direita e esquerda, há um trabalho
detalhado de Norberto Bobbio (1995). É evidente que são muitos os problemas, mas
podemos contextualizar alguns que estejam mais próximos dos objetivos do trabalho:

1º - A idéia de rede é nova? (1ª Parte do texto);

2º - Em que contexto teórico podemos nos reportar para visualizarmos de maneira


mais ampla a idéia de rede? (2ª Parte do texto);

3º - Há correspondência entre alguns termos teóricos consagrados como clássicos e a


realidade transformada pela tecnologia da rede? (3ª Parte do texto);

4º - O virtual, em essência, não expressa a mais antiga experiência de vida ou


simplesmente política (virtù)? (4ª parte do texto);

5º - A política, por sua vez, não poderia expressar uma potência que tende a se
realizar (o virtual)? (5ª parte do texto).

1ª PARTE

DA IDÉIA DE REDE

A idéia da rede-democrática foi priorizada por dois motivos. Primeiro, porque são
conceitos e práticas que melhor sintetizam as experiências mais globais. E, segundo,
porque nem sempre a democracia é plena (ou está em rede) e nem sempre a rede está

14
Freire, 1983.
15
O conceito de cidadania ativa resgata a discussão da Educação Política no plano das ações populares
(Benevides, 1991) e expressa a necessidade da Educação Tecnológica, quando se pensa na interface da
política com a tecnologia — que se vê claramente com as eleições eletrônicas.
17

disposta de forma democrática16. Exemplo claro é o acesso às experiências da rede


(Internet, no caso) nem sempre ser democrático, como todos os tipos de serviços on line
que ainda custam caro ao consumidor-usuário e com isto restringem sua utilização — a
exemplo dos pequenos partidos políticos que não têm acesso à tecnologia. Também basta
mencionar que de cada 100 brasileiros apenas três acessam a Internet17.

Assim, nem tudo que é anunciado como um dado novo deve ser tomado como germinal ou
revolucionário. Há intercessões pouco visíveis, combinando a natureza humana aos efeitos
tecnológicos mais tradicionais, e que retiram qualquer aura de superioridade que se
pudesse esperar para as novas experiências.

Para analisar o processo de forma mais específica, toma-se a Internet como o exemplo
mais característico. Porém, como veremos, também aí a relação com o clássico, isto é, com
a política, é ainda mais evidente (sabe-se que a Internet já foi um projeto militar antes de
chegar às universidades18). Mas, conceitualmente, ao contrário do que se pensa, a idéia de
rede também não nasceu do desenvolvimento da informática ou dos grandes projetos na
área da informação ou comunicação mais recentes — notabilizados pela cobertura
jornalística da Guerra do Golfo, o conflito digital por excelência, e que ainda hoje gera
polêmica19. A própria idéia de rede, neste caso, deve ser buscada em experiências
anteriores à informática ou, mais especificamente, em relação à Internet. O princípio da
inter-relação estava previsto, por exemplo, desde muito tempo atrás, na idéia da Rede
Pública de Ensino ou em qualquer outra aplicação dos serviços da rede pública.

A idéia de rede, agora como aporte social ou comunitário, é igualmente secular. Pode-se
dizer que a imagem do pescador que serve a toda a comunidade, fazendo uso de sua rede, é
bíblica, como se vê com Padre Vieira:

16
Tome-se o exemplo da eleição de Fernando Collor de Melo para presidente, quando o mais
importante era o show da tecnologia, veiculado em propagandas políticas gratuitas, e não o debate político
sobre as forças políticas ali representadas.
17
Projeta-se que, em 2020, cerca de 50 milhões de brasileiros já estejam conectados.
18
Difunde-se a tese de que a Internet vem se constituindo em um novo espaço público — o que parece
bastante viável, mas, se não houver nenhum anteparo social, a idéia pode ser privatizada. Porque, desligando-
se momentaneamente como usuário do sistema interativo, o indivíduo se volta ao ambiente do escritório ou
ao quarto de dormir. Seria, neste caso, o melhor exemplo de um novo espaço público nascido sob a égide do
privado, ou da colonização do público pelo privado – ver adiante a crítica do cidadão do sofá.
19
Em artigo em que a denomina de guerra virtual, Jean Baudrillard apresenta interessante versão do
imbricamento entre o real e o virtual: “Vocês sabem como o general Schwarzkopf, estrategista da Guerra do
Golfo, festejou sua ‘vitória’? Com uma gigantesca festa em Disney World. Digna conclusão de uma guerra
virtual, esses festejos no santuário do imaginário” (Jornal Folha de S. Paulo, 09 de fevereiro de 1997, página
5-3).
18

Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores: e que
faziam os apóstolos? – Diz o texto que estavam reficientes retia sua: “refazendo as redes
suas”; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: retia sua: não diz que
eram suas, porque as compravam, senão que eram suas, porque as faziam; não eram suas,
porque custavam o seu dinheiro, senão porque custavam o seu trabalho. Desta maneira
eram as redes suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens; com
redes alheias, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é
porque nesta pesca de entendimentos, só quem sabe fazer a rede sabe fazer o laço. Como
se faz uma rede? – Do fio e do nó se compõem a malha, quem não enfia nem ata, como há
de fazer a rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há de pescar homens? A
rede tem chumbada que vai ao fundo, tem cortiça que nada em cima da água. A pregação
tem umas e outras coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras de mais superficiais e
mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe quem faz rede. Na boca de quem não
faz a pregação, até o chumbo é cortiça (Vieira, 1997, p. 134)20.

Ou é, antes, um sentido geral da vida. Pois, no limite, a própria vida só seria percebida
com o emprego de uma metodologia radial, a exemplo do que propõe Capra:

Isto sabemos. / Todas as coisas estão ligadas / como o sangue / que une uma família... /
Tudo o que acontece com a Terra, / acontece com os filhos e filhas da Terra. / O homem
não tece a teia da vida; / ele é apenas um fio. / Tudo o que faz à teia, ele faz a si mesmo.

— TED PERRY, inspirado no Chefe Seattle21.

Em trabalho anterior, Capra já havia sistematizado seu pensamento sobre o olhar holístico
(se bem que neste caso estivesse mais preocupado com a metodologia e menos com a
perspectiva política):

Os novos conceitos em física provocaram uma profunda mudança em nossa visão do


mundo, passou-se da concepção mecanicista de Descartes e Newton para uma visão
holística22 e ecológica, que reputo semelhante às visões dos místicos de todas as tradições
(...) Vivemos hoje num mundo globalmente interligado, no qual os fenômenos biológicos,
psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para descrever esse mundo
apropriadamente, necessitamos de uma perspectiva ecológica que a visão de mundo
cartesiana não nos oferece (...) Assim que isso acontecer, podemos esperar que os vários
20
Agradeço a referência bibliográfica ao Dr. Amaury Cesar de Moraes, Professor da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo.
21
Capra, s/d, p.09.
22
A nota do tradutor define como: “O termo ‘holístico’, do grego ‘holos’, ‘totalidade’, refere-se a uma
compreensão da realidade em função de totalidades integradas cujas propriedades não podem ser reduzidas a
unidades menores” (1996, p. 13).
19

movimentos fluam juntos e formem uma poderosa força de mudança social (...) Essa nova
visão inclui a emergente visão sistêmica de vida, mente, consciência e evolução; a
correspondente abordagem holística da saúde e da cura; a integração dos enfoques
ocidental e oriental da psicologia e da psicoterapia; uma nova estrutura conceitual para a
economia e a tecnologia; e uma perspectiva ecológica e feminista, que é espiritual em sua
natureza essencial e acarretará profundas mudanças em nossas estruturas sociais e
políticas (1982, pp. 13-14).

A inspiração do conceito atual de rede, no entanto, vem da Biologia: mais precisamente da


Botânica. A imagem projetada pelo entrelaçamento das raízes transformou o rizoma no
atual conceito hegemônico da rede23. Contudo, é preciso ver que o rizoma possui um
centro de aglutinação ou origem dos ramos das raízes e a rede, que se pensa para a Internet,
ramifica-se e se distribui sem controle central. O que remonta ao papel do indivíduo na
sociedade, à participação com responsabilidade, uma vez que não há centralidade diretiva.
E dessa forma pode-se dizer que não estamos mais sob o desígnio absoluto das regras já
estabelecidas, ainda que nossa atuação sobre os mecanismos de formulação política,
gerência e normatização esteja muito aquém. Ou, mais simplesmente, qual será o papel
político e a real capacidade de interferência normativa destinados ao indivíduo da rede?

A REDE E A NOVA INTERATIVIDADE

Assim, se podemos dizer que nos encontramos sob/sobre as regras do jogo, é importante
então que se ressalte o problema do individualismo como um dado de formação do
passado, mas que se encontra extremamente atual. Aplicando-se, portanto, esse mesmo
sentido do individualismo à experiência da rede, temos críticas mais comuns de que o
usuário centrou-se em demasia nos interesses pessoais e em certos casos, gerando
patologias nos internautas mais conhecidas como netvícios, que acabam por receber
acompanhamento psicológico na própria Internet, ou de que o acesso é restrito e por isso o
uso não foi democratizado, também remontam ao passado do pensamento liberal ou da
crítica liberal. Pois bastaria aumentar a produção de equipamentos e diminuir seus custos
para democratizar a rede.

23
A questão foi colocada pela primeira vez por Deleuze: “Um rizoma não começa e nem conclui, ele
se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é
aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção
“e...e...e...” (...) Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e
reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra,
riacho sem início nem fim, que rói suas duras margens e adquire velocidade no meio” (1995, p. 37).
20

Inicialmente, entretanto, pode-se tomar o conceito de interface para visualizar como essa
relação se apresenta de forma mais complexa. Trata-se meramente da relação mecânica ou
eletrônica que o indivíduo mantém com os equipamentos de informática ou informação
onde desenvolve apurado senso técnico sobre seus comandos e lógica interna? Como
conceito aberto, por exemplo, há o de interface eletrônica, utilizado pela USPonline
(http://www.usp.br/infow3/uol/uspon2.htm#Introdução) e que precisava a idéia da
interatividade. Além de experimentar a bricolagem,

Esta interface eletrônica se apóia, de forma metafórica, ao que o crítico e teórico da arte,
Mario Pedrosa, expõe a respeito do centro universitário em seu artigo, escrito em 1967,
sobre a função do museu neste domínio. Para Pedrosa, este centro deveria expressar a
idéia-síntese de uma comunidade altamente qualificada, parcamente diversificada e
socialmente homogênea: a Universidade. Neste sentido ele ressalta que esta idéia-síntese
deveria ser definida pela inter-relação dinâmica das atividades, que se devem exprimir nas
formas arquitetônicas, nos espaços intervalares interiores, nas perspectivas com que se
defrontam, nas finalidades a que se destinam e ele vai além: Não se quer dizer, porém,
com isso que todas essas atividades se definem pelas simples formas arquitetônicas
individuais e isoladas, como símbolos estáticos, que se acabam se convencionalizando,
mas pelo diálogo permanente de umas com as outras, de modo que a área em conjunto
exprima uma totalidade dinâmica no espaço, dentro da qual cada elemento se afirme sem
violar-se, se integre sem sumir-se.

Em sentido menos técnico, ainda que conectado à distância com outros indivíduos, o
usuário desenvolverá necessariamente um senso de participação social com a mesma
intensidade? Tais proposições se verificam nas críticas psicológicas de que o
individualismo vem se aprofundando nas crianças usuárias dos instrumentos de
computação. Também é comum ouvir-se a queixa de que estas crianças passam horas
manuseando tais equipamentos sem pronunciar uma única palavra.

Mas, será que os usuários descritos como patogênicos, netdependentes, já não eram anti-
sociais, tímidos ou arredios? Já não sofriam, aliás como todos nós, de ágorafobia, a
exemplo dos videotas? Não seria mais justo — no sentido social — pensar nestas
possibilidades, do que na iminência de um mal intrínseco à tecnologia ou à Internet?

Desse modo, quando se parte da idéia de rede, o engodo desta crítica está em confundir o
acesso à democracia, como na análise antiga que se fazia entre a televisão e o rádio.
Diferentemente destes meios, a rede é um meio aberto e a democratização se torna
21

realidade não pelo mero acesso, mas pela interação entre usuários — sem centralização —
e pela produção livre de mensagens. Porém, é o sentido interativo que lhe dará a qualidade
da força tão visível nos dias atuais, e que é melhor especificada pelas características da
metamorfose, fractalidade, acentralidade, topologia, abertura e heterogênese24.

A TV e o rádio, ao contrário, alcançam um público muito mais expressivo — atualmente


— mas seu usuário não interfere na programação. Mesmo programas ditos interativos,
como Você decide ou Intercine, têm as escolhas múltiplas reduzidas à programação
configurada. O telespectador vota nas opções previamente descritas, entre duas ou três. E
mesmo que fossem mil possibilidades, ainda assim, estariam reduzidas à escolha da equipe
de programação.

Neste sentido, a decisão contrária da Suprema Corte dos EUA ao projeto de censura da
Internet, dia 26 de junho de 1997 — e que já havia sido sancionado pelo presidente
americano Bill Clinton —, configurou uma salvaguarda das liberdades individuais e dos
direitos civis.

O juiz John Paul Stevens, 77, decidiu que o projeto de censura feria o direito de liberdade
de expressão, garantido pela Primeira Emenda da Constituição Americana. Em decisão
histórica, ao comparar a Internet aos jornais escritos, recusou a tese governista de equiparar
a Internet à televisão. Este é o ponto central, porque a Suprema Corte aceita restrições à
transmissão televisiva considerada indecente. E aproximando a Internet dos jornais, o juiz
admitiu que a rede é um fórum público para intercâmbio de idéias e informações e que a
censura regulamentaria somente o conteúdo do discurso público. Em suma: debilitaria a
liberdade de pensamento e de expressão. Também é bom lembrar que Bill Clinton é
favorável à censura da Internet25.

No sentido mais político, como se sabe, o debate entre liberalismo (individualismo) e


democracia é dos mais antigos, e não constitui uma característica intrínseca à tecnologia: o
a priori tecnológico — neste caso, da rede — não é o individualismo. Até porque teríamos
uma contradição nos termos: rede x individualismo.

Com isto, a própria democracia estaria limitada ao acesso à máquina e interrompida no


debate e na formulação dos conteúdos, mensagens e conceitos veiculados. Parece
exeqüível, portanto, presumir-se a possibilidade de uma análise que conjugue a interface

24
Lévy, 1993.
25
Jornal Folha de S. Paulo, 27 de junho de 1997, caderno Mundo, página 1-18.
22

(entre o indivíduo e a máquina, ou o computador ou a estrutura burocrática do partido


político, por exemplo) e a interação social (enquanto objeto de análise das Ciências
Sociais26). Sem, contudo, tomar-se interação e interface como sinônimos em termos de
experiências sociais. Porque também na área social o como e o porquê parecem distantes
da análise pública.

2ª PARTE

INTERAÇÃO E COMPLEXO TECNOLÓGICO

Vejamos a questão do ponto de vista atual: como, por exemplo, desconhecer categorias
sociológicas (interação, que é igual a um mínimo de sociabilidade), tomando-as por
qualquer coisa mais moderna (interface, que é igual a indivíduo mais equipamento), sem
que haja prejuízo para o plano social?

O porquê disto, de simplificar a experiência da interação social à mera interface


tecnológica, parece estar apoiado na propaganda dos avanços incalculáveis da tecnologia,
levada a cabo pelos deterministas que ressaltam somente os valores positivos da interface
entre os usuários-consumidores e seus equipamentos. Mas aqui é evidente que podemos
construir um projeto teleológico, envolvendo a conjunção entre projetos individuais e
coletivos, dependendo do aspecto coletivo (sociabilidade) que poderemos imprimir.

Nesse ponto, acompanhando Giddens, pode-se estabelecer um paralelo entre sua cidadania
reflexiva ou de alta reflexividade com o próprio princípio de interação ou mínimo de
sociabilidade, originando a idéia de sociabilidade reflexiva ou cidadania de alta
reflexividade (ética, participativa, interativa, democrática, de iniciativa popular etc.). Por
cidadania reflexiva Giddens entende nossa capacidade de indignação e mobilização frente
aos desmandos das políticas públicas e centralismo do Estado-nação:

A solidariedade ampliada em uma sociedade destradicionalizadora depende do que


poderia ser chamado confiança ativa, acompanhada de uma renovação de
responsabilidade pessoal e social em relação aos outros. A confiança ativa é a confiança
que tem de ser conquistada, em vez de vir da efetivação de posições sociais ou de papéis de
gênero. A confiança ativa pressupõe autonomia em vez de posicionar-se contra ela. Além
disso, ela é uma fonte poderosa de solidariedade social, uma vez que a transigência é
livremente oferecida em vez de ser imposta pelas coerções tradicionais (1996, p. 22).

26
Especialmente o ensaio de Florestan Fernandes, Conceito de sociologia, na coletânea organizada por
Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni (1977).
23

De acordo com esta perspectiva, Giddens parece retomar os conceitos de sistemas peritos e
ultramodernidade (em As conseqüências da modernidade, 1991) onde postula a confiança
que mantemos em determinadas ocasiões e que renovamos nosso crédito e credulidade.
Esta postura, porém, será definitivamente orientada nos termos das sociedades altamente
industrializadas, em que se aprimoram tanto a perícia e o conhecimento técnico quanto a
capacidade de inserção política no novo discurso técnico. Por isso, é sem dúvida uma nova
disposição social, mas igualmente utópica:

O ‘novo medievalismo’27 está correto na medida em que reconhece que não se pode lidar
com o risco artificial exclusivamente em termos do desenvolvimento posterior de
conhecimento técnico. Os problemas apresentados por esse risco são irredutivelmente
políticos e morais. Assim, a decisão de construir uma usina nuclear não pode ser
puramente técnica, tomada em termos de avaliação neutra de riscos. Envolvida aqui existe
uma questão de prudência política, no sentido de John Locke. Até mesmo o risco de danos
acidentais não pode ser exatamente calculado, sem mencionar os riscos de terrorismo, do
uso do plutônio para a guerra ou, por definição, de elementos poluidores desconhecidos
que poderiam afetar as vidas das futuras gerações (...) Em uma sociedade de alta
reflexividade, a apropriação regular de perícia — em todas as suas muitas formas — tende
a substituir a orientação da tradição. Esta é, por definição, uma sociedade energética e
não passiva. Até mesmo quando permanecem fiéis às tradições, ou quando as recriam,
indivíduos, grupos ou coletividades são mais ou menos compelidos a assumir uma postura
ativa em relação às condições de sua existência (Giddens, 1996, pp. 94-5 e102).

Daí Giddens assegurar que não aprendemos mais com os próprios erros. Em alguns casos,
seria uma fatalidade de âmbito universal: também se diz do potencial de dano elevado ou
incalculável28. Mais do que nunca, o procedimento tecnológico afeta os princípios políticos
básicos. É como se as gerações não-nascidas não pudessem mais aprender com os erros do
passado:

Os riscos de grande conseqüência com os quais nos defrontamos atualmente, e muitos


outros ambientes de risco de tipo menos extensivo, são de origem social. Os riscos
associados a aquecimento global, desgaste da camada de ozônio, poluição ou
desertificação em larga escala, rompimento da economia global, superpopulação do
planeta ou ‘tecno-epidemias’— doenças geradas por influências tecnológicas, como

27
Critica certa interpretação prometéica dada à expressão de Marx de que a sociedade só se coloca
problemas que pode resolver.
28
O vírus I Love You, lançado na rede na virada do ano 2000, causando prejuízo de bilhões de dólares
em todo o mundo, é bom exemplo.
24

aquelas que produzem a poluição do ar, da água ou dos alimentos. As incertezas inerentes
aos riscos de alta conseqüência são talvez especialmente preocupantes, porque quase não
temos meios de ‘testá-las’. Não podemos aprender com elas e seguir em frente, porque se
as coisas saírem errado, os resultados provavelmente serão cataclísmicos. Sendo assim,
estamos condenados a lutar por um futuro indefinido (idem, pp. 93-4).

Não se deve, porém, entender esta passagem como uma simples denúncia cataclísmica da
realidade tecnológica atual, mesmo levando em conta todos os significados sociais gerados
pelos produtos e pelo dejeto tecnológico29. Por fim, vemos em Giddens que isto a que
chama de cidadania de alta reflexividade é uma espécie de solidariedade ampliada pelo
discurso tecnológico — transformação do sentido natural da vida — e pela atividade
política, uma vez que o próprio ritmo do desenvolvimento tecnológico impõe novas
percepções e interações políticas.

Em sentido oposto, já apontado, o individualismo — muitas vezes creditado unicamente à


interface do sujeito com a tela — resulta muito mais do projeto social e político que as
sociedades informáticas vêm adotando. O projeto do liberalismo há muito prevê ao
indivíduo um tratamento de mônada, isolado dos demais — como real antítese
democrática30. Mas, mesmo com todo o significado desta ressalva, não se pode ignorar o
significado social embutido na tecnologia. Como alerta Mercier (et.al., em La sociedad
digital): “As novas tecnologias da informação carecem de respeito pelas categorias
largamente elaboradas por sociólogos e economistas” (1995, p. 19 - tradução livre).

E se de fato carecemos de respeito pelos clássicos das Ciências Sociais, e de uma relação
de equilíbrio entre cultura social e instrumentalização tecnológica, seria razoável
estabelecermos mais claramente quais são os problemas políticos e técnicos (provindos da
rede) e que não estão nos clássicos. Tendo-se em conta o cidadão e não só o usuário por
base.

PROBLEMAS GLOBAIS

No sentido apontado, Antonio Negri destaca a formação de novas redes sociais com
amplos significados políticos e informacionais. Na análise, problematiza elementos

29
Não é nova, mas é curiosa a definição de sopa de computadores, que Furnival apresenta: “Na página
http://eelink.umich.edu/computer/pp-compustew.html, encontra-se uma receita de ‘caldo de computador’
(compustew), na qual são listados os ‘ingredientes’ nocivos usados para manufaturar computadores, entre os
quais há: cloroflorocarbonios, baterias cheias de chumbo, cádmio e mercúrio, gases tóxicos, solventes, metais
pesados” (1995, p. 16).
30
Bobbio, 1990, pp. 47-48.
25

centrais do que denomina de sociedade pós-fordista: o predomínio do trabalho intelectual


(imaterial); o deslocamento do centro da produção industrial para o conjunto das redes
sociais; a globalização de todo o sistema produtivo. Com um cidadão tido como novo
produtor de subjetividades,

1. (...) Simplificando ao máximo: o trabalhador que, ao determinar excedente de


produtividade, toma o lugar que ontem era do ‘metalúrgico’, é o técnico da informação e
dos serviços, é o produtor de saber e de linguagens: eles trabalham entre ‘redes’
cooperativas, mas, ao mesmo tempo, são autônomos na criação de valor.

2. Por conseguinte, o lugar onde se produz o excedente de produtividade já não é a


fábrica, nem o sistema da grande indústria, mas o conjunto de ‘redes’ sociais por meio das
quais essa massa de trabalhadores imateriais aprende, coloca-se em contato, comunica,
inventa, produz mercadorias — e faz tudo isso reproduzindo subjetividades. Porque
somente a alma e o cérebro produzem hoje excedente31.

Ainda no sentido crítico da democratização dos meios de acesso informacional, como


direito individual que não se propaga às redes sociais, pode-se averiguar o mesmo
fenômeno. Sabe-se perfeitamente que a democracia moderna é fortemente marcada, desde
as revoluções americana e francesa, pelos direitos individuais. A chamada Primeira
Geração dos Direitos Humanos segue a mesma lógica, até que hoje chegamos a
redimensioná-los numa 4ª geração: mais ligados à bioética — reprodução artificial da vida
humana — e, no sentido que se propõe, com atenção especial para a digitalização da vida
pública.

De uma forma precisa, rediscutir Direitos Humanos e tecnologia é pautar a discussão pelo
sentido comunicativo mais global, ao contrário do individualismo, porque os Direitos
Humanos são de fato universais, e sendo indivisíveis, seu alcance se dá em rede ou não se
dá. Com isso, portanto, é oportuno e urgente outra modalidade de análise. Mas, em sentido
contrário, têm recrudescido os argumentos que negam a universalização dos Direitos
Humanos. Baseados nas teses do relativismo cultural, analistas dizem que os Direitos
Humanos são valores ocidentais e por isso não se pode forçar, por exemplo, países
islâmicos a aceitar seus valores. Mas se já não bastasse a argumentação de que os Direitos
Humanos pertencem a todos, fundamentalistas, islâmicos ou democratas, parece necessário
indicar a falácia relativista. Porque, se os países islâmicos não incorporam a democracia e

31
Jornal Folha de S. Paulo, 29 de junho de 1977, caderno Mais!, página 5-3.
26

o respeito integral aos Direitos Humanos, por outro lado, têm incorporado como estrutura
de sua sociedade uma noção tecnológica realmente capitalista e ocidental — que é a
engenharia do cálculo frio e a forma adaptada da razão instrumental. O historiador inglês
Eric Hobsbawm é claro neste caso:

Para o senso comum do século XIX, é inconcebível que um enorme progresso material
coexista com um retrocesso moral. Mas a experiência demonstra que é possível. Também
parece possível a combinação de ideologias anti-racionais com o controle de uma
tecnologia baseada em fundamentos racionais. Em alguns países da Ásia, os movimentos
fundamentalistas se apóiam em engenheiros e em especialistas em cálculos. Parece muito
estranho que alguém que acredite no Alcorão possa ser, ao mesmo tempo, um engenheiro
químico. É preciso ver como se resolve isso32.

De forma ampla, no entanto, buscando o sentido propriamente político, democrático ou


não, pode-se afirmar que o uso das tecnologias, para fins militares ou não, sempre
estabeleceu a difícil relação entre o clássico e o moderno: em outras palavras, sempre
estabeleceu a relação entre política e tecnologia. Como descreve Virilio já em 1977, as
tecnologias da informação são as tecnologias da velocidade, onde vence quem transmite
mais informações por segundo. É um projeto tecnológico de profundas transformações
sociais, onde a própria lógica econômica se vê remodelada. Teríamos passado da era da
economia política para a da velocidade política. A mudança histórica, de acordo com
Virilio, no entanto, havia sido avistada há muito tempo: “O engenheiro é celebrado como
‘sacerdote da civilização’ (Saint-Simon)” (Virilio: 1996, p. 30). Com o que também se
entende a crítica de Hobsbawm.

Mas, em sentido amplo, fica evidente que as questões de fundo foram alçadas há tempos e
de quando em quando retornam ao debate. Atualmente, a questão parece ser a seguinte:
está cada vez mais evidente que não é possível discutir-se a utilidade dos chips. O que
não significa a impossibilidade de se discutir a utilização de seu emprego. Ou como
indicavam Mercier, Plassard & Scardigli, já em 1984:

Os chips eletrônicos estão invadindo nossa vida cotidiana, e sua fecundidade se anuncia
fulminante. Nestes momentos só nos surpreendem ou irritam. Porque estão vazios, porque
carecem de sentido. O único problema consiste em saber que...<alma> lhes estamos
dando (1985, p. 20 - tradução livre).

32
Jornal Folha de S. Paulo, 22 de junho de 1997, caderno Mais!, página 5-9.
27

Ou seja, o que Mercier denomina por alma (Negri também) pode ser chamado de projeto
social – caso explícito do projeto dos Direitos Humanos. Trata-se de uma realidade
exterior aos princípios do mero aplicativo da técnica e exige uma discussão da própria
tecnologia a partir do a priori político, uma constante em toda relação humana: seja ela
com outros homens (cultura política ou tecnológica), seja com algum equipamento.

A REDE E O CONHECIMENTO DA SOCIEDADE

Por isso, a idéia de rede, que abrange a formação do conhecimento a partir das relações
sociais, deve ser destacada dentro de um contexto social amplo. Nílson José Machado
aponta nesse sentido:

Explorar o terreno epistemológico onde deverá ser plantada a semente da concepção do


conhecimento como uma rede de significados em um espaço de representações, uma teia
de relações cuja construção não se inicia na escola, e que se agrega, possivelmente, a uma
proto-rede inata, constitui o cerne... (1995, p.30).

Neste caso, se a rede constitui uma teia de relações cuja estrutura não se inicia na escola,
pode-se supor que o nível sócio-político em certos casos coloca-se como substrato do
projeto de construção do conhecimento, político ou tecnológico. É o caso de pensarmos a
educação política popular que tem a militância e a participação como base, e não
propriamente a escola política, no sentido bancário e até mesmo acadêmico. Uma forma de
ver a educação enriquecida pelas práticas tecnológicas, mas que só se completa (faz-se
comunicar) se o conhecimento veiculado for constantemente avaliado pelo conjunto da
sociedade. Machado diz que:

De pouco adianta, por exemplo, entrar-se em acordo quanto ao fato de que as mudanças
tecnológicas nos processos de trabalho industrial exigiriam uma reorganização da escola,
no sentido da diminuição da importância das habilidades manuais em favor das
habilidades cognitivas (...), se a concepção de conhecimento simultaneamente não se
transforma. Menos tecnicidades, mais conhecimento é o que importa. Mas que
conhecimento? (1995, p. 30).

Jean Lojkine, de concepção semelhante, analisa a produção do conhecimento veiculado e


indica de que forma a informação vem sendo disposta em rede. O que se denomina mais
corretamente de comunicação porque não é propriedade privada, e isso independentemente
da proteção das leis de patentes das atividades intelectuais:
28

A invenção científica moderna, com efeito, não pode vir à luz e se desenvolver senão por
um trabalho de equipe e mediante formas de cooperação que nada têm a ver com a troca
de mercadorias entre proprietários privados. A informação assim criada, assentada num
trabalho cada vez mais coletivo, não pode ser conservada e, menos ainda, ser enriquecida
se for apropriada privadamente: ela perde seu ‘valor’ (de uso), seguindo, nisto, a lei da
entropia, se for simplesmente acumulada, estocada como uma mercadoria (1995, p.17).

Por sua vez, Machado também aponta para a construção e apropriação coletiva do
conhecimento, seja ele produzido no interior da escola ou não. Vale dizer, o trabalho
resulta de uma combinação de esforços entre projetos33 pessoais e coletivos, ou
simplesmente no emaranhado da rede. Em outros termos, é como se a rede produzisse
conhecimento por si mesma, e é nisto que também supera os princípios da propriedade
privada:

O valor do conhecimento não pode ser determinado com base nos mesmos princípios que
orientam a fixação dos preços das mercadorias em sentido industrial, onde a escassez na
‘matéria-prima’ ou nos produtos determina o aumento no valor dos mesmos: um
conhecimento ‘sonegado’, ou que se omite, que se esconde, que não se compromete, longe
de ter seu valor aumentado, rapidamente estiola-se e perde o sentido (1995, p. 32).

Como na metáfora da rede do pescador que captura peixes grandes e miúdos, também aqui
se vê que há uma relação em que elementos singulares e plurais se compõem — na política
ou na ciência exata34. No mesmo sentido em que se analisa a política, a tecnologia e a
educação, ou a sociedade, o indivíduo e a interação, quando estão presentes num amplo
plano social ou, em sentido contrário, quando se impõe o determinismo tecnológico, o
positivismo tecnológico, num estado de coisas que podemos denominar de demasiado
virtual35, ignorando-se o real36.

33
Relacionado à tecnologia e à política, para Machado, o conceito de projeto é amplo: “Marx recorreu
à idéia de projeto para distinguir o trabalho humano da atividade de uma aranha ou das construções de um
castor. Mais recentemente, nos debates sobre o significado da inteligência e a possibilidade de uma
‘Inteligência Artificial’, novamente a capacidade de ter ‘vontades’, iniciativas, de criar, de cultivar sonhos ou
ilusões, em outras palavras, de ter projetos, tem sido considerada a característica humana distintiva, tanto em
relação aos animais como em relação às máquinas. Um computador, por mais sofisticação que venha a
ostentar, ainda que possa vir a realizar certas operações similares às realizadas pela mente humana, jamais
alimentará sonhos ou ilusões, nunca será capaz de ter projetos ‘pessoais” (1997).
34
Hawking, 1988, pp. 31 e 32.
35
Quando se diz que a revolução dos bits é irrevogável, determinante etc, esquece-se de que os seres
vivos são formados à base de carbono. Mesmo na ficção, como no filme Blade Runner, seres humanos e
replicantes podem conviver lado a lado, mas não se substituem nas tarefas que lhes são próprias. E assim, o
demasiado virtual surge como ideologia dos cientistas mais aficcionados do que os ficcionistas.
29

Como vimos, pelo princípio da rede, também se entende que o próprio resultado das
pesquisas, sejam produtos ou simples mercadorias, idéias ou produção material, deveria ser
colocado rapidamente em circulação. Porque, fora da circulação econômica ou acadêmica,
acredita-se, a idéia em si perderia significação. Estaria obsoleta, obtusa, anacrônica etc. Em
conseqüência, a rede, em que as idéias circulam, envolve o trabalho acadêmico, as
instituições públicas financiadoras e o mercado de consumo final.

Outra dimensão do problema, no entanto, mesmo considerando a idéia de rede


(formuladores sociais do conhecimento), é saber efetivar a função que é própria aos
agentes ativos da tecnologia (usuários e consumidores), e que é a formulação conjunta do
conhecimento. Em setores bastante avançados de pesquisas na área de informática,
basicamente Realidade Virtual, por exemplo, as abordagens transdisciplinares de certa
forma parecem distantes.

Hoje, nesse ramo de pesquisa, o processo mais se parece com idéias condicionadas em
envelopes lacrados e nominais — organizações de pesquisa que os americanos estão
chamando de THINK TANK, literalmente tanques de pensamento37. E dessa forma, cada
cientista ou pesquisador tem seu envelope ou tanque na cabeça e reparte quando quer, com
alguns pares, parte daquilo que pensa ou acredita, somando-se com os demais, e se
reformulando quando necessário, apenas naquilo que possa melhorar seu próprio trabalho.
É uma espécie de toma lá dá cá, é dando que se recebe etc. Mas será possível pensar
isoladamente um instrumento de alcance tão global como a Internet, por exemplo? Não há
contradição metodológica entre o princípio (uso coletivo) e o desenvolvimento (pesquisa
isolada)?

36
Para este projeto, entendemos o real no momento histórico em que experimentamos uma espécie de
segundo desencantamento do mundo (Weber), em que uma profunda sensação de segunda natureza vai se
apoderando de todos e de todas as sensações, em que, por fim, já não há mais simetria entre o sensível e o
inteligível (Virilio, 1993). Contudo, mesmo este plano de sensações, se ainda pode ser descrito, sentido,
ainda que muitas vezes não possa ser tocado, pertence ao real e também ao virtual. Afinal, a filosofia e o
pensamento também não podem ser tocados e, no entanto, pertencem ao domínio real do ser humano e ao
virtual quando são promessas de entendimento e arrazoado. Os conceitos, no entanto, serão discutidos na 4ª e
na 5ª parte.
37
Publicada no Jornal Folha de S. Paulo (05/02/1997, Caderno Informática, p. 5-1), a matéria,
Pesquisador cria o futuro do homem, apresenta esta informação: “Há expressões que vão definir para sempre
o sabor do século 20 nos Estados Unidos: ‘blender’, ‘computer’, think tank’. ‘Think tank’, gíria norte-
americana para organizações de pesquisa, significa, literalmente, ‘tanques de pensamento’. Soa quase
absurdo. Quem pensaria em encapsular o pensamento, a mais liberta das mercadorias? Que edifício abrigaria
a criação de grandes idéias? Os ‘think tanks’ nos deram algumas das mais importantes inovações em
informação no último meio século. Internet, multimídia e videoconferência começaram todas em uma dessas
fechadas comunidades de pensadores”.
30

Por fim, ainda que formuladas em tanques de pensamento, tais idéias terão de ser postas
em circulação para se viabilizarem economicamente, como na aporia de que as idéias são
os produtos mais caros do mundo atual, e por isso tratadas como mercadorias. Agora, se é
correto ou não que as idéias sejam mercantilizadas, se estão certas ou erradas (geralmente,
na premissa maior) e se são humanitárias ou não, isso é outro problema. Não se deve julgá-
las antecipadamente, pois pareceria a criação de um totemismo tecnológico. E se o
antropólogo francês Lévi-Strauss definia o totemismo dos aborígenes como tudo que é bom
para comer, hoje poderíamos definí-lo como tudo que é bom para ser pensado e
consumido.

Por outro lado, não é o fator economicista ou individualista que descaracteriza o potencial
democrático da rede, uma vez que o problema decorre da transformação da informação em
mercadoria e poder, e não como limite da rede. Como mercadoria, o limite imposto à
informação é mercadológico e não de caráter informacional. Como poder, o limite é da
ordem da política realista, e não da ética (que deveria ser). O que também motiva alguns
autores a tratarem a rede (neste caso a Internet) como um novo espaço público. É o caso de
Nelson de Luca Pretto:

Com os computadores e a televisão, a tela passou a assumir a condição de espaço público


(...) Uma nova ordem mundial é criada com base em mecanismos maquínicos e de
comunicação. Os espaços físicos passam a adquirir novos significados. A velocidade da
comunicação eletrônica possibilita a construção de um novo hábitat, com malhas urbanas
superequipadas e articuladas pelas tecnologias de comunicação... (1996, p. 42).

Em seguida apresenta uma análise de Paul Virilio38:

A imagem televisiva do jornal das oito está se transformando num espaço público. O
espaço público era a praça, era a esquina em que os homens se encontravam para
dialogar, para se manifestar publicamente, para lutar ou para festejar. Hoje em dia, é
visível que o cruzamento, o espaço em que os homens se encontram é o jornal das oito39.
Alguns anos atrás, em Paris, os atentados terroristas eram programados de modo a serem
noticiados no jornal das oito. Vê-se também nesse caso, efetivamente, que há uma ruptura,
a arquitetura antiga construía espaços públicos, praças, jardins, parques e vias de acesso,
avenidas, etc. Hoje em dia, é a imagem que se torna pública. No caso da televisão, há

38
Conforme referência de Pretto: América: depoimentos. São Paulo: Cia. das Letras; Rio de Janeiro:
Videofilmes, 1989. p. 134.
39
Como se sabe, o chamado Jornal das Oito é transmitido no horário nobre, o horário de maior
audiência em todos os canais e onde a publicidade também tem maior penetração e consumo.
31

unidade de tempo, no jornal das oito, mas não há unidade de lugar. Estamos, pois, juntos
diante de uma imagem pública, que substitui a praça pública, mas separados, cada qual
em sua casa (1996, p. 42).

Em uma situação concreta em busca de diálogo público, que mantive trocando e-mails, um
interlocutor detalhou-me o processo para erigirmos esses espaços e momentos públicos:

“Lo que sí creo y de lo que soy un ferviente defensor es que Internet puede ayudar a
reconstruir espacios públicos, tomando este concepto de Hanna Arendt y de Jürgen Habermas.
Aunque no soy fiel seguidor de ninguno de los dos, sí creo que Internet puede ofrecer plazas
públicas en las que los ciudadanos políticamente más activos puedan DELIBERAR sobre los
asuntos públicos. Me parece importante redefinir el concepto de lo "público", sin identificarlo con
lo estatal, pero sí con el acceso libre (un lugar "público" sería aquel que, como las plazas públicas,
todo el mundo puede visitar) y con el interés público (algo que nos concierne a todos en tanto que
ciudadanos). Utilizar Internet como un espacio público para la deliberación política es el objetivo
que me interesa. Desde esos foros públicos en línea, y sin sustituir a los procesos democráticos
institucionalizados de tomas de decisión en las democracias representativas, los ciudadanos
deberíamos poder tener la oportunidad de participar en debates y deliberaciones vibrantes,
informarnos mejor y tener acceso a la información, reunirnos libremente com quienes queramos
para mejor aclararnos, enviar propuestas y, at last but not least, CONTROLAR a nuestros
representantes. Que su gestión sea más transparente, que podamos conocer lo que hacen, proponen,
etc. En definitiva, Internet como herramienta de deliberación pública y como herramienta de
control. Esos son los dos objetivos que creo que deberían desarrollarse. ¿Es Internet democrática?
Depende. ¿Puede Internet democratizar la sociedad? Sí. Esa es, creo yo, la cuestión. Que Internet
sirva para hacer que la sociedad política sea más abierta, participativa y transparente”.
Con el tiempo, las diferentes instituciones políticas habrían de ofrecer foros para la
participación pública. Tal o cual ministerio, ayuntamiento, etc., debería tener sus rspectivos foros.
Pero la precondición de todo esto es que la información de las administraciones esté libremente
accesible en Internet, con buenas leyes de acceso a esa información que garanticen los derechos de
los ciudadanos.
No sé si en Brasil existe alguna experiencia de redes ciudadanas o "civicnetworks". Es una
experiencia extremadamente interesante. Está muy extendida en EEUU y Canadá, y algunos países
de Europa. En el Estado español tan sólo hay unas pocas en Catalunya. Las hay de muy diferentes
tipos, con más o menos, o ninguna, participación institucional; con mayor o menor participación de
asociaciones ciudadanas, pero siempre vinculadas a la problemática local y, muchas veces, con
pasarelas a la red global. De alguna forma, se podría pensar en "ciudades digitales", con sus
diferentes instituciones y actividades (escuelas, hospitales, clubs, asociaciones, ayuntamiento
virtual, comercios, bibliotecas, prensa, cine, etc.). Creo, además, que con el tiempo la gente irá
prestando más valor a lo que tiene cercano y las redes ciudadanas como una prolongación de lo que
hace en su vida cotidiana. Esto ayudaría a eliminar algunas barreras culturales y psicológicas.
Suelo decir que el ciberespacio podría ser una ciudad, o mejor, una mezcla de pueblo y
ciudad moderna. Hay calles con distintas actividades: comercios, cines, clubs, lugares de ocio,
salones o bares con "vida social", lugares de ambientes determinados, escuelas, bibliotecas,
ayuntamiento (municipalidad)... y las plazas públicas, a las que todo el mundo puede acceder y
donde todo el mundo puede hablar, tratando, junto a sus conciudadanos, asuntos de interés público.
Internet tiene sus comercios electrónicos, sus escuelas virtuales, sus bibliotecas, sus salones
sociales, sus clubs, sus sitios de ocio..., pero no está claro dónde están las plazas públicas.
Defino estas plazas públicas por dos rasgos básicos: 1) son lugares de libre acceso (hay
edificios que son "públicos", pero donde el acceso está restringido) y, por tanto, no pueden estar
gobernados por entidades privadas (los proveedores de servicios de Internet o los servicios de
hospedaje de webs o las llamadas "comunidades virtuales" son, generalmente, empresas privadas,
32

con sus normas de exclusión), y 2) donde se tratan asuntos de interés público (no, pues, los
hobbies, las aficiones, investigaciones académicas, etc.). Los medios de comunicación de masas
han relegado al público a la platea (no sé cómo se dice en portugués los lugares de los teatros
reservados al público espectador). Internet puede permitir que tomemos de nuevo la plaza. La
plaza, no el poder40)”. (Não há referência bibliográfica porque se trata de troca de e-mail).

Nessa direção, o ponto de chegada é a charada que se estabelece entre a tecnologia do novo
espaço público e a educação. O analfabeto tecnológico, do presente, é também um
analfabeto político, pois sem esta modalidade de tecnologia não dispõe da vida pública
virtual — esteja ela definida e embasada de maneira ampla, como mídia, esteja
simplificada na forma da Internet.

Mas o que impede, então, que o formato rede seja verdadeiramente democratizado, no seu
alcance e significados?

É a lógica inerente à política que se traduz em poder e que nem sempre é apresentada como
queria Arendt41. Nem sempre o poder produz um novo contrato. Porque, com a informação
e o conhecimento simplificados na condição de mercadoria, o que deveria ser um novo
poder gerador (co-elaboração massiva no emprego das tecnologias da informação) também
serve à manutenção do status das próprias mercadorias.

As relações entre o como e o porquê, presentes em cada implantação de novas tecnologias,


opondo usuários e equipamentos (nesse caso, mercadorias eletrônicas), parecem realmente
longe de qualquer solução comercial. Aliás, pelo prisma da produção, a tecnologia não
oferece uma alternativa ao capitalismo (ao individualismo, ao tecnicismo), porque o
público está alheio à maior parte das discussões e se encontra sem poder decisório sobre
seu emprego. Ou, como escreve Mercier: “A resposta a este <como?> não pode conformar-

40
Como entendi o texto de Javier Villate, sua interpretação acerca da net sustenta-se em outros dois
autores: Por lo que se refiere a Internet, hay dos pensadores que son los que más me han influenciado: me
refiero a Lawrence Lessig y Andrew Shapiro. Verás referencias a ambos en http://cys.derecho.org. Este
último ha publicado recientemente un libro cuya lectura te recomiendo vivamente, "The Control Revolution"
(lo encontrarás en Amazon). En un momento (creo que en ese libroo, tal vez, en algún artículo), cuando
reflexiona sobre la existencia de espacios públicos, sugiere que podría ser obligatorio que, cuando los
internautas se conectaran a la red, tuvieran que "pasar" obligatoriamente por un foro público. Una idea
discutible, pero que está ahí. Al principio, suena realmente mal (por su carácter de obligatoriedad), pero
Shapiro lo vincula con la necesidad de que, como en la vida real, nos encontremos "accidentalmente" con
oradores, como sucede en las calles de nuestras ciudades. Shapiro quiere que la navegación y uso de Internet
tenga cierto carácter accidental, azaroso, que impida que cada cual puede construirse un acceso o mundo
personalizado a su medida. De todas formas, su solución no me satisface, pero sí creo que, en efecto, habría
que idear formas de institucionalización de participación política.
41
Ver a quinta parte desse capítulo.
33

se com análises setoriais em termos de adequação progressiva entre oferta e <demanda>”


(1995, p. 19 - tradução livre).

Por fim, se há um valor que é atribuído e deve ser discutido, principalmente quando se tem
a rede como objeto (pelo fato de ser um projeto inacabado e em constante remodelação),
esse valor está no centro do debate entre a utilidade e a utilização da tecnologia como um
todo. Vale frisar, mais político e menos utilitário. Ou, dito de outra forma, devemos saber
diferençar utilidade de utilização.

3ª PARTE

UTILIDADE OU UTILIZAÇÃO DA REDE?

Como já disse, ainda há quem discuta a utilidade dos chips ou da tecnologia, de forma
moral, ou seja, se é boa ou má, ou se e quando serve ao bem e ao mal. Ainda nos damos ao
luxo (enquanto brasileiros, porque no exterior — excetuando-se o Unabomber — esta
discussão perde força) de filosofar criticamente a respeito da dependência que o homem
desenvolveu diante da tecnologia, como se fosse uma muleta ou escora. É o exemplo de
uma redação de adolescente, em exame de vestibular, que se choca frontalmente com a
idéia de que possam haver piratas de computador:

A grande taba já não é mais a mesma. O bicho-homem adora contradições. Enquanto o


mundo interliga-se cada vez mais, parece que as pessoas estão se isolando umas das
outras (...) Em vez de melhorarmos as relações humanas através da comunicação,
achamos o meio mais fácil de esconder nossa fragilidade: trancamos a oca.

Com medo de que toda nudez fosse castigada, o nativo ligou o computador e armou sua
parabólica. Tentou contato com a imensidão fria do espaço, vazio tão grande quanto o
seu. Na globalização mundial, a desglobalização pessoal. Gente transformada em ‘bits’.
Beijo pelo celular, abraço pelo fax, sexo digital. Mandamos foguetes mandamos
astronautas; mas, distraídos como sempre, não vimos o bilhete que Drummond fixou no
rabo de um cometa: ‘...só resta ao homem (estará equipado?) a dificílima dangerosissíma
viagem de si a si mesmo42.

É evidente que o texto ressalva toda a perspectiva verdadeiramente humana, e que busca
sentido não somente para si. Mas, a confusão que estabelece entre utilidade e utilização da

42
Artigo de Victor Anatoly R. Borba, Matou o pombo-correio, ligou o computador e trancou a oca,
publicado no Jornal Mundo, encarte Texto&Cultura, nº 06, outubro de 1996, página 02 do encarte.
34

tecnologia empobrece a análise. Por isso, procurando apontar tal confusão é que distingo
um termo do outro daqui por diante.

Vejo a utilidade como a necessidade regular que se satisfaz com o uso adequado de tais
tecnologias, individual ou coletivamente — nesse momento pouco importa, porque, por
exemplo, nada garante que a Internet não seja um novo espaço público, como também nada
desabona a crítica do uso individualista e atomista que se faz desse tipo de recurso
tecnológico. Isto é, a Internet é um meio de comunicação ainda de baixa intensidade, mas
já de imponderável utilidade.

Quanto à utilização, vejo-a num contexto restrito. Por exemplo, quando nos referimos aos
aplicativos domésticos e inofensivos, ou à digitalização da guerra43, pinçamos meios
muito concretos e que foram aplicados a contextos precisos.

E mesmo no aspecto mercadológico, a simples utilização dos meios tem seus limites
definidos claramente. É o caso da publicidade denominada de donativa: tais publicidades
conseguem vender até a idéia da pobreza sem, contudo, consumir a pobreza. O que pode
parecer bizarro, no fundo, é a inadequação ou limite que os meios de comunicação
enfrentam diante do formato imposto. Porque não se consome a pobreza, isto é, não há
deslocamento de seu espaço ou lugar social. E, assim, constitui-se um moto-contínuo entre
pobreza e donativo, que efetivamente não é o forte da publicidade. Parece até mesmo
irracional que alguém queira vender a sua pobreza ou a do vizinho: usinas de reciclagem
social.

Em última instância, é o tipo de experiência que abona ou desabona, aprova ou reprova,


julga ou faz uso dos recursos tecnológicos. É o que nos permite dizer, a partir do
maniqueísmo clássico que nos habita como seres humanos, que esta tecnologia é boa
(fragmento das operações diárias, seguindo o cartesianismo) e a outra é má (implodindo
bombas em incontáveis partículas), quando se deveria ressaltar que toda e qualquer
utilização da tecnologia obedece a determinado valor de uso político44. No fundo, a
discussão retoma a típica orientação maniqueísta, dos pressupostos elencados em
dualidades (bom e mau, justo e injusto etc.), e que já estava exposta claramente na origem
do pensamento antropológico, como se vê na coletânea (Desvendando máscaras sociais)
organizada por Alba Zaluar:

43
A exemplo da chamada Guerra do Golfo.
44
Martinez, 1997.
35

Radcliffe-Brown liquidou com a ‘ilusão do totemismo’, isto é, abandonou sua definição até
então usual e sua problemática subjacente, mostrando que o problema não era do
totemismo, mas dos sistemas de classificação presentes em qualquer sociedade, ou seja, da
ordenação do mundo e dos seus objetos por meio da inclusão/exclusão em classes (...) A
lógica, a que se refere Radcliffe-Brown como ‘associação por contrariedade’, é a lógica
da inclusão/exclusão, oposição/correlação, compatibilidade/incompatibilidade, base de
qualquer sistema de classificação e advinda da própria estrutura do cérebro humano (...)
É essa, diz Lévi-Strauss, a abordagem estruturalista, que procura a forma, não ‘fora’, mas
´dentro` (1975, p. 28).

Daí que tomando o senso e o julgamento dual como estrutura do cérebro humano, pode-se
retomar a pergunta original: a questão é tecnológica ou política?

Em Lévi-Strauss, o debate entre utilidade e utilização toma direções um tanto diversas, ao


confrontar o pensamento científico com o pensamento selvagem (que para ele é
experimental, apesar de mágico):

É claro que um conhecimento desenvolvido tão sistematicamente não pode ser função
apenas de sua utilidade prática (...) Pode-se objetar que uma tal ciência não deve
absolutamente ser eficaz no plano teórico. Mas, justamente, seu objeto primeiro não é de
ordem prática. Ela antes corresponde a exigências intelectuais ao invés de satisfazer às
necessidades (1989, pp. 23-24).

Seguindo esta orientação, talvez se explique que, pela falta aparente de utilidade num
debate que envolva tecnologia, política e antropologia, a questão acabe reduzida a um
consenso positivo (a tecnologia é boa) ou negativo (a tecnologia é má)45.

Para Lévi-Strauss, contudo, a questão não se esgota na simples dualidade mencionada


anteriormente, porque a técnica é uma espécie de fato social da humanidade, assim como a
experimentação e a curiosidade (elementos fundamentais da ciência moderna). O dado
paradoxal, no caso, é que esse posicionamento o leva a um confronto direto com Weber e à

45
Comemorando os 150 anos de nascimento de Thomas (Alva) Edson, temos um bom exemplo de
como tecnologia e política caminham em paralelo. Thomas Edson, que aperfeiçoou e permitiu a utilização
comercial da lâmpada elétrica, patenteou mais de mil experimentos. Mas também serviu à Marinha dos EUA,
na área tecnológica, desenvolvendo torpedos e armas anti-submarinas durante a 1ª Guerra Mundial. Ele
invertia a noção de que a tecnologia fosse “ciência aplicada”, de que o conhecimento prático decorresse da
pesquisa: “Com Edson aconteceu o contrário. A partir de seus experimentos de objetivo prático, surgia novo
conhecimento. O inventor foi o primeiro a notar a liberação de elétrons pelo calor de um filamento metálico,
o chamado efeito termoiônico, também chamado como efeito Edson” (Folha de S. Paulo, 13/01/97, p. 5-14).
Porém, seu invento menos divulgado e mais assustador, aplicando o próprio efeito Edson, foi a cadeira
elétrica aplicada em penas de antecipação da morte, conforme o vídeo-documentário Execução, Sinevídeo,
Califórnia.
36

tese do desencantamento do mundo, onde a ciência e a técnica teriam substituído a magia


enquanto referencial de explicação e ordenação do mundo. Pois, se a técnica é um fato
social, ela está presente em todos os grupos humanos e até mesmo na formulação do
pensamento mágico, desde o chamado paradoxo do neolítico46:

O pensamento mágico não é uma estréia, um começo, um esboço, a parte de um todo ainda
não realizado; ele forma um sistema bem articulado; independente, nesse ponto, desse
outro sistema que constitui a ciência, salvo a analogia formal que os aproxima e que faz
do primeiro uma espécie de expressão metafórica do segundo (...) Foi no período neolítico
que se confirmou o domínio do homem sobre as grandes artes da civilização: cerâmica,
tecelagem, agricultura e domesticação de animais. Hoje ninguém mais pensaria em
explicar essas conquistas imensas pela acumulação fortuita de uma série de achados feitos
por acaso ou revelados pelo espetáculo passivamente registrado de determinados
fenômenos naturais (1989, pp. 28-9).

As descobertas e as inovações tecnológicas pertencem ao projeto humano que, `a


semelhança delas é inacabado. E é óbvio que mesmo as teses condenatórias da tecnologia
foram produzidas com tecnologia (da caneta esferográfica aos computadores), incluindo-se
aí o Unabomber americano, um especialista em física nuclear: como se fôssemos combater
tecnologia com tecnologia, empregando a técnica do fogo contra fogo utilizada para
debelar queimadas em campos abertos.

Num plano oposto, de fato, algumas relações sociais (que chamei de maniqueísmo
sado/masoquista) revelam um problema de fundo que não desmerece a razão do ceticismo
dos mais pessimistas quanto à tecnologia. Vejamos um exemplo (e aqui cito a nota na
íntegra), para nos certificarmos de que a definição da vida tecnologizada realmente impõe
uma nova perspectiva cultural (antropológica), um outro sentido em que se tem
transformado a vida:

MALUCO DELETA GORDA VIA INTERNET - ‘Gorda, mal-amada e doida varrida,


Sharon Lopatka, residente em Maryland, Estados Unidos, encontrou na Internet um jeito
de dar fim à própria vida como sempre sonhara. Depois de muito navegar nas ondas da

46
“O homem do neolítico ou da proto-história foi, portanto, o herdeiro de uma longa tradição
científica (...) O paradoxo admite apenas uma solução: é que existem dois modos diferentes de pensamento
científico, um e outro funções, não certamente estádios desiguais do desenvolvimento do espírito humano,
mas dois níveis estratégicos em que a natureza se deixa abordar pelo conhecimento científico — um
aproximadamente ajustado ao da percepção e ao da imaginação, e outro descolado; como se as relações
necessárias, objeto de toda ciência, neolítica ou moderna, pudessem ser atingidas por dois caminhos
diferentes: um muito próximo da intuição e outro mais distanciado” (Lévi-Strauss, 1989, p. 30).
37

rede mundial de computadores, ela conheceu o sádico solitário Robert Glass, da Carolina
do Norte, que concordou em torturá-la sexualmente até a morte (dela). Apelidado por si
mesmo de Slow-hand (mão lenta), Glass só foi descoberto porque a polícia conseguiu
recuperar no computador de Sharon as mensagens trocadas entre ambos. O corpo foi
encontrado quarta 30 no quintal da casa de Glass’ 47.

Aqui seria oportuno relembrar a crítica do chamado technological fix, que alimentou o
surgimento da Ciência da Informação com os conhecimentos tecnológicos da informática,
sobretudo no pós-2ª Guerra, pela atenção excessiva dada à tecnologia por um ramo da
ciência. De acordo com Furnival o foco “deve ser mudado para a informação, e não a
tecnologia usada para manipulá-la: em outras palavras, o ‘technological fix’ nem sempre
constitui a melhor solução” (1995, pp. 9-16). O que retoma as câmaras de pensamento e
direciona para a questão de base: que valores a tecnologia é capaz de expandir ou
recrudescer?

Ou, em sentido estrutural, se a tecnologia é política, então ela é violenta, porque a


política tem a violência como eixo central. Ou a política violenta somente reflete a
profunda desestruturação em que se encontram as estruturas de poder (como queria
Hannah Arendt48)?

A história não é linear e nem as experiências são únicas, mas, tomando outro caso, é
oportuno ressaltar a criação, em Davos-Suíça, daquilo que se chamou de a ONU Virtual. É
uma rede de comunicação a serviço dos sete países mais ricos (G-7) e tem capacidade de
interligá-los aos melhores centros de pesquisa e aos empresários mais ricos do mundo
(cerca de 1.000), em tempo real49. Os problemas econômicos ou ecológicos globais seriam
discutidos e tratados instantaneamente nos quatro cantos mais ricos do planeta. A
contradição é evidente. Pois, como pode um organismo multilateral (universal), a ONU, ter
canais de comunicação tão limitados e privados? Por que os pobres ou chamados países

47
Revista Manchete - edição antecipada -, nº 2.327, Rio de Janeiro, 09/11/ 1996, página 116.
48
Arendt, 1994.
49
A matéria, ONU dos ricos’ nasce em tempo real, publicada pelo Jornal Folha de S. Paulo (Caderno
Dinheiro, p. 2-4, de 30/01/97), traz as seguintes informações: “Atende pelo acrônimo Welcom, do inglês
World Eletronic Comunity (ou Comunidade Eletrônica Mundial). É um sistema de comunicação, entrelaçado
com o computador, que permite encontros face a face (virtuais, é claro) entre os membros do fórum,
ministros e presidentes de bancos centrais dos principais países do mundo, chefes de organizações
internacionais e peritos dos mais badalados centros de produção de conhecimento do planeta. Ao contrário da
Internet, cada vez mais massificada, trata-se de uma comunidade eletrônica privada, restrita a membros do
fórum”.
38

emergentes não podem participar das decisões globais, levadas a cabo pela própria ONU,
se em muitas ocasiões dizem respeito a eles próprios?

De certa forma, independentemente dos casos e relatos, esta relação de dubiedade, muitas
vezes tida como confusão/inadequação/simplificação, pode ser tratada de outra forma, que,
arrisco-me a dizer, é de complementariedade. Porque também as redes, seguindo a lógica
do capital, têm de ser maximizadas, isto é, popularizadas. Nessa linha acrescenta Gilson
Schwartz, articulista do Jornal Folha de S. Paulo:

É quase natural pensar que as massas podem crescer por incorporação indistinta de
elementos ‘novos’ ou ‘originais’ que imediatamente são massificados. Assim, a massa não
tem história, pois sempre devora a mudança qualitativa. Tudo o que pode ser quantificado
pode ser massificado. A massa é democrática.

As redes, para crescer e se transformar, exigem recombinações qualitativas que se


associam a um tempo irreversível, histórico. As redes não crescem por incorporação, mas
por integração. As redes são seletivas e dependem das ações individuais (...) O capitalismo
contemporâneo vive a transição de uma sociedade de massas para uma sociedade de
redes50.

• Estaremos construindo uma rede de matriz egóica que só estimula a


medíocridade? Ou redes que estimulam a criação de espaços públicos e novo
sentido de vida?

ROUSSEAU E A CIDADANIA INTERATIVA

É certo que muitos dados e experiências (boas e más) ainda serão apresentadas, mas neste
subitem indicarei um sentido que não seja maniqueísta, ou seja, até que ponto é possível

50
Artigo publicado pelo Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 19/11/96, página 05-6. Aí também
questiona a relação de interatividade das massas com a rede, principalmente na extensão da informação (uma
vez que as massas são meros receptáculos de informação e de sentido). Contudo, é necessária uma
perspectiva que extrapole esta noção de informação (como se fosse somente input) para uma relação de
comunicação mais completa (que, sem sair do modelo, teria mais interatividade quando disposta por entre
ligações de input e de output — mesmo que corrêssemos o risco de estabelecer estas ligações em linha). Em
outro contexto (1º/10/96, p. 2-B), um tanto controverso e diferenciado, comentando uma matéria jornalística,
mencionei que experimentamos uma espécie de superexposição midiática pós-moderna. No caso da
reportagem analisada, fragmentos de horas, espaços entulhados por um significado alheio à própria
informação e detalhes corporais compuseram o corpo de toda a matéria. Sob o argumento da maior
informação, a melhor informação escondia-se por detrás de uma foto gigantesca do autor da ação e revelava
em detalhes o itinerário da entrevista (dada a superexposição fotográfica, expôs exageradamente um relógio
no pulso do entrevistado, marcando inclusive a hora da reportagem). Trata-se de um excesso de cobertura que
põe a nu toda a redação do jornal. Um contexto, no entanto, que, contraditoriamente, obriga-nos a investir
cada vez mais em informação: na medida em que a mesma velocidade de transformação que abriga o núcleo
da produção está presente na incessante produção de novos dados. Este segundo aspecto, no entanto, é
mencionado em outro artigo (03/09/96, p. 2-B).
39

salto em direção à rede. Assim, talvez a idéia de bricolagem (fundamentalmente criação51),


como a desenvolve Lévi-Strauss, nos dê uma pista de onde buscar um novo sentido para o
que chamamos de cultura tecnológica, nos termos da tecnologia em que a utilidade é
imponderável e a utilização é variável:

Aliás, subsiste entre nós uma forma de atividade que, no plano técnico, permite conceber
perfeitamente aquilo que, no plano da especulação, pôde ser uma ciência que preferimos
antes chamar de ‘primeira’ que de primitiva: é aquela comumente designada pelo termo
bricolage (...) O bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas
porém, ao contrário do engenheiro, não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-
primas e de utensílios concebidos e procurados na medida de seu projeto (...) Há mais,
porém: a poesia do bricolage lhe advém, também e sobretudo, do fato de que não se limita
a cumprir ou executar, ele não ‘fala’ apenas com as coisas, como já demonstramos, mas
também através das coisas: narrando, através das escolhas que faz entre possíveis
limitados, o caráter e a vida de seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur
sempre coloca nele alguma coisa de si (1989, pp. 32, 33, 36, 37)52.

E se a criação é o ponto a ser ressaltado, cabe indagar de que forma será possível uma
rearticulação entre o uso individualizado e o resultado coletivo da rede. O que remete de
volta aos pressupostos da cidadania interativa porque, mais uma vez, deve-se destacar que:
se a democracia moderna não encontrou um equilíbrio entre os direitos individuais e os
sociais ou entre a preponderância da vontade majoritária com a salvaguarda dos interesses
das minorias, isto é resultado da maneira como os projetos políticos foram implementados
pela sociedade que lhes é característica. Daí que se pode afirmar que a democracia como
soberania popular ainda é um projeto político, resgatado de vez em quando a partir de
Rousseau.

No sentido integrado entre política e tecnologia, ainda cabe retornar à crítica de que o
usuário está centrado em si mesmo e que, no fundo, pertence à mesma base da crítica ao
acesso limitado aos meios. Mas não significam a mesma coisa. Quanto à primeira crítica,
pode-se contra-argumentar que os poderes públicos são tímidos na estruturação das
políticas tecnológicas e por isso não implementam, no exemplo mais caro às experiências
coletivas e populares, terminais de consulta e livre manifestação do público e das
51
A idéia de criação, partindo dos conceitos tecnológicos elaborados, será retomada na quinta parte do
capítulo.
52
Realmente, não posso afirmar com total segurança e, por isso, utilizo a condicional para dizer que
este trabalho tem marcas e pegadas de bricolagem. Pois, não fosse por outro motivo, sinto-me plenamente
representado nos capítulos.
40

coletividades. Pois, em sentido contrário, instalados em rede, os usuários poderiam


participar ativamente da vida comunitária local. Enquanto usuário individual, pela
disposição pública dos meios, teria garantido o acesso coletivo aos principais problemas
administrativos de cada localidade e, com o encaminhamento de propostas, veria realizada
a interação entre tecnologia e cidadania.

Em sentido semelhante, pode-se dizer que o aparente desinteresse do poder público, velado
na resposta fácil dos altos custos, esconde uma verdadeira tramóia contra o
aprofundamento da democracia. Com extremado receio de perder o controle político,
angariado pelos votos, e até mesmo muitas das funções previstas pela democracia
representativa, o poder público sequer aventa a possibilidade de transformar a rede num
projeto político. Na verdade, com baixo custo e menor do que milhares de dólares, o
usuário, antes chamado de individualista, seria conclamado a se tornar um cidadão ativo e
pronto a debater os assuntos nacionais, tais como: reeleição e privatização dos monopólios
dos serviços públicos.

As calorosas discussões técnicas não mais simplesmente precederiam as campanhas


publicitárias dos interessados na reformulação política. Nunca é demais lembrar que, como
as coisas públicas estão dispostas hoje em dia, não é incomum ou ocasional o debate
técnico intenso e de alto nível ser subjugado pelo clientelísmo do interesse político mais
mesquinho ou mais ao gosto das classes e grupos sociais e políticos dominantes.

É fácil ver como a técnica ora é tida como desculpa, para não se aprofundar sequer o
debate sobre a prática política popular, ora como vilã. Dependendo do mau olhado, os mais
graves problemas do mundo capitalista (como consumismo e exclusão do consumo) são
reduzidos ao desenvolvimento tecnológico. Em outros casos, como já foi dito, é a técnica
que provoca o individualismo e o apogeu secular dos direitos individuais (dentre os quais
avulta o direito à propriedade) em detrimento dos sociais, coletivos ou difusos.

Assim, partindo da cidadania interativa, nada impede que o cidadão participe, utilizando-se
dos recursos da rede, sobre as normas que considere legítimas e, portanto, submeta-se
somente às regras que participou de sua elaboração e lhe deu o aval para serem aplicadas:
aí está, novamente, o mesmo princípio democrático que já estava em Rousseau e Kant e
hoje está em Habermas (apropriadamente chamado de Princípio Universal - PU).

Kant (em A paz perpétua), ao associar liberdade e consentimento normativo, é claro:


41

(...) A minha liberdade exterior (jurídica) deve antes explicar-se assim: é a faculdade de
não obedecer a quaisquer leis externas senão enquanto lhes pude dar o meu
consentimento. — Igualdade, a igualdade exterior (jurídica) num Estado é a relação entre
os cidadãos segundo a qual nenhum pode vincular juridicamente outro sem que ele se
submeta ao mesmo tempo à lei e poder ser reciprocamente também de igual modo
vinculado por ela (1990, p. 128).

No que Habermas lhe segue de maneira inquestionável, como se vê na citação que Sérgio
Paulo Rouanet (em Ética) faz do chamado Princípio U (Universal):

Todas as normas válidas precisam atender à condição de que as conseqüências e efeitos


colaterais que presumivelmente resultarão da observância geral dessa norma para a
satisfação dos interesses de cada indivíduo possam ser aceitas não coercitivamente por
todos os envolvidos (1992, p.158)53.

Aqui não se desconsidera a excessiva dose de futurologia, pois mesmo no campo da


previsibilidade jurídica não se pode admitir que o cidadão reconheça todas as
possibilidades futuras de alguma norma ou lei, antes mesmo de serem discutidas, votadas e
promulgadas. Mas devo dizer que apenas procurei aproximar a cidadania do debate sobre
as teorias políticas que melhor representam o pensamento democrático — especialmente a
chamada Democracia Radical Virtual54 — e que encontra no respaldo da tecnologia da
rede a possibilidade de sua efetivação, como nunca houve.

Para tanto, seria possível fazermos um teste aqui e agora, a respeito do cidadão do mundo:
bastaria acessar a Internet mundial para sabermos quantos cidadãos no mundo todo
discordam do embargo econômico americano aplicado à ilha de Cuba.

A cidadania interativa, por fim, deve destacar e ressaltar que o uso tecnológico tem em si
um sentido político originário. O uso sempre pode nos remeter ao individualismo, como
também pode nos conectar no formato da rede democrática. Por isso, novamente contra o
maniqueísmo, nesse trabalho se pensou nos termos de um intenso valor de uso político da
tecnologia e mais especificamente da rede (no caso concreto da Internet). Porém, antes de
avançar, é importante ressaltar que essa modelagem da rede não ignora a crítica da
exclusão social e as influências exercidas pelo desenvolvimento tecnológico, ou seja, a
exclusão digital. Como vemos neste longo e-mail que me foi enviado - por solicitação

53
Também abordei essa questão em: http://sites.uol.com.br/globalization/arede.htm.
54
Este sentido será melhor explicitado mais adiante.
42

minha e onde indagava se a rede é democrática - por Marco Antonio Velásquez Navarrete,
da Comissão Internacional da Frente Zapatista de Libertação Nacional (FZLN):

“Yo creo que la red abre posibilidades inmensas a los individuos y colectivos. Permite el
acceso a la información y la distribución de información de manera rápida y relativamente barata.
Eso es muy importante para la construcción de sociedades democráticas. Podemos entender a la red
internética como un instrumento muy importante para construir esa democracia. Sin embargo, hoy
todavía, la red es muy limitada pues quienes tienen acceso a ella son muy pocos (si bien va
creciendo el número de usuarios). Acceder a la red supone tener una computadora o tener acceso a
una (en la escuela o en el trabajo), tener una línea telefónica, y tener el dinero suficiente para
contratar un servidor (si bien hay e-mail gratuitos). Entonces, podemos observar que aún son
millones los que están exluidos de la red. Y eso no es democrático.
Por supuesto que internet posibilita sitios como los de los Sem Terra y el nuestro. Y eso es
muy importante. No hay duda que la red acerca a las personas y a los movimientos. Posibilita la
difusión rápida y más relativamente barata de las ideas y la información. (Por ejemplo, el fax, una
tecnología relativamente nueva, ha quedado como una tecnología obsoleta frente a internet, y es
que resulta más caro enviar un fax que un e-mail. El Fax frente al e-mail resulta más elitista). La
red permite que más personas y colectivos se comuniquen entre sí y accedan a información que los
medios tradicionales no proporcionan. La internética es una maravilla prometedora, de eso no hay
duda. Eso es un hecho. Es como una esperanza que está siendo pero todavía no acaba de ser
plenamente. Como es un hecho que tú y yo no estaríamos en comunicación si no fuera por la red.
Te pongo un ejemplo sencillo: ¿tú estarías en condiciones de recibir vía fax kilómetros de papel
con comunicados zapatistas? Y, además, pedir vía fax y recibir vía fax, toda la información que
necesitas para tu investigación sobre la democracia directa? Entonces, ¿la red implica más y nueva
democracia? Yo diría que todavía no, que sólo la posibilita (por todo lo que te dije antes).
Eso es relativo. Te propongo hacer la misma reflexión sobre el radio y la TV. Ambas
prometían mayor comunicación entre la humanidad. Y así ha venido siendo. Sólo que ni la radio ni
la TV han estado al servicio de la humanidad sino de una parte de ella, precisamente de los que son
dueños de esos medios y los controlan. El radio y la Tv son herramientas que pueden facilitar la
construcción de una democracia verdadera, pero mientras esos medios están en manos privadas las
cámaras y micrófonos estarán dedicados a los que pueden pagar el tiempo de transmisión. Pero
incluso, aún hoy, hay quienes no tienen un aparato de radio o TV, aunque sea para enterarse de las
noticias que les quieren informar los dueños de los medios.
Algo parecido pasa con la red (aunque en otra dimensión y proporciones y posibilidades
tecnológicas-geográficas). Por un lado se amplia la posibilidad de la comunicación, pero todavía
ella depende de las posibilidades socioeconómicas de las personas y los grupos sociales. Podríamos
decir que las posibilidades tecnológicas de la comunicación son frenadas por las condiciones
socieconómicas y políticas imperantes. O dicho de otra manera, las sociedades humanas no tienen
impedimento tecnológico para funcionar de manera democrática. Nunca lo han tenido. El problema
no está en la tecnología más o menos moderna, el problema está en en la sociedad misma, en el tipo
de relaciones sociales y en la politicidad que opera los medios disponibles. La nueva tecnología
sólo facilita que nuevas relaciones sociales y políticas y culturales puedan ser potenciadas. Sólo
facilita las condiciones para una democracia verdadera y posible. Pero la tecnología no hace a la
democracia. La democracia la hacemos nosotros, la humanidad, con las herramientas disponibles,
con la tecnología disponible a cada momento dado.
Y, sí, coincido contigo que la web constituye un pre-supuesto democrático. Sin duda, se
trata de un cambio radical en la infraestructura de la comunicación que favorece (sólo favorece)
cambios en la cultura política. Lo único que digo es que las posibilidades tecnológicas de
intercambio, información y comunicación que permite la web, deben ser logradas (o
extendidas)también en todas las sociedades. O sea, esas posibilidades deben ser socializadas. Eso
implica que una tecnología como la web esté al servicio de la sociedad y los individuos. Eso
implica que cambien las relaciones sociales (y, por tanto, la politicidad imperante hoy). Dicho en
otras palabras, vivimos una contradicción entre las posibilidades tecnológicas de ampliar o lograr
43

una democracia verdadera, y las condiciones sociales y económicas y políticas, que impiden que
esa tecnología pueda ser aprovechada a plenitud, por tod@s.
En otros términos, mientras las condiciones sociopolíticoeconómicas actuales se
mantengan, la red representará sólo un espacio democrático para los individuos (y/o colectivos) que
tienen acceso a ella. Y hoy, la mayoría de las personas está excluida de ese pequeño espacio que
promete mayor democracia. Hoy, podemos decir que la tecnología web todavía es elitista. Si vemos
en la Historia, podemos observar que los cambios tecnológicos siempre han tenido alguna
repercusión en las sociedades. Pero no necesariamente a favor de la humanidad. Y la historia
conocida, muestra que la tecnología siempre posibilita más..., pero la organización social,
económica y política vigente, siempre frena tales posibilidades. Y es que la sociedad y la cultura
evolucionan mucho más lentamente que las posibilidades tecnológicas de las que disponen.
En México no sé de alguna experiencia parecida a la de las favelas de Rio que intente
popularezar la informática. Pero me parece que esa es una posibilidad, es decir, que los colectivos
marginales se apropien de la tecnología para crecer como colectivos y como individuos. Acá, de a
poco la gente va teniendo contacto con la tecnología en escuelas, bibliotecas y centros culturales, o
en sus oficinas. Aunque todavía es limitado, es una forma como el sistema permite que un sector
importante se acerque a la tecnología y su uso. Tampoco hay duda que los e-mails gratuitos (yahoo,
hotmail, etc.) están posibilitando que la gente participe de alguna manera en la red. También de a
poco, acá empiezan a surgir los cibercafés o clubes internet, pero éstos funcionan como negocio. Es
decir, todavía es el mercado el que rige la difusión de ésta tecnología y la posibilidad de su uso.
Claro, las empresas buscan ampliar ese mercado, pero sus ofertas no alcanzan a todos. En todo
caso, creo que hemos visto una rápida extensión de ese mercado en los últimos años; y me parece
que en los venideros seguirá ampliándose un poco más (hablo de México, que tal vez sea un caso
parecido al brasileño y algunos otros). Hay un relativo abaratamiento de los equipos de computo
personales, hay crédito disponible para que la gente se anime a comprar una máquina en abonos,
etc. La TV anuncia computadoras y servidores de internet, presentándolas ideológicamente como el
nuevo símbolo del progreso, etc. (ahora quien no tiene compu e internet, no está a la moda y deja
pasar oportunidades) (hay un anuncio publicitario que muestra a un chavo que pierde un chance
con una chica porque ella en vez de darle su teléfono le da su e-mail... y él no tiene...). En fin, lo
que quiero decir es que podemos esperar que más personas accedan a la tecnología y a la red en los
próximos años debido a ésta intención de ampliar el mercado; sin embargo, eso tiene un límite,
pues Microsoft por ejemplo no regalará computadoras (bueno, tal vez donará algunas pocas, pero
no toda su producción o capacidad de producción).
Dentro de la misma lógica del mercado, una posibilidad de ampliarse la red está dada por el
lanzamiento de un aparato que conectado a la TV (como quien conecta una video), puede permitir
el acceso a internet sin necesidad de comprar computadora... Hay que ver cómo funcionará...
Me parece que sí, que el uso de internet implicará cambios en la forma de percibir lo real.
Pero me parece que aún estamos por conocer esos cambios y sus implicaciones”. (Também não há
referência bibliográfica porque se trata de simples troca de e-mail, mas os grifos são meus).

Por fim, e diante do que vimos acima, há urgência de uma educação política,
principalmente quando experenciamos a supremacia tecnológica (principalmente
informacional), detectada por amplos setores da sociedade e ramos da ciência, que talvez
sirva como elo final entre o suporte dos clássicos e a análise atual. Exemplo claro vem do
posicionamento assumido pelo físico americano Carl Sagan, e publicado pouco antes de
44

sua morte em 1996. Depois de um extenso balanço do desenvolvimento científico e


tecnológico no século XX, alertava para a confluência entre educação, política e ciência55.

Assim, carreamos para o interior do virtual boa parte das mazelas sociais e políticas –
como também alguns de seus antídotos. E agora veremos como isso ocorre porque o virtual
é outra instância do real e não propriamente seu antídoto.

4ª PARTE

O TAO DA POLÍTICA

No sentido popular, o virtual é tido como o resultado da própria transformação técnica e


tecnológica da natureza. É sinônimo de mundo artificial, desnaturalizado e deste modo
oposto à vida sadia, natural, saudável (com seus traços, linhagens e linguagens
relacionadas, rearticuladas, mas reconhecíveis por todos). Afinal, o mundo natural podia
ser reconhecido e interpretado por todos — crianças, jovens, adultos e velhos sabiam
distinguir perfeitamente o certo do errado e o justo do injusto. Contrapondo-se ao homem
desse tempo, evidentemente, o mundo de agora foi tecnologizado, desumanizado, e diria
digitalizado. Portanto, o sentido técnico e tecnológico, antes tido como resultado da
industrialização, depois sofrendo a marca e a patente inquestionáveis da informática
(digitalização da vida e principalmente do trabalho, com a robotização provocadora do
desemprego estrutural), hoje seria reduzido e simplificado como virtual. Concluo com a
máxima, deste aspecto, que o virtual se contrapõe ao plano do real: a vida saudável,
natural, previsível, como parte de um tempo esperado. E se hoje já não há mais certeza,
então é o tempo da angústia, ansiedade e depressão. Os sentimentos humanos mais
profundos que sofreram transformações e resultaram virtualizados.

Para ilustrar este tempo que teria passado, sem volta, com perdas profundas na
compreensão humana (porque não mais sabemos o que é certo ou errado e vivemos o fim
das certezas56), utilizarei um auto-retrato literário do escritor espanhol Ortega y Gasset
denominado método de meio-dia, onde se tem claramente definido o que é certo e o que é
errado, e que nunca trocaria uma experiência real por outra virtual (um típico
maniqueísmo):

55
Jornal O Estado de S. Paulo, 29 de dezembro de 1996, Caderno 2, páginas D2 e D3.
56
Prigogine, 1996, pp. 09-16. É o caso de se perguntar: a quem interessa tanta incerteza, indefinição,
falta de identidade e até incoerência?
45

Eu sou um homem espanhol que ama as coisas em sua pureza natural, que gosta de
recebê-las tal e como são, com claridade, recortadas pelo meio-dia, sem que se confundam
umas com outras, sem que eu ponha nada sobre elas: sou um homem que quer, antes de
tudo, ver e tocar as coisas e que não se contenta imaginando-as: sou um homem sem
imaginação (Ortega y Gasset, 1991, p. 9).

O FUTURO DO VIRTUAL

Mas, numa aparente contradição ou paradoxo, há um outro Ortega y Gasset que parece
sugerir algo diverso. Pois, para viver, é preciso ter imaginação (ou criação):

O vulgo crê que é coisa fácil fugir da realidade, quanto é o mais difícil do mundo. É fácil
dizer ou pintar uma coisa que careça completamente de sentido, que seja ininteligível ou
nula: bastará enfileirar palavras sem nexo, ou traçar riscos ao acaso57. Porém conseguir
construir algo que não seja cópia do ‘natural’ e que, não obstante, possua alguma
substantividade, implica o dom mais sublime. A ‘realidade’ espreita constantemente o
artista para impedir sua evasão. Quanta astúcia pressupõe a fuga genial! (idem, p. 43).

O ensaísta espanhol propunha, na verdade que se esconde no paradoxo, uma crítica aos
modelos estéticos que aprisionavam o autor, a exemplo do realismo. Em defesa do
cubismo, pregava a estilização como recurso e meio para a desconstrução da produção
natural. As expressões e marcas excessivamente humanizadas, impressas na produção
artística, deveriam ceder a vez a novas experiências — o que levou vários críticos a
defenderem a desantropomorfização e não simples desumanização da arte, porque,

Estilizar é deformar o real, desrealizar. Estilização implica desumanização. E, vice-versa,


não há outra maneira de desumanizar além de estilizar. O realismo, ao contrário,
convidando o artista a seguir docilmente a forma das coisas, convida-o a não ter estilo
(1991, p. 47).

Temos aí uma tentativa de visualizar além do aparente, além daquilo que parecia ser o
normal, aceito e propagado como natural. Mas sua desconstrução impunha um método,
talvez ainda mais rigoroso e nem sempre de fácil acesso mesmo aos já iniciados. E com o
plano do virtual não será diferente — é preciso entender seu projeto.

Como diz Pierre Lévy (1996), o virtual não é bom, nem mau, nem neutro, ou no mesmo
sentido, diria simplesmente que é político — porque a política não é nem boa, nem má,
nem neutra e possui implicações, interferências e alterações que se desdobram em novas

57
Ortega y Gasset refere-se ao movimento conhecido como dadaísmo.
46

resultantes. (É sempre uma incógnita, uma transformação: diz-se que se sabe como uma
guerra começa, mas não como termina; ou como dizia Marx, a história só se repete como
farsa — e não num moto-contínuo). O virtual é um movimento, uma semente, uma
potência em si mesma,

A palavra virtual vem do latim medieval, virtualis, derivado por sua vez de virtus, força,
potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em ato. O
virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal.
A árvore está virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente filosóficos, o
virtual não se opõe ao real mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas
maneiras de ser diferentes (Lévy, 1996, p. 15).

Não é um fracasso, portanto, e nem uma desumanização irreversível que ameaça o mundo
dos bons e justos. É uma potência em ato, ou aquilo que espera por ser feito: um projeto.

Etimologicamente, a palavra projeto deriva do latim projectus, particípio passado de


projícere, algo como um jato lançado para a frente; relacionando-se diretamente com
outras palavras igualmente fecundas, como sujeito, derivada de subjectus/subjícere
(lançado de dentro, de baixo), ou objeto, de objectum/objícere (lançado diante, exposto),
ou ainda, trajeto, de trajectus/trajectare (passagem através de) (Machado, 1997, p. 64).

No sentido político, que julgo encontrar na expressão do virtual, pode-se retornar até à
virtù de Maquiavel, em que a palavra designava uma das principais qualidades do príncipe
(vencedor) para reger a política de seus domínios: a virtù era a pura potência (em ato)
transformadora da política, a esperança de uma ação política positivamente
transformadora. A expectativa do resultado positivo em relação ao sujeito da ação deve ser
ressaltada. Como destaca o florentino, nas últimas linhas da última página do Príncipe58:
Vertù contra furore / Prenderà l’arme, e fia ‘l combatter corto.

A citação se traduz na máxima de que o valor tomará armas contra o furor; que a luta se
espraie bem depressa!, significando que a luta em torno do virtual não deve ceder nem aos
apaixonados e nem aos catastróficos. A política como o virtual não são bons, nem maus,
nem neutros. No fundo, é redundância; pois, na raiz, o virtual é a política - não apolítico!-,
ao menos desde Maquiavel59.

58
Consulte-se O Príncipe - Maquiavel, 1979, p. 94.
59
Aprofundei essa questão em: http://sites.uol.com.br/globalization/arede.htm.
47

A VIRTUDE É DO VENCEDOR

Por outro lado, é bom frisar: o virtual não traz em sua raiz a mesma noção de virtude. No
que, vale insistir, tem uma grande vantagem, pois, definindo-se como virtude, correríamos
o sério risco do maniqueísmo — opondo virtude à noção imprecisa de que o virtual é
aquilo que não se realiza60 ou não encontra potência para sua eficácia no plano concreto.
Além do que, a noção de virtude é carregada de um sentido propositivo que se apresenta
como necessariamente positivo. Se bem que, num sentido mais específico, a virtù pode ser
equiparada à idéia de virtude e mais especificamente ao sentido positivo. Ou, em outras
palavras, no capítulo VII, tomando a vida política de Francisco Sforza como exemplo,
Maquiavel é claro para quem almeja a conquista do poder:

Portanto, quem considerar necessário garantir-se em seus novos domínios contra os


inimigos, fazer amizades, conquistar pela força e pela fraude, fazer-se amado e temido
pelo povo, seguido e reverenciado pelos soldados, destruir os que podem e querem ofendê-
lo, inovar antigos costumes, ser bom e severo, magnânimo e liberal, suprimir uma antiga
milícia e substituí-la por outra, manter a amizade dos reis e dos príncipes de modo a que
tenham satisfação em assisti-lo, e medo de injuriá-lo, não poderia encontrar melhor
exemplo do que a conduta desse homem (1979, p. 59).

A virtude está em desfrutar a conquista e depois deter-se: denotando o sentido claro de


organização e economia de força61, isto é, o sentido de que a demonstração da força de
forma desnecessária ou de modo a satisfazer apenas a vaidade pessoal é prejudicial ao
próprio detentor do poder. Ou, dizendo de forma mais pessoal, no Príncipe, Maquiavel
dizia que a virtù (eficácia) é a melhor estratégia em busca de poder (capítulo VII), do
mesmo modo que perseguição e vingança só trazem prejuízos. Assim, a rede, por sua vez,
apresentará em sua raiz as mesmas características do virtual. Ainda que a própria noção de
rede antecipe o sentido tecnológico atual (como no exemplo do rizoma, emprestado da
biologia). Porém, é o sentido interativo que lhe dará as qualidades da força tão visíveis nos
dias atuais. Hoje, tomando as características da rede apontadas por Lévy, pode-se falar de
um sentido globalizador ou de totalidade quando partimos da idéia de rede para apreender
os dados mais globais da vida. No limite, a própria vida só seria percebida com o emprego
de uma metodologia radial, a exemplo do que propõe Capra (1982).

60
Lévy, 1996.
61
Como dizia Kant, no conhecido texto da Paz Perpétua, a paz é um armistício, uma preparação para a
reinicialização da guerra.
48

Quanto à metodologia, há ainda uma questão que precisa ser ressaltada: a abordagem radial
em busca do todo não pode gerar uma mera somatória das partes, pois deve-se ter em conta
o processo de transformação62. E é para esta função que aponta Lévi-Strauss com seu
método da bricolagem, já visto anteriormente.

Em sentido complementar, como disse no princípio, o aspecto que me parece mais


importante de ser ressaltado em relação à idéia de rede - e que nem sempre é colocado de
maneira distinta por Pierre Lévy - é experiência democrática verificada na amplitude,
generalização e pulverização da produção das mensagens. Isto é, o verdadeiro caráter
democrático da rede não está no maior e mais livre oferecimento de novas mensagens (um
sentido ainda muito pontuado pelo espírito liberal da democratização do acesso), mas sim
na irrefreável condição de que cada usuário é um coprodutor de novas mensagens: a
democracia, portanto, está no meio e não no fim,

El uso de tecnologías pasa por lo que se puede llamar de ‘valor político’, y con eso la
utilización de la red Internet por bibliotecas públicas, con el objetivo de propagación de
la información, desencadena una acción de fundamentos globalizantes, pues las
transformaciones informacionales no se reducen a las potencialidades sociales de la
microelectrónica, pero se expresan en el conjunto de nuevos modos de información que
moviliza, en una relación plural, ‘radial’, que cada vez más se observa entre los varios
seguimentos sociales y en la producción material de la vida, y así retomamos la
importancia de las bibliotecas como provedoras de la información en el momento actual,
pues, si el saber es una de las fuerzas productivas más importante, también lo es una
fuente de poder y, por eso, sólo puede ser visto dentro de la idea de red y no como una
‘calle de dirección única’ (Santos & Martinez, 1997, p. 06)63.

A rede que ressalto, novamente, é política. Porque é virtual e tem sua possibilidade de
eficácia como qualquer outro projeto político, isto é, sua raiz é a virtù – o valor que se
emprega e agrega.

5ª PARTE

A POLÍTICA É VIRTUAL

Por que a política é virtual?

62
Em outro contexto, veja-se: http://sites.uol.com.br/globalization/notas.htm.
63
A íntegra se encontra em: http://sites.uol.com.br/globalization/CUBA2.htm.
49

Para desenvolver essa questão, farei uma espécie de desconstrução da quarta parte. Na
verdade, poderia dizer que se pretende uma análise invertida. Pois, se a questão anterior era
demonstrar que da política se vai à tecnologia (da virtù ao virtual), trata-se agora de
demonstrar que a política tem o poder da transformação, ou seja, da realização: da
potência (virtual) se vai ao ato eficaz, ao novo contrato (ou novo estado político
inaugurado pela virtù). Daí ter afirmado que a virtude é do vencedor (um indivíduo, grupo
ou coletividade), quando confirma sua eficácia.

E já tendo analisado o sentido do virtual, irei direto para o que se entende por real e
realização e, nesse sentido, o que entendo por realização política (em sentido diverso do
chamado realismo político). Inicialmente, no entanto, pode-se dizer que o realismo político
não satisfaz essa pretensão. Porque a eficácia necessariamente gera uma nova modalidade
contratual, na política (Arendt, 1994) e no recurso tecnológico (espaço público virtual,
destacado por Lévy, 1996).

REAL: DO COMUM AO FILOSÓFICO-TECNOLÓGICO

Como vimos, o senso comum designa o plano do real como as experiências a que estamos
submetidos cotidianamente. O plano dos sentimentos e dos sentidos, aquilo em que se está

submerso e do qual todos fazemos parte. É o vivido e experimentado extenuadamente, de


onde não há fuga. Ou melhor, por meio da assimetria, só se escapa ao jugo do real por
meio do delírio, da loucura, da insensatez. Quando não se fala coisa com coisa, é quando
não se vive realmente, mas projeta-se viver acima das nuvens. Também o real está oposto
à mentira: isso que você está me dizendo não é real! Por esse prisma, virtual e real seriam
antitéticos.

Outro sentido comum, mas positivo, do real, destaca mais a idéia da realização: diz-se, por
exemplo, que o sujeito realizou-se profissionalmente. Aqui, o que vale é o bom sucesso,
independentemente de qualquer questionamento.

Sentido diverso (inverso), entretanto, é o que proponho, uma vez que virtual e real
comunicam-se. Em essência, o que o virtual indaga, questiona ou propõe, o atual
responde-lhe, informa-lhe o sentido que deverá possuir,

Já o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível, estático e
já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças
que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e
50

que chama um processo de resolução: a atualização (...) aparece então como a solução de
um problema, uma solução que não estava contida previamente no enunciado. A
atualização é criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de
forças e de finalidades (...) Compreende-se agora a diferença entre a realização
(ocorrência de um estado pré-definido) e a atualização (invenção de uma solução exigida
por um complexo problemático) (Lévy, 1996, pp. 16-17).

Daí provém o equívoco do ditado popular: o possível eu faço, o impossível eu tento.


Porque, ao contrário do virtual (germe, potência), os possíveis não dispõem de energia
própria para se concretizarem. A política, já vimos, exige eficácia — seja diante do
realismo, seja como forma constituída de novos contratos. Os possíveis, nesse enfoque, são
apenas promessas, mesmo que não vazias. Mas inertes diante de seu próprio futuro:

O possível já está todo constituído, mas permanece no limbo. O possível se realizará sem
que nada mude em sua determinação nem em sua natureza. É um real fantasmático,
latente. O possível é exatamente como o real: só lhe falta a existência. A realização de um
possível não é uma criação, no sentido pleno do termo, pois a criação implica também a
produção inovadora de uma idéia ou de uma forma. A diferença entre possível e real é,
portanto, puramente lógica (Lévy, 1996, pp. 15-16).

Mais sensata, portanto, é a política do real. Pois, seguindo por essa trilha, até o realismo
político não é datado, estático, como rua de mão única. No fundo, o realismo político não é
o único possível. E, ainda que fosse, o resultado da aplicação de sua lógica não estaria pré-
determinado. Pois aí entra a força da atualização, da solução criativa, da criação não
formatada: a produção inovadora de uma idéia ou de uma forma (Lévy, 1996, p.16). É
interessante notar como Piaget analisa a relação entre os possíveis, o real, o concreto e o
necessário: aqui inserindo dois componentes, não retratados por Lévy,

“(...) o conhecimento ultrapassa o próprio real para inserir-se no possível e para


relacionar diretamente o possível ao necessário sem a mediação indispensável do concreto
(...)” (Piaget, 1983, p. 27)64.

A política do real é, antes, uma potencialidade, tanto mais aberta quanto maior o número
de opções e atores envolvidos. Da escolha se faz o novo: a política do real é a arte da
criação e da expansão. Daí também se poderia concluir que o processo eleitoral será tanto
mais democrático quanto maior a possibilidade de escolha e maior a participação dos

64
IN: Gorczevski & Pellanda, 2000, p. 171.
51

atores sociais (a fórmula de Schumpeter levada ao sem limite). E o que garante a subsunção
da violência, inerente ao realismo político, num novo contrato mais tolerante65?

Para Lévy, há uma virtualização da violência: processo que, na verdade, constitui o eixo
do próprio destino humano:

Os rituais, as religiões, as morais, as leis, as normas econômicas ou políticas são


dispositivos para virtualizar os relacionamentos fundados sobre as relações de forças, as
pulsões, os instintos ou os desejos imediatos. Uma convenção ou um contrato, para tomar
um exemplo privilegiado, tornam a definição de um relacionamento independente de uma
situação particular; independente, em princípio, das variações emocionais daqueles que o
contrato envolve; independente da flutuação das relações de força (...) relacionamentos
virtuais coagulados, como é o caso dos contratos, são entidades públicas e compartilhadas
no seio de uma sociedade (...) Um processo contínuo de virtualização de relacionamentos
forma aos poucos a complexidade das culturas humanas (...) A concórdia talvez não seja
um estado natural, uma vez que, para os humanos, a construção social passa pela
virtualização (1996, pp. 77-8).

E se acima vimos a figura do sujeito não-violento, do cidadão interativo, Lévy também


apresenta o cume do objeto, o contrato coletivo do espaço público virtual. Na verdade,
espécie de atualização do projeto da não-violência, produto da interface tecnológica e da
interação social. Um instrumento tecno-social que, evidentemente, precisa ser erigido, mas
que está a nossa disposição enquanto virtual:

Podemos acrescentar agora que a virtualização da violência não passa apenas pelo
contrato mas também, e sobretudo, pelo objeto, que conduz ligações sociais não violentas
porque escapam à predação, à apropriação exclusiva e à dominância (...) Mas esse
processo de virtualização só se completa com a construção do objeto, um objeto
independente das percepções e dos atos do sujeito individual, um objeto cuja imagem
sensível, cujo manejo, cujo efeito causal ou cujo conceito possa ser compartilhado por
outros sujeitos (...) Nossa subjetividade se abre ao jogo dos objetos comuns que tecem num
mesmo gesto simétrico e complicado a inteligência individual e a inteligência coletiva,
como o anverso e o reverso do mesmo tecido, bordando em cada face a marca indelével e
flagrante do outro (idem, pp. 132-33).

Na política do real, vimos que o virtual expande-se para além do meio tecnológico (a
subjetividade). Seu projeto democrático, quando constar da pauta do realismo político, será

65
A discussão sobre tolerância e intolerância, consta do capítulo seguinte.
52

na forma da democracia direta eletrônica. E aí, a política do real estará realizada, com o
projeto efetivado, e o virtual atualizado como política social. A política do real, portanto, é
a arte da criação, e não da destruição ou restrição. Vale repetir que ambos, política do real
e virtual, encontram-se como potências que dispõem de eficácia, numa única forma: o
contrato virtualizado pela prática coletiva, pela democracia impulsionada e pela tecnologia
social. Com a rede, por fim, atualizando sua promessa política, da Democracia Virtual:

De novo, a técnica propõe, mas o homem dispõe. Cessemos de diabolizar o virtual (como
se fosse o contrário do real!). A escolha não é entre a nostalgia de um real datado e um
virtual ameaçador ou excitante, mas entre diferentes concepções do virtual. A alternativa é
simples. Ou o ciberespaço reproduzirá o mediático, o espetacular, o consumo de
informação mercantil e a exclusão numa escala ainda mais gigantesca que hoje (...) Ou
acompanhamos as tendências mais positivas da evolução em curso e criamos um projeto
de civilização centrado sobre os coletivos inteligentes: recriação do vínculo social
mediante trocas de saber, reconhecimento, escuta e valorização das singularidades,
democracia mais direta, mais participativa, enriquecimento das vidas individuais,
invenção de formas novas de cooperação abertas para resolver os terríveis problemas que
a humanidade deve enfrentar, disposição das infraestruturas informáticas e culturais da
inteligência coletiva (idem, pp. 117-8).

E se é certo que a política real objetiva somente a conquista e a manutenção do poder,


então, o enfoque deve ser direcionado para o que é o poder. Para Arendt,

A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um


contra Todos (...) O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas
para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um
grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido (...)
A partir do momento em que o grupo, do qual se originara o poder desde o começo
(potestas in populo, sem um povo ou grupo não há poder), desaparece, ‘seu poder’
também se esvanece (1994, pp. 35-6).

Neste caso, trata-se de apontar o que pode convergir e ressaltar, como em Arendt, que
papel foi destacado à tecnologia por muito tempo (pelo menos durante o período da
Guerra-fria). Ainda que seja possível questionar sobre os rumos que a revolução
tecnológica tomaria, de acordo com Arendt, sua leitura é bastante indicativa da virtualidade
da política e da própria tecnologia:
53

Além do mais, sabemos que ‘algumas poucas armas poderiam fazer desaparecer todas as
outras fontes do poder nacional em poucos instantes’, que foram projetadas armas
biológicas que propiciaram a ‘pequenos grupos de indivíduos a reversão do balanço
estratégico’, e que elas seriam baratas o suficiente para serem produzidas por nações
‘incapazes de desenvolver forças nucleares de ataque’; que ‘em poucos anos’ soldados
robôs terão tornado os ‘soldados humanos completamente obsoletos’; e que, finalmente,
em combates convencionais, os países pobres são muito menos vulneráveis do que as
grandes potências justamente porque são ‘subdesenvolvidos’, e porque a superioridade
técnica ‘pode ser muito mais um ônus do que uma ‘vantagem’ em guerras de guerrilha (...)
Não apenas o progresso da ciência deixou de coincidir com o progresso da humanidade (o
que quer que isto signifique), mas também poderia mesmo disseminar o fim da
humanidade, tanto quanto o progresso ulterior da especialização bem pode levar à
destruição de tudo o que a tornara válida antes. Em outras palavras, o progresso não mais
serve como o padrão por meio do qual avaliamos os processos de mudança
desastrosamente rápidos que desencadeamos (1994, pp. 17, 18 e 29).

No limite do desenvolvimento tecnológico (e ético) apontado por Arendt, quando parece


não haver mais escolhas e possibilidades — porque os caminhos já teriam sido traçados —,
a própria questão da tecnologia deveria ser vista sob a ótica de uma relação mais
globalizante entre política, poder e violência: “Em resumo, a proliferação aparentemente
irresistível de técnicas e máquinas, longe de ameaçar certas classes com o desemprego,
ameaça a existência de nações inteiras e, presumivelmente, de toda a humanidade”
(Arendt, 1994, p. 22).

Dito de outra forma, segue a lógica de que a política se pauta pela mínima estruturação e
configuração do poder (e, na sua ausência, da violência), a fim de se manter a própria
governabilidade. O que requer um status de legalidade e legitimidade, por parte de quem
detém este poder e porque toda manifestação de poder presente na idéia de rede só pode se
pautar pela tolerância. Pois, do contrário, haveria ou privilégios ou necessidade de censura
— duas situações em flagrante conflito com o princípio democrático da rede. Aqui, vale a
diferenciação apontada por Arendt:

Em seu uso corrente, quando falamos de um ‘homem poderoso’ ou de uma ‘personalidade


poderosa’, já usamos a palavra ‘poder’ metaforicamente; aquilo a que nos referimos sem
a metáfora é o ‘vigor’, [strenght]. O vigor inequivocamente designa algo no singular, uma
entidade individual (...) É da natureza de um grupo e de seu poder voltar-se contra a
independência, a propriedade do vigor individual. A força [force], que freqüentemente
54

empregamos no discurso cotidiano (...) [la force des choses] (...) deveria indicar a energia
liberada por movimentos físicos ou sociais. A autoridade (...) pode ser investida em
pessoas (...) Conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou pelo cargo. O maior
inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo, e o mais seguro meio para miná-la é a
risada66. Finalmente, a violência (...) Fenomenologicamente, ela está próxima do vigor,
posto que os implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são planejados
e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em seu último estágio de
desenvolvimento, possam substituí-lo (1994, pp. 36-7).

Há, porém, toda uma tradição do pensamento político que aponta em outro sentido: a
violência na prática política67. Mas, como se depreende de Arendt, verifica-se que sem
governabilidade, sem poder, instaura-se a violência. Porque, não havendo legalidade e
legitimidade que ampare o poder, há uma imensa disputa pelos espaços de poder e, uma
vez que não se reconhecem as regras do jogo, a rivalidade não pode ser administrada entre
os diversos grupos ou atores políticos.

E é óbvio que a democracia também pertence ao jogo do poder. Aliás, mesmo na definição
mais usual (constitucional) de democracia (Todo poder emana do povo e em seu nome será
exercido), o poder é o elemento que vem destacado em primeiro lugar e não o povo, como
se costuma acreditar. Portanto, trata-se do poder que é regido pela democracia; ao contrário
da fórmula oligárquica onde se lê: se a democracia é o poder do povo, então esteja com o
poder e estará com o povo. Essa idéia, contudo, também não carregará o peso da verdade,
uma vez que,

Falando historicamente, a antiga instituição da economia escrava seria incompreensível


nas bases da psicologia de Mill. Sua finalidade expressa era a de libertar os cidadãos do
fardo dos afazeres domésticos e permitir que adentrassem a vida pública da comunidade,
onde todos eram iguais; se fosse verdade que nada é mais doce do que dar ordens e
dominar os outros, o senhor jamais teria abandonado seu lar (Arendt, 1994, p. 34).

Na mesma linha, em direção à esfera política, elabora-se pela primeira vez na histórica
uma possibilidade para o cidadão do mundo. É bem verdade que o novo-velho mito do

66
Em uma fórmula, trata-se do que Ianni (em Revolução e Cultura) denomina de a carnavalização da
tirania.
67
Em direção oposta à análise de Arendt sobre o poder, há uma longa fila de autores, como:
Maquiavel (é melhor ser temido do que amado), Hobbes (homo homini lupus), Rousseau (o homem nasce
bom e se torna mau, ou seja, político), Marx e Weber (quem procura a salvação das almas não deve
participar da política). Para Arendt, no entanto, em Marx, é o trabalho quem liberta o homem e não a
violência, e a libertação também se dá de forma coletiva e não individual (1994, pp. 19 e 65).
55

cidadão do mundo vem sendo gestado pelo neoliberalismo e pelas crises da globalização.
Ou decorre de uma cultura que parece virtual (em que não há cidadão do mundo, mas
cidadãos desenraizados de sua cultura e, no geral, pertencentes a algum ramo da elite
política, econômica ou administrativa68) — há uma análise de Marc Augé (1994)69.

Politicamente, é possível transformar-se o mito em utopia e daí em nova prática: holística


ou global. Um objetivo, porém, que só se alcança com a intervenção plena dos princípios
democráticos da rede, com a sua interface mundial popularizada, politizada e servindo à
propagação da utopia do cidadão do mundo.

Ainda sob esta perspectiva, crítica do uso tecnológico sem o respaldo do que chamei de
política do real, vale mencionar o discurso proferido pelo presidente da República Tcheca,
Václav Havel, no Parlamento Latino-Americano, em 1996, em que busca um novo sentido
de vida que esbarra nas coordenadas demasiadamente científicas e acabam inibindo
soluções políticas, quando deveriam ser níveis de ações complementares:

A civilização contemporânea tem, como todos sabemos, milhares de vantagens e deu ao


homem milhares de conquistas, desde o desenvolvimento extraordinário da ciência e
técnica, vertiginosamente ampliando o circuito do conhecimento humano e aprofundando
certos aspectos daquilo que poderia ser denominado conforto de vida, até ao cultivo da
coexistência entre os homens, assim como está incorporada na idéia moderna dos direitos
humanos e da democracia. Ao mesmo tempo, porém, tem também seus aspectos e
conseqüências bastante problemáticos (...) Todas as propostas para resolver os problemas
básicos da civilização de hoje, por isso, tem o caráter, mais ou menos, técnico ou de
sistemas: estão sendo procuradas e propostas as mais diversas soluções engenhosas, que
tem aquela vantagem de serem provavelmente as soluções reais, mas também
desvantagem, já que ninguém as concretiza, porque o próprio modo de vida moderno o
impede e para essas soluções não existe vontade suficiente se estão em contradição com os
costumes de vida ou interesses imediatos das pessoas, nações, comunidades, empresas ou
diferentes lobbies (1996, s/p - mimeograf).

68
É interessante notar que esta elite desenraizada parece subverter a análise de Simone Weil (em A
condição operária), porque, para a autora, no capitalismo, as classes trabalhadoras é que sofreriam as
contingências do desenraizamento cultural.
69
Há, também, coletânea mais recente de ensaios de Lyotard (Moralidades pós-modernas) que avança
em sentido próximo. Mais claramente, logo no início dos ensaios, diz que esta relação fragmentada na base
da vida social interliga quase todos os povos, mas não os enlaça pelas culturas originárias e enriquecidas
pelas experiências globais. Como se o desenraizamento cultural tivesse gerado um enraizamento por
fragmentos de cultura. Isso se dará dessa forma somente porque as experiências culturais não estão
conectadas em verdadeiras redes de comunicação?
56

Porém, estando de acordo com a perspectiva do cidadão do mundo ou concordando com a


análise do cidadão despatriado, importa ressaltar que, tanto uma quanto outra, são opções
políticas. Isto é, uma questão de fundo ético. O que equivale a dizer: se a segunda análise
detecta esse profundo sentimento de desenraizamento cultural, isso não significa que o
quadro futuro tenha de reproduzi-lo integralmente. Pois, como vimos, a política é virtual,
ou seja, aberta para novas perspectivas de atualização (criativas, engenhosas) e contém
perspectivas de realização em rede (aliás, a própria conjuntura), e não um mero
destinatário marcado pela violência do realismo. Em suma, para Lévy, subsumir o
individual no coletivo, significa passar da inteligência coletiva ao coletivo inteligente:

A programação cooperativa do sofware no ciberespaço ilustra de maneira evidente a


autopoiese (ou produção de si) da inteligência coletiva, especialmente quando o programa
visa ele próprio a melhorar a infraestrutura de comunicação social (...) Navegar no
ciberespaço equivale a passear um olhar consciente sobre a interioridade caótica, o
ronronar incansável, as banais futilidades e as fulgurações planetárias da inteligência
coletiva. O acesso ao processo intelectual do todo informa o de cada parte, indivíduo ou
grupo, e alimenta em troca o do conjunto. Passa-se então da inteligência coletiva ao
coletivo inteligente (1996, pp. 116-7).

Do contrário, estaríamos todos, pesquisadores ou não, tecendo apenas novos Príncipes para
agradar aos reis-filósofos pós-modernos nada-virtuais. E se de fato não é isso o que propõe
a concepção democrática que formou agregando valores sociais, então, pensemos em
espaços públicos ocupados efetivamente pelo público, pensemos na consecução de uma
Sociedade Civil Virtual. O próximo capítulo.
57

2º CAPÍTULO

A REDE E A SOCIEDADE CIVIL VIRTUAL

Com o fractal, a relação input/output é imprevisível

A questão principal do capítulo pode ser resumida em uma pergunta inicial: a rede
(expressa na Internet ou no plano conceitual) pode ser equiparada a um novo espaço
público? Em caso afirmativo, a participação política nessa nova Sociedade Civil Virtual
tem de ser pensada em outras bases e, sendo assim, impõe-se um novo projeto político.
Porém, caso não se entenda a rede como novo espaço público, sua compreensão se resume
a somente um outro subproduto daquilo que se denomina de fenômeno da globalização.

Inicialmente, também devo esclarecer que por espaço público entendo a participação livre
e democrática tal qual se verifica na rede; e se, na terceira e quarta partes do capítulo,
chamo a atenção para o conceito de sociedade civil virtual é somente no intuito de reforçar
as implicações políticas que existem e se manifestam na produção de mensagens pelo
cidadão e usuário da rede, no caso, na Internet.

UMA NOVA SOCIEDADE CIVIL?

Como indicado antes, e de acordo com o senso comum, a rede (especialmente a Internet) é
um subproduto da globalização porque sua expansão só teria sentido se vista em
consonância com o período histórico que se denomina atualmente de globalização cultural,
tecnológica, econômica etc. (para alguns, simples mundialização do capital).

Distingue-se o conceito de globalização, de forma diversa de outros períodos de


internacionalização do capital porque, dentre tantas diversidades, a globalização
desencadeia exclusão econômica (caso patente do continente africano), ao passo que os
longos períodos de internacionalização do capitalismo objetivaram a colonização desse
mesmo continente e dos demais70.

Mas antes de avançar na discussão cabe uma minuta do capítulo e de suas divisões
internas:

70
Marx, 1993, pp. 67.
58

1. O espaço público do cidadão virtual impõe uma abordagem metodológica que


privilegie o fractal, e não só a totalidade e a liberdade de comunicação (1ª Parte);

2. O espaço público virtual ainda está impregnado de preconceitos e mitos, que em


nada colaboram para a adequada problematização do fenômeno (2ª Parte);

3. O espaço público virtual tem características técnicas específicas que devem ser
consideradas porque não se trata do espaço público tradicional (3ª Parte);

4. O espaço público virtual, porém, desenvolve ações e reações políticas que são mais
bem compreendidas quando analisadas a partir de alguns pressupostos da Ciência
Política (4ª Parte).

1ª PARTE

DO GLOBAL AO VIRTUAL

No tocante ao desenvolvimento tecnológico, argumenta-se que a Internet foi criada como


parte de um projeto restrito e assim se manteve até ganhar novas dimensões globais,
justamente no bojo do processo que se denomina de globalização. O que leva a crer que
poderia ter sido globalizada antes de seu tempo. Mas a garantia dessa afirmação necessita
de comprovação científica, com pesquisas estritamente tecnológicas dirigidas a esse tempo,
a fim de averiguar se já havia ou não condições de se colocar a comunicação em rede.

Deve-se frisar, no entanto, que essas pesquisas deveriam cobrir todos os continentes e não
apenas os EUA. Pois, pouco nos esclareceria saber que o emissor americano estava em
condições de globalizar suas mensagens; ao contrário, seria fundamental confirmar se os
possíveis receptores da cultura hegemônica americana se encontravam nas mesmas
condições. Pesquisa que, como se vê, está longe do razoável, dada a relação custo-
benefício que poderia trazer. Afinal, que modificações tal conhecimento traria para a rede?

Parece estranho afirmar que a rede é um subproduto da globalização quando se fala de


revolução comunicativa: redes informacionais. Porém, os céticos e incrédulos da
Democracia Virtual têm recrudescido os argumentos sobre os abusos cometidos e
amplamente divulgados via Internet. Em prol da censura, sempre afirmam que
simplesmente não há controle, quando o melhor seria designar essa experiência como auto-
59

organização (conceito elaborado nas Ciências Cognitivas) – característica que também


revela na Internet uma experiência ímpar se a queremos inserir no bojo da globalização.

Sem a pretensão de retornar ou aprofundar o debate acerca dos mecanismos de controle,


uma vez que não se ajustam à censura, mas sim à idéia de tolerância e responsabilidade71,
pode-se dizer que esse debate pertence à cibernética: ciência fundada por Norbert Wiener
nos anos 50, baseada na idéia de sistemas, controles e hierarquia72. Por esse prisma, é
interessante destacar sua perspectiva de comunicação:

(...) A tese dêste livro é a de que a sociedade só pode ser compreendida através de um
estudo das mensagens e das facilidades de comunicação de que disponha; e de que, no
futuro desenvolvimento dessas mensagens entre o homem e as máquinas, entre as
máquinas e o homem, e entre a máquina e a máquina, estão destinadas a desempenhar
papel cada vez mais importante (1993, p. 16).

Hoje, seguindo a comunicação que Wiener detecta entre homens e máquinas e entre
máquinas e máquinas, mediante o conceito de rede, poderíamos dizer que a interface se dá
da seguinte forma: homem-máquina-homem-homem-máquina-homem-homem. A fórmula,
que não se pretende seja a mais verdadeira, pode ser sintetiza na avaliação de que a
mensagem é o meio; ao contrário de McLuhan (o meio é a mensagem), porque, quando
destacamos o núcleo da fórmula, homem-homem (uma idéia presente em Wiener — o uso
humano de seres humanos), o que se destaca efetivamente é a coprodução de mensagens
através da interação (ainda que mediada pelo recurso tecnológico) e de uma nova
sociabilidade ampliada e mundializada pela informática.

O modelo cibernético também sofreu grande abalo, em termos de sua aplicação na


ordenação e organização social, em decorrência do próprio processo de globalização.
Como se diz comumente: as fronteiras do Estado e da organização social hierarquizada na
burocracia desmoronaram ante a entrada incessante de informações. Isto é, os sistemas
fechados não controlam mais o fluxo de entrada e saída de informação (a relação input-
output não é previsível).
71
Bobbio, 1992.
72
Em suas próprias palavras, logo no início do consagrado clássico Cibernética e sociedade: “A dar a
definição de Cibernética no livro original, coloquei na mesma classe comunicação e contrôle. Por que fiz
isso? Quando me comunico com outra pessoa, transmitindo-lhe uma mensagem, e quando ela, por sua vez, se
comunica comigo, replica com uma mensagem conexa, que contém informação que lhe é originàriamente
acessível, e não a mim. Quando comando as ações de outra pessoa, comunico-lhe uma mensagem, e embora
tal mensagem esteja no modo imperativo, a técnica de comunicação não difere da de uma mensagem de fato.
Ademais, para o meu comando ser eficaz, tenho de tomar conhecimento de quaisquer mensagens vindas de
tal pessoa que me possam indicar ter sido a ordem entendida e obedecida (sic)” (1993, p. 16 - grifos meus).
60

Em termos globais, a confiabilidade nos sistemas, segurança e domínio sobre o já


conhecido, certeza diante dos método de averiguação, justaposição do novo ao velho etc,
fluíram rapidamente. Se entendermos que a configuração dos princípios do conceito de
rede (não só a Internet) se baseia em um conjunto novo e diverso de fatores de produção e
comunicação, então concluiremos que retomar a cibernética na virada do século XX já não
faz o menor sentido. Assim, ainda que se pense em controlar a Internet (a exemplo da net
privada dos países mais ricos, principalmente EUA e Europa), os princípios da rede nunca
seriam domados.

A nova idéia de rede (Net) teria superado os princípios da cibernética, marcada pela
centralização e hierarquia na tomada de decisões. Isto é, a cibernética também estaria
restrita ao passado73. Nesse sentido, para alguns, emprestando um exemplo do passado, o
socialismo perdeu totalmente a eficácia social porque seu modelo organizador é tão
centralizador quanto a cibernética. Anthony Giddens representa bem essa análise quando
trata do fenômeno globalizador atual (economia, política, cultura e tecnologia) e denomina
o momento presente como de alta reflexividade, ou de descrédito quanto aos sistemas
sociais tradicionais ou de modelo cibernético. Ainda que se discorde de seus postulados
quanto aos desígnios do socialismo, ou igualitarismo — porque também as políticas
liberais com quase quatrocentos anos não implementaram sua própria postura liberal —, é
interessante notar a definição de socialismo cibernético como algo do passado: “De acordo
com o modelo cibernético, um sistema (no caso do socialismo, a economia) pode ser mais bem
organizado quando se subordina a uma inteligência diretiva (o Estado, entendido de uma forma ou
de outra)” (Giddens, 1996, p.16). Em outra passagem, complementa,

O controle consciente significa planejamento econômico, que, para ser eficiente, mesmo
em princípio, tem de ser bastante centralizado. Na teoria socialista, isso forma um ‘modelo
cibernético’ de organização econômica. A economia socialista (não o Estado, que
‘desaparece’) é regulada por meio de ‘uma inteligência de ordem superior’, o cérebro
73
Na qualificação do trabalho, a orientadora, Dra. Maria Victoria Benevides, definiu a tese como
ensaística. Nesse caso, posso dizer que os ensaios são ramos do meu próprio rizoma pessoal. O trabalho não
teve a pretensão de se estruturar como rizoma, mas é interessante notar a analogia com Deleuze: “Um platô
está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs. Gregory Bateson serve-se da palavra
‘platô’ para designar algo muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e
que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade
exterior (...) Por exemplo, uma vez que um livro é feito de capítulos, ele possui seus pontos culminantes, seus
pontos de conclusão. Contrariamente, o que acontece a um livro feito de ‘platôs’ que se comunicam uns com
outros através de microfendas, como num cérebro? Chamamos ‘platô’ toda multiplicidade conectável com
outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar a estender um rizoma (...) Cada platô pode ser
lido em qualquer posição e posto em relação com qualquer outro” (1995, pp. 32-33).
61

econômico, que controla insumos e produção econômicos de ‘ordem inferior’ (idem, 1996,
p.70).

Um dos maiores problemas detectados nesta configuração é que - se há relativa


compreensão de que hoje não mais se aplica o modelo cibernético que antes explicava a
antiga estrutura social - para o futuro não há segurança alguma. O modelo da cibernética,
centrado em uma justaposição de estruturas, a exemplo das bonecas russas, perde eficácia
e impõe-se um novo jogo:

(...) os filhos não se submetem à hierarquia, a nova divisão sexual do trabalho rivaliza com
o pátrio poder e este, enfraquecido, não mais regula a energia nuclear da família,
resultando na fissão das classes sociais. Se é possível um compêndio final, este é a própria
globalização ou um novo tipo de jogo das bonecas desterritorializadas (...) Pode-se dizer
que é sob/sobre este jogo das bonecas despatriadas, e aparentemente não muito lúdico,
que o político, o econômico e o cultural encontram-se com o ecológico, o espiritual e o
tecnológico. Mas o inferno astral dos jogadores é que, quando se está sob, as regras são
conhecidas e respeitadas, e quando se está sobre o tabuleiro cada jogador retira uma
regra diferente de dentro de sua própria boneca74.

No sentido estritamente técnico, no tocante à rede, não mais se estabelece o famoso


triângulo da comunicação — emissor-mensagem-receptor —, mas argumenta-se em termos
de coprodução de novas mensagens. Isso porque nada indica a priori que a dinâmica e os
pressupostos das redes promovam exclusão, principalmente econômica; destacando-se o
contrário, pois baseiam-se na livre comunicação:

O computador não é um centro mas um pedaço, um fragmento da trama, um componente


incompleto da rede calculadora universal (...) No limite, só há hoje um único computador,
um único suporte para texto, mas tornou-se impossível traçar seus limites, fixar seu
contorno. É um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em
nenhuma, um computador hipertextual, disperso, vivo, pululante, inacabado, virtual, um
computador de Babel: o próprio ciberespaço (Lévy, 1996, p. 47).

Em sentido similar, ainda é preciso complementar a idéia de que se a própria informática


não tem futuro pré-configurado, então, é portadora de instabilidade e incerteza75 (mas não
se leia aí Teoria do Caos, porque ao menos por enquanto o disco e a memória coletiva de
74
Martinez & Vigevani, nov. 1997, pp. 12-13.
75
“Aos efeitos da crise do determinismo advindo das descobertas da física, somaram-se ainda as
proposições da Teoria Matemática da Informação. Esta teoria trouxe uma noção completamente nova da
informação, também associada a uma noção de incerteza, a uma escolha entre duas probabilidades — o bit”
(Franco, 1997, p. 12). Refere-se à escolha permanente que o computador opera entre zero e um.
62

que fala Lévy76, continuam sob um controle global – ainda que virtual). A questão, de todo
modo, quando pensamos na reação humana diante do advento e desenvolvimento
tecnológico, necessita de outras bases, de outras escolhas, ainda que muitas não deixem de
ser virtuais.

DOS CLÁSSICOS AO CIDADÃO FRACTAL

Nessa busca, o método radial - que escapa inteiramente ao maniqueísmo, se é que se pode
falar em termos de método quando se orienta pela metamorfose e abertura inconteste - trata
de uma reviravolta no olhar científico que rompeu com qualquer laço de estreitamento
com a denominada Filosofia do Mecanismo: “Uma filosofia da natureza segundo a qual o
universo e qualquer fenômeno que nele se produza podem e devem explicar-se de acordo
com as leis dos movimentos materiais” (Alquié, 1987, p. 59).

Ou na expressão de Descartes (1596-1650) citado por Alquié: “A minha filosofia só


considera grandezas, figuras e movimentos, à semelhança do que faz a mecânica” (idem,
ibidem). E nas bases da Ciência Política, como está em Thomas Hobbes (1588-1679):
“Descreve o comportamento humano em termos mecanicistas. A vida de um animal
consiste no ‘movimento vital’ que o anima, o qual consiste, primeiro que tudo, na
circulação do sangue” (idem, p. 75).

Pois,

A própria força não é mais que a velocidade de um movimento multiplicada por si mesma.
Para tentar dar conta de um estado tendencial, de um poder, Hobbes forja o conceito de
Conatus, de Endeavour, de movimento através de um espaço e de um tempo menores que
qualquer tempo e qualquer espaço determináveis (idem, ibidem - grifos nossos).

Donde se formula, posteriormente, a lógica suprema do: Navegar é preciso. Isto é, navegar
demandaria uma certeza matemática.

Nesse momento, no entanto, é importante frisar que o próprio Mecanismo significou, a seu
tempo, uma guinada epistemológica e permitiu a descoberta de tecnologias marítimas, o
refinamento de outras (a exemplo da luneta e de todo o trabalho de Galileu — 1564-1642),
a centralização dos Estados, a internacionalização do capitalismo, o expansionismo
marítimo, chegando ao extremo da colonização. No pensamento físico e matemático
chega-se à idéia do heliocentrismo (do sol como centro das órbitas planetárias). E nesse

76
Lévy, 1998.
63

caso em especial, a ilação entre o pensamento científico e as conseqüências políticas é


básico77.

DO PASSADO-PRESENTE AO VIRTUAL

Por sua vez, quando se destaca o método radial, um dos problemas com que nos
defrontamos hoje é que os mais ajustados à segurança da organização doutrinária, os
sistemáticos, quando se encontram sem a referência prévia, sem o conceito pré-datado,
vêem-se desiludidos78, trocando acentralidade por confusão. Sobre isso, já se tornou
comum dizer que os mais jovens é que melhor se adaptam aos tempos modernos enquanto
os mais velhos preferem a certeza e o domínio dos clássicos.

Mas, ressalte-se, o problema não se encontra nos clássicos; porém, é preciso criar com eles
(um bricoleur no século XX), e sem dúvida ir além deles. Imaginemos, por exemplo, o que
diria Gramsci sobre a tecnologia das redes, partindo das críticas que dirigiu ao Meccano
(datadas de 1929) — um tipo de brinquedo mecânico de sua época,

Isto me interessa muito, porque nunca cheguei a uma conclusão sôbre se o meccano,
tolhendo o espírito inventivo próprio da criança, será o brinquedo moderno que se pode
recomendar (...) Eu, de modo geral, penso que a cultura moderna (tipo americana), da
qual o meccano é a expressão, torna o homem um pouco sêco, maquinal, burocrático, e
cria uma mentalidade abstrata (num sentido diferente do que se entendia por ‘abstrato’ no
século passado). Houve a abstração determinada por uma intoxicação metafísica, e há a
abstração determinada por uma intoxicação matemática (Gramsci, 1991, pp. 121-122).

Análise que, para o caso desse trabalho, se tomada impensadamente, poderia revelar ou
anacronismo do pensador italiano diante de sua própria época ou, em sentido contrário,
crítica social da tecnologia, independentemente do contexto histórico. Assim, a fim de não
77
O que hoje soa muito tranqüilo, o heliocentrismo, levou Giordano Bruno para a fogueira e obrigou
Galileu Galilei, mesmo no Índex, a tergiversar sobre o assunto como um verdadeiro temente a Deus. É
conhecida a expressão nego tudo, mas que a terra gira em torno do sol, gira, ou então esta outra textual:
“Tendo eu, portanto, descoberto e logicamente demonstrado que o globo do Sol se movimenta em torno de si
mesmo, fazendo uma inteira evolução em um mês lunar, aproximadamente na exata direção em que se
processam todas as outras evoluções celestes; e sendo, ainda mais, muito provável e razoável que o sol como
instrumento e regente máximo da natureza, quase coração do mundo, dê não somente, como claramente dá, a
luz, mas também o movimento aos planetas que giram em torno dele; e se, conforme a tese de Copérnico,
atribuimos principalmente à Terra a evolução diurna; quem não vê que para deter todo o sistema bastou deter
o Sol, como exatamente indicam as palavras do texto sagrado, sem alterar o restante das recíprocas relações
dos planetas, alterando somente o espaço e o tempo da iluminação diurna?” (Galilei, 1988, p. 24).
78
Se bem que, ninguém em perfeito juízo emocional diz preferir a desilusão à ilusão. Ninguém
assegura que está feliz por estar desiludido, ou infeliz por estar iludido (Machado, 1997). Não seria uma
escolha racional. Ou, como diz Lévy: “Ou melhor, nosso interesse poderia se dirigir por toda parte e sob
todos os aspectos, de tal modo que os referidos objetos deixariam de se destacar do fundo de nossa
experiência. Dito de outra forma, poderíamos ser desinteressados”. (2000, p. 26)
64

assumir uma postura ou outra, é que encaminho a discussão para o sentido da recriação,
dos clássicos em si e da análise do virtual quando contraposta à análise clássica. Isto é,
deve-se ter claro que é possível recontextualizar os clássicos diante do virtual, pois a
recriação é justamente a grande virtude do virtual. Dado que permite retornar até Marx,
uma vez que Gramsci deve-lhe muito teoricamente. Só que, nesse casso, pelo olhar
expresso do virtual.

150 ANOS DO MANIFESTO PÓS-MODERNO79

Assim, o que aproxima Marx do mundo atual e de forma assombrosa ao mundo virtual, de
acordo com os propósitos deste trabalho, é a imagem que projetou para além de sua própria
formulação científica. No Manifesto, veremos, temos o jovem Marx poeta, arrebatador e
visionário. Resumidamente, Tudo que é sólido desmancha no ar é a frase mais esotérica (e
não com "x") desde 184880. Em livro homônimo, a partir da frase, Marshall Berman define
Marx como o precursor da modernidade: industrialização, urbanização, mercado e trabalho
livre:

Tomemos uma imagem como esta: ‘Tudo que é sólido desmancha no ar’. A ambição
cósmica e a grandeza visionária da imagem, sua força altamente concentrada e dramática,
seus subtons vagamente apocalípticos, a ambigüidade de seu ponto de vista — o calor que
destrói é também energia superabundante, um transbordamento de vida —, todas essas
qualidades são em princípio traços característicos da imaginação modernista (Bermam,
1986, p. 88).

Mas, por tudo que expressa, não se deixa de sentir estranheza pelo fato da frase-sentença
ser tomada atualmente como marco da modernidade. A imagem de prédios colossais
implodidos como castelos erguidos sobre cartas de baralho é ao mesmo tempo presa do
passado e de fortíssima atualidade pós-moderna: “O pós-moderno sem dúvida traz
ambigüidades — aliás é feito delas e deve ser criticado e superado. É isso que ele propõe: a
prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como
limite” (Sevcenko, 1987, p. 54).

O pós-moderno, realmente, associa as duas esfinges do capitalismo (linguagem e imagem,


retórica e pragmatismo) ou, se se quiser, forma e conteúdo da mesma mercadoria,

79
Em 1998, comemorou-se 150 anos da elaboração do Manifesto Comunista de Marx e Engels.
80
“Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são
finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas”
(Marx, 1993, p. 69).
65

ideologia etc. Mas, não seria melhor um castelo de cartas do que o III Reich? Sem esperar
pela resposta, pelo conceito duradouro, que talvez não venha, a pós-modernidade propõe
uma interpretação ambigüa81 e aposta no efêmero:

Creio que já seja uma vantagem e um alívio que o pós-moderno se apresente como um
castelo de areia e não mais como uma nova Bastilha, um novo Reichstag, um novo
Kremlin, um novo Capitólio. Apenas um castelo de areia, frágil, inconsistente, provisório,
tal como todo ser humano. Um enígma que não merece a violência de ser decifrado
(Sevcenko, 1987, p. 53).

O efêmero é também uma característica do virtual. O estado passageiro e muitas vezes


involuntário, até mesmo inconseqüente, que revela abusos e desvios. Mas, por outro lado, a
potência (vale lembrar, o virtual), a força de vontade de se realizar, impõe novo esforço de
reconstrução, novas plantas, e novo script social:

A prosa de Marx subitamente se torna luminosa, incandescente; imagens brilhantes se


sucedem e se desdobram em outras; somos arrastados num ímpeto fogoso, numa
intensidade ofegante. Marx não está apenas descrevendo, mas evocando e dramatizando o
andamento desesperado e o ritmo frenético que o capitalismo impõe a todas as facetas da
vida moderna. Com isso, nos leva a sentir que participamos da ação, lançados na corrente,
arrastados, fora de controle, ao mesmo tempo confundidos e ameaçados pela impestuosa
precipitação. Após algumas páginas disso, sentimo-nos excitados mas perplexos; sentimos
que as sólidas formações sociais à nossa volta se diluíram (...) É como se o inato
dinamismo da visão diluidora corresse com ele e o carregasse — assim como aos
trabalhadores e a nós próprios — para muito além dos limites a princípio pretendidos, a
ponto de seu script revolucionário precisar ser inteiramente refeito (...) No Manifesto, a
idéia de Marx é que a burguesia efetivamente realizou aquilo que poetas, artistas e
intelectuais modernos apenas sonharam, em termos de modernidade (Berman, 1986, pp.
90-1).

E, como vimos, por incrível que pareça, vem de Marx a tradição do descontínuo. Mas hoje,
neste percurso, diz-se que o aparentemente sólido segue o mesmo destino. Com a física
quântica dos anos 1920 (Max Plank e depois Niels Bohr, com a desintegração
subatômica), descobrimos que a cadeira em que sentamos não é sólida, ou melhor, é
aparentemente sólida. Através dos olhos da microfísica, descobrimos que o sólido (ou seu
estado aparente) é formado por incontáveis partículas que se chocam, giram e remexem

81
Berman fala de uma ambigüidade no ponto de vista de Marx.
66

umas nas outras. Os elétrons carregam suas cargas, o spin define para onde vão, mas não
há cola que os fixe no posto dado pelo criador. Talvez fossem traçadas por cadeiras de
rodas as marcas que Marx deixaria como legado da pós-modernidade:

Não há como negar que existe aí uma bela, generosa e multifacetada esperança. O anseio
de uma justiça que possa ser sensível ao pequeno, ao incompleto, ao múltiplo, à condição
de irredutível diferença que marca a materialidade de cada elemento da natureza, de cada
ser humano82, de cada comunidade, de cada circunstância, ao contrário do que nos
ensinam a metafísica e o positivismo oficiais. A sensibilidade para a expressão inevitável
do acaso, do contraditório, do aleatório. O espaço para o amor, o prazer, a contemplação,
sem outra finalidade senão a satisfação que o homem neles experimenta. O aprendizado
humilde, que já tarda, da convivência difícil mas fundamental com o impoderável, o
inefável — depois de séculos de fé brutal de que tudo pode ser conhecido, conquistado,
controlado (Sevcenko, 1987, p. 54)83.

Nesse contexto, de Marx e dos quanta, tudo desmancha porque é rarefeito. Para Marx, o
capitalismo profanou todo o sagrado, do padre ao cientista. Mas, por exemplo, nos tempos
pós-modernos depois de Marx, ao confrontar-se com o choque inevitável das partículas, do
imprevisível e do imponderável, a tecnologia sólida de um navio como o Titanic
(tecnologia mais avançada que seu tempo eqüacionava — velocidade elevada sem a
visibilidade e a previsão necessárias que o instrumento do sonar proporciona hoje) perderia
para a imprevisibilidade, pós-moderna, do general gelo: "O iceberg não tem futuro. Segue
flutuando à deriva. O iceberg não tem utilidade...Está acima de qualquer dúvida. Não tem nenhum
valor...É efêmero. Despreocupado...Não deixa traço. Desaparece com perfeição. Sim, o termo é
este: ‘perfeição” (Enzensberger, 1º fev. 1998). Na mesma relação, sob o aspecto econômico,
a África segue submersa e descartada pelo mercado financeiro.

É certo que Marx não poderia antever a nanotecnologia (a era do cidadão de silício), mas
nós podemos voltar ao Manifesto sem prejuízo da ciência moderna. É uma volta aos
clássicos pelo olhar do virtual e, de certa forma, uma revolta clássica contra o sentimento
da insegurança, diante do inusitado e do inesperado. Isto é, não está na hora de os clássicos
se encontrarem com o Titanic no desmanche da modernidade.

82
Não seria difícil dizer de cada fração, de cada fractal.
83
De outra forma: “A emoção é nossa interface com o mundo. Se nossa alma tivesse pele, seu toque
seria a emoção” (Lévy, 2000, p. 46).
67

Por esse mesmo motivo, também é perfeitamente viável articular Rousseau e Hegel num
projeto de Sociedade Civil Virtual: soberania popular por meio da participação eletrônica
do que se pode chamar de cidadãos fractais.

De forma direta, entendo por cidadão fractal o sujeito político ativo que faz uso da
fractalidade (multiplicação de sua interface com a rede), ampliando, reproduzindo, vendo
se ampliar e se multiplicar sua mensagem portadora de sentido político tolerante, a
exemplo do protesto que se viu em Chiapas, Seatle etc. É como se dissesse que cada e-
mail, cada spam (e-mail ampliado, multiplicado), cada inserção em listas de discussão
fossem portadoras da mensagem revolucionária que o protesto ou sinal de alerta inicial
eram portadores. Isto é, o uso pessoal do e-mail (um meio privado, particular e individual)
tendo seu sentido transformado em significado público, de alcance social e inovador: o
impulso é individual, mas a pulsão é coletiva.

A SOCIEDADE CIVIL DO CIDADÃO FRACTAL

Dito de outra forma: o cidadão fractal, o usuário consciente e tolerante, na Sociedade Civil
Virtual, na rede, atua como cidadão produtor de novas mensagens de forma livre, e que
somadas às demais mensagens podem imprimir um novo coletivo. No entanto, uma leitura
apressada do experimento do descontínuo, que já se encontra no Manifesto e que seria a
marca patente da pós-modernidade, vislumbraria na rede somente a fragmentação.
Quando, na verdade, tem-se a experimentação da fractalidade (Lévy, 1995) — tal como a
teoria matemática é capaz de demonstrar84. São cidadãos autônomos, portanto, que se
reproduzem incessantemente no coletivo. Produzindo-se uma sociedade civil em que a
vontade coletiva não é mera somatória de intenções individuais, mas projeção individual
no coletivo.

Mas, retornando à análise clássica, o conceito usual de Sociedade Civil tem sido associado
às práticas da não-violência. Ou, em outras palavras, têm-se destacado elementos de
organização cultural e social e também de participação política que não primam por

84
O que revela outra idiossincrasia da rede, pois se a Teoria Matemática da Informação, com seus
zeros e uns, concretiza o princípio do terceiro excluído, a rede, enquanto produtora de uma memória coletiva
virtual, desenvolve-se sob a experiência da fractalidade, ou multiplicação de fractais (usuários e mensagens),
denotando um forte caráter dialético. Porque, por fractalidade não se entende mera somatória (um usuário,
mais um usuário) e sim multiplicação, o que equivale a dizer que a quantidade de indivíduos (sua
multiplicação) influi na qualidade da própria rede: a quantidade trasformando a qualidade é sem dúvida uma
das leis da dialética.
68

práticas e meios violentos. Porque, por oposição ao conceito de Estado Moderno, que faz
uso da violência organizada como meio de acelerar a centralização, externalizando maior
controle social ou simplesmente opressão (de Weber à teoria política contemporânea85), o
conceito de Sociedade Civil revela uma potencialização de amálgama social (e até certo
ponto conciliador86), ideológica (consenso mínimo), cultural, hegemônico (que desde
Gramsci não significa unanimidade, mas espécie de coletivo único87), educativo,
participativo (estabelecida a regra da maioria, no regime democrático, com o destaque e a
defesa do dissenso88) etc. Por isso, esse sentido revela a importância primária da noção de
tolerância (intransigência, em Gramsci89) ou intolerância positiva (Bobbio90), para a
melhor compreensão da Sociedade Civil que se pode construir de acordo com os princípios
da rede91.

O CIDADÃO FRACTAL

O que o diferencia do liberalismo, neste caso, é que o cidadão (fractal) não é uma mônada
ou tábula rasa, um papel branco à espera do borrão (Locke)92. Na tecnologia política, o
fractal é um ponto de convergência e dispersão, porque o fractal promove a clonagem de si
mesmo, da cidadania, do social. O cidadão fractal é um polo de emissão-circulação93.
Porque, no princípio da rede, o usuário (fracionado) é um emissor de mensagens, não só
receptor, e a expansão (fractalidade) da consciência depende do coletivo e não da censura,
tomando-se o a priori de que a rede é um meio aberto que pode contribuir para a
solidariedade ampliada. Pois, está de acordo com a verificação de que,

Qualquer ato humano é um momento do processo de pensamento e de emoção de um


megapsiquismo fractal e poderia ser valorizado e até remunerado enquanto tal. Se todos

85
Bobbio, 1994, p. 96.
86
Bobbio, 1993, p. 1210.
87
Gramsci, 1990, p.160.
88
Bobbio, 1994, pp. 47-56.
89
Gramsci, 1990, pp. 159-161.
90
Bobbio, 1992, pp. 203-217.
91
Essa discussão será retomada na terceira parte do capítulo.
92
Bobbio, 1990.
93
Note-se que nem mesmo a definição depreciativamente liberal de que o cidadão é o consumidor,
estando o reino da política submerso no economicismo vulgar, não pode ser tomada ao pé da letra: “Como os
produtores primários e os requerentes podem entrar diretamente em contato uns com os outros, toda uma
classe de profissionais corre doravante o risco de ser vista como intermediários parasitas da informação
(jornalistas, editores, professores, médicos, advogados, funcionários médios) ou da transação (comerciantes,
banqueiros, agentes financeiros) e tem seus papéis habituais ameaçados. Esse fenômeno é chamado a
‘desintermediação’ (...) O consumidor não apenas se torna coprodutor da informação que consome, mas é
também produtor cooperativo dos ‘mundos virtuais’ nos quais evolui, bem como agente de visibilidade do
mercado para os que exploram os vestígios de seus atos no ciberespaço” (Lévy, 1996, pp. 62-63).
69

os atos pudessem ser captados, transmitidos, integrados a circuitos de regulação e


devolvidos a seus produtores, e participassem deste modo de uma melhor informação
global da sociedade sobre si mesma, a inteligência coletiva conheceria uma enorme
mutação qualitativa da maior importância (Lévy, 1996, p. 69 - grifos nossos).

Em síntese, a garantia de que nos tornamos parte da experiência fractal, conectados em


rede às dispersas moralidades individuais, está demonstrada na metáfora da constante
(re)ligação carnal, vital, e não na benevolente interpretação do sentido informacional.
Numa única sentença: o cidadão fractal depende de uma rede ambulante conectada ao
corpus coletivo:

A virtualização do corpo incita às viagens e a todas as trocas (...) Os implantes e as


próteses confundem a fronteira entre o que é mineral e o que está vivo: óculos, lentes de
contato, dentes falsos, silicone, marca-passos, próteses acústicas, implantes auditivos,
filtros externos funcionando como rins sadios. Os olhos (as córneas), o esperma, os óvulos,
os embriões e sobretudo o sangue são agora socializados, mutualizados e preservados em
bancos especiais. Um sangue desterritorializado corre de corpo em corpo através de uma
enorme rede internacional da qual não se pode mais distinguir os componentes
econômicos, tecnológicos e médicos. O fluido vermelho da vida irriga um corpo coletivo,
sem forma, disperso. A carne e o sangue, postos em comum, deixam a intimidade subjetiva,
passam ao exterior. Mas essa carne pública retorna ao indivíduo transplantado, ao
beneficiário de uma transfusão, ao consumidor de hormônios. O corpo coletivo acaba por
modificar a carne primária. Às vezes, ressuscita-a ou fecunda-a in vitro (...) A constituição
de um corpo coletivo e a participação dos indivíduos nessa comunidade física serviu-se
por muito tempo de mediações puramente simbólicas ou religiosas: 'Isto é meu corpo, isto
é meu sangue’. Hoje ela recorre a meios técnicos (Lévy, 1996, pp. 30-31).

Em Lévy, um músculo religado simboliza uma ação inusitada. Cada fração, átomo ou ação
isolada identifica outra pulsão coletiva. (É a imagem que a modernidade faz de si mesma e
que se iniciou com o Manifesto). Mas tendo de ser indiferente ao todo que já se fez ou se
está fazendo, o uno é ele mesmo, fractal, como nano, porque mesmo a apropriação da
tecnologia da rede é individual. A ficção ou a ciência mais moderna ajuda a descortinar
esse horror frente à fragmentação social, perda de identidade, desmaterialização, ou
simplesmente desumanização da técnica: o teletransporte de fotóns (parte da
nanotecnologia), hoje um fenômeno comprovado cientificamente (ainda que nos seus
primórdios), guarda curiosa comparação com o anseio do teletransporte humano ou de
70

dados complexos94. Ciência e ficção, descoberta e drama, de época em época nos


confortam ou nos assombram.

Assim, em um sentido que agora escapa à ficção — ou o drama social da perda de


sensibilidade ao redor do externo, do puro sumisso à submissão externa, da desintegração
diante do inusitado ou daquilo que sendo conhecido é maior e mais forte — o
teletransporte assemelha-se à massificação. Não disse temor ou medo da massificação,
porque esses sentimentos exigiriam consciência ou conhecimento das circunstâncias que
recobrem e remetem ao estágio da massificação: estágio que, evidentemente, evitaria essa
mesma massificação95. De qualquer forma, o teletransporte assemelha-se ao medo de
perder a si mesmo, o incontrolável que se apossa de cada um, indo da ficção ao mundo
real:

As fantasias sobre o roubo ou a eliminação de corpos, seja através de extraterrestres,


andróides ou de uma feminidade devoradora, manifestam o temor a uma subjetividade
cindida e a uma conseqüente desorientação. São metáforas da perda de identidade. Os
anos 50 geraram uma iconografia capaz de manifestar esse temor e de imaginar um
mundo futuro. Nos 80, porém, a ausência de crenças que caracteriza a cultura pós-
industrial é tão dramática que impede qualquer projeção futura. Só nos restam os gestos
do roubo e simulação para entreter esse vazio96.

O tráfico de órgãos, principalmente infantil, é demonstração de como a fantasia pode virar


realidade: o medo de cada um se perder no todo, o medo da dor e da morte violenta, o
terror do cidadão diante de seus retalhos e sobras. Mas a rede redimensiona o coletivo,
pois, estando o impulso em cada um, o impulso coletivo pode estar no uno ou no múltiplo.
Do uno ao múltiplo, não se transforma em ideologia (na forma da universalização do
particular) porque a rede o absorve; do múltiplo ao uno, não se totalitariza (enquanto
informação cibernética) porque o todo se contrai do todo e de cada um. Não há
possibilidade de um único ser tudo, porque cada um não é mais parte exclusiva de si e sim
fragmento que está em tudo e em todos. Não há como o uno se isolar, porque ele sempre se
refaz no outro e do outro. E não há como o uno se perder, o todo sempre o acha. Mas a
procura não totaliza os muitos, porque cada um continua sendo apenas seu próprio uno:

94
Veja-se o seriado Jornada nas Estrelas.
95
Em Gramsci, as intenções redimensionam a massificação: “No entanto, é observação comum que
uma assembléia ‘bem ordenada’ de elementos rebeldes e indisciplinados se unifica em decisões coletivas
superiores à média individual: a quantidade se transforma em qualidade” (1990, p. 113).
96
O texto apresenta uma breve análise interpretativa da história da ficção, basicamente dos anos 50 aos
80. Peixoto & Olalquiaga, 1987, p. 88.
71

“Enfim, toda inteligência coletiva do mundo jamais dispensará a inteligência pessoal, o


esforço individual e o tempo necessário para aprender, pesquisar, avaliar e integrar-se a
diversas comunidades, sejam elas virtuais ou não” (Lévy, 12 abr, 1988).

Por fim, diante do exposto, conclui-se que a desterritorialização é um fenômeno global,


admitindo-se que toda sua complexidade vital, comunicativa, sócio-cultural e política (um
não-mero reflexo do capital) pode estar ou ser servida como meio de construção de uma
Sociedade Civil Virtual, desconhecedora dos limites geográficos, institucionais e
burocráticos do Estado-nação. Distorcendo a paráfrase de Marx, chegamos ao reino da
comunicação em que surge o virtual cidadão do mundo: hoje mais do que um projeto
iluminista, um projeto que poderia se pautar pela possibilidade do cooperativismo global
que a rede oferece97.

Tem-se também de forma clara a idéia de como o processo de mutação altera a


configuração vital de todo o tecido social. Para utilizar de uma metáfora (que em grego
quer dizer transporte), é como se disséssemos que na malha da rede nossas pernas também
não nos levam mais aos caminhos estabelecidos pela força da nossa vontade única. (Não há
ruas de mão única, mas apenas infovias). Porém, ainda que nos levassem, para onde será
que iríamos sozinhos?

Finalmente, se o caminho proposto pela humanidade para o virtual não é a solidão, então
ele pode ser definido em uma idéia: na rua andamos, na rede navegamos. Mas a
consciência é de cada um. Ou, dito de outra maneira, para que caminhos sem conceito
(caput)? Ou, em sentido contrário, de que adiantam os tantos caminhos e nós (da rede) para
quem tem pernas mas não o projeto de busca na cabeça98? (Só mesmo para estimular o pré-
conceito de que corpo são é mente sã). Pois, havendo só o labirinto da rede, e não as ruelas

97
Veja-se Sérgio Paulo Rouanet, em http://sites.uol.com.br/globalization/rouanet.htm, sobre esse
aspecto: “Mas é óbvio que uma ética universal só poderá ser plenamente eficaz quando os interessados
possam participar, de fato, dos respectivos processos deliberativos. Isso só será possível quando todos os
afetados sejam, ao mesmo tempo, cidadãos, o que somente acontecerá quando as democracias nacionais
forem complementadas por uma democracia mundial. É o segundo grande projeto do Iluminismo moderno.
As novas tecnologias podem contribuir para o advento dessa democracia. Interligando milhões de pessoas, de
todos os países do mundo, elas podem relativizar os reflexos nacionalistas, combater a xenofobia, facilitar a
compreensão mútua entre as diversas culturas. E, uma vez criada uma democracia cosmopolita, as novas
tecnologias serão um instrumento poderosíssimo para assegurar a comunicação entre indivíduos e
organizações, no bojo da sociedade civil mundial. Devemos evitar qualquer forma de triunfalismo
tecnológico”.
98
Diz-se do caput dos artigos dos códigos legais como a chave de entrada de seu significado, do
desenvolvido dos detalhes que articulam o sentido que virá mais extensamente disposto e especificado. Daí
reforçar que caput = cabeça.
72

por onde podíamos escolher e dedicar o próprio fim, concluo com o poeta e ensaísta José
Paulo Paes (1998),

Pernas / para que vos quero?


Se já não tenho por que dançar.
Se já não pretendo ir a parte alguma.
Pernas? Basta uma.
(...) Longe do corpo terás doravante de caminhar sozinha até o dia do Juízo99.
Não há pressa nem o que temer: haveremos de oportunamente te alcançar
(...) Os maus passos quem os deu na vida foi a arrogância da cabeça100
a afoiteza das glândulas
a incurável cegueira do coração.
Os tropeços deu-os a alma ignorante
dos buracos da estrada
das armadilhas do mundo.

A pluralidade do virtual, portanto, é feita de caminhos e armadilhas. Fenômeno, aliás, que


só se verifica em ambientes plurais.

2ª PARTE

A REDE NÃO É UM PASTICHE

Ao contrário das outras mídias, a rede é plural. A afirmação, porém, não é sinônimo de
descontrole, como também não reflete isenção diante da realidade social em que se
encontra e que, ao seu modo particular, difunde-se na forma de uma sociedade de alta
complexidade (ou reflexividade, como vimos com Giddens). Num breve balanço, pode-se
dizer que, principalmente para a mídia impressa, a rede oscila como num pêndulo. Em
certos momentos, destaca-se o reconhecido maniqueísmo, sob roupagens diversas: da
ficção ao chamado pós-modernismo, da antropologia à teoria matemática.

Representante da pós-modernidade, Baudrillard, por exemplo, é enfático quando se refere a


um projeto que talvez nem saia do papel e aí desvela sua própria intimidade pessimista:

99
No caso do trabalho, diria da consciência ou inconseqüência em que ainda se encontra o debate
sobre o virtual.
100
É interessante ressaltar que a cabeça, como indica José Paulo Paes, é o ninho do preconceito ou pré-
conceito (pré, antes de, ou o dado a priori, estipulado sem que se recorra a qualquer tentativa de checar a
veracidade) e que no virtual mantêm-se sob as bases do maniqueísmo.
73

Quando tudo é livre, nada o é. Mais do que qualquer outro meio de comunicação, a
Internet nos torna escravos da comunicação forçada: é o que podemos chamar de êxtase
da comunicação (...) A comunicação máxima é um meio de reduzir nossa incerteza (...)
Perdemos a distância que nos permitia fazer julgamentos de valor (...) Para mim, uma tela
é um espaço de imersão. Mergulhados na imagem, assim como nos tornamos parte de uma
rede. Deixamos de existir, exceto enquanto terminal. Deixamos de ter um lugar próprio
(...) O computador faz as pessoas pensarem de modo diferente. É por isso que me nego a
ter um. Estou resistindo, intelectual e mentalmente, a esse novo modo de pensar (...) O
mundo virtual não possui senso do outro. Não há espaço para originalidade. Um dia as
gerações nascidas da Internet e do mundo virtual deixarão de ter qualquer idéia de que
possa existir algo fora isso (...) Não haverá mais conflito. Viveremos num consenso total
(...) A internet é um meio de comunicação fatal que traz consigo as sementes de sua
própria destruição101.

Não é difícil encontrar em Baudrillard a resposta à indagação de como Gramsci reagiria


frente às atuais tecnologias da comunicação descentralizada (lembremos das críticas ao
meccano). Estranha, porém, é a apropriação que Baudrillard promove da máxima marxiana
de que o capitalismo produziu as próprias armas que o destruirão, e que consta do
Manifesto: “Mas a burgesia não forjou apenas as armas que lhe trarão a morte; produziu também
os homens que empunharão essas armas — os operários modernos, os proletários” (Marx, 1993,
p. 73). Seria essa a função reservada aos hackers e crackers? A maior falta de sintonia,
entretanto, está na recusa premeditada de partilhar da informática: Baudrillard se declara
um neoludita102 do virtual103.

Do ponto de vista deste trabalho, Baudrillard se equivoca na análise porque compara o


virtual ao apogeu da mesmice, do pensamento centralizado, espécie de unanimidade –
ausência de dissenso, reino do ancrônico e da burrice plena104. O que, evidentemente, é

101
Baudrillard, 19 fev 1998, p. 12.
102
Membro do movimento de contestação americano que se notabilizou pela destruição de máquinas e
artefatos, no início do século.
103
Veja-se o caso de um cientista brasileiro, tão enfático quanto Baudrillard: “A Internet é totalmente
descontextualizada (...) Crianças e jovens não têm capacidade para decidir o que é adequado para eles, pois,
se tiverem, estarão indevidamente se comportando como adultos (...) TV, joguinho e computador são
especialistas em cosméticos, atraindo pela forma, não pelo conteúdo, pela virtualidade, não pela realidade
(...) O nazismo será fichinha perto do que essas crianças e jovens informatizados farão no futuro (e estão
começando a fazer) e o sofrimento por que passarão” (Setzer, 23 jul 2000, p. 03). E a crítica que dirigi a seu
pensamento, em: http://www2.mii.zaz.com.br/jmanha/30jh/opiniao1.htm.
104
Em texto inspirado (Deep Blue ou a melancolia do computador), Baudrillard chega a ser cômico nas
comparações, o que talvez tenha lhe garantido a própria desautorização histórica de sua análise: “O confronto
de um ser humano e de um artefato ‘inteligente’ (Kasparov contra Deep Blue) é altamente simbólico, não
somente pelo prestígio do jogo de xadrez, mas porque resume o dilema do homem face às máquinas
74

um contra-senso, mas ainda assim pertinente a quem desconhece totalmente o meio (uma
vez que ele próprio se recusa a tal). Pois, caso contrário, teria notado em qualquer site
interativo a pluralidade, a crítica e a ironia que reclama. De acordo com o ponto de vista
deste trabalho, pois, a inteligência coletiva é, antes de tudo e de qualquer aparato
tecnológico, devedora da substância da idéia de rede – presente na Internet, mas muito
mais ampla e de definição anterior ao artefato tecnológico. Porém, o caso da inteligência
artificial acoplada ao meio virtual, de fundo virtual, ou simplesmente inteligência artificial
coletiva, que une ficção e ciência, sonho e realidade, tende a unir cientistas e internautas:

Quando o cineasta Stanley Kubrick filmou “2001”, que conta a história de uma missão
espacial a Júpiter, a inteligência artificial passou a fazer parte dos sonhos de milhões de
pessoas: quem nunca quis conversar com um computador tão arguto quanto HAL 9000,
protagonista do filme? (...) No que depender da vontade de alguns cientistas, ela poderá
começar nos próximos anos: com a ajuda dos internautas, eles querem criar computadores
capazes de pensar e responder a centenas de milhões de perguntas. Há dois projetos que
funcionam de maneira parecida: o voluntário visita um site, cadastra-se e começa a
educar o computador, contando histórias, mostrando fotos e ajudando-o a compreender
diversos assuntos105 (...) “Novecentos milhões de mindpixels106 serão usados para treinar a
máquina, que deverá responder a perguntas baseando-se no conhecimento fornecido pelos
internautas”, afirma Chris Mckinsky, cientista que criou o projeto. Segundo ele, quando o
computador acertar todas as respostas, estará pronto para o teste definitivo: “A máquina
deverá responder sozinha a mais de 100 milhões de perguntas; quando acertar todas será
cientificamente idêntica a um ser humano respondendo a questões similares”, disse à folha
(Garattoni, 18 out. 2000).

Já outras mídias destacam o potencial de troca e produção livre que a Internet propicia e
instiga – no melhor exemplo do que o protótipo propõe. Nesse sentido, Baudrillard é
incapaz de verificar que, ao contrário das outras mídias (essas, sim, centralizadas em uma
estrutura de poder hierárquico), o meio é aberto. E que a mídia tradicional é que se pauta
por um tipo de pensamento único. Como alega Serge Halimi, analisando a relação
promíscua da mídia com o poder francês:

contemporâneas que utiliza: informatizadas, virtuais, cibernéticas, em rede etc (...) Não há interatividade com
as máquinas (tampouco entre os homens, de resto, e nisso consiste a ilusão da comunicação). A interface não
existe (...) O homem soube inventar máquinas que trabalham, deslocam-se, pensam melhor do que ele, ou em
lugar dele. Nunca inventou uma que pudesse gozar ou sofrer em seu lugar. Nem mesmo que possa jogar
melhor do que ele. Talvez isso explique a profunda melancolia dos computadores (1997, pp. 133-8). Como se
sabe, em uma segunda partida, o computador venceu o melhor jogador de xadrez do mundo, naquela época.
105
Na Internet: http://commonsense.media.mit.edu e www.mindpixel.com.
106
Unidades de conhecimento.
75

E depois existe a ideologia bem consciente. A expressão ‘pensamento único’ fez sucesso
(...) Pensamento mole ou duro, nunca pensamento forte ou generoso, ele é tanto mais
influente quanto, à semelhança das piores ortodoxias, não pretende ser uma doutrina.
Como as leis físicas, climáticas e biológicas, proclama-se a verdade. O ‘círculo da razão’
de seus epígonos, freqüentado com assiduidade pelos jornalistas, trata os refratários como
retardados ou iluminados (1998, pp. 66-7).

Como exemplo do próprio fim do lide jornalístico, Halimi ainda cita gravação de um
debate na França, em que participava o proprietário de uma das redes:

O ‘não’ chegou a se manifestar, mas com menos freqüência e diante de um microfone


estendido em emboscada. Com Jean-Pierre Elkabbach, as perguntas formuladas em
Europe 1 tornaram-se militantes. ‘Para evitar que ele se limitasse a repetir slogans’,
acabou por interromper Philippe de Villiers. E Pierre Messmer foi apressado da seguinte
forma: ‘Integrista do gaullismo, ele diz não a Maastricht fazendo falar o general De
Gaulle vinte e dois anos após sua morte’. Com V. Giscard d’Estaing, a entrada na matéria
tinha sido mais obsequiosa: ‘Em favor do sim, o senhor fez uma magnífica campanha,
simultaneamente, pedagógica e equilibrada’. Quando os partidários do ‘sim’ foram
tratados com menos entusiasmo, mostravam-se ofendidos. Em France 2, o primeiro-
ministro, Pierre Bérégovoy, replicou com aspereza a um jornalista impertinente: ‘Não
tenho qualquer limite de tempo, nem o senhor, suponho’. É verdade, a rede era dele.
(idem, p. 43).

O que traz preocupação, no entanto, é ver uma postura crítica (mas descabida) como a de
Baudrillard se transformar na visão editorial do mesmo jornal em que ele publica seus
artigos no Brasil: no caso, o Jornal Folha de S. Paulo. E aqui a análise merece um maior
detalhamento, pois de acordo com o maniqueísmo, é muito fácil pular do negativismo ao
positivismo ingênuo.

UMA VISÃO POR FORA DO TEMPO

Nessa parte do trabalho, utilizo um número comemorativo do jornal Folha de S. Paulo (a


publicação de número 25.000, de 13 de setembro de 1997) que reúne artigos especiais,
projetando e comentando o futuro que cada articulista prevê para 23 de fevereiro de 2066
(data provável de publicação do número 50.000). Vale ressaltar que os artigos estão
espalhados por todo o corpo do jornal (nos cadernos Brasil, Mundo, Dinheiro, Esporte,
Ilustrada e Folhinha), cobrindo, portanto, o público adulto e infanto-juvenil, masculino e
feminino, de leitura especializada ou não, e de maior e menor renda.
76

Pode-se objetar que se trata de um único exemplar e também de uma só empresa


jornalística, o que, evidentemente, não permite nenhuma generalização. No que está
correta a observação. Mas, neste caso, destaco dois aspectos: a) o objetivo é demonstrar,
ainda que num único exemplar, como é viável a utilização de periódicos em consonância
com a fundamentação teórica — garantindo uma leitura crítica do cotidiano e um debate
teórico a partir desse cotidiano, retratado pela imprensa; b) tem-se, no sentido da crítica, a
possibilidade do estudo de caso do virtual — abordado pela empresa jornalística como
ficção e não como criação (Lévy, 1996). A utilização de jornais como fonte de pesquisa e
recurso educacional e a articulação crescente entre jornais e escritores são desenvolvidas
por Machado (1997, pp. 162-9)107.

O número analisado, no que concerne à análise projetiva de um futuro virtualizado, no


conjunto, é pessimista. Os articulistas envolvidos são quase que uníssonos ao apontarem
para um certo princípio de fim da humanidade como a entendemos hoje e, dessa forma,
pode-se especular se não se trata da própria concepção editorialista da empresa jornalística
— com exceção da coluna de Fernando Gabeira, Caderno Mundo, p. 19, e que,
paradoxalmente, é deputado federal pelo Partido Verde. Confrontando tais artigos com
outras matérias publicadas no mesmo dia, e sobre o mesmo assunto, a especulação ganha
ainda mais força.

Inicio com as matérias porque, a rigor, relatam os fatos com imparcialidade e não
expressam a opinião do jornalista responsável. No lide constam apenas perguntas básicas:
o que, como, onde, quem, quando. Excluindo-se o porquê, que seria opinativo.

No caderno Informática (Internautas furam a mídia, p.01), a matéria sugere inicialmente


um perfil de desqualificado (como desempregado, sem estudos, fazendo bicos para viver,
está sendo processado por calúnia, etc) para um internauta (Harry Knoles) que ameaça
Hollywood por meio de um site alimentado por uma rede de espiões (1.200), que ele
comanda a partir de seu computador pessoal. E somente na seqüência final (abaixo da
dobra) é que destaca pontos polêmicos, como: não retratar a vida pessoal de atores,
cineastas e produtores. E alerta para o furo jornalístico (unindo política e cinema) quando
107
O uso de revistas e jornais é enfatizado por Hobsbawm (em Era dos extremos): “À medida que o
historiador do século XX se aproxima do presente, fica cada vez mais dependente de dois tipos de fonte: a
imprensa diária ou periódica e os relatórios econômicos periódicos e outras pesquisas, compilações
estatísticas e outras publicações de governos nacionais e instituições internacionais. Minha dívida para com
jornais como o Guardian de Londres, o Financial Times e o New York Times é mais que evidente” (1995, p.
09-grifos meus).
77

antecipa “que o cineasta Steven Spielberg iria depor sobre o caso Whitewater, que envolve os
Clinton” (idem, p. 01).

É só nas páginas internas, porém, que o espião internauta terá direito de respostas (no
chamado pingue-pongue: perguntas e respostas) sobre sua visão de imprensa e ética
profissional (ele não é jornalista):

Folha - Como checa a veracidade das informações?


Knowles - Tenho espiões antigos. Quando alguém novo me manda uma história, confirmo
com eles (...)
Folha - Por que não publica fofocas sobre a vida das celebridades?
Knowles - Acho que isso não me diz respeito, ninguém precisa disso (...)
Folha - Você acha que tem poder para afundar um filme?
Knowles - Costumava pensar que não. Hoje não sei (...)
Folha - Que parte do site assusta mais os estúdios?
Knowles - As exibições teste, porque é quando o público fala antes dos críticos. Não acho
que é um ataque à indústria. Eles só precisam ter mais cuidado com o tipo de filmes que
fazem. É como se isso os ensinasse que o público quer filmes de qualidade. Se eles o
fizerem, nenhum site pode se interpor entre a indústria e o sucesso (p. 3 - grifos nossos).

O recorte da entrevista realizado por mim (e que também não é neutro) pretendeu
identificar o lado crítico e ético do internauta sobre o tema de seu trabalho e o próprio meio
que utiliza (Internet), ainda que definido como desqualificado por não ser habilitado para o
jornalismo. Além disso, pode-se destacar a diferença do senso ético e profissional, e do
assédio escandaloso, que se verificou com os paparazzi franceses envolvidos na morte da
princesa Diana.

Em outras matérias (caderno Mundo) é reapresentado o debate sobre ética versus direito e
política e a oportunidade representada pela Internet. A primeira matéria, Empresa dos EUA
veta sites sobre assassinos, destaca dois sites que anunciavam com frases reveladoras o
modo de ser do Serial Killers, e que foram desativados pela America On Line, “a maior
empresa prestadora de serviços on-line dos EUA” (9 milhões) (p. 18)108.

108
Marc Klaas, pai da menina Polly, assassinada aos 12 anos de idade em 1993, discorda e diz que a
America On Line ‘se esconde atrás do princípio da liberdade de expressão para permitir que monstros tenham
um fórum público’. Klaas, um videogênico pequeno empresário que abandonou os negócios após a morte da
filha para criar uma fundação em defesa de crianças vítimas de violência, ganhou o apoio de Jim Geringer, o
conservador governador de Wyoming (idem, p. 18).
78

No sentido popular, é colocar tranca na porta depois que o ladrão entrou. Ironicamente, a
história da tecnologia, também leia-se informática, seria revolucionada com a clonagem
das ovelhas Dolly e Polly. Na edição de 10 de setembro de 1997, a mesma Folha de S.
Paulo relatou outro caso: uma americana de 24 anos viciada na Internet e condenada a dois
anos de prisão, por maus tratos e abandono intelectual de seus três filhos (Justiça dos EUA
condena mãe ‘viciada’ em Internet, caderno Mundo - p.16). A ironia está em seu nome,
uma verdadeira sina que a acompanhará por toda a vida: leia-se Sandra Hacker.

Na segunda matéria, Senado estuda banir ‘laptops’ do plenário, de 13/09/1997, o debate


entre o meio tecnológico e o fim político é claro. A maioria dos senadores americanos
rejeita a presença de laptops nas sessões do Senado. O caso foi levantado por Michel Enzi,
eleito em 1996, e apaixonado por informática. Os argumentos contrários são variados: a
máquina pode distrair os políticos; os debates serão superficiais; é um desrespeito escrever
durante as sessões; os lobbies sairão fortalecidos e poderão dirigir os votos e os discursos
dos políticos, mesmo estando fora do plenário. “Mas o historiador Dick Baker acha que a
principal causa da oposição ao computador é o tradicionalismo da casa” (p. 18). Também
não poderá ser um caso patente de analfabetismo tecnológico?

O FUTURO ANTECIPADO

Como apontei anteriormente, os artigos projetivos do futuro virtualizado revelam um


mundo assustador, negativo e impróprio à vida na terra. Darei continuidade à análise dos
artigos com aquele que considero o único portador de uma utopia virtual, como uma porta
aberta para o futuro, ou o devir-ser construído em boa medida com o que temos e fazemos
hoje em dia, porque é a exceção que contrasta com a regra negativista: trata-se do artigo de
Fernando Gabeira Neto. Basicamente diz o seguinte:

O secretário-geral do GM, Patrice Natarafat, iria anunciar, pessoalmente, o fim do


passaporte, mas contraiu AIDS, e os médicos recomendaram dois dias de repouso e muito
líquido para que ele possa voltar ao trabalho na segunda-feira. ‘Não há perigo’, disse
Natarafat, em mensagem escrita, ‘de que o fim do passaporte provoque grandes migrações
como nos tempos em que ainda havia emprego para os recém-chegados’. O governo
mundial paga uma renda mínima a todos os habitantes do planeta e já não se importa mais
onde as pessoas vão consumir sua cota pessoal (...) No momento em que a juventude se
deixa seduzir por propostas contra o tabu do incesto, o GM decidiu adotar como tática a
tese do fim das utopias (que) é quase tão velha quanto elas, e os grupos descontentes
argumentam que já há base técnica para que as pessoas passem semanas fazendo amor:
79

há tempo e medicamentos adequados para essa maratona moderna (Neto, 13 set 1997, p.
19 – grifos nossos).

Ressalto o grifo de que no futuro haverá mensagem escrita e o fato, portanto, de que a
comunicação não se restringirá à oralidade. Também é oportuno destacar a utopia do fim
dos governos nacionais, com a construção de um Governo Mundial (GM) e a consolidação
do cidadão do mundo — identificado tempos atrás na ONU (Organização das Nações
Unidas), organismo multilateral que, porém, nunca adquiriu soberania para se interpor de
maneira neutra diante de todos os países, ricos e pobres, como vimos no caso da net
privada109.

Já o artigo Lurian desiste; Maluf vai disputar em outubro, do jornalista Clóvis Rossi,
destaca o realismo político:

A oito meses das eleições presidenciais de outubro, Lurian Inácio da Silva pediu
desfiliação da CFPS (Convergência das Forças Pós-Socialistas) (...) Luriana alegou, ao se
desfiliar, que a CFPS se transformara em ‘ventre ilegítimo’ de políticos que não têm
afinidade com a linha original da Convergência. É uma alusão à novela, com esse nome,
da rede GloboIntervisa, uma fusão das redes Globo (do antigo Brasil), Internet (que se
pretendia a primeira rede mundial de comunicações via computador) e da Televisa (do ex-
México) (...) De todo modo Paulo Salim Maluf, líder da ARENA (Aliança pela Renovação
Nacional), mantém a sua candidatura e garante que seus 134 anos não são um obstáculo.
‘Como muito frango’, diz Malf, para justificar a longevidade. Paulo Maluf pretende usar
como seu programa de campanha o livro ‘Teoria da Independência’, escrito pelo
sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ao deixar o poder, em meados deste século (Rossi,
13 set 1997, p. 13).

Clóvis Rossi destaca a articulação entre a velharia da política (Maluf com 134 anos e a
família Magalhães — desde o bisavô Antônio Carlos Magalhães — no poder há quase 120
anos) e a inovação tecnológica (Globo + Internet + Televisa: que é a maior rede de TV
mexicana), como a cristalzação da figura do Grande Irmão110.

Também pode-se destacar a antiga tese do imbricamento entre real e ficção, que se observa
sobretudo na televisão. (Há um episódio ilustrativo protagonizado pela novela O rei do
gado, exibida pela rede Globo, em que os senadores Eduardo Matarazzo Suplicy e

109
Em sentido figurado, lembra a música Imagine de John Lenon – como já fez inúmeras referências o
sociólogo Octavio Ianni.
110
Do livro 1984, de George Orwel.
80

Benedita da Silva, do Partido dos Trabalhadores, são destaques de um capítulo filmado em


acampamento de trabalhadores sem-terras). Clóvis Rossi projeta a novela Convergência —
no artigo, homônima de um movimento político pós-socialista e que, na vida real, foi uma
das facções expulsas do Partido dos Trabalhadores, dando início a outro partido (PSTU).

Os outros três artigos (O enterro da Maria Candelária, de Luís Nassif ; Matusalém tenta
se consagrar em decisão, de Matinas Suzuki Jr.; e Lua, Colônia 243, aptº 12, 23/02/2066,
de Fernando Bonassi) são menos incisivos quanto ao tema. Porém, alguns aspectos podem
ser destacados: Nassif insiste no fim dos privilégios estatais, mas não contrapõe e,
portanto, nada acrescenta a respeito das garantias sociais do futuro; Suzuki lamenta o fim
das tradições e o crescimento dos modismos, incluindo a perda de regras estáveis e
coerentes do futebol; Bonassi põe na carta de um jovem, endereçada à avó, as lamúrias do
fim do mundo natural, pois agora falta água (produzida na Lua) e não há mais animais
vivos. O menino chega a duvidar de que um dia existiram, parecendo brincadeira do
computador (lembra o dilema de Baudrillard). Atente-se para o nome do menino: Lunar.

Há outro artigo, Como estavam as coisas em 21, de Nelson Ascher, mas o autor descreve
apenas o cenário geral dos anos 20 e, assim, não projeta o futuro como os outros que foram
mencionados. Ainda devo destacar que, dos seis autores, quatro pertencem ao Conselho
Editorial do jornal. Fato que, a meu ver, reforça a especulação de que a visão pessimista do
futuro é produto da visão editorialista do jornal.

O FUTURO CONTRAPOSTO

Para Pierre Lévy, diferentemente da intenção do número especial do jornal que abordei
acima, o que está em jogo não é o futuro e sim o presente, uma vez que nem se arrisca a
prognósticos (ao contrário de Baudrillard e de Bill Gates). No presente, no entanto, Lévy
analisa os princípios da rede de acordo com as circunstâncias e os resultados daí
decorrentes, não se colocando problemas além de sua época e que assim podem ser
dimensionados de acordo com os artefatos e meios tecnológicos disponíveis: a Democracia
Virtual é um desses meios e fins. Também os produtos da interface coletiva (antagônica da
vontade única, do coletivo de soma simples ou pensamento único111, uníssono, na era da
novilíngua) são dimensionados nessa perspectiva, com o acréscimo da idéia de tolerância e
regulagem interna do meio, e, vale repetir, não como coadjuvantes da censura. Um projeto

111
Ramonet, abr 1995, p. 20.
81

que se poderia chamar de inteligência política coletiva, quanto à perspectiva do uso


político da técnica e da nova dimensão cognitiva é direto:

Em grego antigo, o termo ‘pharmakon’ (origem, por exemplo, de farmácia) designa tanto o
veneno quanto o remédio. Novo ‘pharmakon’, a inteligência coletiva que favorece a
cultura cibernética é ao mesmo tempo veneno para aqueles que não tomam parte nela (e
ninguém pode participar integralmente dela, tal a sua vastidão e diversidade) e remédio
para aqueles que mergulham em seu turbilhão e logram controlar a própria deriva em
meio a tantas correntes.
Em suma, quanto mais rápida a mudança técnica, quanto mais ela pareça vir do exterior,
tão maior será o sentimento de estranheza diante da separação das atividades e à
opacidade dos processos sociais. E justamente aqui entra em cena o papel central da
inteligência coletiva — um dos principais propulsores da cultura cibernética. Com efeito, a
criação de uma sinergia entre competências, recursos e projetos, a constituição e a
manutenção dinâmica de memórias comuns, a ativação de modos de cooperação ágeis e
transversais, a distribuição coordenada dos centros de decisão — todos estes são fatores
que se opõem à separação estanque das atividades, à compartimentação, à opacidade da
organização social (Lévy, 06 de julho de 1997, p.3).

Já o significado coletivo da rede manifesta questões claramente políticas:

Quanto mais se desenvolverem os processos de inteligência coletiva — o que


evidentemente pressupõe um novo questionamento de numerosos poderes —, tão mais
amplamente as mudanças técnicas serão absorvidas pelos indivíduos e pelos grupos e tão
menores serão os efeitos segregadores ou destrutivos do movimento tecno-social. Ora, o
espaço cibernético, dispositivo de comunicação interativo e comunitário, apresenta-se
justamente como um dos instrumentos privilegiados da inteligência coletiva112.

A inteligência coletiva, por sua vez, remete a um tipo de condensação/pulverização dos


dados e informações: antes da escrita, o saber era acumulado pelas coletividades humanas
(a morte de um ancião era uma biblioteca que ardia) e com a rede se dá o mesmo. O
conhecimento necessário à ação não corresponde mais a um domínio, a não ser o público:
daí se falar que há um retorno ao neolítico ou sua reinvenção. O banco de dados é
universal, como destaca Lévy:

112
Lévy, 06 de julho de 1997, p. 3.
82

A desterritorialização da biblioteca a que assistimos hoje talvez seja apenas um prelúdio à


aparição de um quarto tipo de relação cognitiva. Por uma espécie de retorno em espiral à
oralidade das origens, o saber poderia ser novamente sustentado pelas coletividades
humanas vivas e não pelos suportes separados, fornecidos por intérpretes ou sábios. Só
que, desta vez, ao contrário da oralidade arcaica, o depositário direto do saber não seria
mais a comunidade física e a sua memória carnal, mas o ciberespaço, a região dos
mundos virtuais por intermédio da qual as comunidades descobrem e constroem seus
objetos e reconhecem a si mesmas como coletividades inteligentes (22 fev 1998, p. 3).

E aí está descrita, de forma clara, a lógica da acumulação coletiva do conhecimento, a


regra de que o saber é poder, mas já um constructo coletivo e, portanto, a base de ações
mais conscientes e de conseqüências plurais. Está aberta a porta da compreensão coletiva
do mundo, sem a qual, vale frisar, não há transformação ponderável. Pois a ação necessita
de direção, objetivos claros e estes, por sua vez, necessitam de um projeto exeqüível. Mas,
nesse caso, um projeto que esteja ao alcance da compreensão da maioria.

Por outro lado, a qualidade da coletividade imposta pela rede, num sentido mais político,
não condiz com a unanimidade, porque a sua forma aberta imprime a qualidade da
metamorfose, com o que também se afasta o temor da maioria tirânica113. Contudo, há
problemas a enfrentar, como os exemplos infinitos de inutilidades (talvez um pouco mais
do que nas famosas páginas amarelas), e aí Umberto Eco está coberto de razão. Aliás, sua
astúcia o levou a comparar projetos de língua única na net com o personagem Salvatore,
do livro O Nome da Rosa. Algo como a novilíngua da Babel que passou pelo liqüidificador
sem centrifugar:

O europanto me lembrou um amigo na Grécia, que virou para o motorista de táxi e disse,
na maior solenidade: ‘vacaciones, presque finito’. E o homem entendeu...Umberto Eco
escreveu na revista italiana ‘L’Espresso’ sobre os absurdos perpetrados pelo programa de
tradução do Altavista (babelfish.altavista.digital.com/). Ele transforma textos em poemas
bufos, o que lembrou a Eco a língua de seu personagem Salvatore, em ‘O Nome da Rosa’
— que aliás se parece com o europanto (Ercília, 8 abr, 1998, p. 6 – grifo meu).

Quanto aos abusos, é óbvio que as pessoas interessadas pelo debate plural, organizado,
ético e democrático irão se insurgir no caso das falhas mais graves. O exemplo dado
anteriormente pode ser considerado como parte de um alerta geral. Outra questão se refere

113
Retomarei essa discussão mais adiante, mas, para o conceito de maioria tirânica, veja-se Bobbio,
1994, p. 54.
83

ao recebimento de mensagens descabidas e indesejadas, normalmente comerciais. Agora,


quem relata é Bill Gates, tendo em conta que ele próprio prevê um filtro mais apurado, em
que o remetente pagará pela mensagem indevida:

Poucas ferramentas na história foram mais poderosas do que a Internet (...) mas, como
qualquer ferramenta poderosa, está sujeita a abuso e a mau uso. O custo básico para
enviar uma mensagem pela Internet é essencialmente zero (...) O spam, por outro lado,
vem de caixas de correspondência que logo são fechadas, permanencendo abertas apenas
o período necessário para enviar um grande número de mensagens (...) Os congressistas
propuseram que toda publicidade seja claramente marcada para que possa ser eliminada
com facilidade e que todas as mensagens de e-mail contenham um endereço legítimo para
o retorno (8 abr, 1988, p.2).

Os instrumentos e ferramentas, entretanto, também são simples metáforas. Como metáfora


da rede ou de qualquer outro instrumento, Lévy utiliza-se do martelo para dizer que toda
ferramenta tem quatro níveis de usos. Eles se apresentam como: virtual, real, atual e de um
uso possível (no sentido em que entende os possíveis). Pois, o que lhe confere tal
possibilidade é o fato de a ferramenta ou instrumento não se restringir ao quadro técnico
previsto, pré-figurado, e que se pode dizer concluído, pré-datado, configurado ex oficio etc.
Nesse contexto, o martelo também é uma alegoria, como qualquer outra ferramenta, e
dentro de um possível quadro técnico nós é que lhe impomos o ritmo. Análise que também
atualiza McLuhan e Wiener:

De acordo com o que foi proposto por Marshall McLuhan e André Leroi-Gourhan, diz-se
às vezes que as ferramentas são continuações ou extensões do corpo. Essa teoria não me
parece fazer justiça à especificidade do fenômeno técnico (...) Mais que uma extensão do
corpo, uma ferramenta é uma virtualização da ação. O martelo pode dar a ilusão de um
prolongamento do braço; a roda, em troca, evidentemente não é um prolongamento da
perna, mas sim a virtualização do andar (...) A ferramenta cristaliza o virtual (lévy,
1996)114.

E assim como o martelo, a arte atualiza seu autor. Porque, no campo virtual, ao contrário
do que descreveu Benjamin, só o camaleão possui aura:

Enquanto portador de uma imagem a interpretar, de uma tradição a prosseguir ou a


contradizer, enquanto acontecimento na história cultural, um quadro é um objeto virtual

114
Também por essa via de análise, a metáfora marxiana de que o trabalhador virou extensão da
máquina, alegando-se sua impotência e alienação diante do processo produtivo, teria de ser redimensionada.
84

do qual o original, as cópias, gravuras, fotos, reproduções, digitalizações, colocações em


rede interativa são outras tantas atualizações. Cada efeito mental ou cultural produzido
por uma dessas atualizações é, por sua vez, uma atualização do quadro (Benjamin, 1996,
p. 60).

Um mau uso do martelo, por exemplo, com destaque para o total desvio de funções, é
quando se transforma em arma de guerra (já foi instrumento no esporte). Porém, ninguém
imagina pregar-lhe normas de utilização, como o porte legal de arma de fogo, ou até o
banimento do cotidiano do trabalho. Mas, infelizmente, ao menos num caso, a história se
mostrou vazia de metáfora ou alegoria. Hoje, questionamos somente o uso bárbaro dado
pelo líder nazista croata Dinko Sakic, em 28 de agosto de 1942, quando ordenou a matança
de 3.000 sérvios a marteladas 115. O evento teria chocado até os nazistas de Berlim116.

Então, qual seria a aura de um quadro de horror? Não é fácil imaginar um Guernica
composto a partir de instrumentos básicos da indústria civil. Contudo, como venho
argumentando, o mesmo virtual constitui o alicerce sobre o qual se sustentam as bases da
nova Sociedade Civil.

3ª PARTE

ARCABOUÇO DA SOCIEDADE CIVIL VIRTUAL

Assim, na terceira parte que se inicia, o objetivo é apresentar um projeto político de


verificação e construção daquilo que denominei de Sociedade Civil Virtual. O que
diferencia esta terceira parte da quarta e última é que, aqui, vemos as bases técnicas e na
quarta parte está a base política de sustentação deste projeto.

Vimos há pouco um apanhado de desvios e os alertas necessários, mas a busca pela


equação menos intervencionista é que continua sendo desejada e é o que diferencia
projetos autoritários, centralizados, intervencionistas, do projeto que se articula aqui117 e
que está de acordo com os princípios que a própria rede dispõe: democrático, tolerante e
participativo. Mas, na rede, que princípios impediriam, limitariam ou corrigiriam, de fato,
desvios e abusos ou simplesmente descontrole total, como querem Baudrillard e Eco?

115
Gerchmann, 8 abr 1998. Caderno 1, p. 11.
116
O documentário Execuções, pouco ético, também descreve o episódio. Mas não deixa de simbolizar
uma espécie de atualização (Lévy, 1996) do tacape do homem das cavernas.
117
Destaco projeto porque o virtual se refaz continuamente, intermitentemente.
85

Lévy relata uma experiência pessoal, em que presencia a prática do flame: quando
participava de um debate interativo com membros de vários países, um dos participantes
(músico australiano apresentado com um nome fictício, por questão ética) perdeu o
controle sobre sua própria intervenção e começou a atacar os testes atômicos franceses. O
motivo real de sua discórdia, ainda que pudesse ser partilhado por muitos, levou o
interlocutor a agredir sem contenção de vocabulário o povo francês como um todo —
alegando, inclusive, que desistira de aprender a língua francesa em virtude disso. Nesse
ponto, a reação é generalizada:

Alguns simpatizam com a causa de Wesson.


Outros lhe recordam que esse não é o tema associado a ‘mailling list’ e que existem vários
fóruns na net nos quais ele poderá falar sobre o assunto com as pessoas interessadas.
Outros respondem a estes últimos que os artistas não podem excluir a priori um tema de
discussão: os artistas sempre se envolveram nos assuntos da cidade, que se estende, hoje,
às dimensões do planeta. A discussão se acirra. Alguns participantes ameaçam retirar-se
da conferência se o fluxo de mensagens sobre o tema dos testes atômicos não diminuir.
Wesson, cada vez mais excitado, arrisca uma mensagem em que confessa ter começado a
aprender francês, mas arrepende-se, agora, do interesse por esta língua. Dessa vez,
ninguém mais está do seu lado. Ele tem de enfrentar o que os cibernautas chamam uma
‘flame’, isto é, uma salva de mensagens vindas de todos os cantos do mundo. Franceses,
belgas, suíços e canadenses de Quebec respondem a Wesson na língua de Molière. Uma
alemã, um inglês e um dinamarquês respondem igualmente em francês, solidários a uma
língua minoritária insultada.
Professores americanos tentam chamar Wesson à razão, censurando-lhe por ter faltado à
ética da net. Como muitos outros, que antes se contentavam em ler as mensagens, saio de
minha reserva para dirigir-me a Wesson (em inglês). Explico-lhe que ele comete pelo
menos duas confusões: a entre uma língua e um povo, e a entre um povo e um governo
(Lévy, 21 set 1997, p. 3 – grifos meus).

Essa experiência concreta, relatada por Lévy, no entanto, revela noções funcionais ou
estruturais ao seu pensamento e constam de uma preocupação permanente sobre o
problema da organização e participação na rede. Lévy também destaca a regulação, como
ela se apresenta e se desenvolve na rede:

As comunidades virtuais, fóruns eletrônicos ou ‘newsgroups’ são muitas vezes moderados


por responsáveis que filtram as contribuições em função de sua qualidade ou de sua
pertinência. Não é raro que os sistemas operadores que administram os servidores
86

informáticos sejam empregados por organismos públicos (universidades, museus,


ministérios etc) ou por instituições cujo interesse é manter sua reputação. Tais sistemas
operadores, que dispõem de um grande poder ‘regional’ no ciberespaço, podem eliminar
os servidores sob a sua responsabilidade ou os grupos de discussão contrários à ética da
rede — a famosa ‘netqueta’: calúnias, racismo, incitação direta à violência, proxenetismo,
uso sistemático de informações não-pertinentes etc. Isso explica, aliás, que haja tão
poucas informações ou práticas desse gênero na rede.
De resto, uma espécie de opinião públca funciona na Internet. Os melhores sites, muitas
vezes, são citados ou exibidos como exemplo em revistas, catálogos ou índices (impressos
ou on line). Vários links de hipertextos conduzem a esses ‘bons’ serviços. Em
contrapartida, são raros os links que drenam os internautas para os sites cujo valor
informativo é fraco ou empobrecedor. O funcionamento da rede, portanto, faz apelo à
responsabilidade dos fornecedores e dos usuários da informação num espaço público. Ele
recusa um controle hierárquico — portanto opaco —, global e a priori, o que seria uma
definição possível do sistema da censura ou de uma gestão totalitária da informação ou da
comunicação (Lévy, 12 abr 1998).

Ao contrário de outros sistemas ditos interativos ou participativos — múltiplas escolhas na


programação televisiva, colunas do leitor em alguns jornais —, incluindo o sistema
partidário como muitas vezes é definido (participação por consulta às bases etc), a lógica
da rede inviabiliza a dicotomia entre consulta (livre, opinativa, sugestiva etc) e deliberação
(centralizada, especializada e limitada à elite de comando). Aliás, o que realmente teria de
ser verificado, sob pena de se diagnosticar falta de lógica e coerência entre os princípios
organizativos da rede e sua resolução aplicativa: “Não podemos ter ao mesmo tempo, a
liberdade de expressão e também a seleção a priori das informações por uma instância que,
supostamente, sabe o que é verdadeiro e bom para todos, seja ela uma instância jornalística,
científica, política ou religiosa” (Lévy, 12 mar 1998).

Também seria o caso de destacar a incongruência já salientada no início do trabalho, entre


individualismo e rede; pois, como a rede pode provocar individualismo? A seguir a lógica
não poderia, e, concretamente, não produz: suas idiossincrasias teriam de ser outras.

IDIOSSINCRASIA REDE X PÚBLICO

A idiossincrasia apontada (individualismo X rede) transposta para a relação público X


privado, também se revela na dicotomia interno X externo. A rua, o externo, pertence ao
domínio do público, do espaço público, da impessoalidade, formalidade e, portanto, é
87

regulamentada. E aqui, penso, a antropologia da sociedade brasileira é útil para a análise


pública das ruas, quando confrontada ao discurso do interior da casa, em que
confortavelmente se instala o internauta. Pois,

Leituras pelo ângulo da casa ressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de


processos ou situações. Sua intensidade emocional é alta. Aqui, a emoção é englobadora,
confundindo-se com o espaço social que está de acordo com ela. Nesses contextos, todos
podem ter sido adversários ou até mesmo inimigos, mas o discurso indica que também são
‘irmãos’ porque pertencem a uma mesma pátria ou instituição social. Leituras pelo ângulo
da rua são discursos muito mais rígidos e instauradores de novos processos sociais. É o
idioma do decreto, da letra dura da lei, da emoção disciplinada que, por isso mesmo,
permite a exclusão, a cassação, o banimento, a condenação (Damatta, 1985, p. 16).

Assim, a rua não deveria ser o reino da baderna, do domínio do ninguém, como
comumente se diz. E, para o caso desse trabalho, as ruas de acesso à rede (infovias ou
estradas da informação) também deveriam ser tidas como constituições públicas — ainda
que as dificuldades econômicas para se definir os níveis de acesso sejam maiores do que as
técnicas. Mas, tal como as avenidas centrais de nossas capitais, a rede também capitaliza
desvios de comportamento, e descumpre a netqueta:

Em casa somos todos, conforme tenho dito, ‘supercidadãos’ (...) Mas e na rua? (...) Somos
rigorosamente ‘subcidadãos’ (...) Jogamos o lixo para fora de nossa calçada, porta e
janelas; não obedecemos às regras de trânsito, somos até mesmo capazes de depredar a
coisa comum, utilizando aquele célebre e não analisado argumento segundo o qual tudo
que fica fora de nossa casa é um ‘problema do governo’! Na rua a vergonha da desordem
não é mais nossa, mas do Estado. Limpamos ritualmente a casa e sujamos a rua sem
cerimônia ou pejo...Não somos efetivamente capazes de projetar a casa na rua de modo
sistemático e coerente, a não ser quando recriamos no espaço público o mesmo ambiente
caseiro e familiar (...) Do mesmo modo, parece impossível continuar operando com um
sistema político onde os acordos pessoais ultrapassam sempre (e no momento o mais
preciso) as lealdades ideológicas e o sistema econômico funciona com duas lógicas
(Damatta, 1985, pp. 16-7).

É importante destacar que a não-transposição do privado no público é originário do


domínio do espaço público (da rua, como diz Damatta) e, portanto, não constitui uma
idiossincrasia inerente ao desenvolvimento da rede. Sem dúvida, a idiossincrasia da
88

netqueta pertence a um domínio maior. Contudo, andar na rede é sempre um ato de


navegação pública. Wesson que o diga.

Em suma, partindo da estrutura da cidadania no Brasil, Roberto Damatta argumenta em


favor de uma distinção radical entre as culturas brasileiras: a cultura da rua (do espaço
público) para os letrados, revolucionários?, e a cultura da casa (do privado) para os
incautos e incultos. Em suma: os pobres não fazem revolução e nem são cidadãos porque
não se apropriam do discurso das ruas, que é o discurso do poder118. O Brasil não produziu
seus rousseaus do meio-fio:

(...) No caso da nossa sociedade — as camadas dominadas, inferiorizadas ou ‘populares’,


conforme gostamos de dizer: as massas trabalhadoras, os migrantes da zona rural, os
empregados domésticos, os marginais do mercado de trabalho, as crianças, as mulheres e
os líderes religiosos de seitas ou de religiões marginais e efetivamente populares,
tenderiam a usar como fonte para sua visão de mundo a linguagem da casa (...) Não é por
acaso que tal perspectiva, onde a casa e sua ética são o ponto exclusivo de uma visão de
sociedade, tenda a ser tomado como um discurso pré-político ou politicamente ‘alienado’
ou meramente ingênuo (...) Ora, isso é muito diferente dos discursos dos segmentos
dominantes que tendem a tomar o código da rua e assim produzem uma fala totalizada,
fundada em mecanismos impessoais (o modo de produção, a luta de classes, a imposição
dos mercados internacionais, a subversão da ordem, a lógica do sistema financeiro
capitalista, etc...), onde leis — e jamais entidades morais como pessoas — são os pontos
focais e dominantes (...) Não é pois, ao acaso que, quando Gilberto Freyre escreve seus
originalíssimos Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, ele estava certamente
estudando um dos espaços mais significativos de nossa estrutura social, espaços que
reproduziam em suas divisões internas a própria sociedade com seus múltiplos códigos e
perspectivas” (idem, pp. 16, 42-6).

Vimos em Damatta que o espaço da rua é controlado, enquanto espaço público tradicional,
e que a idiossincrasia mais importante se deve ao fato de não desenvolvermos uma ética de
convívio público satisfatória. É a metáfora das infovias. Porém, para Paul Virilio, é aí que
se dá o convívio da liberdade e da libertinagem, pois,

O espetáculo da rua é a circulação, o pilgrim’s progress, movimento de progressão, de


procissão, simultaneamente viagem e aperfeiçoamento, marcha equiparada ao progresso
rumo a alguma coisa melhor, peregrinação que inundou a Idade Média (...) A interrupção

118
Vale destacar que os crimes do colarinho branco, os mais nefastos e prejudiciais aos interesses
públicos, são cometidos justamente por essa elite econômica, cultural e técnica.
89

do fluxo (do progresso), a brusca ausência de motricidade cria, inelutavelmente, uma


corrupção quase orgânica das massas. ‘Espaços neutros, espaços sem gênero’, escreve
Balzac, ‘onde todos os vícios, todos os infortúnios de Paris encontram asilo’
(Virilio, 1996, pp.22-23).

Por outro lado, a regulação do espaço público não limita e inibe a liberdade necessária à
participação política? E essa não seria outra idiossincrasia presente no público e em sua
regulação que, se imposta apressadamente à rede, não se traduziria por mera censura?

Pois bem, desenvolver essas noções é o objetivo da quarta e última parte do capítulo.

4ª PARTE

O ARTEFATO POLÍTICO

Nesta quarta e última parte do capítulo abordarei o que se poderia designar de bases
políticas de sustentação da Sociedade Civil Virtual. Deve-se ter em mente, entretanto, que
se houve uma digitalização da política (palanques eletrônicos substituindo o debate na
praça pública), em sentido complementar, muitas das idiossincrasias políticas invadiram a
discussão do virtual. Em essência, se está claro o fenômeno apontado acima, devemos
tomar por base a politização do virtual119.

Assim, para a discussão que segue, quero reter a indicação de que o cidadão não é um
passivo consumidor do cotidiano da política. Isto é, as referências a conceitos, teorias ou
ideologias políticas de que tratarei a seguir devem ser tidas como pistas, indicações e
sugestões de conteúdos, questões e referências políticas que não se esgotam; mas que, em
sentido inverso, podem, enquanto constituintes de um pano de fundo da análise da rede e
enquanto espaço público, ser abordadas num plano de aproximação ao conceito de
sociedade civil que vem dos clássicos. Daí que se trata de uma questão múltipla.

SOCIEDADE CIVIL E TOLERÂNCIA

Diferentemente do pensamento jusnaturalista, em que a Sociedade Civil não se distinguia


da sociedade política (ou Estado: Hobbes, Locke e Rousseau empregavam-nas como

119
E, assim, ter claro que se a tecnologia se expande para reservas, antes estritamente políticas, o
complementar também deve ser observado, ou seja, que os problemas, as idiossincrasias, os conflitos, as
indefinições ou postulados, conceitos, concepções e teorizações da ciência política e da prática política
cotidiana ou partidária, de grupos etc, devem ser devidamente dimensionadas na experienciação da
tecnologia (ou simplesmente digitalização da política).
90

sinônimos), atualmente a Sociedade Civil está vinculada à idéia oposta de Estado — mas
com o qual mantém relações mais ou menos conflituosas, contrapostas e de
complementaridade. Mesmo guardando referências genéricas do marxismo, a Sociedade
Civil de hoje destaca duas tensões: a primeira entre estrutura e superestrutura e, a
segunda, no interior da própria superestrutura. Para a fixação do conceito de Sociedade
Civil na análise atual, Bobbio destaca aspectos básicos:

Na contraposição Sociedade Civil-Estado, entende-se por Sociedade Civil a esfera das


relações entre indivíduos, entre grupos, entre classes sociais, que se desenvolvem à
margem das relações de poder que caracterizam as instituições estatais. Em outras
palavras, Sociedade Civil é representada como o terreno dos conflitos econômicos,
ideológicos, sociais e religiosos que o Estado tem a seu cargo resolver, intervindo como
mediador ou suprimindo-os; como a base da qual partem as solicitações às quais o sistema
político está chamado a responder; como o campo das várias formas de mobilização, de
associação e de organização das forças sociais que impelem à conquista do poder político
(...) Assim entendidos, Sociedade Civil e Estado não são duas entidades sem relação entre
si, pois entre um e outro existe um contínuo relacionamento (1993, p. 1210).

Como Bobbio já apontou, nas situações de conflito, de contraposição, destaca-se em


plenitude o uso corrente da Sociedade Civil:

A contraposição entre Sociedade Civil e Estado tem sido freqüentemente utilizada com
finalidades polêmicas, para afirmar, por exemplo, que a Sociedade Civil move-se mais
rapidamente do que o Estado, que o Estado não tem sensibilidade suficiente para detectar
todos os fermentos que provém da Sociedade Civil, que na Sociedade Civil forma-se
continuamente um processo de deterioração da legitimidade que o Estado nem sempre tem
condições de deter (...) Nos momentos de ruptura, se exalta a volta à Sociedade Civil, tal
como os jusnaturalistas exaltavam o retorno ao Estado de natureza (1993, pp. 1210-1211).

Mas ainda que se tome o ponto de ruptura, o que se espera da volta (ou reviravolta) da
Sociedade Civil, agora reorganizada, não é a observância da lógica da guerra, de todos
contra todos, da regra da sobrevivência do cada um por si. Espera-se, isto sim, uma nova
organização. Pois, como destaca Bobbio, a violência não está em seu equilíbrio.

Evidentemente que não se observa o domínio dos arcana imperii, mas além disso também
não se verifica a lógica violenta — latinizada desde tempos memoráveis: vim vi repellere
91

licet (repulsa à violência originária e injusta120). Aqui, o termo contraposto à força


organizada para o controle ou repressão mantida pelo Estado é o desbaratamento (ou
reformatação) da própria estrutura do poder e que, desde Montesquieu, assenta-se numa
estrutura tripartite:

A divisão dos poderes e toda a discussão que houve para a sua realização e a dogmática
jurídica nascida com o seu advento são o resultado da luta entre as sociedades civil e
política de um determinado período histórico, com um certo equilíbrio instável das classes,
determinado pelo fato de que certas categorias intelectuais (a serviço direto do Estado,
especialmente na burocracia civil e militar) são ainda muito ligadas às classes dominantes
(...) Unidade do Estado na distinção dos poderes: o Parlamento mais ligado à Sociedade
Civil, o poder Judiciário entre o governo e o parlamento representa a continuidade da lei
escrita (até mesmo contra o governo). Naturalmente, todos os três poderes são também
órgãos da hegemonia política, mas em medidas diversas: 1) Parlamento; 2) Magistratura;
3) Governo (Gramsci, 1990, pp. 107-108).

O equilíbrio instável na organização do poder e na própria organização social, de que fala


Gramsci, pode fazer aflorar dois tipos de sentimentos populares e suas conseqüentes
manifestações públicas. O primeiro é o individualismo, presente no homem-massa121, já
determinado pelo provérbio romano (Senatores boni viri senatus mala bestia122) e, o
segundo, é o desassossego diante do não cumprimento do contrato legal, previsto na
tripartição clássica dos poderes, e a instabilidade política daí decorrente:

Seria bom notar como as incorreções da administração da justiça dão ao público uma
impressão especialmente desastrosa: o aparato hegemônico é mais sensível neste setor, ao
qual podem ser levados mesmo os arbítrios da polícia e da administração política (...) A
concepção do direito deve ser liberada de qualquer resíduo de transcendência e de
absoluto: praticamente de qualquer fanatismo moralista. Todavia não pode partir do ponto
de vista de que o Estado não ‘pune’ (se este termo for reduzido a seu significado humano),
mas somente luta contra a ‘periculosidade’ social (...) pois criadas as condições em que
um determinado modo de vida é ‘possível’, a ‘ação ou omissão criminosa’ deve ter uma
sanção punitiva, de alcance moral e não somente um julgamento de periculosidade
genérica (idem, pp. 108,109 e 110).

120
Bobbio, 1994, p. 95.
121
Gramsci, 1990, pp. 113-115.
122
Gramsci, 1990, p. 113.
92

Na longa citação, queria apontar como Gramsci vê a ligação entre os poderes constituídos,
a Sociedade Civil e a forma organizativa decorrente daí. E o que é claro é que não se
vislumbra a ausência de alguma forma de organização ou de poder. Ao contrário, Gramsci
sugere uma revisão da dogmática jurídica:

Na concepção do direito deveriam ser incorporadas também as atividades ‘premiadoras’


de indivíduos, de grupos etc.; a atividade elogiável e meritória é premiada assim como a
atividade criminosa é punida (e punida de modo original, fazendo a opinião pública intevir
como sancionadora) (idem, p. 110)123.

Gramsci também destaca a possibilidade de maior mobilização e participação popular da


Sociedade Civil organizada como um todo, no interior da estrutura do poder que se
encontra engessado ou quase paralisado em decorrência da divisão clássica:

Conseqüentemente, a reivindicação popular de elegibilidade de todos os cargos,


reivindicação que é o extremo do liberalismo e, ao mesmo tempo, sua dissolução
(princípio da Constituinte permanente etc.; nas repúblicas, a eleição do chefe do Estado de
tempos em tempos dá uma satisfação ilusória a esta reivindicação popular elementar)
(idem, p. 108).

Pois bem, não poderia ser mais clara a estreita inter-relação entre governo, poderes e
Sociedade Civil: seja na forma da participação popular por meio dos mecanismos
consagrados na democracia e pelo liberalismo, seja na requisição de novos direitos, ou
ainda na formulação de nova concepção de ordenamento legal e social. Mas não se entenda
de forma nenhuma que Gramsci não quisesse uma transformação profunda, radical e
revolucionária (vale dizer violenta) da sociedade; quero dizer somente que o conceito
moderno de Sociedade Civil (mais herdeiro de Gramsci do que de Marx, que o dirige para
a estrutura econômica) desatrela-se da rigidez das forças que regulam o Estado124 —
forças estas basicamente violentas.

123
E se Gramsci parte de Hegel para definir e alargar o conceito de sociedade civil (Bobbio, 1982, p.
34), quando apresenta sua visão sobre o direito foge completamente de sua influência. Pois Hegel definia o
direito à propriedade como direito ao direito (Bobbio, 1989, p. 64).
124
“...bloco histórico’ (...) representa um sistema conceitual complexo, no qual se explicam dois
momentos dicotômicos: o principal, entre estrutura e superestrutura; e o secundário, entre os dois momentos
superestruturais, o das instituições do consenso e o das instituições da força. E de que a ponte entre esses
dois momentos é a sociedade civil” (Bobbio, 1982, p. 57 - grifos meus).
93

A TOLERÂNCIA POLÍTICA

Libertada temporariamente da violência organizadora e fundadora do Estado (passagem do


estado de natureza para a constituição do Estado Moderno), a Sociedade Civil tem na
violência somente um momento primário, pois espera-se a consolidação e ampliação da
própria Sociedade Civil, uma reforma em sentido forte, como diz Bobbio (1982, p. 47).
Frente ao leninismo, por exemplo, a alteração é radical:

a) para Gramsci, o momento da força é instrumental e, portanto, subordinado ao momento


da hegemonia, enquanto em Lênin, nos escritos da revolução, ditadura e hegemonia
procedem de pari passu e, de qualquer modo, o momento da força é primário e decisivo; b)
para Gramsci, a conquista da hegemonia precede a conquista do poder, enquanto em
Lênin a acompanha e mesmo a sucede (...) ‘Sociedade Civil’ em Gramsci designa um
momento da superestrutura e não da estrutura, e que representa não o momento da
superestrutura que parece ser o reflexo mais imediato da estrutura, isto é, o momento da
força ou da ação política, mas sim o momento em que a estrutura se reflete e, ao refletir-se
torna-se meio, instrumento do movimento histórico (Bobbio, 1982, p. 47-60).

E se o momento da força é primário e instrumental, vale frisar que a busca pela hegemonia,
derivada do consenso, parte da noção da não-violência, colocando-se a esta altura como
objetivo-fim. A não-violência, o consenso, que Gramsci chamou de intransigência, posto
que se opõe à mera desorganização que adviria do fim da regulagem das forças do Estado:

A intransigência é um atributo necessário do caráter. É a única prova de que uma


determinada coletividade existe como organismo social vivo, isto é, tem um objetivo, uma
vontade única, uma maturidade de pensamento (...) Não basta: é preciso que cada
componente do organismo esteja convencido da racionalidade do objetivo, para que
ninguém possa refutar a observância da disciplina, para que aqueles que querem que a
disciplina seja observada possam exigi-lo como cumprimento de uma obrigação livremente
contratada e, mais ainda, uma obrigação que o próprio recalcitrante ajudou a estabelecer
(...) Só se pode ser intransigente na ação se na discussão se foi tolerante e os mais
preparados ajudaram os menos preparados a acolher a verdade, e as experiências
individuais foram colocadas em comum, e todos os aspectos do problema foram
examinados, e nenhuma ilusão foi criada (Gramsci, 1990, pp. 159, 160-161).

Para Bobbio, a idéia migra para a fusão entre tolerância negativa e intolerância positiva:

A tolerância positiva consiste na remoção de formas tradicionais de repressão; a


tolerância negativa chega mesmo à exaltação de uma sociedade anti-repressiva,
94

maximamente permissiva (...) Não é que a tolerância seja ou deva ser ilimitada. Nenhuma
forma de tolerância é tão ampla que compreenda todas as idéias possíveis. A tolerância é
sempre tolerância em face de alguma coisa e exclusão de outra coisa (...) O único critério
razoável é o que deriva da idéia mesma de tolerância, e pode ser formulado assim: a
tolerância deve ser estendida a todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância,
ou, mais brevemente, todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes (1992, pp. 212-213).

Análise que se confirma em Gramsci:

Nenhuma tolerância com o erro, com o despropósito. Quando se está convencido de que
alguém está errado — e este alguém foge da discussão, se recusa a discutir, argumentando
que todos têm o direito de pensar como quiserem —, não se pode ser tolerante. Liberdade
de pensamento não significa liberdade para errar ou cometer despropósitos. Somos contra
a intolerância que é um fruto do autoritarismo e da idolatria somente, porque impede os
acordos duráveis, porque impede a fixação de regras de ação obrigatórias moralmente
porque todos participaram livremente do processo em que elas foram fixadas. Porque esta
forma de intolerância leva necessariamente à transigência, à incerteza, à dissolução dos
organismos sociais (Gramsci, 1990, p. 161).

Bobbio analisa, teórica e historicamente, essa perspectiva consensual (ética) de ver a


política, como sendo a que deu origem ao Estado Democrático de Direito, em que há
anterior fixação das regras do jogo — a exemplo da previsão de que não há crime sem
prévia cominação legal, lei anterior que o defina ou de que a lei só pode retroagir e
alcançar casos passados se for para benefício do réu (in melius) e nunca para prejudicar e
agravar a decisão judicial (in pejus). Coincide também com o aparecimento do cidadão
moderno, único objeto da defesa das regras democráticas, na verdade como sujeito de
direitos não disponíveis pela força do Estado, enfim, o reino do status legal:

A passagem do Estado autocrático para o Estado democrático aconteceu, tecnicamente


falando, mediante o processo de constitucionalização do direito de resistência, que
transformou o direito puramente natural de resistência à opressão, cuja legitimação é
sempre póstuma, dependendo do resultado, num direito positivo à oposição, cuja
legitimidade é preconstituída e portanto lícita, qualquer que seja o resultado. Ao longo do
mesmo caminho e no mesmo período histórico em que o direito público externo
transformou pouco a pouco o rebelde (rebellis) em inimigo (hostis), através do direito de
guerra (ius belli), o direito público interno foi transformando o rebellis em civis (cidadão),
através das regras do jogo democrático que permitem às diversas partes a contenda
95

pacífica entre si, para alcançar metas que fora dessas regras não seria possível alcançar a
não ser através da violência (Bobbio, 1994, p. 55).

Esta configuração da nova sociedade, sem classes por assim dizer, porque é não-violenta e
com franco declínio da violência perpetrada pelo Estado125, em que se caminha do dissenso
em direção ao consenso regulado coletivamente, lembra Arendt quando diz da instauração
de um novo contrato por meio da não-violência – como vimos. O reino da violência
(necessidade, para Marx126) é também o reino da não-democracia. E onde não prospera a
democracia crescem os sistemas e os regimes centralizados em torno do próprio Estado,
podendo haver o florescimento de regimes e sistemas autoritários, autocráticos etc. Em
oposição, o fortalecimento das regras democráticas faz prosperar a dinâmica da Sociedade
Civil; em contraste, a Sociedade Civil sai fortalecida com a preservação do dissenso na
preparação do debate, na apresentação dos argumentos, e na finalização da ação
consensual.

Bobbio apresenta a regra da maioria (hegemonia em Gramsci127, em que se busca o


consenso) para diferenciá-la da maioria absoluta ou unanimidade, em que se perde o
respeito e a garantia dos interesses minoritários:

A verdade é que a democracia não se funda apenas no consenso nem tampouco no


dissenso, mas sobre a simultânea presença de consenso e dissenso, ou mais precisamente
sobre um consenso que não exclua o dissenso e sobre um dissenso que não exclua nem
torne vão o consenso, dentro das regras do jogo (...) Os juristas consideram como vício de
consenso128 num negócio jurídico a violência, entendida como ameaça de um mal injusto e
notório (...) Antes de tudo, a regra segundo a qual num corpo político se considera válida
a deliberação que goza do consenso da maioria é apenas uma regra de procedimento. Ela
não diz nada sobre o que se deve decidir mas limita-se a dizer como deve decidir (...) Em
segundo lugar, o princípio da maioria apóia-se na presunção de que aquilo que agrada à

125
Para Bobbio, a tese do fim do Estado é possível somente quando se passa do reino da violência para
o estado social da não-violência; e não propriamente do reino da necessidade para a liberdade (1994, p. 111).
“A sociedade sem Estado, que Gramsci chama de ‘sociedade regulada’, resulta assim da ampliação da
sociedade civil e, portanto, do momento da hegemonia, até eliminar todo espaço ocupado pela sociedade
política (Bobbio, 1982, p. 50).
126
Ou como diz o ditado popular: em casa que não tem pão, todo mundo fala e ninguém tem razão.
127
“...a função resolutiva que Gramsci atribui à hegemonia com relação à mera dominação revela, com
toda a força, a posição preeminente da sociedade civil, ou seja, do momento mediador entre a estrutura e o
elemento superestrutural. A hegemonia é o momento da vinculação entre determinadas condições objetivas e
a dominação de fato de um determinado grupo dirigente: esse momento da vinculação ocorre na sociedade
civil” (Bobbio, 1992, pp. 48-49).
128
No direito privado, o consenso viciado também é observado nas chamadas cláusulas draconianas,
em que se impinge prejuízos ou deveres abusivos a uma das partes.
96

maioria corresponde ao interesse coletivo mais do que aquilo que agradou à minoria
(1994, pp. 48, 49, 54).

Quando o dissenso é substituído, ainda que em nome da extrema competência e preparo de


uns sobre outros, quando o debate não prospera, ou se prospera e nele prospera a razão de
um só ou de poucos, indiferentemente acolhida dentre tantos outros argumentos válidos e
igualmente competentes e capazes de desarticular outros tantos argumentos tidos como
competentes, institui-se o discurso competente. Quando as regras do jogo democrático,
muitas vezes, são as regras do silêncio, subordina-se a verdade ao discurso competente.
Quando a fala de poucos sobrepõe-se à fala de muitos, sem razão, sem lógica, a não ser a
da força, que é a última razão dos reis129, por mais competente que a fala de poucos possa
ser ou parecer que é, instaura-se o domínio de poucos, o reino da não-democracia, ou seja,
o domínio da violência. Quando se instiga a violência em nome da realidade, é porque já se
subtraiu todo o sentido de realidade que a violência ostenta e externa. E quando se ostenta
o discurso da violência, até mesmo a violência do discurso perde eficácia, porque já se
tornou falácia, um obscurantismo incapaz de falar da realidade, porque estranhamente a
violência se tornou bandeira até mesmo dos heróis do romantismo130.

E quando promovemos o domínio da violência, do poder de pura opressão, ainda que


mascarado pelo discurso minoritário que alega competência, um Bismarck para
impulsionar a revolução, é que se demonstra um discurso puramente ideológico e não
dialógico, como demonstra a sinópse de Chauí, pois, “não é qualquer um que pode dizer a
qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância” (1990, p.
07)131.

Finalizando, quando destaquei a idéia da tolerância para discutir o conceito de Sociedade


Civil, tive apenas a intenção de apresentar a urgência de um debate sobre a participação
política popular em que o realismo político, tão presente na viciada prática política
brasileira132, não seja tido como a única via (no fundo, ausência dela) de se buscar o

129
Ribeiro, 1993.
130
Como vimos em Ribeiro, 1993, p. 142.
131
O mais interessante é que esta comunicação (fala) de Chauí havia sido proibida de ser realizada na
29ª reunião da SBPC, pelo próprio poder central, julgando-se obviamente mais competente do que a autora.
132
Veja-se a já consagrada, mas deturpada, máxima de que democracia é eu mandar em você e
ditadura é você mandar em mim.... Certamente, não há um único resquício de prática democrática ou
tolerância.
97

consenso, tendo-se em conta as regras do jogo democrático. Conceitos nem sempre


associados, a exemplo dos textos e análises de Norberto Bobbio, e se mesmo em Bobbio
esta ilação aparece presente, é porque procurei articulá-la nessa parte do trabalho.

Por fim, numa última observação neste capítulo, no tocante à rede, a Sociedade Civil
virtualizada pela tolerância, queria destacar que nesse meio-fim da comunicação de massas
não há possibilidade de nenhum tipo de censura, ainda que sob a aura do discurso ou
argumento mais competente. Afinal, não poderia haver falta de consenso maior do que
impedir que num meio aberto –Internet - qualquer um que possa dizer a qualquer outro
qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. Para a verificação da
tolerância, como vimos, a tranqüilidade repousa no trabalho responsável (socialmente) de
cada um.

Pois bem, tendo apresentado algumas das bases em que se assenta a Sociedade Civil
Virtual, com seus dramas sociais, idiossincrasias políticas, problemas globais e
contradições técnicas, encaminho a discussão para a realidade da política brasileira –
especialmente nos momentos em que sofre influências e interferências decorrentes do
emprego da tecnologia. Ou, melhor dizendo, veremos a seguir como algumas questões
inerentes à sustentação da organização do poder, da articulação política acabam por migrar
para o interior dessa outra forma e arte de se fazer, praticar, conjecturar e articular a
política. Aqui, brevemente, chamo a atenção para os fatores determinantes da política real
que se instalam, reproduzem e co-produzem a vivência, convivência e excludência
verificadas nessa época de virtualização da política. E destaco o caso concreto das eleições
de 1988 – já virtualizadas. Por fim, ressalto que destaquei o período eleitoral porque nesses
momentos as forças políticas estão mais expostas e visíveis, sobretudo os meios e
instrumentos técnicos desenvolvidos, aprimorados e aplicados à própria prática política.
98

3º CAPÍTULO

IDIOSSINCRASIAS DA RAZÃO IMAGÉTICA:


Daguerre e o Palanque Eletrônico

Estilizar é deformar o real, desrealizar

O capítulo propõe um debate sobre a mídia televisiva, especialmente no que diz respeito à
campanha eleitoral de 1998 no Brasil – quando se promoveu o uso extensivo do recurso
digital. Assim destaco, inicialmente, algumas questões de fundo: o chamado palanque
eletrônico interfere na condução da campanha? É capaz de mudar o ânimo do eleitor,
acelera ou retarda a participação popular? Há uma razão imagética por traz dos processos
políticos? O eleitor dispõe de meios para diagnosticar sua interferência?

O objetivo do capítulo, portanto, é apresentar um exemplo vivo da digitalização da política.


Acredito, ainda, que é uma oportunidade de referendar algumas questões teóricas
suscitadas anteriormente.

Apenas para efeito didádico, dividi o capítulo em três partes. A primeira, mais teórica e
histórica, diz respeito a algumas noções acerca da imagem e da chamada razão imagética:
a conceituação teórica se deve à necessidade de se discutir a implementação do palanque
eletrônico e da expansão deste pelo uso da Internet (4º capítulo); na segunda, mais
direcionada à conjuntura nacional, apresento o desenvolvimento dos palanques eletrônicos
e virtuais como surgiram nas eleições de 1988. E, concluindo o capítulo, na terceira parte,
desenvolvo a ideía de um plebiscito virtual, como possibilidade de articulação entre o que
chamei de razão midiática (aplicada, revista, reformulada, ampliada, transformada) e o
mundo virtual.

Sobre a metodologia empregada, creio que cabe uma pequena explicação: como se trata da
relação entre mídia e política, há várias referências a matérias de jornais, artigos de críticos
especializados, programação de TV, recursos técnicos etc. Pois, com sua utilização,
busquei destacar de dentro da mídia (e veículos adjacentes, como cinema) a visão, relação,
comunicação etc, que os veículos de comunicação projetam para a política e suas
interfaces, como as questões de poder, representação, democracia etc. Mas,
preferencialmente, a ilação entre mídia e política foi sustentada com referenciais teóricos.
99

Com isto espero desfazer a noção de que as referências bibliográficas são excessivamente
prosaicas.

1ª PARTE

DAGUERREÓTIPO: A VISÃO SACRÍLEGA

A primeira revolução, ou grande virada, em termos de imagem, foi promovida pela


invenção e aplicação do daguerreótipo. A primeira experiência sob o efeito do
aprisionamento da imagem ainda guarda um sentido expresso no imaginário popular e/ou
coletivo: no popular, teme-se o aprisionamento da alma, e no coletivo ocorre a perda da
aura (esse sentido será problematizado a seguir).

O daguerreótipo é um aparato que serve à retenção de imagens e que evoluiu até a máquina
fotográfica —retendo imagens planas e inanimadas, ao contrário do cinema, da TV e do
vídeo (retendo imagem e som) e que, por sua vez, evoluíram para telas planas com
tecnologia digital de alta definição como as utilizadas em telões, e que também servem aos
desígnios dos palanques eletrônicos.

O Brasil, pelo menos até o momento inaugural da invenção, acompanhou de perto a


aplicação do aparato. Seis meses depois de sua invenção, a técnica já estava disponível nos
trópicos: “Janeiro de 1840. Seis meses depois de inventada na França, a daguerreotipia (técnica
fotográfica que reproduz as imagens sobre uma placa de cobre revestida em prata) chegou ao Brasil
por meio da ação do abade francês Louis Compte” (Grilloa, 1998).

O traço da chamada (razão) revolução imagética estaria na base — o aprisionamento da


alma é a perda da aura —, como acentua Walter Benjamin, retomando o debate trazido
pelo desenvolvimento fotográfico e que, naquela época, seria diabolizado pelo jornal
conservador Leipziger Anzeiger:

Querer ‘fixar efêmeras imagens de espelho não é somente uma impossibilidade, como a
ciência alemã o provou irrefutavelmente, mas um projeto sacrílego. O homem foi feito à
semelhança de Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhum mecanismo
humano. No máximo o próprio artista divino, movido por uma aspiração celeste, poderia
atrever-se a reproduzir esses traços ao mesmo tempo divinos e humanos, num momento de
suprema solenidade, obedecendo às diretrizes superiores do seu gênio, e sem qualquer
artifício mecânico’. Aqui aparece, com todo o peso de sua nulidade, o conceito filisteu de
100

‘arte’, alheio a qualquer consideração técnica e que pressente seu próprio fim no advento
provocativo da nova técnica (Benjamin, 1985, p. 92).

A alma de Deus não poderia ser presa, e nem a dos homens-mortais, como ainda quer o
imaginário popular. Por isso, a luneta de Galileu Galilei — que, revelando-se descobridora
de verdades, remeteu-nos (nós seres humanos, investidos ou não no Santo Ofício) para
nosso devido lugar — mandaria seu autor para o ostracismo e penitência. Também nesse
caso, o instrumento de visibilidade incomodou as estruturas de poder: a verdade é o vetor
que incomoda o poder133. Porque a verdade é saliente, e a saliência conduz à transparência,
visibilidade, exposição pública de seu ventre, de seu cerne, de sua aura, de sua alma134.

Por outro lado, abrindo um breve parêntese, a descoberta também facilmente chega ao
fetiche. Nesse sentido, é interessante notar o encanto provocado nos índios brasileiros
quando os espelhos dos colonizadores refletiram suas primeiras imagens faciais — depois
é que se desenvolveu o medo de que a alma ficasse excessivamente volátil. Um fetiche que
teria evoluído e estaria encarnado nas criações de Walt Disney, segundo críticos de época.
Mas o que o diferencia, ainda segundo a crítica de época, é que o fetiche hoje em dia
estaria ainda mais brutalizado. E eles próprios reconheceriam o perigo a que se expunham,
pois os entusiastas de Disney evitariam a qualquer custo (no uso livre da figura de
linguagem) um pato com laranja na Disneylândia:

Os responsáveis do livro serão definidos como soezes e imorais (enquanto o mundo de


Walt Disney é puro), como arquicomplicados e enredadíssimos na sofisticação e
refinamento (enquanto Walt é franco, aberto e leal), membros de uma elite envergonhada
(enquanto Disney é o mais popular de todos), como agitadores políticos (enquanto o
mundo de W. Disney é inocente e reúne harmoniosamente todos em torno de colocações
que nada têm a ver com os interesses partidários), como calculistas e amargurados
(enquanto que Walt D. é espontâneo e emotivo, faz rir e ri), como subversivos da paz do
lar e da juventude (enquanto W. D. ensina a respeitar a autoridade superior do pai, amar
seus semelhantes e proteger os mais fracos), como antipatrióticos (porque sendo

133
“O estorvo é que a verdade fatual, como qualquer outra verdade, pretende peremptoriamente ser
reconhecida e proscreve o debate, e o debate constitui a própria essência da vida política. Os modos de
pensamento e de comunicação que tratam com a verdade, quando vistos da perspectiva política, são
necessariamente tiranizantes; eles não levam em conta as opiniões das demais pessoas, e tomá-las em
consideração é característico de todo pensamento político” (Arendt, 1992, p. 299).
134
O ijime, ditado popular japonês, diz que prego que salta da madeira deve levar pancada.
Estranhamente, o provérbio japonês explica o aumento da violência infantil e o associa à transparência. Nas
palavras de um menino assassino de 14 anos: ...o sistema educacional japonês massacra os indivíduos,
uniformiza as personalidades e transforma a vida das pessoas em “existências transparentes” (Aith, 1998).
101

internacional, o sr. Disney representa o melhor de nossas mais caras tradições autóctonas)
e por fim, como cultivadores da “ficção-marxista”, teoria importada de terras estranhas
por “facinorosos forasteiros” e renhidas com o espírito nacional (porque tio Walt está
contra a exploração do homem pelo homem e prevê a sociedade sem classes do futuro)
(Dorfman, 1980, pp. 18-19).

Não há, é certo, figura, entidade ou personagem que melhor represente a era da mídia do
que as criações de Walt Disney. Porém, por certo e também por sorte, não se vêem mais
críticas como as que acabei de enunciar. Felizmente, é passado o tempo do terror cultural.

Também não é o caso de relermos o Pato Donald e nem de recompormos a própria história
da aura perdida (sepultada pela pá de cal de Walt Disney), mas de atentarmos para a
atualização de seu debate, de seu sentido mais expresso ou significado mais atual. É como
se retomássemos o processo de desenvolvimento das formas de comunicação, mas agora
por meio do elo que se estabelece entre nós, o outro e o meio que empregamos para a
tentativa de proximidade e expressão de sentido para o outro, para nós e sempre diante do
meio. Isto é, corresponde a tratar novamente da aura, esta sim uma companhia de sempre,
apesar das mudanças e atualizações135. Desde que por aura se entenda a própria
identidade, no caso de nossa exposição/aparição diante dos outros, ou simplesmente
interface com os próprios meios utilizados. Daí que essa aurística (não filistéica, como em
Benjamin) não passa de uma constante recriação136:

O uso das medidas, formatos e cores da anatomia humana para verificação de identidade
tem nome: é a biométrica. Ou, para quem prefere algo mais poético, aura digital. Esses
sistemas estão deixando de ser coisa de filme. Um teclado especial (www. keitronic.com)
pode escanear impressões digitais. Um sistema de reconhecimento de voz (www.
veritelcorp.com) analisa a voz de uma pessoa em um minuto. Outros sistemas:
verificação da íris, reconhecimento de rostos (www.miros.com) e de formato das mãos. A
maioria desses sistemas já funciona e está pronta para instalação em computadores,
caixas automáticos, máquinas de ponto etc. A biométrica parece que empresta olhos,
ouvidos e tato a um mundo de máquinas cegas e surdas que têm por tarefa reconhecer e
confirmar a identidade das pessoas. Pode ajudar a resolver problemas comuns no mundo
informatizado, em que números e códigos dão acesso ao crédito e à identidade de qualquer
desprevenido (Erciliaa, 1998).

135
Emprego os termos atual e atualização, como em Lévy (1996).
136
Em Lévy (1996), vale frisar, a (re)criação é própria do plano virtual.
102

O que não deixa de ser a nova face do antigo antropomorfismo. Desde o lendário filme O
dia em que a terra parou e seu robô-humanóide, de 1950, até Blade Runner e seus
replicantes — seguido de O exterminador do futuro —, a ficção científica projeta nossa
identidade naquilo que construímos ou um dia viermos a construir. Na brincadeira de
Deus-Tecno, as criações são feitas à imagem e semelhança dos homens, como destacam
há muito tempo os manuais de antropologia137.

A AURA DE UM FILISTEU

E hoje, quando se institui o debate sobre a tecnologização política, não estaríamos


presenciando o fim de uma outra era desse mesmo discurso filisteu aurístico138? Ainda com
Benjamin, vemos que a resposta é sim e não, pois mesmo no auge do debate da primeira
metade do século XIX, algumas vozes distariam desse discurso filisteu:

Muito diferente é o tom com que o físico Arago defendeu a descoberta de Daguerre no dia
3 de julho de 1839, na Câmara dos Deputados. A beleza desse discurso vem do fato de que
ele cobre todos os aspectos da atividade humana. O panorama por ele esboçado é
suficientemente amplo para tornar irrelevante a justificação da fotografia em face da
pintura, que o próprio Arago não deixa de tentar, e para indicar, em seus grandes traços,
o verdadeiro alcance da invenção. ‘Quando os inventores de um novo instrumento’, diz
Arago, ‘o aplicavam à observação da natureza, o que eles esperavam da descoberta é
sempre uma pequena fração das descobertas sucessivas, em cuja origem está o
instrumento’ (Benjamin, 1985, p. 93)139.

O instrumental, portanto, teria de ser tomado como parte de um projeto mais amplo: um
projeto cognitivo posto de acordo com a sensibilidade criativa e investigativa. Afinal o que
se buscava com o daguerreótipo, como o que ainda se busca, era a transparência da
verdade exposta na descoberta, através do descortínio da natureza, e ainda que para isso
fosse preciso aprisionar as almas mais tementes e multiplicar a aura imaculada de cada
cidadão (mediante a reprodução tecnológica da imagem natural, quer seja pelo recurso

137
“O homem, Homo sapiens, que quer dizer ‘homem sábio’, é a criatura mais interessante que existe
sobre a face da Terra. Ao menos para si mesmo — antropocentricamente, é a mais interessante, a mais
emocionante, a mais promissora, e muitas outras coisas” (Montagu, 1969, p.09).
138
A recusa tecnológica será uma constante para aqueles que sentem dificuldade suprema de transpor
épocas sagradas? Se notarmos que ainda há recusa em se admitir que uma mídia como a Internet pode ser um
veículo de comunicação política, então a resposta é sim. Apesar de haver comunicação direta, a crítica
assevera que ela não é suficiente porque não se dá face a face — demonstração de que os filisteus temem pela
aura imaculada. O conceito de comunicação política será retomado na 4ª parte do capítulo.
139
Não é o caso aqui de buscar por infinitos antecedentes históricos da própria razão imagética, pois,
dessa forma, rapidamente chegaríamos às pinturas rupestres.
103

fotográfico, quer seja pela Internet por meio de scanners). Mas também seria um debate
político, porque, como se viu em Benjamin, sua primeira defesa se deu no interior da
Câmara dos Deputados. Assim como no Brasil, a nova técnica nasceria tanto para agradar
como desafiar o poder político constituído. Porque, enquanto processo inventivo de novos
recursos tecnológicos, o princípio é político. A tecnologia é política, e a invenção de
Daguerre não seria exceção:

Com a aparelhagem inventada pelo francês Louis-Jacques Mandré Daguerre, o abade fez
uma demonstração para o imperador d. Pedro 1º, que, encantado com a novidade,
encomendou equipamento igual. A primeira imagem feita no Brasil — uma raríssima
paisagem do Paço Imperial, construção no centro do Rio onde, em 1840, vivia a família
imperial... (Grillo, 1998).

Dentro de um grande projeto tecnológico, que acompanha a história da invenção humana e


que faz do homem o que ele é, estaria, portanto, não a intenção do aprisionamento, mas do
desvelamento e da recuperação, do passado e do presente: “Em grandes linhas, o discurso
abrange o domínio das novas técnicas, da astrofísica à filologia: ao lado da idéia de fotografar as
estrelas aparece a idéia de fotografar um corpus de hieróglifos egípcios” (Benjamin, 1985, p. 93).

Sua força instituinte foi e é tamanha que ainda estamos à cata de seu significado explosivo.
Um feito memorável de Daguerre e que foi capaz de nos transportar direto para o
marketing político televisivo:

A primeira greta, o primeiro curto-circuito, a primeira intrusão do que ia modelizar,


pouco a pouco, o tempo presente remonta, na França, a 1839: apresentação por Arago, à
Academia das Ciências de Paris, do procedimento dito daguerreótipo. Aqui se esboçam os
deslizamentos progressivos da videosfera; o cinema e a televisão prolongam o mesmo
movimento de revelação factual, estendem ao movimento tal qual ele foi (cinema) e ao
presente tal qual ele é (televisão) o mesmo processo de gravação objetiva (...) Como foi
demonstrado por Sylvie Merzeau, é nesse momento que se esboça “a reviravolta das
relações de força entre o visual e o escrito”. Para fazer uma síntese, em termos
tecnológicos, do processo iniciado por Niepce e Daguerre: a Encarnação virada do avesso
ou a reconquista do Verbo pela Carne. A videocracia é um daguerreótipo gigante,
excrescência póstuma e cancerosa do Índice primitivo. Na gravosfera, o Estado podia se
apresentar como um Verbo feito Carne. Na videosfera, é uma Carne em busca do Verbo
(Debray, 1994, p. 32).
104

Se há o desconforto apontado por Debray, em que somos reduzidos a produtos da mídia —


em carne e osso, mas sem sangue vital —, por outro lado, radicalizando, é evidente que
esse tipo de crítica não é a reproduzida pelo filisteísmo estereotipado de um sujeito tipo
Unabomber140. Hoje, deve-se procurar, abordar e descortinar essa razão imagética antes
de condená-la ou detoná-la. Pois, para enfrentá-la naquilo que é, política, não nos basta o
certo e o errado maniqueístico ou apologético. A raiz é virtualmente política. E tão mais
perto estaremos de seu sentido, quanto melhor entendermos o significado de tal razão
imagética. Mas, de qualquer forma, é preciso detê-la, subtraí-la do inanimado campo da
recusa tecnológica a fim de libertarmo-nos do mundo aurístico (desencantado141 em
Weber, desnaturalizado142 para Sábato e estilizado desde Ortega y Gasset). É preciso a
razão imagética, como era preciso navegar, porque:

Hoje, com a proliferação generalizada de imagens pelos meios de comunicação, podemos


ir um pouco mais além e afirmar que o analfabeto do futuro será aquele que não souber
ler as imagens geradas pelos meios eletrônicos de comunicação. E isso não significa
apenas o aprendizado do alfabeto dessa nova linguagem. É necessário compreender que
esse analfabetismo está inserido e é conseqüência da ausência de uma razão imagética,
que se constitui na ausência dessa sociedade em transformação (...) São os novos signos
audiovisuais e sonoros, produzidos pelos meios eletrônicos de comunicação agora
associados à informática. Essa nova cultura visa, como diz Paul Virilio, a acabar com a
dicotomia da forma sobre o fundo, reinventando o nosso próprio olhar (Pretto, 1996, p.
99).

A ressalva na análise é quanto à essência da nova sociedade, que não a entendo como fiel
depositária da imagem (ou imagens) e sim do substrato tecnológico (gerador de imagens e
de outras mensagens). Também é interessante notar que paralelos poderiam ter sido
traçados em relação à razão instrumental. Mas, de qualquer forma, Pretto retoma a análise
da produção do conhecimento que se dá no formato rede ou teia, porque é evidente que o
escoamento também deve se dar de forma global — ainda que não aprofunde a questão

140
A versão do Unabomber adaptada para TV foi dada pelo Taleban, grupo extremista hislâmico que
controla a maior parte do Afeganistão. Em julho de 1998, membros do grupo haviam dado prazo de 15 dias
para que a população se livrasse de suas TVs, videocassetes e antenas receptoras de satélite. Apesar de
ladrões terem se valido da imposição para saquear residências e lojas, “todos os aparelhos apreendidos pela
milícia serão queimados em público, em cerimônias parecidas com a Inquisição, que, na Idade Média,
queimava livros proibidos pela Igreja Católica” (Agências Internacionais, 1998).
141
Weber, 1993.
142
Sábato, 1993.
105

política. Em sentido estrito, a distância colocada pelo processo imagético se projeta como
abissal, apesar dos apelos dos especialistas:

Ao aceitar esse fato, a escola é forçada à competição, procurando novas formas de


aprendizagem para atender e cativar um estudante que, em sua escolaridade, como
mostram as estatísticas, passa diante do cinema e da televisão 15.500 horas143 a mais do
que numa sala-de-aula (...) Os especialistas em tecnologia educacional concordam em que
ela não é a panacéia da educação ou a própria educação. Partem do princípio de que ela
deveria retornar a seu sentido original de arte aplicada, do grego “thechnikós” (Niskier,
1993, pp. 22-23).

Assim, em sentido amplo, reinventar o olhar é visualizar o que deve ser desfeito, é vitimar
a política autoritária que nos garante o eterno repouso do insuspeito, mesmo que
desconhecido e, por isso mesmo, domesticado. Reinventar o olhar é simplesmente olhar
pela primeira vez, é devassar o recôndito estado político do sossego, e, também por isso,
autoritário. Para Debray, restitui-se o original. Daí que olhar é ameaçar:

Para visualizar a transcendência da função em relação ao indivíduo, os egípcios


representavam os faraós por meio de colossos de pedra, fora das medidas humanas. E
Stalin enviava para a Sibéria os fotógrafos, mesmo os credenciados, que deixassem
publicar sua foto não revista por ele e sem retoque. A sacralização do tirano soviético se
deve bastante ao fato de que ele só raramente, e de longe, aparecia em público (...) Os
regimes absolutistas têm alguma razão em preferir a imagem feita pela mão do homem à
imagem maquinal, tão facilmente culpada de lesa-majestade. Em sua tela, Le Brun
transformava o minúsculo Luís XV em um gigante: facilidades da criação icônica. A
fotografia não é assim tão facilmente cortesã. Restitui a aparência vulgar de um homem
vulgar. Sua abundância e fluidez tendem a desmistificar o mistério, assim (...) O ícone
idealiza seu original, enquanto a imagem gravada o materializa. E a televisão, que
aproxima tudo o que se encontra afastado, torna ingrata a “grandeza” (Debray, 1994, pp.
25-26).

É um projeto maquínico, sem dúvida, mas que nos convida a um passeio que dessacralize
nossas próprias auras — aqui entendidas como ingenuidade quando nos confrontamos com
nosso reflexo amplificado pelas telas, porque ignoramos a linguagem, o suporte, a estrutura
da mensagem e o processo de passagem do discurso real para a consciência subliminar:

143
Veja-se o caso retratado no filme Cine Paradaiso.
106

Se por aura entendemos, com Walter Benjamin, a “única aparição possível de algo
longínquo”, a aura do Príncipe na “era da reprodutibilidade técnica” passa pelas mesmas
vicissitudes da obra de arte. Em face da célebre foto que mostra um homem de pequena
estatura e um gigante de mãos dadas diante de um túmulo, em Verdun, é preciso
remobilizar em si toda a virtude esquecida do duplo olhar para ver um Presidente e um
Chanceler, e, através deles, dois grandes países vizinhos e igualmente soberanos
colocarem seus interesses em comum. Apenas uma visão propriamente simbólica teria
conseguido impedir a leitura perversa desse visual: a contar desse dia, a pequena França
ficava nas mãos da grande Alemanha (Debray, 1994, p. 26).

Mais ainda, se por duplo olhar se entende um duplo sentido, é atrás do segundo (o
descortinado) que devemos ir. Pois nem sempre o caminho de volta é lembrado, talvez
porque também não seja assegurado de pronto. No entanto, aí haverá de estar expressa
alguma idiossincrasia:

Cada vez que aparece um novo suporte do espírito, o espírito que ele vai liquidar apodera-
se, imediatamente, desse suporte para uma derradeira manifestação (...) Eis o desafio
cívico do próximo século: será que a simbólica do Estado (isto é, seu âmago) irá
sobreviver ou não ao reino do “visual”? (Debray, 1994, p. 27).

O reino do visual, no entanto, pode ser entendido (apenas nesse momento do debate) como
a condição subjacente à crescente incorporação do virtual, e este, por sua vez, pode ser tido
como o conjunto das experimentações tecnológicas informacionais, quer seja no âmbito do
trabalho (robotização das tarefas manuais), da escola (ensino a distância), quer seja na
mudança de qualidade da participação política (eleições eletrônicas, que envolvem uma
mínima educação tecnológica) ou simples produção de softwares e Know How
especializados em marketing político:

A música clássica ou militar, a apresentação tipo ante-sala (“Dentro de alguns instantes,


alocução do Senhor Fulano, presidente da República”), a visão frontal, os lustres, os
dourados e veludos, a bandeira tricolor144, a interpelação do telespectador como
“Francesas, Franceses”, La Marseillaise final e todos os marcadores da distância
simbólica cederam o lugar, no espaço de alguns anos, às alocuções dialogadas, ao
vocabulário mais familiar, aos planos mais próximos (até o grande plano do rosto do chefe
de Estado, marca da máxima intimidade), em um cenário menos oficial ou mais florido.
Procura-se fascinar pela aproximação e não mais pela distância, pela banalização e não

144
Refere-se à bandeira francesa.
107

mais pela heroicização do chefe de Estado. A ostentação do Símbolo que se apaga diante
da ostentação do Indivíduo. Como se o olhar bem, agora, fosse tocar com o dedo. O gosto
do espontâneo inverteu as mais rígidas liturgias do Estado. O emotivo exclui o
cerimonioso. Cresce a importância dos “elementos não verbais da mensagem” calculados
secamente pelos computadores do marketing (expressão do rosto, 55% de eficácia; a voz,
38%; discurso, 7%). A prova de tal mudança é que, para a campanha legislativa de 1993,
o Conselho Superior do Audiovisual recomendou aos partidos para substituírem, nas redes
do serviço público, a emissão com textos pelo insert e clip145 (Debray, 1994, pp. 22-23).

Toda mudança e alteração da aparição política descrita por Debray recompõem os dados
que acabamos de ver: o efeito do suporte; o software especializado; a sedução eleitoreira
do Know How; a transparência que vira ilusão (55% de expressão facial etc); o significado
que sucumbe no símbolo (da ação política vamos ao marketing); a simbologia que definha
entre egos rarefeitos (a ostentação do Símbolo se apaga na ostentação Individualizada); o
coletivo se apaga diante da cara larga do presidente (a retenção engorda a imagem em
cerca de dez quilos); a República vive de imagens (Fernando Collor para nós e Berlusconi
na Itália — um misto híbrido de Collor & Sílvio Santos146), que vão da atividade escusa ao
regular mercado de ofertas147. Retomemos o episódio do debate envolvendo Collor e Lula,
no segundo turno da eleição presidencial de 1989, na voz do vice-presidente da TV Globo
na época, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni:

Folha – o sr. teve participação no debate Collor x Lula?

Boni – Soltei a gravata e desmanchei o cabelo do Collor para ele ficar mais parecido com
o Lula.

Folha – E na edição do debate?


Boni – Na edição do “Jornal Hoje”, o Collor ganhava de 3 a 2. Essa edição não satisfez
ao dr. Roberto148. O Alberico recebeu ordem dele de refazer a edição para o “Jornal
Nacional”. Dr. Roberto achou que a primeira edição favorecia o Lula.
Folha – Isso faz sentido?

145
Refere-se ao processo eleitoral francês.
146
Uma referência cinematográfica é Cidadão Kane.
147
“No conjunto, quando um mafioso diz ‘Sou um trabalhador honesto’, é preciso reconhecer que não é
totalmente falso (...) Com efeito, ao longo dos últimos vinte anos, esses mafiosos, dotados de aguda
inteligência, notável capacidade de trabalho e grande habilidade para organizar o dos outros, depois de terem
aumentado e alargado suas possibilidades de investimento, encontraram-se na situação de entrar diretamente
na economia legal, explorando aí recursos ilegais” (Falcone, 1993, p. 110).
148
Refere-se a Roberto Marinho, então presidente da empresa.
108

Boni – O Collor foi muito bem no debate, mas a edição me pareceu exagerada. O Armando
Nogueira costuma dizer que o Collor ganhou de 3 a 2, e no “Jornal Nacional” apareceu 3
a 0. Não mostrou o gol do adversário. Um dia após o debate, a Folha me procurou e eu
disse que não tinha gostado da edição. O dr. Roberto replicou dizendo que o Boni entende
de TV, mas não entende nada de política (Carvalho, 16 set. 2000).

Assim, se normalmente somos tentados, ou educados, a entender e aceitar que o mal está
na obscuridade, nos meandros, nos escaninhos (refúgio dos lobbies políticos), porque então
a transparência pode deturpar tanto? Por que a aparição política é tão desfocada pela TV?

A transparência do ato político (ou inatividade) é danosa quando não seguida ou precedida
da ação e prática política, quando a práxis não se opõe à imagem (ideologia, aparência,
superfície etc), quando a imagem desobriga a ação, quando a aparente distância ou
proximidade desatina a prática coletiva:

A TV coloca em perigo o desdobramento dos Príncipes, no mais elevado grau das


visibilidades sociais. O chefe de Estado sedutor tem um corpo a mais: o seu. Já não é
possível olhar de través. Apresentações, performances, exibições — o que comprova sua
presença, desvaloriza sua autoridade. A crença que liga seu destino à TV será cada vez
menos crível, como a própria TV. Por se ter deixado escoar demasiado pela torneira das
imagens, a autoridade se liquifica e a estátua do Comendador audiovisual acaba por se
afogar em seus reflexos, paródias e escárnios em cascata. Na videocracia, a
personalização (física) tende a arruinar a personificação (moral). A transparência liquida
a transcendência (Debray, 1994, p. 27).

Mas foi a TV que desbaratinou a política? Por que, se a imagem sempre lhe foi tão cara?
Que estranho fascínio e poder a envolve — da transcendência à transparência e daí às
mazelas virtuais? E então o que pode ser dito sobre a individualidade, diante da sujeição
pública à imagem política? Ver não é mais conhecer?

Ver sem conhecer é um tipo ideológico, opaco, encoberto, tramado somente na superfície.
Daí o império cognitivo do decifra-me ou devoro-te e que nos obriga à verdade, por mais
obscura que seja, pois é uma obrigação midiática. Leia-me, veja-me por dentro ou se
idiotize (feito completo videota), garante Reich:

Ser-te-à difícil entender como foi possível que os teus jornais nada mais tivessem a relatar
e comentar que paradas sem sentido, condecorações, crimes, enforcamentos, diplomacias,
calúnias, mobilizações militares, desmobilizações, de novo mobilizações, pactos,
bombardeamentos — e que não tenhas sequer apercebido do perigo que corrias. Talvez te
109

houvesse sido possível entenderes-te a ti próprio se não tivesse engolido bovinamente tudo
o que te caía nas mãos. Mas o que deveras te será difícil aceitar é (...) o facto de que o que
no teu íntimo acharas certo o que era realmente, e que tomaste por patrióticos os teus
erros. Terás vergonha da história que fizeste, e nisso reside a única esperança de que os
nossos bisnetos não venham a ser obrigados a ler a tua história militar. E não mais será
possível a montagem duma grande revolução apenas para pôr em cena um novo “Pedro, o
Grande” (1982, pp. 98-99).

O que está para os jornais está para a TV: não são raros os leitores que devoram sessões de
falências e concordatas, à procura de nomes conhecidos para serem servidos na ante-sala
do escárnio da burguesia. E a nós, de certa forma, como coletivo em busca de
entendimento (é o princípio da rede), só resta uma forma de enfrentamento ou método que
decifre o que se lê e vê, sob pena de Pedro, o Grande, retornar encarnado na figura do
Grande Irmão: nada mais do que o Grande Olho Mágico da Técnica imortalizado no
Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Mas, apesar do método de investigação ser relativamente simples, nessa busca ansiosa por
ver o que está de través, e ainda que o que se esconda seja um poder secular, ele está
carregado de significados e implicações,

Resume-se em poucas frases: devemo-nos resignar a fazer investigações excessivas, a


recolher um máximo de informações, úteis e inúteis, a serem colhidas largamente no
início; depois, logo que se têm à sua frente os pedaços do puzzle, então, se pode construir
uma estratégia (...) O nosso trabalho de magistrado consiste, portanto, em possuir também
uma importante grade de interpretação dos sinais; para um palermitano como eu, isso faz
parte da ordem natural das coisas (Falcone, 1993, pp. 42-43).

Falcone pagaria com a vida149. Por outro ângulo, em sentido menos trágico do ponto de
vista físico e individual, mas talvez ainda mais na perspectiva intelectual, a inserção e
envolvimento cada vez maior da publicidade na mídia, e daí nos programas e agendas dos
candidatos150, provocam mudanças no próprio sentido jornalístico tradicional (isenção,
investigação, norma culta etc) e acabam gerando um tipo neologístico novo:

149
Essa ousadia de ver através dos sinais sicilianos levaria ao assassinato do juiz Giovanni Falcone,
num atentado mafioso, no dia 23 de maio de 1992. E por certo ele não ignorava seu destino quando disse que:
“certamente, eles ainda não me mataram. Mas o círculo não está fechado. A minha conta continua aberta com
a Cosa Nostra. Sei que só a saldarei com a minha morte, natural ou não” (op. cit. , p. 06).
150
Note-se o tom publicitário dado por FHC em seus palanques eletrônicos, na 2ª parte do capítulo.
110

Admirável meio novo, o “publijornalismo” não vê no que faz outra coisa senão um
produto. A noção de mercadoria é generalizada dentro das publicações e atinge todos os
seus processos, mesmo os que dizem respeito às iniciativas de crítica, de explicação,
elucidação, investigação ou contestação próprias da imprensa (Neto, 1998).

Em resumo: a visão esclarecedora ou não, quando não é assimilada enquanto produto, traz
punição — provocou um mal irreparável à saúde do juiz Falcone; ver é temerário — em
Sodoma e Gomorra olhar para traz petrificava; é concomitante à aparição vencedora de
Júlio César (vini, vidi, venci); e ver é controlar e punir — Foucault acertou, porque há um
panóptico151 no espelho de cada um:

É preciso que o prisioneiro possa ser mantido sob um olhar permanente; é preciso que
sejam registradas e contabilizadas todas as anotações que se possa tomar sobre eles. O
tema do Panóptico — ao mesmo tempo vigilância e observação, segurança e saber,
individualização e totalização, isolamento e transparência — encontrou na prisão seu
local privilegiado de realização (Foucault, 1987, p. 221).

O olhar é condicionador, mas a sociedade maquínica não pode ser reduzida a um só


instrumento ou mesmo técnica (engenharia de poder, burocracia). Porém, se é no panóptico
que a sociedade maquínica encontra uma forma privilegiada de realização, ao menos no
tempo de Foucault, então o próprio sentido industrial seria balizado por ele. Costuma-se
brincar dizendo que, se a religião e a educação escolar não dão jeito no indivíduo, no
sentido produtivo que se espera para o proletariado, então a prisão dará. O grave, no
entanto, é que a piada se transforma em realidade quando vem equipada do sistema
panóptico:

A prisão não é uma oficina; ela é, ela tem que ser em si mesma uma máquina de que os
detentos-operários são ao mesmo tempo as engrenagens e os produtos; ela os “ocupa” (...)
Se, no fim das contas, o trabalho da prisão tem um efeito econômico, é produzindo
indivíduos mecanizados segundo as normas gerais de uma sociedade industrial (...)
Fabricação de indivíduos-máquinas, mas também de proletários; efetivamente, quando o
homem possui apenas “os braços como bens”, só poderá viver do “produto de seu
trabalho, pelo exercício de uma profissão, ou do produto do trabalho alheio, pelo ofício do
roubo”; ora, se a prisão não obrigasse os malfeitores ao trabalho, ela reproduziria em sua

151
Espaços físicos construídos no formato exagonal, octogonal etc, com postos de vigilância
normalmente colocados no centro: um cuida de mil, porque o centro é giratório, além de cada canto ser alvo
de todos os outros.
111

própria instituição, pelo fisco, essa vantagem de uns sobre o trabalho de outros...
(Foucault, 1987, p. 216).

Aqui, além de o olhar ser sinônimo de repressão, ele também equivale a uma espécie de
moldagem: formatação industrial inteligente. Por isso, também não há exagero em indagar
se a comunicação se iniciou com a fala ou com o olhar (decifrando sinais, como queria o
juiz Falcone). É como se se dissesse que o olhar, por mais lânguido, sempre se alça sobre o
poder, e o poder sempre foi um alvo humano152 (quer mirando a natureza, quer focalizando
outros homens e suas estruturas sociais). Por outro lado, ainda que haja certa concessão a
alguma forma de comunicação originária, o olhar (decifrar) antes da fala (emissão) remete
essa comunicação à proto-história:

Olhando globalmente, a primeira dessas etapas foi provavelmente a Era dos Símbolos e
Sinais, começando bem cedo na progressão da vida pré-hominídea e proto-humana, muito
antes de nossos ancestrais primitivos caminharem erectos. A princípio, tais seres pré-
humanos se comunicavam como o fazem outros mamíferos. Respostas herdadas ou
instintivas exerceram papel significativo em tal comunicação, e o comportamento
adquirido através de comunicação era mínimo. À medida que a capacidade cerebral
lentamente aumentou, essa importância foi invertida. Literalmente passaram-se milhões e
milhões de anos antes de se tornar possível adotar pelo menos alguns gestos, sons e outros
tipos de sinais padronizados — isto é, aprendidos e compartilhados — que pudessem ser
utilizados por gerações sucessivas para se dedicarem às trocas básicas necessárias a uma
vida social (DeFleur, 1993, p.23).

Por esse mesmo motivo, Debray se queixa de que o daguerreótipo não consta dos manuais
de história, apesar de ter inaugurado nosso mundo da comunicação: “A partir desse pequeno
feito — ignorado por todos os manuais escolares de História Moderna — edificou-se
progressivamente um Novo Mundo: o nosso” (Debray, 1994, p. 32).

Também os manuais de antropologia associam o desenvolvimento da comunicação oral à


política, se por esta entendemos uma sensível necessidade de organização. No início, para
a organização dos caçadores que buscavam caças maiores153, a fala se constituiu no marco
distintivo humano frente a outros animais: “A fala é o pensamento e o sentimento explicitados

152
Compreende-se o sentido dado ao ditado popular quando diz que em terra de cego, quem tem olho é
rei.
153
É a chamada Teoria da Caça ou do Tally-ho (Montagu, 1969, p. 141).
112

(...) É provável que a fala fosse um dos primeiros, se não o primeiro, instrumentos fabricados pelo
154
homem” (Montagu, 1969, pp. 140-143).

De qualquer forma, se se destaca a visão como suporte da comunicação — seja no início


da organização social humana, seja nos tempos modernos do palanque eletrônico — é
porque ela está associada à visibilidade. Não qualquer forma de visibilidade, o que seria
óbvio, mas aquela que reflete o poder. Hoje, quando falamos da mídia televisiva e dos
suportes do palanque eletrônico, a questão também soa óbvia. Porém, se indagarmos em
que estrutura a visibilidade está e sempre esteve impressa em qualquer forma de poder,
então a relação se complica. Do mesmo modo como a visibilidade aparece associada à
imagem da verdade, mas nem sempre ligada à idéia de controle. O que significa dizer que
muitas vezes a privacidade é que deve prevalecer, em detrimento da publicidade: aí é o
caso de se diferenciar a privacidade das artimanhas do poder. E a partir dessa perspectiva
da razão imagética chegamos à campanha de 1988 – com a criação do daguerreótipo
eletrônico, pois, realmente, parece certo que:

A TV roubou a política da praça pública e confinou-a à telinha. Hoje, para ganhar uma
eleição, a performance televisiva do candidato é tão ou até mais importante do que suas
propostas e sua biografia. Mesmo depois da eleição, caso vitorioso, o político continua
dependendo da televisão para manter o seu prestígio (ou também para perdê-lo) (Rossi, 16
set. 2000).

Mas, antes de se configurar como movimento retilíneo, a relação entre mídia e política
aponta para uma dinâmica, como revela José Bonifácio, vice-presidente da TV Globo por
décadas, ao descrever a pressão política que a direção da empresa sofreu durante o regime
militar:

Folha – O que foi feito para a Globo cobrir as diretas-já?


Boni – Foi montado na sala do Roberto Irineu (Marinho) um esquema para controlar se o
discurso fosse muito pesado.
Folha – Quem controlava?
Boni – A própria empresa, pressionada por pessoas do governo.
Folha – Então a censura perdurou na Globo até o governo Figueiredo?

154
E essa característica haveria de ser para o bem e para o mal: “Quando os macacos semelhantes ao
homem começaram a andar / Deram o passo que conduz à fala, / E aprendendo habilmente a caminhar
erectos, / Nunca aprenderam a falar circunspectos. / Esse homens-macacos, no calor da perseguição, / usaram
uivos e apupos para vencer a corrida, / E forcejando por subir, trocaram o seu quinhão / Pelo do poliglota, o
homem falastrão” (Montagu, 1969, p. 142).
113

Boni – Acabou com o início do governo Sarney, mas o hábito da pressão cessou
recentemente.
Folha – Que tipo de pressão?
Boni – A TV Globo criou-se debaixo de pressão do governo e tinha o hábito de aceitar
instruções do Planalto. Virou um vício, e a libertação demorou muito. Esse vício começou
a ser eliminado no governo Sarney, abrandado no governo Collor, mas o Collor tinha
relações com o dr. Roberto e com o Alberico (Souza Cruz, diretor de jornalismo até 1995).
Eles mantinham o vício antigo da interferência do governo na Globo. O Alberico tinha
relações com o Collor por ordem da empresa (Carvalho, 16 set. 2000).

Na seqüência do capítulo, de Collor vamos à campanha presidencial de Fernando Henrique


Cardoso, que utilizou de fato toda a parafernália da mídia política eletrônica.

2ª PARTE

POLÍTICA A DISTÂNCIA

Na segunda parte do capítulo, a intenção não é mostrar o dia-a-dia da campanha de FHC,


na reeleição de 1998, e nem centrar a análise em apenas um candidato. O objetivo é
destacar etapas da evolução da campanha e o maior número de candidatos e partidos que
implementaram o chamado palanque eletrônico155. Quando se revelar oportuno, a análise
trará dados de Home Pages utilizadas pelos partidos na mesma campanha de 1998, para
cargos majoritários e proporcionais — porque a Internet vem sendo utilizada como suporte
de expansão dos limites postos pela TV156.

As campanhas eleitorais na década de 90 se balizaram pelo formato imposto pela mídia


eletrônica. Já em 1990, destacava-se o nome de Enéas Carneiro (PRONA), candidato a
presidente da República e estigmatizado pelo bordão Meu Nome é Enéas!, porque
dispondo de poucos segundos na defesa de seu programa não dizia muito mais do que isso.
Em 1994, quando eram oito candidatos à presidência, três se apresentaram como nanicos,
ou representantes de pequenos partidos em busca de notoriedade. E em 1998, o horário

155
Como se diz, na linguagem da informática, esta parte do capítulo estará em eterna construção.
156
Não à toa, o PT (Partido dos Trabalhadores) agilizou a inserção e disponibilização de pontos de seu
programa de governo em sua página na Internet. O receio era de que os críticos da campanha se valessem de
lacunas para rebater pontos polêmicos. O partido também se apresenta como o pioneiro no uso da Internet
para o detalhamento de seus programas. Hoje, muitos deputados federais e senadores possuem Home Pages,
além de vereadores e deputados estaduais.
114

eleitoral gratuito, em rádio e TV, configurou-se ainda mais inflacionado — havia mais de
uma dezena de candidatos chamados nanicos disputando minutos e segundos de aparição:

Uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) favorável a Enéas Carneiro, do PRONA,
nas eleições de 1994, e outra recente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) beneficiando
todos os pequenos partidos incentivaram as candidaturas ao Palácio do Planalto (...) O
horário eleitoral no rádio e na TV é considerado uma espécie de palanque eletrônico
(Sucursala, 1998).

Entre os considerados grandes, com reais chances de vitória, Fernando Henrique Cardoso
(PSDB), presidente da República na campanha da reeleição, lançou o Programa Pé na
Estrada. Talvez o mais correto fosse De mãos dadas com a infovia, porque essa
modalidade de campanha não desenvolve o chamado corpo a corpo, entre candidato e
eleitores — um golpe tecnológico se pensarmos na Caravana da Cidadania, levada a
termo por seu rival Luís Inácio Lula da Silva (PT), que o levou a percorrer parte
significativa do interior do país.

O Programa de Fernando Henrique Cardoso previa atingir cerca de 40 milhões de eleitores


em 70 dias. A estrutura estava sustentada por 200 profissionais, que percorreriam 27
Estados em 12 caminhões multimídias, com suporte de som (40 mil watts), telões e uma
banda auxiliar. O sistema de vídeo, denominado de Videowall e de alta definição, estava
equipado para reproduzir imagens das pessoas presentes nos comícios, simulando assim
uma aparente interação entre candidato e eleitores (veremos adiante que suas vinhetas
também buscavam o mesmo efeito). Por isso, a comitiva eletrônica era precedida por um
carro abre-alas, que chegava às cidades com uma equipe de cinegrafistas para realizar
tomadas e gravações locais:

A fala do presidente vai chegar aos eleitores das pequenas e médias cidades do interior em
dois telões instalados na carroceria. Na primeira mensagem, para abrir os comícios nas
praças públicas de todo o país, Fernando Henrique dirá ao eleitor que não pode dedicar-
se exclusivamente à campanha, como os demais candidatos, porque tem de manter seu
trabalho de presidente e cuidar do Brasil157 (...) Segundo o coordenador de mobilização da
campanha, José Abraão (...) Além dos cinco minutos do discurso nacional do candidato,
Fernando Henrique gravará 800 falas dirigidas ao eleitor de cada uma das localidades

157
O correto do ponto de vista ético, no entanto, seria a desincompatibilização do cargo, a fim de que se
dirimissem as críticas sobre a utilização da máquina administrativa na condução da campanha. Aliás,
mantendo-se no cargo de presidente da República, acabava dirigindo todo o sistema de comunicações para o
palanque eletrônico. Em cada aparição, seu palanque era transmitido via satélite.
115

(...) Nessa segunda mensagem serão abordadas as questões locais e regionais, e as


soluções que Fernando Henrique quer implementar em seu segundo mandato (...)
Encerrado o discurso presidencial, o caminhão transforma-se em palco para comício dos
líderes locais e regionais. Estes falarão ao vivo, mas não encerrarão o ato. Fernando
Henrique voltará à cena para o encerramento, quando falará do programa de governo
para o país. Tudo isso com direito a queima de fogos e ao jingle da campanha, cantado ao
ritmo da região, como o xote e o baião (Samarco, 1998).

Os caminhões de tipo carreta, uma versão sofisticada dos trios elétricos, tinham no alto de
cada caminhão um potente dispositivo laser (chamado de Skybooster) que permitia a
visualização de formas geométricas a até 15 quilômetros de distância. A estrutura arrojada
elevaria os custos:

O programa, sempre à noite, começa com videoclips de cantores famosos nacionais e


internacionais — Madonna é uma das atrações (...) Será visitada uma cidade nova a cada
dia — só termina no dia 1º de outubro (...) Incluídas despesas com contratos das bandas,
combustível, hospedagem, contratação de pessoal para gravação de videoclips locais, os
custos com cada um desses caminhões pode chegar a R$ 500 mil — 6 milhões se
computados os 12 caminhões do programa. Esse cálculo inclui o valor do caminhão. No
caso das bandas, Roland Costa de Aguiar, diretor do Chiclete com Banana, de Salvador,
diz que o menor preço por show em campanha é R$ 3.000. São mais de 70 dias de shows
em cada um dos caminhões (Neri, 1998).

Mas, apesar de toda essa parafernália, as avaliações iniciais do Programa Pé na Estrada


mostraram audiência e interesse abaixo da média prevista. Nas primeiras aparições, em
Pananbi e Cruz Alta (norte do Rio Grande do Sul), o público presente não chegou a 400
pessoas. Em Avaré, interior do Estado de S. Paulo, no dia 24 de julho de 98, o palanque
eletrônico de FHC atraiu menos de cem pessoas: organizadores da viagem alegaram que
havia concorrência de dois shows consecutivos em outras localidades da cidade. O certo,
no entanto, é que nem mesmo o prefeito e aliado de FHC na cidade, Joselyr Benedito
Silvestre (PTB), desceu de seu carro (Aceitunoa, 1998).

O Programa ainda traria outros complementos, talvez até mais inusitados. Chamado de
Nossos Rios, o pacote tecnológico se completava com barcos virtuais, recebendo
mensagens ao vivo do candidato-presidente e permitindo aos eleitores-interativos formular
e receber respostas. Os barcos, de 30 metros, eram animados por bandas, como o Pé na
Estrada:
116

A população ribeirinha terá, a cada 15 dias, a oportunidade de fazer uma pergunta ao


presidente no palanque eletrônico denominado ‘Nossos Rios’. Um eleitor será escolhido
pelos organizadores da campanha de FHC no Estado para fazer a pergunta ao presidente.
A pergunta e a resposta serão reproduzidas em outros barcos. O presidente contará com
uma estrutura de três barcos, equipados com telões, que serão utilizados nas calhas dos
rios da região nos meses de agosto e setembro (Machadob, 1998).

Por outro lado, talvez temendo fracassos iniciais do suporte tecnológico, a programação
eleitoral de Fernando Henrique Cardoso ainda traria a novidade inglesa do chamado spin
doctors, espécie de lobista atuando junto à mídia, e não diretamente com o eleitor. Os
cadernos de prestação de contas do comitê eleitoral revelaram que:

Não têm por alvo o eleitor, propriamente. Acumularam os argumentos pró-FHC para a
dita formação de opinião. Na estratégia de campanha, casam com as entrevistas do inglês
Peter Mandelson, que comandou a publicidade de Tony Blair e depois se tornou “spin
doctor” — o propagador do governo trabalhista e da chamada Terceira Via. Atua, não
diretamente sobre o eleitor, mas sobre a mídia, como lobista da cobertura. É o que vem
fazendo, chamado por FHC — e agendado pelo porta-voz Sérgio Amaral (De Sá, 1998).

Além do palanque eletrônico terrestre e fluvial, os estrategistas de campanha ainda


previram o corpo a corpo com o eleitor, mesmo que só no lançamento da campanha e na
velocidade dos aviões. No dia 18 de julho de 1998, por exemplo, contabilizava-se um
encontro massivo entre candidato e eleitores ou simpatizantes:

O ato (...) em Porto Alegre será realizado no ginásio do Internacional, o Gigantinho, e


deve contar com pelo menos 15 mil pessoas, segundo os organizadores. O presidente do
PSDB no Estado, Antônio Hohlfeldt, disse à tarde que já tinham sido contratados mais de
500 ônibus para trazer simpatizantes de FHC do interior (Sucursal e Agência, 1998).

E dessa forma, ao menos em parte, as campanhas buscavam retomar o corpo a corpo com o
eleitor, porque só a campanha televisiva não decolaria. Isso porque o horário eleitoral
gratuito não vem sendo muito estimulante. No caso dessa campanha, em geral, candidatos
e organizadores alegariam que a entrada dos candidatos proporcionais (deputados
estaduais, federais e senadores) em parte do horário gratuito entediam e afastam os
eleitores. É a avaliação que faz Duda Mendonça, responsável pela coordenação publicitária
de 9 candidatos a governador de Estado:

Principal atração das eleições municipais de 96, as inserções de propaganda política


durante a programação normal da TV perderão força na campanha deste ano devido à
117

extensão do benefício aos candidatos proporcionais (...) “O fato de os proporcionais


também terem direito às inserções vai confundir o meio de campo. Elas deveriam ser só
para os majoritários. Do jeito que está, vai ser só poluição”, declarou. Em 96, apenas os
candidatos à prefeitura tiveram direito aos comerciais. Com a nova regra, haverá mais
inserções durante a programação, o que, segundo Duda, reduz o poder de influência do
modelo e cansa o eleitorado (...) “Quando o comercial é inteligente, as pessoas gostam de
ver. Agora imagine os caras aparecendo para dizer seus nomes e números no meio da
novela. Será muito chato e prejudicará a todos” (Zorzan, 1998).

Há, porém, quem alegue certa superioridade desse processo em relação ao passado: “O
publicitário Chico Malfitani, coordenador do programa de TV do candidato Francisco Rossi (PDT),
também aposta na diminuição do efeito político dos comerciais, mas defende a superioridade do
modelo em relação ao horário eleitoral tradicional” (Zorzan, 1998).

Já no Pé na Estrada, a imersão publicitária é ainda mais forte, pois o próprio discurso


presidencial revela um tom publicitário:

O FHC virtual que aparece nos palanques eletrônicos do ‘Pé na Estrada’ é um misto de
discurso eleitoral e de mensagem publicitária (...) A mensagem aparece escrita no vídeo.
‘Um novo país, uma grande nação’, diz o locutor, enquanto FHC diz que o Brasil de 98 é
melhor do que o de 94. O mote seguinte — ‘O Brasil tem rumo’ — serve para FHC falar
do que foi feito e do que ainda será feito por seu governo (...) O bloco seguinte é marcado
pelo ‘Avança Brasil’, principal slogan da campanha. Nesse momento, FHC diz que seu
principal desafio agora é vencer o desemprego (...) Geralmente é feita apenas uma
‘cabeça’ de gravação, acoplada depois ao restante da fala (...) Nos discursos, FHC se
desculpa por não estar presente e afirma que transformou o Brasil. ‘Peço desculpas por
não poder estar aqui apertando a mão e conversando com vocês pessoalmente. Mas o
Brasil é muito grande e, como presidente, ainda tenho muito trabalho para fazer. Fui
eleito em 94 para transformar o Brasil — é o que estamos fazendo’, diz a gravação do
presidente158 (Neri, 1998).

Discurso que se completa com os detalhes da apresentação e empostação dadas pelo


próprio presidente-candidato:

158
Há ainda um samba que anima os discursos presidenciais: “Este homem tem passado / Este homem
tem história / Sempre esteve ao nosso lado / Sempre ao lado do Brasil / Nunca parou de lutar / No exílio e no
Senado / Participou de toda a grande luta popular / Por nossa paz no tempo do medo / Com Teotônio, lutou
pela anistia / Pediu diretas já / Com Ulysses e Tancredo / E pela liberdade / Nas portas do ABC / Nas horas
mais difíceis / Soube o que fazer / Foi eleito senador / fez o PSDB / Até hoje está lutando / Por mim e por
você” (Neri, 1998).
118

Elegante, de terno, falando pausadamente, FHC comenta seu projeto (...) ‘Soubemos
dialogar com o mundo e transformamos o Brasil no segundo país que mais recebe
investimentos internacionais’, diz. ‘O que o Brasil vai escolher nesta eleição não é apenas
um presidente. É um destino’, afirma. Tudo no palanque eletrônico de FHC tem a fórmula
certa para conquistar o eleitor pelo coração e pelo bolso. O locutor que introduz a fala do
presidente fala das obras do governo como se estivesse narrando um jogo de futebol.
Embalado por um samba-enredo, apresenta obras e números (...) ‘Dobra o consumo de
escova de dentes’, afirma outro anúncio. Com certo ar triunfalista, as mensagens falam de
educação e de emprego (Neri, 1998).

Em suma, a campanha sucessória de 1998 procurou combinar elementos e formas


tradicionais de condução, negociação política, outros instrumentos e suportes tecnológicos.
Mas, investiu pesado nos palanques eletrônicos e virtuais, assim como na publicidade,
equiparando escovas de dentes ao voto do eleitor.

EDUCAÇÃO PARA O VIRTUAL

Por seu turno, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), dando prosseguimento ao projeto de
expandir o uso de urnas eletrônicas, também investiu na divulgação do meio eletrônico: um
sumário da educação eletrônica de que necessitamos. Deste modo, prevendo a realização
de votações eletrônicas simuladas:

O TSE espera que cada eleitor gaste, em média, 60 segundos votando. Para isso, a Justiça
Eleitoral vai permitir que seja levada para cabine eleitoral uma “cola” com os números
dos cinco candidatos nos quais deseja votar (...) A partir de 1º de agosto, as emissoras de
televisão e de rádio passarão a destinar dez minutos por dia para a veiculação da
campanha publicitária do TSE (...) A Radiobrás, empresa de comunicação do governo
federal contratada pelo TSE, vai receber R$ 2,8 milhões para produzir e divulgar a
campanha (...) A ampliação do uso das urnas eletrônicas e da informatização do processo
de apuração dos votos custou ao TSE em torno de R$ 190 milhões (Sucursalb, 1998)159.

O TSE acerta quando propõe uma campanha de divulgação sobre a maneira correta e mais
eficaz de utilizar a urna eletrônica. Afinal, nas eleições de 1998, quatro Estados (Alagoas e
Rio de Janeiro, em função da fraude de 1994; e Roraima e Amapá, por questões logísticas
como a distância), além do Distrito Federal, tiveram votação e apuração informatizadas em

159
Um simulador virtual para treinamento da votação nas urnas eletrônicas, bem como um sumário das
principais dúvidas acompanhadas de respostas técnicas sobre a legislação eleitoral, esteve disponível na
Internet, em: http://www.terra.com.br/eleicoes2000/guia/urna/Teclado.html.
119

todos os seus municípios; no país todo, 537 municípios receberam urnas eletrônicas,
cobrindo 60% dos eleitores. Em 2000, todo o processo será digitalizado.

Daí que, diante de tanto investimento e expectativa, o argumento em favor da


informatização eleitoral mais destacado pelos técnicos é a confiabilidade e total eliminação
das fraudes. O modelo em que está assentado, contudo, é limitado em termos do alcance e
da profundidade que se poderia esperar de um Projeto de Educação Tecnológica. Deve-se
ter em mente a total informatização do processo eleitoral, mas, não só porque, da mesma
forma como se requer a busca da chamada razão imagética, também se espera que o
processo esteja inserido em um projeto mais global. Tome-se o exemplo do potencial de
dano gerado por fraude e que não foi solucionado pelos técnicos do TSE. Em 2000, de
acordo com previsão do mesmo TSE, os votos deverão ser transmitidos via Internet, dos
TREs aos TSE. Sem prever, entreanto, que na primeira eleição totalmente digitalizada - do
Brasil e do mundo -, da votação à apuração, os riscos permanecem os mesmos.

Mas há posição divergente, confiante, portanto, quanto à segurança do processo de


transmissão de dados, via net, como a assumida por Marcos Sêmola
(msemola@modulo.com.br) - Analista de Segurança da empresa Módulo Security
Solutions S. A, empresa que dará o suporte técnico nas eleições digitais de 2000. Em e-
mail endereçado a mim, apesar dessa divergência, nota-se em comum a preocupação de
que se tem um processo formado em rede, pois devem-se ter em conta fatores como
educação e intervenção na cultura, visando maior consciência sobre a vida social:

Prezado Vinício. Fico feliz pela citação e certo de estar contribuindo para a
conscientização dos empresários e pessoas comuns que, diariamente, esbarram nas
facilidades oferecidas pelos computadores e seu aspecto de segurança. Assim, atendendo
seu pedido, segue um breve comentário: ‘Estamos vivendo um momento único, onde os
computadores e a informação representam elementos essenciais para a operação e
continuidade dos negócios. Não é mais possível fazer negócio como antigamente. É preciso
pensar à frente - como nos jogos de xadrez - e se antecipar às novidades que garantirão
agilidade e competitividade. Compartilhar informações, integrar a cadeia de valor
(fornecedores, clientes e parceiros) já são expressões que fazem parte do dia-a-dia, e a
tecnologia - mais especificamente a Internet - aparece como aliada neste novo cenário.
Alguns fatos nos remetem a este raciocínio, como a existência de empresas nativamente
virtuais, que já têm seu valor superando empresas tradicionais de 10, 20 ou 50 anos de
existência. Diante desta inversão de valores e atores, a segurança é certamente o fator
120

crítico de sucesso. É o mosquetão que garante o objetivo de atingir o cume, na escalada de


um alpinista. É preciso pensar em segurança de forma ampla como se falássemos de uma
corrente e seus elos. Elos representados por pessoas, informações, computadores,
aplicações, ambientes e processos. Só tratando todos estes elementos (elos)
igualitariamente, teremos a certeza de possuir uma corrente forte e capaz de proteger
verdadeiramente as informações que sustentam o negócio’.

Isto ressalta novamente o aspecto de que a TV não é a única mídia de alcance popular, e
nem está deslocada do contexto tecnológico atual, como sugere a interface entre TV,
microcomputadores e a própria Internet. Além de acentuar as idiossincrasias de cada meio
em relação às práticas políticas; ressaltando, por exemplo, o aspecto de que a Internet, se
vista como novo espaço público, tem a capacidade de expandir isso que viemos analisando
como palanques eletrônicos e virtualização da política. Porém, e independentemente do
sucesso ou não dos palanques eletrônicos, a campanha de 1998 também inaugurou a era
dos santinhos virtuais: praticamente todos os candidatos aos cargos majoritários e grande
parte dos proporcionais aderiram ao palanque virtual160. Baseados em Home Pages
(páginas na Internet), a estrutura dos santinhos é idêntica às formas tradicionais compostas
em papel: com nome, número, foto do candidato e pequenos textos informativos em cores.
A diferença, nesse caso, é que não há o perigo dos entulhos e da poluição visual urbana.
Em relação ao acesso, porém, naquela época limitado em torno de 2 milhões de
internautas, os técnicos ainda destacavam sentidos diferenciados:

“Se alguém encontra o site ou o anúncio, vai contar para 20’, diz o engenheiro eletrônico
Ricardo Viana, que cobra R$ 90,00 para criar um anúncio para candidatos (...) O
problema é que, para encontrá-lo, é preciso navegar muito. ‘É uma gota no oceano, como
qualquer coisa na rede’, diz Viana, que acredita, porém, no ‘diferencial’ do endereço
eletrônico. ‘Dizer que tem uma página mostra que a pessoa está ligada no futuro. Essa
coisas que os políticos gostam’161. (Menezes, 1998).

Mas, mais do que isso e de acordo com o que vimos, se de fato há uma invasão da política
pela tecnologia, então é de se supor que as idiossincrasias da política foram parar dentro

160
Estabeleço aqui uma distinção entre palanque eletrônico, para propagandas em TV, telões e demais
suportes televisivos, e palanque virtual, para anúncios e propagandas instaladas na Internet. Porque, a rigor
este é o meio virtual que desponta em nossos dias. (Lévy, 1996).
161
Os principais anúncios eletrônicos dos partidos e candidatos em 1998 eram: PT (www.pt.org.br);
FHC (www.fernandohenrique98.org.br); Ciro Gomes do PSB (www.cirogomes.com.br); Enéas Carneiro do
PRONA (www.eneas.com.br); Paulo Maluf (www.maluf.com.br); Cesar Maia no Rio de Janeiro
(www.cesarmaia.com.br); e Marta Suplicy do PT de São Paulo ensinando como fazer a campanha do batom
(www.solar.com.br).
121

dos experimentos tecnológicos (relembremos a apatia popular diante das primeiras


incursões dos palanques eletrônicos de FHC). Portanto, o dia D do desembarque
tecnológico, outra modalidade de colonização intelectual, é concomitante ao reingresso da
política em novas formas de participação popular, e por mais que se expresse pela
indiferença e pelo descontentamento do eleitor diante do mesmo palanque eletrônico,

A sofisticação do palanque eletrônico de FHC produz opiniões diversas nas cidades por
onde passa (...) É o caso do agricultor Noé de Almeida, 32, que votou em FHC em 94, mas
está em dúvida sobre seu voto na eleição deste ano. ‘É uma campanha muito cara. Quanto
eles estão gastando com um show desse aqui?’, disse Almeida (Neri, 1998).

Assim, frente à desconfiança, que evidentemente pode ser dirimida, resta sempre o
argumento em favor do Projeto de Educação Tecnológica, voltado às Tecnologias
Educacionais (no dizer de Niskier), que se vale do próprio recurso tecnológico. É como se
o eleitor desconfiasse de certos objetivos e mensagens, mas não do recurso em si. Para esse
sentido, no entanto, vejamos um exemplo em que a mídia é aliada da Educação Política
Popular.

É o caso da Rádio Favela 104,5 FM, baseada na zona sul de Belo Horizonte, com alcance
médio diário de 160 mil pessoas. Como rádio comunitária, desenvolveu trabalho de auxílio
direto aos moradores, como recados e solicitações de serviços comunitários. Mas, o mais
interessante é que,

Além disso, com o auxílio de estudantes de direito da Universidade Federal de Minas


Gerais, a Rádio Favela divulga diariamente boletins informativos chamados “Para Que
Serve a Política?”. Eles explicam aos moradores como agir diante da violência policial,
abuso de autoridade, invasão de domicílio e prisão ilegal, fatos corriqueiros no dia-a-dia
da favela. Os boletins ensinam ainda para que servem órgãos como a Corregedoria da
Polícia Civil e Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público. O boletim sobre
invasão de domicílio por parte da polícia diz: “Policiais militares ou civis não têm direito
de entrar em sua casa sem ter em mãos um mandado de busca emitido pelo juiz. Caso sua
casa seja invadida, fique tranqüilo; acompanhe e observe-os no interior de sua residência;
anote a placa da viatura e, se possível, o nome dos policiais; faça um relatório com
assinatura de duas testemunhas e entregue à Corregedoria da Polícia Civil” (Wainer,
1998).
122

Infelizmente, apesar de todo o trabalho de esclarecimento político e jurídico desenvolvido


pela Rádio Favela162, ela própria já foi invadida e destruída pela polícia várias vezes -
demonstrando que a política, quando se trata de pobres, ainda parece ser um caso de
polícia, e independentemente da modernidade eletrônica que o poder lhes ofereça. Mas,
ironicamente, como que movidos por apelos populares, seus organizadores sempre voltam
à carga para denunciar o abuso de poder a uma massa empobrecida de informações
políticas. E o meio, tido como alocução política, é indubitavelmente seu porta-voz.

Mas, comparativamente ao exemplo da Rádio, agora em se tratando de um meio avançado


como a Internet, em que o palanque eletrônico é expandido para fora dos limites, pode-se
visualizar a mesma alocução política dirigida à educação popular?

3ª PARTE

PLEBISCITO VIRTUAL

Antes, porém, de continuar a análise, creio que se faz necessário esclarecer o que entendo
por comunicação política ampliada: como relação aberta, interativa, heterogênea etc, entre
indivíduos ou entre grupos, onde o meio é considerado apto quando abre canais
heterogêneos de comunicação, conversação, diálogo e não como simples meio de acesso
ou de mera difusão de dados.

Pois, para o relacionamento que se tem com a mídia, no sentido mais específico de
comunicação política, ainda prevalece a referência entre o meio adequado à comunicação e
o fim proposto. De maneira global, a comunicação política implica na tomada de decisões
capazes de alterar o quadro, a estrutura ou sistema político vigente:

A Comunicação política pode ser definida como o conjunto das mensagens que circulam
dentro de um sistema político, condicionando-lhe toda a atividade, desde a formação das
demandas e dos processos de conversão às próprias respostas do sistema.
Metaforicamente, pode-se conceber a Comunicação política como o “sistema nervoso” de
toda a unidade política (Panebianco, 1993, p. 200).

162
“A Favela ganhou duas vezes o Prêmio Dia Mundial sem Drogas, da ONU, por seu trabalho de
prevenção ao tráfico. Será ainda a única representante brasileira no Congresso Mundial de Rádios
Comunitárias, em Milão, na Itália, entre 23 e 30 de agosto” (Wainer, 1998). A rádio ainda opera sem
concessão; não é mais considerada pirata, mas também não tem o status legal de comunitária.
123

Também são várias as concepções que tratam da comunicação política, mas é de se


ressaltar que ainda vigora a que se baseia em modelos cibernéticos163; pois, como
sublinhado, a comunicação política implica na tomada de decisões, e estas por sua vez
implicam na alteração do sistema político:

À luz deste particular esquema de interpretação dos fenômenos políticos, a política é


entendida como conjunto de processos de guia e coordenação das atividades de um
sistema social, em ordem à consecução dos fins a que tende o sistema. O processo de
decision-making é, por isso, o mais importante. A Comunicação política é, pois, para a
cibernética, o conjunto de mensagens capazes de gerar decisões políticas. À luz do
conceito de Comunicação, qualquer sistema dotado “de um considerável grau de
organização, de comunicação e de controle, independentemente da diversidade dos
processos particulares de transmissão de mensagens e dos modos de desempenho das suas
funções”, é concebido como uma rede de comunicação, ou melhor, como uma rede de
conhecimento. Do mesmo modo é entendido também o sistema político (Panebianco, 1993,
p. 201).

No sentido proposto acima, e que se verificará no protótipo de plebiscito virtual – no


último capítulo -, um dos aspectos importantes a ressaltar é o das implicações e
possibilidades da conjunção entre o meio de comunicação e os fins, uma vez que a relação
necessariamente traz determinados resultados (normalmente coletivos), conseqüências e
implicações políticas — e que por sua vez geram novas expectativas, demandas e que
implicam em outras avaliações sobre o processo e em novas decisões. O que significa dizer
que o fim proposto e seu ajuste ao meio, no caso de ser o mais adequado, desencadeia um
processo político de mudança em que o próprio processo se ajusta dentro de uma rede de
conhecimento. Porque, mesmo que se trate de um procedimento ou ação individualizada,
no processo político a resultante é coletiva — vale dizer, política, pública. E sendo política
ou de domínio público, a sua compreensão se baseia em valores que tendem para o
coletivo, ainda que ideológicos ou puramente do imaginário popular (senso comum).
Porém, a abstração que o público realiza também tende a se firmar em seu conjunto de
valores, o que redunda em certo conhecimento que se tem da ação e implicação política
(podendo ser de senso comum ou de bom senso — quando nesse caso já se instaurou
alguma forma de educação política, ou seja, avaliação, julgamento e manutenção ou
reformulação de determinados valores políticos). Em suma, todo o conjunto do processo
163
Uma vez que a rede ainda não se popularizou em termos de acesso, consulta, formulação e
propagação de dados, informações e mensagens autônomas (políticas e outras).
124

político — as ações, implicações, decisões, resultantes, adequação de meios, avaliações etc


— constituem uma rede de comunicação política interna/externa e de conhecimento sobre
a dinâmica e os procedimentos políticos individuais ou grupais.

Por isso, parece-me claro que deveríamos privilegiar uma concepção de comunicação
política baseada em estruturas mais flexíveis, como vimos ao longo do trabalho.
125

BREVÍSSIMA (in)CONCLUSÃO
ou nova abertura?

Espero ter indicado de forma suficiente, ao longo dos capítulos, que se faz necessária a
idéia de uma educação pautada em valores fundamentais (igualdade, liberdade e
fraternidade) e que se estruture no formato da rede. Isso é importante tanto para o
desenvolvimento de um projeto específico voltado à manifestação política, utilizando a
rede onde floresce a cultura democrática dos cidadãos, quanto em relação aos inúmeros
problemas conceituais decorrentes dessa mesma manifestação política no dia-a-dia das
comunidades e das pessoas.

É importante destacar a idéia de projeto porque, no caso deste trabalho, apontei


insistentemente para a necessidade da elaboração de um projeto coletivo, ou seja, em rede.
Como também salientei que muitas das questões oriundas da manifestação popular, na
rede, têm implicações educacionais, desde as mais diretas (a exemplo do que se chama de
netqueta ou tele-ética, um substrato de valores morais que deve estar presente em cada e-
mail ou participação em listas de debates) até as menos claras, como se observa na crítica
pertinente do cidadão do sofá. Ou ainda, nos casos e debates em que se interpõe o direito
de livre expressão (permanência dos sites racistas e preconceituosos, normalmente em
território americano) e o próprio direito à vida. Pois, é evidente como o pretenso direito de
ofender interfere nas escolhas e formas de vida das pessoas, grupos, coletividades e
sociedades.

A proposta de uma Rede dos Cidadãos ou de reconhecimento, proteção e promoção dos


direitos humanos, concluindo, tem por finalidade realçar a necessidade de construirmos
coletivamente um conjunto de valores democráticos e públicos, de integral concordância
com os direitos fundamentais (vale dizer, o conjunto dos direitos humanos) e como uma
nova cultura política que se origina do uso político que se tem a partir da Internet.

Essa rede de direitos humanos deve ser estimulada concomitantemente ao desenvolvimento


político da Rede dos Cidadãos ou, parafraseando Lévy, ainda deveríamos verificar,
reconhecer e estimular o crescimento de uma inteligência coletiva, não apenas no sentido
cognitivo, mas sobretudo como uma rede de valores humanos políticos, sociais e culturais
que também exprimissem práticas mais solidárias, libertárias e igualitárias. Principalmente
126

em decorrência do crescimento da disponibilização da Internet como poderoso veículo de


comunicação social e política.

Acrescentaria como último adendo o fato de que a leitura da tese pode ter provocado em
alguns momentos a sensação de que é monocórdica. Mas, mesmo com essa sensação, o
trabalho não esteve distante do processo atual pelo qual passamos e que me propus analisar
em um de seus aspectos: o da necessidade de arquitetarmos nossos projetos, propostas,
ações e realizações de acordo com o formato da idéia de rede. Portanto, não piramidal, de
maneira hierárquica, cibernética e centrada. Daí também ter tomado a Internet como um
substrato vivo, um artefato latente e subjacente à Rede dos Cidadãos. Mas esse não será o
ritmo cardíaco igualmente monocórdico, excetuando-se os casos clínicos?

De certa forma, é esta metáfora (transporte) que sinaliza o próprio objeto da tese. O tom
firme, regular, uma batida constante à procura, talvez perseguindo, o cidadão que somos
em meio à rede, a teia que é nossa vida – um emaranhado de significados que o coração de
cada um se encarrega de bombear. Ou, de outra forma,

Eis as duas sabedorias. Uma, que anda na frente, a consciência triunfante, a luz que tudo
ilumina impiedosamente, a inteligência discriminante, que faz explodir a menor pretensão
do ego. E a outra, que anda atrás, a sabedoria que cresce lentamente com o
desenvolvimento da alma, da sensibilidade, da intuição, do toque compassivo do coração,
a sabedoria que floresce sobre o cadáver em decomposição do ego; quando não tememos
mais o sofrimento, quando os mil detalhes da dor passam a ser nossos melhores
informantes, quando a sede de prazer e segurança pára de velar a beleza, a profundeza e a
sutileza infinita da alma (Lévy, 2000, p. 41).

Por isso insisti sobre a urgente necessidade de rompermos com a leitura maniqueísta da
realidade. Enfim, creio, é uma questão de método e lógica, e com o que, espero, tenha
deixado o trabalho menos melancólico. Ainda que não tenha com isso pretendido
desqualificar posições diversas da defendida por mim neste momento. É o espírito do
trabalho. Foi a alma do projeto que me acompanhou desde 1997.
127

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