You are on page 1of 208

O Dogma dos Três Poderes

Cliente: D'Livros O Dogma dos Três Poderes Primeira prova data: 21/07/09
P. Garaude

O Dogma dos Três Poderes

D´LIVROS EDITORA
Copyright © Pedro Garaude Junior, 2009

Direção editorial Leoberto Balbino


Preparação e revisão Maria Lucia Flores da Cunha Bierrenbach
Projeto editorial D’Livros Editorial
Design da capa Ana Garaude
Ilustrações da capa Claudio Ripinskas
Projeto gráfico e diagramação R2 Criações
Impressão e acabamento ???????

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

2009
Direitos específicos de edição à D’Livros Editora Ltda.
Avenida Imperatriz Leopoldina, 1013 – Conj. 110
05305-012 – São Paulo – SP
Tel.: (11) 3641-3225
dlivros@dlivros.com.br
www.dlivros.com.br
Dedico este livro a minha esposa, meus filhos e netos.
O Dogma dos três poderes

Sumário

Prefácio ........................................................................................................... 9
Governo e estado ............................................................................................ 12
Há opção à divisão tripartite? . ......................................................................... 16
Verdades, dogmas, mitos ................................................................................. 22
Dogma versus liberdade . ................................................................................. 26
Governo: raízes históricas ................................................................................ 30
A aliança conveniente ...................................................................................... 40
Democracia não é opção… é conquista ........................................................... 48
Arquétipos sociais ............................................................................................ 52
Síndrome do salvador da pátria . ...................................................................... 60
Meritocracia, opção incompleta ....................................................................... 67
O egghead ...................................................................................................... 71
Objetivos, metas, parâmetros . ......................................................................... 75
Agências organizadas como empresas ............................................................. 77
Eleições, partidos, programas . ......................................................................... 81
Os comitês gestores ......................................................................................... 90
O conselho de Estado....................................................................................... 98
O chefe de Estado ........................................................................................... 101
Quando menos é mais ..................................................................................... 104

7
P. Garaude

Melhorias possíveis com a adoção da proposta ................................................ 111


Um órgão unificado de combate à corrupção .................................................. 115
Uma análise histórica necessária ...................................................................... 121
Desconstruindo o judiciário .............................................................................. 128
A Justiça eficaz ................................................................................................ 136
Simplificar o procedimento .............................................................................. 142
As agências de direito civil, empresarial e trabalhista ........................................ 145
As agências de direito tributário e administrativo ............................................. 151
Agência de direito penal e agência de administração penitenciária . ................. 155
Melhorar muito a segurança ............................................................................ 161
A injusta (e consagrada) teoria da suplementação ............................................ 168
Rever a tributação . .......................................................................................... 171
Soluções simples, eficientes, justas ................................................................... 180
Imagine ........................................................................................................... 197

8
O Dogma dos três poderes

Prefácio

A separação de poderes foi sugerida e sistematizada na primeira metade do sé-


culo XVIII, pelo francês Charles Louis de Secondat, o barão de Montesquieu (1689-
1755), em seu livro De L’Esprit des Lois.
Na obra, defendeu a conveniência de dividir o governo em poderes ou
funções, como seria mais adequado chamá-los: os ocupantes de cargos do pri-
meiro poder, o legislativo, teriam a incumbência de fazer as leis. Os integrantes
do segundo, o executivo, ficariam com o encargo de executar ou administrar as
normas criadas pelo primeiro. Finalmente, aos membros do terceiro segmento,
a função judiciária, caberia a tarefa de aplicar a lei ao caso concreto, fosse para
punir quem a infringisse cometendo ato defeso, fosse para determinar a repara-
ção de danos causados pelo descumprimento de regras ou contratos feitos sob
sua égide.
Defendeu que os três poderes fossem independentes, harmônicos, sem su-
perposição hierárquica de um sobre outro. A tese, de validade indiscutível e ainda
atual, partiu de premissa correta: se todos os cargos de governo fossem hierarqui-
camente submetidos a uma só autoridade, haveria exagerado arbítrio, muito poder
concentrado nas mãos de uma única pessoa, ou grupo, a quem todos teriam de se
reportar e se submeter.

9
P. Garaude

Até então, era rara a experiência do homem comum viver sem estar submetido
a um governo despótico, autoritário, às vezes tirânico, sob o qual o respeito aos
direitos individuais e à liberdade eram apenas ideias.
Montesquieu, por viver em época de pouca especialização, não se preocupou
com a natureza, a espécie de serviços que o governo deveria prestar — a divisão
seria feita por funções, não pelas áreas em que a administração pública devesse
atuar, que no século XVIII iam pouco além de segurança externa, interna, edição de
poucas regras reguladoras de direitos e obrigações, justiça — até então sanciona-
dora de todos os abusos do poder — execução e manutenção de algumas poucas
obras e benfeitorias públicas.
Transcorreram quase trezentos anos de sua formulação, e a divisão tripartite de
poderes, a despeito da grande evolução dos costumes e do conhecimento, continua
em vigor em quase todos os países democráticos, como um dogma fora de discus-
sões, uma teoria irretocável, imutável, ainda atual, única forma válida de evitar os
males de um regime arbitrário, não pautado no respeito aos direitos e liberdades
individuais.
Temos tentado diagnosticar sem a acuidade recomendável e buscado solu-
ções para problemas de governabilidade, sem nos darmos conta de poder estar na
superação do critério de divisão em três poderes a raiz de muitas mazelas atuais.
Sintetizo as principais.
O legislativo não é especializado, mas tem de se manifestar sobre todos os as-
suntos, dos mais variados, cada vez mais complexos e específicos, para os quais, em
geral, lhe falta conhecimento; sua representatividade é comprometida pela necessi-
dade de um enorme gasto para o candidato eleger-se; a forma de eleição afasta a
participação de pessoas capacitadas, não dispostas a concorrer e gastar seu dinheiro
para esse fim, sem a intenção de ressarcir-se; a tarefa fiscalizadora que deveria lhe
incumbir é anulada pela cooptação avassaladora procedida pelo executivo, sempre
a cata de maiorias parlamentares; tem um custo desproporcional a seu desempe-
nho, pois além dos polpudos ganhos, vantagens e benesses auferidos pelos próprios
parlamentares, custa também ao contribuinte o salário de milhares de funcionários
e assessores que trabalham para cumprir interesses pessoais dos deputados e se-
nadores, poucas vezes coincidentes com os da população; presta-se à atuação de
grupos econômicos dispostos a financiar as campanhas de candidatos, mediante
oportuna retribuição; perde o foco de seus reais objetivos: o tempo dos parlamen-
tares é gasto na busca ou manutenção de poder, da própria reeleição e evidência
na mídia, não poucas vezes na defesa contra acusações que lhes são feitas, pouco

10
O Dogma dos três poderes

restando para estudar, debater e solucionar problemas econômicos e sociais, razão


primeira e única de sua existência.
Enumerar defeitos, desatinos, incongruências dos parlamentos seria fastidioso.
A especialização em comissões é superficial, perfunctória, totalmente insuficiente.
O executivo, por estar dividido em especialidades, faz, de fato, quase toda a
função legislativa, decorrência lógica de monopolizar informações necessárias e
contar com especialistas aptos a elaborar as leis mais importantes e complexas,
quando dependam de conhecimento específico, pesquisas, simulações, informa-
ção de qualidade.
Precisando manter maioria no Congresso, o poder do “chefe de governo”
fica diminuído apenas na aparência, não realmente. Mantém incólume seu po-
der decisório, mas perde tempo, eficiência e produtividade para garantir o ne-
cessário apoio do legislativo, obtido em troca de favores, recompensas, cargos
e outras vantagens distribuídas a parlamentares ou seus afilhados, não em con-
cessões programáticas ou efetiva participação decisória. O mérito da escolha é
questão secundária.
O poder executivo não é tolhido, nem mesmo fiscalizado, apenas obrigado a
curvar-se a uma realista falta de pudor no uso da chave do cofre e da caneta das
nomeações que ficam a seu cargo, mas ao encargo da sociedade.
Essa situação frustra, por completo, as intenções teóricas dos pensadores
da doutrina da separação, concentrando enorme poder nas mãos de um dos
poderes e, pior, de uma única pessoa, gerando alta vulnerabilidade a seu discer-
nimento e prudência.
O judiciário, totalmente técnico no preenchimento de seus cargos, está em um
limbo, distante e incobrável pelo tomador de seus serviços. Convive bem com o fato
de estar sempre atolado em infindáveis processos, sem perspectiva de reversão e
sem preocupação objetiva e realista de solucionar o impasse.
O tempo para decidir é irrelevante, questão menor ante o cumprimento de
ritos e formalidades desprovidos de qualquer sentido prático, criados por juristas
ensimesmados em seu universo irreal de filigranas intelectuais, distantes do mundo
real das pessoas. Infelizes vítimas da necessidade efetiva do amparo judicial levam
anos, décadas para serem reparados em suas legítimas pretensões; os culpados de
delitos têm na prescrição do crime a melhor estratégia para fugir à punição.
Diagnosticar problemas é sempre bem mais fácil do que encontrar soluções. É
preciso ver se existem alternativas, e indagar se são melhores.
É isso o que pretendo fazer, neste livro.

11
P. Garaude

Governo e estado

C olocação pertinente e necessária reside na distinção entre os conceitos de go-


verno e estado — ambos por mim grafados em letras minúsculas, posto não serem
nomes próprios. Faço uma distinção no âmbito de conceituação linguística.
Apesar de, frequentemente, em linguagem coloquial os termos “estado” e
“governo” serem usados como se fossem iguais, acho conveniente fazer distinções
entre os dois porque o uso de um pelo outro se presta a confusões.
No caso, o objeto do estudo é governo, seu propósito e a forma de melhor
cumprir seus objetivos. Discordo da atual tendência, ratificada pela mídia, de excluir
legislativo e judiciário do conceito de governo, procurando defini-lo como se fosse
constituído apenas pelo poder executivo. Na concepção tripartite, governo é a soma
dos três poderes, não apenas um deles.
Uso o conceito estado como somatória: conjunto de pessoas vivendo em um
espaço delimitado, politicamente organizado, desfrutando de total ou parcial au-
tonomia. Estado não é antítese de sociedade civil, é a soma dela com governo. É a
sociedade politicamente organizada. É um povo morando em determinado territó-
rio provido de administração própria.
Há também quem confunda governo com as pessoas ou partidos que o ocupam.
Nada mais errado. Assim como não pode ser confundido com estado, ou nação, não

12
O Dogma dos três poderes

há porque deixar de distingui-lo das pessoas que o compõem ou exercem seus cargos
momentaneamente.
Governo é uma organização coletiva que, para funcionar no regime democrá-
tico, tem suas funções ocupadas, por certo tempo, por partidos ou pessoas, mas
não são elas. O máximo permitido é que, devidamente adjetivado ou restrito, possa
ser usado para distinguir certa gestão, período de sua ocupação.
Nação, por sua vez, envolve a identidade cultural de um povo, que pode, ou
não, ser reconhecida como estado soberano. Muitas vezes não o é. A tendência
é seu paulatino desaparecimento, pois a ideia sedimenta-se em segregação, raça,
pátria, tradição, em oposição à grande miscigenação e à globalização que vem
ocorrendo.
Em um estado democrático, governo é um conjunto de órgãos que tem por es-
copo prestar serviços à sociedade, regular relações entre seus integrantes e resolver
problemas que demandam participação coletiva, não equacionáveis ou exequíveis
por indivíduos ou minorias. Além disso, na social democracia, que defendo, deve
haver adicionalmente o propósito de prover o bem-estar e o progresso de pessoas
social ou fisicamente desfavorecidas.
Estes objetivos, tão claros, jamais deveriam ser ignorados, subestimados, mas
vêm sendo.
Tive um professor de Direito Constitucional que dava muita ênfase ao estudo
e à conceituação de “estado”.
Ele entendia “estado” como um ente natural, cuja existência era racional e
lógica, assim como o indivíduo e a família. Quando seu aluno, aos dezoito anos,
na academia do Largo de São Francisco, em São Paulo, assisti suas aulas com a im-
pressão de que o velho mestre, ao afirmar que o “estado é meio e não fim”, havia
constatado o óbvio com perplexidade, como é usada a expressão, de forma irônica,
para se referir a pessoas que parecem ficar deslumbradas com a verdade ululante,
finalmente descoberta.
Constatei, posteriormente, que sua verdade era bem diferente da minha. Para
ele, a volta ao passado se justificava, pois os melhores valores estavam sendo es-
quecidos.
O professor Ataliba Nogueira, monarquista e católico, baseado em Aristóteles,
Platão e São Tomás de Aquino, usava a expressão em uma escala de valores que
começava com o indivíduo, depois a família e então o estado, que abrangia o mu-
nicípio, a região e a nação. Estado, para ele, seria um ente de direito natural, a área
de inserção da pessoa humana à vida em sociedade imediatamente após a família.

13
P. Garaude

Sua defesa do sistema monárquico prendia-se a uma digressão teológica, cons-


tituída de uma escala que ia de Deus ao indivíduo, passando por entes naturais,
como seriam a família, o estado. Neste, equiparava o rei ao chefe de família, não
escolhido por seus membros, acima de seus interesses individuais e por isso o me-
lhor chefe, um pai de todos.
Sua lógica cartesiana chegava ao resultado pretendido: “O Estado é Meio e
Não Fim”, título de seu livro, era o fundamento de seu curso.
Com as premissas que usava, não seria difícil chegar às suas conclusões, inclu-
sive as de que no passado os (seus) valores eram mais respeitados. Levada a extre-
mos, sua posição de católico arraigado poderia justificar a unicidade de governo e
religião, de pátria, tradição; o estado como ente natural, intermediário entre Deus
e indivíduo, valores maiores.
Para seu desgosto, na época predominava nos meios estudantis, como moda
à qual também aderi, a teoria marxista de um estado forte e autoritário, apenas em
um primeiro momento: a ditadura do proletariado, que se apoderaria de todos os
bens de produção, única maneira possível de evitar a exploração do povo, a base so-
cial, por capitalistas egoístas e cruéis que usavam o governo para manter privilégios,
atrelando-o a seus interesses egoístas: a superestrutura de dominação — termo
usado pelo velho Karl.
De acordo com os marxistas, o objetivo futuro seria a eliminação do sistema de
classes sociais e do próprio estado, instrumento progressivamente desnecessário,
quando o proletariado assumisse os meios de produção e eliminasse a “mais valia”
apoderada pela burguesia industrial mantenedora de um governo que visava ape-
nas à conservação de um status quo de privilégios.
Para desencanto dos teóricos do comunismo, o sistema jamais passou da
primeira fase — a ditadura do proletariado, transformada, na realidade, em
opressão de um partido único. O resultado foi a criação de uma nova forma de
dominação, na qual o povo, submetido ao dogma marxista, foi privado total-
mente de sua liberdade em nome da emancipação que, de fato, o escravizou à
“nomenclatura”.
Se, ao longo da História, houve várias ocasiões em que se perdeu o conceito de
governo prestador de serviços, o que se repetiu recentemente na Alemanha nazista,
na União Soviética, na Albânia stalinista ou ainda hoje, na Coréia do Norte, isto deve
servir de alerta, exemplo para não reincidirmos no equívoco de aceitar governos que
se tornam fim e não meio.
A lição da História não pode ser desprezada.

14
O Dogma dos três poderes

Em qualquer regime totalitário, o estado onipresente e onisciente torna-se um


objetivo em si mesmo, um terrível instrumento de dominação de uns, os insiders
sobre outros seres humanos, os outsiders. Pior, ele acaba usando de meios morais,
ou não, para se tornar permanente e irreversível. A dificuldade de sua substituição
é enorme, muitas vezes ao custo de guerras, quentes ou frias.
Constatei que, em todas as ditaduras, os que estão em posição de mando
acabam se considerando superiores aos demais, pelo que passam a considerar jus-
tificáveis e válidos privilégios, tratamentos diferenciados, mordomias, benefícios,
gerando progressiva corrupção.
A par disso, a experiência acumulada em todos os estados absolutistas, mesmo
os que tiveram resultados econômicos satisfatórios, é a de que a inferioridade em
valores importantes, a médio e longo prazos, não lhes justifica. O espírito crítico,
a justiça, a liberdade, são bens incomensuráveis, cuja validade empresta superiori-
dade incontestável à democracia na formação e desenvolvimento do ser humano.
A evolução social e política já nos permite usar o conceito de governo como
instrumento de prestação de serviços ao indivíduo e à sociedade. Hoje, ele só se
justifica se entendido como ferramenta para organizar a coletividade e resolver pro-
blemas da forma como ela julgue devam ser resolvidos.
A intervenção teórica deve se limitar a discutir como isso pode ser feito. A
ciência política deve indagar como primeira questão: Qual a melhor maneira de
organizar o governo para fazê-lo prestar os serviços solicitados e priorizados pela
sociedade, pelo melhor custo-benefício?
Pressuposto necessário é apenas o de que haja ampla liberdade de pensamento,
possibilitando a discussão produtiva e bem encaminhada, para que os partícipes do
jogo democrático, que queiram se manifestar, o façam.
E que sua vontade — fruto de consenso, ou da maioria —, seja bem executada,
sem dogmas ou “verdades” que lhe sejam impostas.

15
P. Garaude

Há opção à divisão tripartite?

O sistema da tripartição está manco. Concebido para caminhar sobre três per-
nas, usa apenas uma e arrasta as duas outras, com resultados sofríveis. Na prática,
o executivo, muito melhor dividido em áreas especializadas, açambarcou as funções
do legislativo, deixando-lhe apenas o poder residual de ratificar as suas decisões, o
que ele faz, não pela convicção de seus membros, mas ao sabor de interesses polí-
ticos, cuja consecução depende da troca de favores com o executivo.
Não há razão inteligente para cristalizar, como dogma, a divisão do governo
em “poderes”. O sistema vem produzindo furos, cada vez mais difíceis de serem
consertados. As tentativas de emendar não tem sido suficientes para corrigir o que
foi se tornando viciado na essência, com o passar do tempo.
Com o uso, a divisão de Montesquieu foi conduzida a fazer outras separações,
especialmente no executivo, e também, de forma menos acentuada, no legislativo
e no judiciário.
O progresso tornou necessária a divisão em órgãos cuja natureza decorre da
especialização em áreas de atuação. Essas divisões foram feitas ao sabor das ocor-
rências, mas sem a consistência recomendável, sem sistematização, sem unicidade
de modelo e planejamento. Um erro que vem se acentuando com a evolução do
conhecimento.

16
O Dogma dos três poderes

A inversão de ordem na divisão recomendável, nos dias de hoje, vem causando


problemas cada vez mais complexos, difíceis e progressivamente insolúveis. Inver-
tida essa ordem, seria possível harmonizar os órgãos do governo, aumentar sua
eficiência e melhorar muito a qualidade da representação democrática.
Tecnicamente, as funções (o uso da expressão “poderes” é inapropriado) de go-
verno são apenas duas: deliberar e executar. Não há, na democracia mais evoluída,
validade científica ao conceito que estabeleça diferença entre julgar e executar.
Julgar, pelos conceitos modernos — que substituíram o arbítrio do julgador
pela opinião da maioria — é aplicar a lei. É executá-la. Não é correto entender que
o juiz toma decisão. Quem já a tomou foi o povo, os eleitores, a sociedade, de quem
emana a lei à qual o juiz está acorrentado, devendo cumprir e respeitar, mesmo que
não seja a sua opinião pessoal.
Por isso, não se deve considerar o poder judiciário um terceiro gênero, cuja
pseudoindependência para decidir passou a ser confundida com permissão para ser
ineficiente, não dar satisfações objetivas, não cumprir metas, não seguir parâme-
tros, deixar de aplicar a lei. A função jurisdicional deve ser entendida como forma
de executar a norma jurídica válida. Apenas isso. Sua eficiência em fazê-lo deve ser
medida e cobrada, o que hoje ninguém faz.
Não há justificativa aceitável para a demora excessiva, absurda, na aplicação da
lei, a não ser a divisão tripartite que embaça responsabilidades, camufla os respon-
sáveis e desfigura essa importante função governamental, dando sempre a uns a
possibilidade de justificar a ineficiência de todos pela culpa dos outros.
A justiça deve ser totalmente repensada, o que implica incluí-la na democracia
para manter-lhe isenção, mas passar a cobrar-lhe eficiência na aplicação da lei.
Independência não é causa de isenção, como erroneamente se afirma. Ne-
nhum órgão governamental deve ser independente de seu senhor: a coletividade.
É só equacionar o relacionamento adequadamente, o que também não passa pela
eleição de juízes, um mal maior.
A realidade constatável é que, nos dias atuais, o universo de conhecimento é
tão grande que não permite a uma pessoa, ocupante ou não de cargo de governo,
a abrangência intelectual suficiente para se informar, discutir, participar e decidir
com proficiência sobre assuntos cada vez mais complexos, especializados, que de-
mandam formação e atualização em um ramo específico do conhecimento.
As consequências negativas da divisão em poderes vêm se acentuando, progres-
sivamente. Os verdadeiros democratas devem perguntar se é possível a construção de
um modelo superior ao atual, que melhore a função instrumental do governo.

17
P. Garaude

Ao responder a questão, devemos nos despir totalmente de preconceitos, dog-


mas. É necessário, intelectualmente, desconstruir premissas que podem estar com
sua validade diminuída, ou superada pelo passar do tempo.
Já cabe a indagação de viabilidade para eventual sucedâneo ao modelo da tri-
partição. Se viável, há de se discutir se um sistema novo é conveniente e se o custo
de sua implantação seria compensado pelas vantagens decorrentes.
Prudente é, como premissa, achar que nenhuma mudança deve ser feita, a
menos que as melhoras sejam de tal monta que justifiquem o indesejável trauma de
qualquer alteração profunda.
Deixou-me animado a escrever o fato de ter chegado à conclusão de que a
mudança no modelo de administração teria consequências práticas muito positivas,
transcendendo, de longe, debates puramente teóricos ou ideológicos.
As alterações propostas levariam, se adotadas, a uma grande melhora não
apenas na qualidade da prestação de serviços públicos, mas a importantes ganhos
no aprimoramento da democracia.
A divisão inicial por funções está levando a falhas estruturais na organização
do governo. É anacrônica e os resultados práticos estão sendo sentidos sem um
diagnóstico que se aprofunde nas causas. É melhor mudar a forma de administrar.
A atividade governamental passaria, pela proposta que formulo adiante, a ser
dividida não mais pela separação funcional de seus integrantes, mas pela natu-
reza das áreas nas quais o governo presta serviços, como finanças, educação,
segurança, saúde, economia, bem-estar e seguro social, infraestrutura, meio am-
biente, relações exteriores…
Definida a divisão por áreas, apenas depois é que se faria a divisão por fun-
ções, mas também com conceituação nova, diferente, mais adequada, moderna,
seguindo o que todo o ser humano faz, naturalmente.
Como já disse, em relação à atividade planejada existem duas fases temporais
diferentes e claras: a deliberativa e a executiva. Como somos racionais, adotamos
um procedimento padrão para realizar tarefas. Exceto aquelas que passaram a ser
parte integrante da rotina, a ponto de as realizarmos automaticamente, antes de
executar é preciso informar-se, comparar opções, planejar, decidir o que se vai fazer
e, só então, passar para a fase de execução.
A fase ou função deliberativa deve buscar conciliar competência, informação
e, principalmente, legitimidade integral da representação. Manifestando-se isolada-
mente sobre cada uma das áreas de atuação do governo, o nível de decisão do elei-
tor, seu voto opcional, voluntário, passaria a ser muito mais importante. O foco seria

18
O Dogma dos três poderes

saudavelmente dirigido para propostas, implicando na discussão de programas, al-


ternativas mais ou menos interessantes em cada área de atuação governamental.
Hoje, depois de eleitos, os políticos que escolhemos para nos representar têm
toda a autonomia — e legitimidade — para deliberar contrariamente a nossas con-
vicções pessoais e pontos de vista.
A rigor, elegemos “procuradores” para nos representar no governo, que mal
conhecemos e a quem damos um mandato autônomo, integral, restrito apenas
no tempo.
Costumamos escolher o candidato pela empatia, indicação por alguém pesso-
almente interessado ou pela sensibilização almejada por campanhas cujo objetivo é
apenas a conquista do poder, a vitória eleitoral.
Na proposta que formulo, a eleição passaria a ser feita por chapas, votos
em partidos que atuassem em áreas determinadas, cujos programas e integran-
tes seriam conhecidos por quem quisesse votar, com base em campanhas in-
formativas dos programas e vida pregressa dos candidatos, sem ingerência do
poder econômico.
Os eleitos integrariam os comitês gestores — foros de decisão, com caracte-
rísticas semelhantes às bem-sucedidas “holdings” —, sócios que se organizam em
uma empresa que tem por objetivo participar de outras empresas — mas, evidente-
mente, com a substituição dos sócios pelos representantes eleitos pelo povo.
Cada holding, por sua vez, atuaria em certa área de prestação de serviços go-
vernamentais, conforme sua natureza: saúde, educação, segurança…
Embora consideradas atividades diferentes, no modelo sugerido ocorreria a salu-
tar interação entre decisão e execução: na fase deliberativa, pela necessária consulta
aos encarregados da execução; na fase executiva, pela corresponsabilização de quem
deliberou, pelo sucesso na execução das medidas que criou. Isto hoje não ocorre.
A fase executiva ficaria a cargo de empresas ou órgãos com a estrutura de
empresas especializadas, agências governamentais profissionalizadas, hierarquica-
mente submetidas aos colegiados de representação da sociedade, que escolheriam
seus diretores e lhes cobrariam resultados.
Não há dúvida, a despeito de passageiras crises, de que a forma de organiza-
ção das empresas é o mais exitoso modelo de execução de tarefas coordenadas na
produção de bens e serviços, em toda a história social e econômica humana. Difi-
cilmente será superada. São elas que criam quase todos os produtos e serviços que
consumimos e ainda geram excedentes usados na obtenção de todas as receitas de
sustentação do governo.

19
P. Garaude

Cheguei à conclusão de que é perfeitamente possível usar a experiência em or-


ganização e métodos empresariais, na prestação de serviços públicos, o que já vem
sendo feito de forma muito insipiente. Organizadas como empresas as agências de
serviços públicos, inclusive justiça, comandos militares, agiriam, mais ou menos, nas
áreas de atuação dos atuais ministérios.
A remuneração de seus diretores, comandantes, servidores, funcionários, seria,
parte fixa, parte consubstanciada na mensuração do desempenho, com prêmios em
função do cumprimento de metas, adequação a parâmetros e obtenção de resulta-
dos fixados pelos órgãos de representação.
Encontrei soluções boas ou razoáveis para os problemas e desdobramentos de-
correntes da proposta que consegui imaginar, inclusive a necessária coordenação e
harmonia. Agindo na coordenação geral do sistema, existiria o Conselho de Estado,
um órgão composto por representantes dos comitês.
O leitor poderá discordar dos argumentos que uso, mas, se interessado e
atento, não deverá deixar de considerar consistentes as críticas que formulo e viá-
veis as soluções que preconizo.
Faço algumas considerações históricas antes de abordar a proposta de organi-
zação de governo que formulo.
Não poderia, amante da história que sou, deixar de começar pelo início, as
origens, os caminhos e o diagnóstico que nos fazem melhor compreender as ra-
zões históricas e sociológicas da estrutura de organização atual, fruto de inegável
conquista, um grande avanço para a época de sua concepção, mas hoje superada,
razão de males para os quais não temos encontrado soluções.
Não resisti também a incursionar sobre temas como segurança, justiça, tribu-
tos e relações internacionais, uma complementação da proposta que se tornaria
possível e conveniente, se o debate passasse a ser dirigido para temas de interesse
das pessoas, da sociedade, problemas que efetivamente nos dizem respeito, que
repercutem no dia a dia, sobre os quais não somos, pelo modelo atual, convidados
a oferecer sugestões.
Venho criando progressiva ojeriza pelas discussões políticas, por não ver nelas
qualquer validade social. O interesse da sociedade, que é o único de fato impor-
tante, é tratado de forma tão distante que parece surreal. O tempo dos parlamenta-
res tem sido sistematicamente gasto apenas com a busca de prestígio, força, cargos,
ou então em discussões e comissões cujo objetivo é investigar centenas de abusos
ou irregularidades no uso do dinheiro público, que acabam, por sua própria inicia-
tiva, ou falta dela, jazendo no esquecimento. Suas poucas propostas de interesse

20
O Dogma dos três poderes

coletivo jazem em um deserto. Projetos, propostas, emulações e elucubrações têm


em mira apenas o jogo de conquista ou manutenção do poder e suas benesses,
custe o que custar. O interesse individual dos parlamentares não apenas suplantou,
esmagou a tentativa honesta e viável de solução para os problemas com que nos
defrontamos no dia a dia.
No modelo proposto, não há a pretensão utópica de criar um modelo perfeito,
nota dez. O problema é que, hoje, o modelo governamental paralisado desde o
século XVIII, quando foi criado, merece nota muito baixa. Um quatro, com algum
esforço. Se pudermos chegar a sete, devemos optar por trilhar esse caminho, ou-
sado para os padrões tradicionais que devem ser rompidos.
Prefiro a ousadia à paralisação. Estaríamos ainda vivendo sob a monarquia ab-
solutista se nossos antepassados não tivessem ousado e optado por uma mudança,
em algum momento. Creio ter chegado a hora de pensarmos nas próximas gerações
e legar-lhes pelo menos estudos, sugestões para um sistema de governo mais inteli-
gente do que esse que estamos usando, com pouco resultado, há muito tempo.
Não podemos aceitar dogmas, como não os aceitaram os homens e mulheres
que fizeram a Revolução Francesa ou construíram a Independência americana. A
democracia, premissa básica, fundamental, não deve ser entendida como conquista
acabada, mas aspiração eterna. Engessá-la é prejudicial, é condenar o ser humano a
um imobilismo que pode se tornar um retrocesso. Para construir o melhor caminho
rumo ao objetivo certo, claro, consensual, não há porque alicerçá-lo em pressupos-
tos ultrapassados ou dogmas.
Não desprezo o preço social, político e econômico de qualquer transformação,
muito menos de tal envergadura e profundidade. Mas as vantagens que encontrei
são de tal monta, superam tanto os problemas acarretados, que justificariam o
custo da mudança, se feita um dia.

21
P. Garaude

Verdades, dogmas, mitos

N o processo de conhecimento, defrontamo-nos com duas situações bem distin-


tas: a primeira abrange todo o universo das leis naturais, que podemos dividir em
físicas, químicas, matemáticas, as que definimos como ciências exatas. Essas leis
da natureza, preexistem a nós. Nós não as criamos. Podemos até usá-las em nosso
proveito, interferir em seu processo, manejando-o, para nosso benefício ou simples-
mente para compreendê-lo. Mas os princípios que regem essas leis são imutáveis.
Estão acima de nossa decisão e vontade.
As leis éticas ou sociais, ao contrário, dependem exclusivamente de nossa cria-
ção. Elas são idealizadas, efetivadas e modificadas por nós e deveriam ser feitas ex-
clusivamente para nos favorecer, embora isso muitas vezes não aconteça. Dogmas,
preconceitos, superstições, histórias engendradas por nossos ancestrais e por nós
mesmos, são entraves importantes no uso adequado das leis sociais, a nosso favor,
como deveria sempre acontecer.
Forçoso é reconhecer que, tanto na criação como no uso das leis éticas ou
sociais, não podemos chegar a unanimidades. Experiências, informações, influên-
cias do meio e nossa carga genética fazem-nos produzir verdades íntimas, próprias,
opinativas, não poucas vezes conflitantes com as de outras pessoas.

22
O Dogma dos três poderes

Por outro lado, existe uma grande dificuldade na hora de organizar posições
que, idealmente, deveriam ser consensuais ou, no mínimo, decorrer da maioria.
No respeitante à vida política, houve e ainda há vários obstáculos importantes
a nos desviar do que seria a tomada de decisões lógicas e democráticas. Há uma
variedade enorme de dogmas que nos foram impostos no passado por razões que
hoje podemos compreender. Há também os que lograram impor suas verdades,
construídas por convicção doentia, oportunismo disfarçado ou pela somatória das
duas, arrebatando um número enorme de seguidores. Muitos, de sanidade mental
duvidosa, lideraram organizações suficientes para induzir a maioria, com arroubos
de oratória e uma eficiente máquina de propaganda, a aceitar posições de ódio,
vingança, preconceitos e deturpações megalômanas.
Ao ler Mein Kampf, impressionou-me o grau de convicção do autor sobre seus
pontos de vista, tanto no diagnóstico das causas dos problemas sociais, políticos e
econômicos da Alemanha de sua época como ao analisar as razões de sua ocorrência,
a certeza de saber as respostas para todas as questões. Adolf Hitler, o autor da obra,
como a maioria daqueles que colocaram a liberdade como valor secundário, enxergava
a verdade eterna, externa, imutável, independente dos sentidos, disponível para ser
desvendada por pessoas iluminadas por uma inteligência invulgar, como ele supunha
ter. Logo, não seria preciso haver liberdade para os que discordassem, pois estariam
errados e atuariam contra os interesses do povo alemão, que ele sabia quais eram e se
achava em condições de implementar e defender. Dogmatizou a sua verdade.
A característica psicológica dos que tentam justificar o totalitarismo implica em
ver o mundo dividido: os bons, os maus, o certo, o errado, uma dicotomia sem ver-
dades intermediárias. O ditador alemão tinha uma solução para todas as perguntas
que formulou em seu livro. Tudo e todos, em seu entender, podiam ser classificados
e rotulados: judeus, arianos, franceses, ingleses, comunistas, patriotas, superiores,
inferiores, justos, injustos, inteligentes, estúpidos, honestos, corruptos, traidores,
interesseiros, generosos…
Corolário de sua arrogante autoavaliação, tinha horror ao que chamava de
meias verdades, posição dúbia, própria dos fracos, sem caráter. Não abria exceções
a qualquer um que discordasse dele. Qualidades e defeitos nas pessoas eram de sua
própria essência. Se fosse ariano era bom, superior, mas se não partilhasse seus pon-
tos de vista, traidor ou ingênuo. Se fosse judeu era mau, interesseiro, frio, egoísta,
desprovido da capacidade de amar.
Ele saberia como estabelecer a ordem, colocar cada um em seu lugar, os aria-
nos no topo, eliminar os que não coubessem no seu mundo, como, lamentavel-

23
P. Garaude

mente, tentou fazer, julgando-se, como denunciou Charles Chaplin, o dono dele.
Tinha receitas prontas para a organização política, a família, a antropologia, a arte,
a vida de todos.
Em geral, qualquer ditador sente-se como o pastor que conduz ovelhas ingê-
nuas e ignorantes a um porto seguro. Julga ter achado a receita de como os gover-
nados podem ser felizes e os conduzirá pelo caminho certo.
A realidade final mostra não haver, na essência, qualquer diferença entre go-
vernantes totalitários de esquerda ou direita. O regime econômico é apenas um
componente secundário a um estado poderoso, factótum, lastreado em uma filoso-
fia de apenas uma verdade: a sua.
No rol dos déspotas monopolistas do certo e errado, da verdade intrínseca des-
cortinada, além do tresloucado ditador alemão, apenas para falar dos mais recen-
tes, não podemos esquecer de Mussolini, Stálin, Franco, Salazar, Fidel Castro, Mao
Tse-Tung, Idi Amin Dada, Sadam Hussein, o pai e o filho Kim da Coréia do Norte,
entre centenas de outros, todos com passagem negativa pela História.
A característica marcante de todos eles, além da enorme admiração por si mes-
mos, foi o fato de terem convicções e opiniões fortes, absolutas, sem meio termo.
No essencial, jamais mudaram de ideia.
Ao contrário do que pensavam esses preceptores da sabedoria absoluta, opi-
niões sobre fenômenos sociais não devem ser peremptórias, pois quase todas tem
prós e contras. Qualquer pessoa de fato razoável há de ver a possibilidade de ver-
sões e opiniões diferentes, sabendo levá-las em consideração na formulação das
suas e no respeito às dos outros.
Não há verdades autônomas na interpretação de fatos sociais. Todas são ínti-
mas e questionáveis. Dogma é a eleição de uma verdade absoluta, acima de nossa
compreensão, cuja explicação não estaria ao alcance da razão humana. Só que,
se a história não conseguiu decifrar todos os dogmas, não deixa dúvidas quanto à
identificação de seus autores: os homens, ou melhor ainda, alguns homens.
Dogmas são armas do totalitarismo, a proibição de ter opinião, de pensar de
forma diferente daquela que alguém convencionou ser a certa. São um mal. Nada
justifica a proibição de pensar. Houvesse um criador, não tenho dúvidas de que seu
desejo não seria o de querer ver suas criaturas atreladas a verdades que lhe foram
impostas. Ao contrário, pai de amor gostaria de ter filhos interessados, curiosos,
desejosos de aprender e entender, de procurar suas próprias verdades.
Embora não exista a verdade autônoma, o fato é que os seres humanos têm
instrumental semelhante de acesso ao mundo externo. Nossas ferramentas de

24
O Dogma dos três poderes

contacto e discernimento são os sentidos e a razão, os quais, salvo patogenias, são


bem parecidos, para todos nós.
A premissa de haver uma verdade única é o embasamento inicial para vários
desatinos. Se é única, aqueles que passarem a ter certeza de a terem encontrado
vão querer impô-la sem pedir permissão e sem permitir dissensões.
A ciência vem nos ensinando que, assim como os animais moldaram o seu ins-
tinto, a razão humana foi construída. Ela é a evolução do instinto de nossa espécie,
fruto de experiências que levamos milhares de anos para sedimentar-se, transmitida
de geração a geração.
A razão é nossa principal arma de defesa, provisão e conhecimento, usada e
aprimorada, continuamente, na tentativa de compatibilização entre o ânimo de
viver e a necessidade, para isso, de enfrentar e amoldar um mundo hostil, à nossa
conveniência. Não é inata nem igual no tempo e no espaço. Certamente, ela era
diferente há 2 milhões de anos ou há cerca de 100 ou 50 mil, quando nossos ances-
trais deixaram a África e se espalharam pelo planeta.
Captamos, pelos sentidos, e aprendemos a processar, pela razão, ou lógica
comparativa, as informações disponíveis. Como elas variam muito, embora nossa
formação genética seja semelhante, nossas diferenças são muitas. Mesmo não
sendo possível a unanimidade, o ideal é que haja apenas racionalidade ao analisar
uma somatória de informações. Devemos buscá-la com isenção, sem preconceitos
e pré-condições, como conseguimos fazer com as leis físicas.
Fatos históricos devem ser sopesados com base na análise que fizermos deles,
e da possibilidade e da probabilidade efetiva de terem ocorrido. Da História e de
nossa própria experiência de vida devemos extrair valores eleitos como os mais in-
teligentes e vantajosos.
Na organização da sociedade devemos buscar atingir seu objetivo maior que é a
felicidade possível para o maior número de pessoas. Adiar felicidade para uma vida pós-
morte, renunciando à vida atual, em troca de uma outra, possível, mas improvável, é um
suicídio imperdoável e inexplicável que não faz sentido, principalmente se momentos
prazerosos podem ser conseguidos sem qualquer prejuízo à felicidade alheia.
Dedicar-se à adoração de um Deus que não vemos, não conhecemos em troca
de uma recompensa futura de felicidade, seria, no mínimo, entendê-lo como o mais
narcisista dos seres. Nosso estágio atual de bom senso não permite vê-lo de forma
tão baixa.
Podemos, portanto, eleger valores que partam da premissa de que o amor ao pró-
ximo, a conquista de uma vida saudável e feliz é o que devemos procurar, sem dogmas.

25
P. Garaude

Dogma versus liberdade

N a democracia, devemos implementar tudo o que for consensual e dar meios


e instrumentos para que nossas divergências, se não puderem ser aparadas, sejam
decididas pacificamente pela maioria. Mas, isso não basta. Ela deve ser plural. Deve
se caracterizar pelo respeito às diferenças, pela preservação integral da liberdade,
cujo único limite deve ser o usufruto de igual direito pelos demais.
O respeito à liberdade é essencial, no sentido de permitir a todos, mesmo os
minoritários, a livre expressão de suas convicções e o direito de defendê-las. A im-
posição de dogmas é um retrocesso, um atentado à liberdade de opinião, expressão
e comportamento. Há explicações na História para a sua criação.
Platão e os vários racionalistas que lhe sucederam davam excessiva importância
à razão que, em seu entender, era imutável, preexistente, autônoma, uma dádiva
divina que nos foi ofertada para entender a natureza em si, independente de nossos
sentidos, que poderiam nos trair.
Kant avançou no conceito, atribuindo, tanto à razão quanto aos sentidos, limi-
tações de espaço e tempo que nos impediriam de conhecer a verdade plena. A falta
de conhecimento e possibilidade de explicação para uma série enorme de fenôme-
nos justificava um criador que não nos permitia acesso a uma série de informações,
inalcançáveis pelos sentidos e pela razão.

26
O Dogma dos três poderes

A ignorância justificava vários dogmas. Aceite, porque não há como saber além
disso. Atribuir a autoria de dogmas a Deus, era um caminho, portanto, completa-
mente natural. A ciência, após o evolucionismo, a relatividade, a física quântica,
a genética, têm nos dado ferramentas e informações importantes para conhecer
nossa essência e só ela é capaz de alargar os limites do conhecimento.
Até dois séculos atrás, antes de Darwin, da Revolução Francesa, da Indepen-
dência americana, a verdade sempre foi fruto de posições impostas pela tradição
que não permitia dissidências ou dissensões. Hereges, antimonarquistas e os primei-
ros antiescravagistas foram presos e mortos.
Em geral, principalmente quando era definida como dogma, a verdade era a
um só tempo imposta pela fé, não desmentida pelo parco grau de conhecimento vi-
gente e, quase sempre, conveniente para servir ao interesse dos poderosos. Quando
reunia esses requisitos, era consagrada, houvesse ou não discordâncias. A ideia do
rei escolhido por vontade divina era uma, de uma série enorme de verdades conve-
nientes aos poderosos.
Ocorreu uma miscigenação nos conceitos de estado, Igreja, monarquia. Na
Inglaterra, o mais liberal dos países europeus até a Revolução Francesa, graças a um
capricho pessoal de Henrique VIII, o rei passou a ser o chefe da Igreja. Nos países
católicos, o rei era sempre ungido pelo papa, em troca de obediência a princípios
religiosos nada democráticos, como a Inquisição.
Na China, Japão e outros impérios, o rei era o próprio deus vivo. Não pode-
ria haver contestações. Os conspiradores eram executados em praça pública como
exemplo dissuasório.
O grande mérito da Revolução Francesa foi exatamente o extermínio de dog-
mas. Ninguém era nobre porque nasceu nobre, plebeu porque nasceu plebeu, ou
rei porque veio ao mundo para sê-lo. Os conceitos liberdade, igualdade, fraterni-
dade — que subentendem respeito ao próximo — são um manifesto ao antidog-
matismo, a verdades impostas.
O século XIX foi não apenas a alforria dos escravos nas nações civilizadas. Na Eu-
ropa e nos Estados Unidos foi o fim de dogmas. Foi a consagração do direito de pen-
sar, da liberdade e da igualdade de origem como valores importantes, fundamentais.
Com a consagração da liberdade, o conhecimento, antepondo-se aos dogmas,
toma vulto e importância, pois são rompidos os grilhões que atavam o desenvolvi-
mento científico e cultural da humanidade.
Hoje, está praticamente consagrado que a ciência é o único método aceitável
para se obter conhecimento, em antítese à verdade absoluta, cuja existência é cada
vez mais questionada. O uso de nossos sentidos e da razão, da tentativa e erro é a

27
P. Garaude

única forma de conhecermos paulatinamente a realidade. É a somatória de peque-


nas ou grandes descobertas que está nos proporcionando o acesso a um considerá-
vel acervo de informações.
A ciência — por ser de sua essência não aceitar preconceitos — tem nos levado a
compreender, em boa parte, o que realmente somos. É a única metodologia válida.
Devemos usá-la à exaustão, para conseguir informações a nosso alcance, por
todos os meios disponíveis, com o objetivo saudável de encontrar respostas à nossa
curiosidade e remédios mais eficientes para nossos males.
E, evidentemente, a ciência não se resume às áreas de exatas e biológicas. O
campo social vem sendo sensivelmente implementado com a liberdade de pensa-
mento. Foi com seu incremento que derrotamos as hoje absurdas teses justificado-
ras da escravidão, do absolutismo, do totalitarismo, da segregação por raça, sexo,
religião. Mas, talvez por herança atávica, conservamos certos dogmas, como o dos
três poderes ser a divisão necessária em um regime democrático.
Há alternativas a serem pesquisadas e discutidas.
O acaso, temperado por um critério de evolucionismo social que lhe empresta
tendências, não nos permite vislumbrar o futuro. Devemos, contudo, usar a História
para fazer o futuro. Criticar, discutir, avaliar sem preconceitos, são os modos de
trilharmos caminhos melhores.
Entender a História nos permite analisar o que fizemos de errado e aprender
com os erros.
Por não aceitar um deus despótico que nos dita o destino, nos dirige e governa,
nem aceitar a tentativa de analisar a História como um conjunto de causas e efeitos
concatenados e lógicos, como fizeram Marx, Hegel, e, recentemente, Hobsbawn,
acho impossível determinar o futuro.
Há fatores aleatórios importantes. Todos os que incidiram no erro de tentar
prever o porvir, fosse com predições paranormais, o caso dos profetas místicos,
fosse por ilações científicas, caso dos dialéticos, não tiveram a sanção da História.
Vimos, ao longo do tempo, aprendendo com nossos erros e acertos, meio ao
acaso, com idas, retrocessos e a tomada de decisões variando em um enorme arco
limitado em seus extremos, por lampejos de inteligência seguidos de longos mo-
mentos de escuridão e alheamento.
Devemos ser autores, atores, protagonistas e sujeitos de nossa vida. Dogmas
são óbices perniciosos porque, com frequência, limitam nossa atuação e nos colo-
cam como sujeitos passivos, obrigados e resignados a aceitar verdades que não são,
ou podem não ser, de fato, as opções que escolheríamos como mais aceitáveis.

28
O Dogma dos três poderes

Identifico, na História, uma constante evolução, não apenas tecnológica, mas


também social, política e econômica. Assim como a seleção natural formulada por
Darwin, o progresso social da espécie também é parte de nossa própria essência.
Fazemos nossas escolhas e incidimos em erros, criando dificuldades, sofrimen-
tos, além do necessário. Mas, aos poucos, vamos diagnosticando nossos desacertos,
eliminando decisões equivocadas, obsoletas, prejudiciais. “Os normais aprendem
com os próprios erros; os espertos com os erros dos outros”, diz o ditado. Lamen-
tavelmente, não temos sido muito competentes e muitos de nós têm reincidido em
erros que outros cometeram no passado e continuam a praticar no presente.
O progresso social é uma tendência, com altos e baixos. Um gráfico apontando
para cima, se visto à distância certa. Teria aclives e declives, alguns longos, mas, no
cômputo dos últimos cinquenta séculos, a tendência é nitidamente ascendente, ao
contrário do que acreditava meu professor de Teoria Geral do Estado. A liberdade
tem nos libertado de grilhões pseudonaturais.
Se, de um lado, não podemos prever nosso futuro, não tenho dúvidas de que
o conhecimento do passado é importante para diagnosticarmos os erros e não vol-
tarmos a cometê-los. Neste processo, devemos nos libertar de dogmas.
Entender o passado, criticá-lo, julgá-lo, ajuda-nos a compreender o que es-
tamos fazendo no presente, estabelecer os objetivos futuros que dependem, ba-
sicamente, de nossa vontade e decisão. Não devemos nos impor ou aceitar freios
irracionais ou ilógicos nesse processo.
O passado ensina-nos a indiscutível superioridade da liberdade recém-conquis-
tada pelos seres humanos. Mas há o risco de retrocessos.
Com liberdade, tudo deve ser questionado, sem exceção. Nesse sentido, o pas-
sado deve ser considerado um livro de aprendizagem, para não o tornarmos, como
ainda querem alguns, um código de procedimento ou um manual de instruções.
Passado não é prisão. É lição.

29
P. Garaude

Governo: raízes históricas

É do aumento de informações, do aproveitamento do que dá certo e do des-


carte total ou parcial do que deixa de ser válido, que provém a grande alavanca
propulsora do progresso científico, cultural, social. Aprendemos pelo método de
tentativa e erro.
Em um certo instante, um acontecimento amadurecido ou mesmo casual veio
a ter consequências jamais imaginadas por quem tomou a iniciativa ou descobriu
um detalhe que, naquele momento, poderia parecer sem importância, mas era
oportuno, útil; veio a ter desdobramentos enormes, imprevisíveis.
Sem dúvida, aprender a produzir fogo foi um passo de grande consequência
econômica, cultural, social, na paz e na guerra.
A produção voluntária da combustão multiplicou nossa possibilidade de so-
brevivência, ao ser usada como arma de proteção, caça, aquecimento, assepsia,
conservação de alimentos…
A utilização da roda, a Revolução Industrial, o uso da eletricidade, da energia
atômica e, bem recentemente, o grande impulso da informática e das comunica-
ções foram instrumentos importantes para melhorar nossa qualidade de vida e
desenvolvimento intelectual. Igual relevância parece estar reservada à nanotecno-
logia, no futuro.

30
O Dogma dos três poderes

Nenhuma dessas descobertas, ou qualquer outro momento da História, no


entanto, teve e aparentemente terá a importância para nosso desenvolvimento in-
telectual, como a ocorrida pouco após o fim da última era glacial.
Há cerca de dez mil anos, no período Neolítico, em algum lugar do planeta,
provavelmente no Egito, ou no Oriente Médio, demos um vigoroso e decisivo salto
para um enorme progresso. Desde então, com algumas paradas e retornos, o de-
senvolvimento acelerado humano, na ciência, nos costumes, na civilização, em vá-
rios lugares da Terra, vem ocorrendo até nossos dias — um círculo virtuoso de causa
e efeito.
O homem percebeu que, diferentemente de outros animais, usando sua capa-
cidade de memorizar e raciocinar, poderia atuar sobre a natureza, transformando-a,
à sua conveniência.
Antes coletor e caçador, nossa espécie percebeu que poderia pegar a semente
de uma planta, ou cortar parte dela, fazer sua muda, plantá-la em outro lugar.
Depois, cuidando, regando, combatendo pragas, colher o que lhe interessava,
em vez de sair a seu encalço. Resultado do cultivo de alimentos, percebeu que po-
deria atrair e domesticar animais, mantendo-os próximos, para seu desfrute e abate
oportuno.
Passou a ser autor de sua história, a escrever seu destino.
A escassez crônica, especialmente no inverno, a incerteza, deram lugar à pre-
visibilidade, à relativa abundância, com consequências muito importantes para o
desenvolvimento físico e mental da espécie. Com a agricultura e a pecuária, o ser
humano começou a alterar o meio ambiente, a interferir na natureza, não apenas
a se utilizar dela.
A humanidade, cujo número de indivíduos claudicava, pôde, então, ter enorme
e progressivo aumento.
Pouco depois, fixando-se, principalmente próximo a rios, como o Nilo, o Eufra-
tes, o Tigre, o Ganges, o Yang Tsé e alguns outros, começou a alterar seu entorno,
a moldá-lo para melhor fruir suas benesses. Passou a usar a água para regar suas
plantações e a usar o que plantava para atrair e domesticar animais.
Até então, coletava plantas e frutas, ou saía à caça e, se bem sucedido, tinha
de devorar sua presa às pressas, antes que apodrecesse, ou lha tomassem. Isto veio
a ter consequências incalculáveis, pois o ser humano deixou de ser nômade, o gan-
cho inicial para o desenvolvimento que estamos vivendo, até hoje.
Ocupando o mesmo espaço, pôde pensar em fazer sua moradia definitiva,
melhorando-a continuamente para proteger-se do frio, da chuva, de predadores.

31
P. Garaude

Antes se limitava a procurar onde se abrigar. Agora, construía seu abrigo, que ao
longo do tempo foi se tornando mais sólido, maior, mais confortável.
Plantando, colhendo, criando animais, mais do que precisava, percebeu que
poderia trocar o excesso, marcar um ponto de encontro com vizinhos, onde faria o
escambo das mercadorias que lhe sobravam por outras que lhe faltavam, de con-
sumo desejável: o criador de cabras encontrava-se com o plantador de repolhos
para a troca do que ambos tinham a mais do que podiam consumir, com vantagens
para os dois.
Mais tarde, para esse ponto também acorreu o ferreiro que poderia trocar as
ferramentas rústicas que fabricava por alimentos, o criador de ovelhas para trocar
sua carne, leite e lã com pessoas que aprenderam a processá-la para fabricar agasa-
lho, os que vendiam lenha, peles, azeite, vasilhames para água e alimentos…
Surge o uso da moeda, decorrência da necessidade de simplificar as trocas com
a inteligente substituição de objetos de valor intrínseco por símbolos, para facilitar
a transferência e posse das mercadorias.
A linguagem, até então restrita e precária, teve de se sofisticar, pois a vida ia
se tornando complexa. Ocorrem as primeiras tentativas de codificação gráfica para
registrar negócios que poderiam ter consequências futuras.
Um enorme número de palavras é criado para designar não apenas objetos,
mas ideias que precisavam ser usadas para haver o entendimento entre os vários
agentes na solução de seus interesses e problemas. Questões, tanto mais complexas
mais exigiam o concurso de outras pessoas e demandavam clareza, para que todos
entendessem o que precisava ser comunicado. Isso foi vital para o desenvolvimento
da fala, e mais tarde da escrita, para registrar contratos, a vontade dos deuses, as
leis, as histórias e a História.
O círculo virtuoso se estabelece desde então e segue uma escala crescente,
com altos e baixos próprios de nossa imperfeição. Mas é a linguagem que permite
o desenvolvimento cerebral, viabilizando o raciocínio, primeiro simples, depois abs-
trato, cada vez mais complexo, preciso, memorizado, criativo.
As primeiras vilas certamente não tinham governo, mas logo foi verificada a
conveniência de sua criação, mesmo incipiente, sem qualquer fundamento teórico.
Vários problemas de interesse geral surgiam, como a validação dos símbolos de
troca, a disputa pela água, a melhor localização na praça, a remoção dos restos e,
à medida que a vila crescia, distanciando-se das margens dos rios, o acesso a eles,
as estradas e a administração dos conflitos por critérios mais sofisticados do que a
luta corporal.

32
O Dogma dos três poderes

Há necessidade de normatizar trocas, transações, o direito de passagem, os pa-


gamentos mesmo em mercadorias, muitas vezes para liquidação futura. Surgem os
primeiros conflitos sobre a propriedade e posse de terras, águas, alimentos, animais.
Mais importantes em consequências para o surgimento de um esboço de go-
verno foram as disputas por áreas e bens, travadas entre os locais já habitados por
sedentários e tribos de nômades que passaram a cobiçar sua fartura. Esses últimos
viam o saque à vila como opção mais fácil, em sua empreitada em conseguir ali-
mentos, por demandar menos esforço do que teriam na incerta coleta de frutos e
na caça de resultado duvidoso. Logo, a cobiça foi além, ganhou vulto.
As guerras, antes circunscritas a nômades e sedentários, passaram a ocorrer
entre esses últimos, já estabelecidos.
Os melhores terrenos, aqueles servidos por água abundante e terra fértil, pas-
saram a ser disputados por povos que simplesmente aniquilavam, ou alijavam do
local, seus precursores militarmente mais fracos.
Percebeu-se então a necessidade de se criar um grupo de homens armados
e treinados, aptos a defender a vila, as terras, as plantações do entorno, quando
intrusos tentassem se apropriar delas à força. Saberiam os invasores que haveria
resposta e custo, antes desprezível.
Aparecem os guerreiros, as primeiras forças armadas organizadas e treinadas.
Como decorrência, surgem os chefes, líderes dessas tropas, necessários para coorde-
ná-las, treiná-las e definir as melhores estratégias de defesa e ataque. A unidade de
comando e coordenação era extremamente conveniente para o êxito nas batalhas.
Os mais aptos, pela força ou pelo melhor discernimento, passaram então a
ocupar os postos hierárquicos de chefia.
Não tardou que, mercê da força dessas tropas, o chefe militar se impusesse
também sobre todos os demais moradores da vila e arredores, não só como seu
protetor, mas também como governante, pois tanto melhor organizada e forte a
vila, ou a cidade, melhor as possibilidades de vitória contra o invasor. Poderia haver
a necessidade da construção de muros, prédios fortficados…
Acresce que manter a tropa tinha um custo a ser cobrado de todos os morado-
res, beneficiários de sua proteção. Surgem os impostos, em espécie ou em natura,
necessários à formação e manutenção das tropas de defesa, depois à obtenção dos
meios necessários à solução dos problemas de interesse geral, às melhorias.
Chefes guerreiros assumem, portanto, primeiro as funções militares, depois tam-
bém as de disciplina, a organização da cidade, a solução de problemas administrati-
vos, e os conflitos. Com o tempo, vão se tornar duques, príncipes, reis, césares.

33
P. Garaude

As sobras financeiras, sempre almejadas, evidentemente eram usadas para o


conforto, a segurança e o bem-estar do governante e de seu séquito. Mas havia
uma retribuição compensadora em benefícios diretos a quem pagava.
Em muitas vilas, ou cidades, viabilizou-se a captação coletiva da água, a lim-
peza dos espaços de uso comum, a construção de ruas, estradas, melhorias até
então muito precárias.
Verificou-se a conveniência da existência de um governo. Por seu intermédio,
benfeitorias, obras de defesa, eram executadas de forma organizada, o que apenas
uma pessoa, ou um pequeno grupo delas, não conseguia empreender. Logo, as
vilas mais bem organizadas e estruturadas foram atraindo mais pessoas, crescendo,
se fortificando.
É antigo o ditado “a melhor defesa é o ataque” — e isso foi logo percebido
pelas cidades-estado, pelos reinos e impérios bem-sucedidos.
Inicialmente com o propósito de promover a defesa, os chefes militares, também
em função de treinamento e ocupação de eventuais ociosidades das tropas, viram a
conveniência de atacar e conquistar cidades vizinhas. Com isso, os primeiros reis au-
mentaram a área cultivável, a produção de alimentos, seus domínios, sua força.
Os estrategistas de guerra perceberam as vantagens decorrentes, a conveni-
ência de promover o alargamento das fronteiras, depois a apropriação de riquezas,
terras, a obtenção de escravos para executar as tarefas mais penosas e desagradá-
veis, para as quais faltava mão de obra voluntária.
A vantagem obtida com mais áreas e mais poder levava a cidade vencedora a
reverenciar seus líderes, proclamados heróis, defensores perpétuos, não raras vezes,
divindades vivas.
O chefe militar, promovido a príncipe, tornava-se rei, faraó, imperador. A tradi-
ção e o costume, transcendentes aos regimes monárquicos, chegam a nossos dias,
quando os chefes de estado e governo ainda ocupam o cargo de defensor perpé-
tuo, chefe supremo das forças armadas.
O poder dos imperadores, faraós, césares ou o nome que lhes fosse dado, cada
vez maior, proporcional à força de seus exércitos, concedia-lhes privilégios e, simul-
taneamente, servia para dissuadir algum eventual aventureiro que ousasse tentar se
apropriar do trono.
As cidades mais organizadas expandiram-se, dominaram outras vilas, transfor-
mando-se em reinos, reunindo várias outras áreas urbanas.
Surgem grandes impérios, como o Egito, a Assíria, a Babilônia, a Pérsia, a China
e, quase na mesma época, nas terras do novo mundo, formaram-se grandes e du-

34
O Dogma dos três poderes

radouros estados, como os dos maias, astecas, incas, baseados na chefia forte,
autoritária, incontestável.
Grécia e Roma têm caminhos pouco diferentes. Na Grécia, onde não chegou a
haver um grande império centralizado, nenhuma cidade-estado teve imperadores ou
líderes extremamente fortes, até Alexandre, o Grande, na verdade um macedônio.
Atenas ensaia a primeira forma de governo democrático de que se tem notícia, mas
a experiência é efêmera. Ideias coletivistas de governo aparecem ali pela primeira vez,
mas com o poder restrito aos cidadãos mais proeminentes, a “aristocracia”, diferente
da meritocracia, como queria Platão: o poder conferido aos mais aptos e preparados.
Em Roma, o Senado é um precursor efetivo do governo colegiado, também
de acesso limitado à aristocracia, que com ele consubstanciara um pacto de divisão
nas decisões de seu interesse. O poder de fato fica concentrado nos generais, cujos
exércitos endossam sua força, se o seu próprio poder não for questionado.
A constante incerteza e as disputas pela hegemonia não efetivamente impos-
tas pelo Senado fazem o sistema republicano fenecer de vez, após vários episódios
agônicos, culminados com a morte de Júlio César.
Seu assassinato, pelos próprios senadores, desestabiliza de vez a instituição e rein-
troduz o sistema de absolutismo: imperadores deuses, infalíveis, incontestáveis, pleni-
potenciários aos quais se devia todo tipo de obediência e adoração. Um retrocesso às
origens primitivas da cidade e épocas que, por certo tempo, pareciam ter desaparecido.
O Senado persiste apenas como órgão decorativo e de simples consultoria.
Bem antes e em todos os impérios surgiu o problema sucessório, pois a vacân-
cia no trono criava problema novo, de instabilidade e disputas. O que fazer quando
o rei morria?
A pior situação, a menos desejável, era a de se estabelecer a luta pelo poder,
provocando instabilidades institucionais de grande duração e graves consequências.
Viu-se a conveniência de que o rei, o imperador, ainda em vida, designasse seu
sucessor.
Com frequência constante e progressiva, a escolha recaía em seus filhos, por
serem seus sucessores naturais.
A monarquia hereditária foi, assim, um regime naturalmente criado nos primór-
dios da civilização, gerando no inconsciente coletivo a ideia de um grande e necessá-
rio “pai da pátria”, o chefe natural, o defensor por direito e consanguinidade, do qual
todos dependiam e, por isso mesmo, ao qual amavam, reverenciavam e temiam.
Os monarcas viram, logo, a conveniência de dar à sua liderança a condição de
natural, divina, ungida pelo destino e pelos desígnios de entes de outra dimensão,

35
P. Garaude

que não podiam e não deviam ser contrariados. Por qual outra razão, afinal, teriam
os reis direito ao trono? Na Idade Média dá-se um regresso ao conceito de senhores
feudais investidos à condição de chefes militares simultaneamente proprietários de
grandes extensões territoriais.
A transmissão hereditária decorre da vontade de Deus que, por meio de seus
sacerdotes, coroa o sucessor, logo que morto o ex-titular do trono. A Igreja não
apenas legitima o herdeiro que sucede seu pai. Empresta-lhe obediência, resigna-
ção e respeito. O senhor feudal, por sua vez, dono do poder de arbítrio, cobra aos
camponeses submissão e o pagamento pelo uso de suas terras. Em troca do reco-
nhecimento a esses direitos outorgam aos religiosos o direito de monopolizarem o
ensinamento de sua doutrina, proibir heresias e dissidências.
Os impérios tem a tendência de se tornarem maiores. As guerras entre os rei-
nos medievais eram comuns, motivadas por causas várias, como a simples intenção
de dominar, a definição de fronteiras incertas, o direito de passagem, o acesso à
água de rios e a cobrança de taxas decorrentes. Além disso, havia também questões
de honra ou vingança de atitudes tomadas por antepassados. Cria-se, em contra-
partida, a solução de conflitos por meio de casamentos arrumados ou arranjos pa-
trimoniais com o constante alargamento das fronteiras dos reinos que se unem.
Outras vezes, por razões de estratégia de defesa contra agressões externas, deu-se
o surgimento e a consolidação de federações de feudos e, progressivamente, o surgi-
mento de um poder central, geralmente ocupado pelo mais poderoso dos senhores
feudais promovido a rei pelo poder das armas ou de alianças bem construídas.
Aos poucos, os feudos foram abrindo mão de sua autonomia, aliando-se a
outros pequenos estados ou submetendo-se a eles. O princípio de que a união faz
a força foi o responsável pela volta de grandes reinos e impérios. Como regra, o
estado mais poderoso assumia a função de sede dominadora do reino.
Após o feudalismo, caracterizado por múltiplos pequenos estados, um novo au-
toritarismo centralizado ocorreu durante a Idade Média, quando surgiu, como forma
de governo mais comum, a monarquia absolutista, o rei ungido por Deus. Os exércitos
centrais foram se tornando cada vez mais fortes, porque os governos foram perce-
bendo que a existência de forças armadas na esfera de ducados, condados e princi-
pados levavam a certa instabilidade, uma insegurança interna que poderia alimentar
tentações separatistas, ou pior, pretensões à conquista do trono central.
A aliança dos reinos europeus com o papa em geral assegurava o poder ao rei
que lhe fosse mais simpático, em troca de que o direito à coroa fosse justificado
aos súditos como um resultante de escolha divina, assegurado pela palavra de seu
representante máximo na Terra.

36
O Dogma dos três poderes

Em geral, os grandes reinos eram divididos em áreas administrativas de base


geográfica, decorrentes de delegação do monarca a alguns nobres para exercer, em
suas regiões, as funções de polícia, justiça e administração.
Com pequenas variações, o absolutismo foi a forma mais comum de governo
até fins do século XVIII, não apenas na Europa, mas em praticamente todo o mundo
ocidental e oriental. Não se pensava, a rigor, na divisão de poderes, o que sujeitava
os súditos, ou governados, à prepotência de uma só autoridade e ao consequente
arbítrio na administração, na criação das leis, na sua aplicação.
Decisões sobre conflitos entre pessoas comuns e dessas com o governo eram to-
madas pela convicção pessoal do julgador, em geral um nobre ou pessoa por ele desig-
nada, estivesse ela, ou não, conforme a opinião dos governados, sequer consultados.
Apenas precedentes religiosos, morais, ou decorrentes da tradição e costumes
eram levados em consideração, tanto na forma do processo e na admissão de pro-
vas como, principalmente, na aplicação das penas.
A Inquisição é uma resposta da Igreja aos movimentos de protesto e revisão
dos conceitos emanados de Roma, mas, após o Renascimento, sua função, embora
mais religiosa do que política, passou a servir aos governantes, tendo em vista que
a autoridade real era entendida como emanada do Criador. Deixar de aceitar regras
e determinações reais era considerada uma forma de heresia, pois equivalia a não
aceitar ordens do poder sancionado por Deus, portanto indiretamente emanadas
dele. Não poucas vezes, processos inquisitórios tinham a maldisfarçada intenção
política de desestimular contestações à autoridade — ou à arbitrariedade.
O sistema político enredou-se, não apenas no mais arraigado conservadorismo,
na manutenção de dogmas, tradições, privilégios, situações impossíveis de serem
questionadas, muito menos revertidas. Aos que ousassem pensar ou propor altera-
ções à ordem estabelecida, era imposta a condenação à morte ou a castigos terrí-
veis, visando à dissuasão dos incautos dissidentes.
Alguns monarcas mais conscienciosos procuraram agradar o povo, intencio-
nando a conquista de sua estima, conveniente paz social ou reconhecimento pós-
tumo. Muitos agiram na expectativa de que, tomando medidas populares, subju-
gariam, preventivamente, investidas contra sua autoridade, ou as adotaram para
acalmar revoltas, insurgências ou tumultos indesejáveis, inconvenientes.
A evolução decorrente dessa política ocorreu na Inglaterra, com a chamada
“Magna Carta”, no século XIII, considerada a primeira constituição da História. Feita
a contragosto do monarca, o documento foi importante conquista de direitos indivi-
duais e tributários, um avanço da democracia, pois o caráter absolutista das decisões

37
P. Garaude

passou a demandar certa aquiescência dos governados, em razão da inaugurada re-


presentação de nobres e da plebe nas decisões que pudessem lhes dizer respeito.
A força do poder dos monarcas medievais surgiu sem regra fixa, de várias
maneiras, por múltiplas razões, mas consolidou-se. O absolutismo sem disfarces
estendeu-se, mesmo após o Renascimento, e durou, com a exceção pontual e par-
cimoniosa da Inglaterra, até a Revolução Francesa e a Independência americana.
Aqui e ali houve algumas exceções, com a substituição da monarquia abso-
lutista por oligarquias ou aristocracias, sistemas nos quais a figura do rei era eli-
minada. Em seu lugar, uma casta de nobres dividia o poder, selando acordos de
cooperação entre si e com a Igreja. Vez ou outra, passou a se dar representação às
corporações profissionais, que participavam das deliberações e indicavam membros
para integrar os foros de decisão.
Experiência interessante deu-se a partir do fim da Idade Média, em algumas
regiões da Itália, nas quais se instituiu um regime republicano, evidentemente restrito
aos cidadãos proeminentes, por origem ou patrimônio. A dinastia dos Médici gover-
nou por séculos, graças a uma política de alianças ardilosas, sobretudo com a Igreja
romana, para a qual cederam alguns membros da família, como cardeais e até papas.
Mas essas experiências não tiveram grandes desdobramentos na História, e sua influ-
ência foi mais sentida nas artes, que os Médici patrocinaram com entusiasmo.
No século XVIII, exatamente quando Montesquieu viveu, começa a haver maior
contestação, especialmente nos meios intelectuais, a esse alardeado “poder ema-
nado de Deus”. Se fossem mesmo os monarcas hereditários os seus escolhidos, por
que não havia manifestação clara e direta, que independesse da palavra do papa ou
de seus porta-vozes autorizados?
Ademais, seria vontade divina a existência de desigualdades perenizadas, di-
ferenças decorrentes de sangue, origem, conceitos tão contrários ao verdadeiro
cristianismo? A nobreza nascia e era educada como constituída por pessoas supe-
riores às demais, e a plebe era vista com indisfarçável desdém. A rigor, não havia,
por parte dos reis e dos nobres, qualquer interesse em conhecer ou resolver os
problemas do povo, sua miséria e fome. Essas contradições seriam compatíveis com
a crença cristã na solidariedade, fraternidade, igualdade?
Tais questionamentos, sem dúvida alguma, tiveram um inegável pioneirismo nos
dois lados do Atlântico: na América do Norte, com suas colônias culturalmente avan-
çadas e na França, com o surgimento de pensadores refinados, como o barão de
Montesquieu, que criou o conceito dos três poderes, implantado nos Estados Unidos,
por pensadores que sofreram a influência dos europeus, em sua primeira versão.

38
O Dogma dos três poderes

Na Inglaterra, a conscientização da necessidade de diminuição dos poderes do rei


já existia, mas o processo foi lento, suave, progressivo, fruto de negociações demora-
das ou conflitos de consequências paulatinas. Mas, para deixar clara a inconsistência
da convicção efetiva nos princípios verdadeiramente republicanos, é de se registrar
que, quando nos Estados Unidos, pela primeira vez no mundo, se instituiu um regime
democrático forte e duradouro, havia ainda tolerância à escravidão e sua extinção foi
causa de violenta guerra civil, provocando enorme número de mortes. A democracia
americana substituiu a ideia do rei preexistente, até então vendida ao povo como es-
colha divina, por um novo rei, eleito pelos homens e por tempo certo: o presidente da
República. Foi uma grande evolução, sem dúvida, mas não suficiente para até o fim
dos tempos, como se supõe. Herdamos dos regimes monárquicos o conceito de um
chefe, um único líder, quase um super-homem a nos comandar, ideia que acredito,
com o tempo, se tornará obsoleta. Na verdade, ela é pueril. Nenhum dos modelos de
governo que se seguiu, eliminou a figura do “chefe”, do líder acima de todos.
A pompa e a circunstância continuaram e, diferentemente das monarquias
que se democratizaram, como a inglesa, a holandesa e a dos países nórdicos, o
presidente americano passou a enfeixar os papéis de chefe de estado e de go-
verno: o rei e o primeiro-ministro, ao mesmo tempo. Hoje, há poucas variações
dessa herança paternalista de chefia. Na Europa, alguns países adotaram um sis-
tema misto de presidencialismo e parlamentarismo, como são os casos da França
e da Rússia, com presidentes poderosos convivendo com um primeiro-ministro de
sua nomeação.
O parlamentarismo puro, como foi inicialmente concebido, está quase extinto,
porque se mostrou ineficiente. Países como Itália, Espanha, Inglaterra, Portugal,
Alemanha, enfim quase todos os estados europeus, além do Japão, partiram para
um sistema de parlamentarismo em que o primeiro-ministro é sempre o chefe do
partido, ou da coligação vencedora nas eleições legislativas. O presidente de fato.
O eleitor vota no partido e, indiretamente, no primeiro-ministro. Assim, até um
aspecto positivo do sistema, consistente na periodicidade indeterminada, a possi-
bilidade forte de cobrança e a escolha do primeiro-ministro pelo legislativo, foram
substituídos por uma espécie de presidencialismo, com a eleição indireta do chefe
de governo, sempre ratificado pelas forças políticas vitoriosas que dependem de seu
comando, já antes consolidado.
Enfim, desde o início da humanidade, com raras e precárias exceções, nos habi-
tuamos a governos unipessoais, nos quais é conferido a uma única pessoa o poder
de fato, um enorme e descabido arbítrio. A História explica.

39
P. Garaude

A aliança conveniente

S e quiséssemos escrever um livro sobre a história dos governos, a religião em


geral e a Igreja, em particular, teriam papel de enorme destaque.
Provavelmente, antes mesmo de se tornar agricultor, o ser humano já tinha cons-
ciência de sua finitude, pois via seus parentes e amigos morrerem, o que lhe fazia
prever sua própria morte como inexorável. A tomada de consciência de sua própria
existência e de seu fim terreno vinha também com uma série de indagações, para a
qual não se tinha resposta, como as célebres: Quem sou? O que sou? Para onde vou?
Como e por que existo? Será que a vida continuará após a morte do corpo? O que
será de mim quando eu morrer? Poderei voltar a ver meus entes queridos?
Podemos inferir pela observação dos povos, que vivem ainda hoje em idade
cultural semelhante, que a situação não seria, há 10 mil anos, muito diferente da-
quela ainda reinante em tribos primitivas na Amazônia, em alguns lugares da África,
em Papua Nova Guiné, entre os aborígenes australianos.
Respostas àquelas perguntas não eram obtidas de forma racional, ensejando
o surgimento de crenças com explicações místicas e sobrenaturais, para as quais se
abriu uma longa avenida pronta para receber o surgimento de várias religiões que
tentavam dar sentido à vida, explicação para nossa total ignorância sobre nossa
origem e nosso destino ao “desencarnar”.

40
O Dogma dos três poderes

O tratamento de doenças e males do corpo e da alma ajudaram na empreitada.


Ele era realizado pela invocação de forças místicas, evidentemente, sem qualquer
embasamento científico, visto que tal conhecimento não estava ao mais remoto
alcance. No máximo, havia a experimentação de ervas e drogas, cujo eventual êxito
implicava na continuação de seu uso. Nenhuma outra relação de causa e efeito.
Mas o poder da fé, ainda hoje estudado, não apenas parece ter surgido dessa
nossa necessidade de respostas, da esperança em remédios para os males da vida,
como impregnou-se em nossa memória genética, produzindo resultados até os dias
de hoje. Muitos de nós precisam da fé, como do próprio alimento.
A religião, praticada de forma rudimentar, é anterior ao surgimento das vilas. As tri-
bos já tinham seus próprios pajés ou xamãs, incumbidos, principalmente, de administrar
as cerimônias de adoração aos deuses. Mas moradores de cidades e impérios que sur-
giam precisavam uniformizar respostas, crenças, adorações a deuses de aceitação mais
universal do que os viventes em tribos, cada uma criadora de suas próprias divindades.
Nas vilas, os sacerdotes tentaram dar respostas mais sistematizadas a questões igno-
radas, principalmente para a atenuação das dores decorrentes de doenças e mortes. Com
crescente prestígio, começam a buscar respostas para explicar aos mortais comuns o que
estes, e nem eles, conseguiam entender. Só poderiam encontrar justificativas para os pro-
blemas, evidentemente, invocando o sobrenatural, com dupla conveniência: a explicação
inacessível a qualquer mortal, e a crescente proibição à dúvida — origem remota da fé —
que nos foi impregnada em nosso inconsciente coletivo, geneticamente.
O que diferencia o sacerdócio do xamanismo é a sofisticação, a padronização
de procedimentos e crenças, transmitidas não mais apenas pelo pajé a seu sucessor,
mas de sacerdotes a iniciados, aqueles que eram aceitos para aprender as cerimô-
nias e entender o seu significado. Nas vilas, nas cidades e nos estados organizados
há lugar para a criação dos templos que vão ganhando espaço e esplendor, tanto
mais ricas as comunidades.
Os deuses são apropriados pelos estados que surgem, como seu patrimônio
cultural nacional.
Nas guerras, decidia-se não apenas a superioridade de um exército sobre o
outro, mas também media-se a força dos deuses nacionais que deveria ser maior do
que as divindades inimigas.
Mas por que as seitas organizadas — as religiões?
As indagações humanas não precisariam desaguar, necessariamente, em reli-
giões estruturadas. Não seria possível a comunicação com Deus sem a necessidade
de intermediários?

41
P. Garaude

Por que surgiram os sacerdotes e as igrejas com organização hierárquica e ou-


tros conceitos vigentes até hoje?
As religiões, sem exceção, procuram dar explicações sobre problemas existen-
ciais. No começo, elegem heróis e criam lendas para explicar o início da vida, da vila,
seu passado.
A inexistência da escrita tornou tais versões extremamente vulneráveis a alte-
rações. Passadas de pessoa a pessoa, de geração a geração, o tempo incumbiu-se
de transformar eventos sem muito encanto, como são os fatos da vida, em enredos
mais complexos, acontecimentos interessantes, milagres, salvamentos pela fé. A
intervenção dos sacerdotes ocorria como necessidade de padronizar os ensinamen-
tos, eliminar dúvidas e incertezas, incentivar os fiéis e punir os incrédulos.
O nascido sob uma religião não tinha o direito a discordância, sob pena de re-
jeição social, ou da própria morte, por heresia. Aprendia com seus pais e transmitia
seus ensinamentos aos filhos, sempre adestrados pelos sacerdotes a quem incumbia
organizar as cerimônias de ordenamento da adoração.
Para explicar as questões transcendentais, os religiosos organizaram-se,
hierarquizaram-se e interpuseram-se como caminho necessário, elo essencial
entre mortais e divindades. Percebendo as carências humanas, alguns por in-
teresse, outros por real convicção, credulidade, a maioria pela combinação dos
dois, proclamaram-se interlocutores dos deuses, únicos aptos a transmitir sua
palavra e vontade.
É do espírito humano gostar de notoriedade, respeito, poder. Um prato cheio
desses ingredientes foi encontrado na prática religiosa. Por outro lado, a ignorância,
a ingenuidade, tornavam a maioria receptiva a tais crenças, eivadas de um cerimo-
nial pomposo, feito para impressionar.
É bom lembrar que, com a exceção dos nobres e sacerdotes, quase toda a
população era analfabeta, inculta, sujeita a aceitar, sem muito questionar, os ensi-
namentos que eram ministrados pelos mais eruditos. Isso prevaleceu até há pouco
tempo, não muito mais do que três séculos, na Europa e, mais ainda, em todos os
demais continentes. No Brasil, sessenta anos atrás, mais de cinquenta por cento das
pessoas não conseguiam ler e escrever.
Os que passaram a ter a religião como profissão, criavam e interpretavam os
meandros dos desígnios divinos. As divindades, por seus procuradores terrestres,
eram pródigas em pedir oferendas, preces, penitências e adoração a si próprios,
mas também o respeito e o conforto devidos aos que com eles dialogavam — os
próprios sacerdotes.

42
O Dogma dos três poderes

Sofisticando-se em relação a outros animais, não bastava ao ser humano a co-


mida do corpo. Era preciso haver comida espiritual, resposta para suas dúvidas.
Não havia, então, qualquer outra possível explicação para nossa existência e
destino ou para suprir a carência de curiosidade e esperança, naturalmente existen-
tes nos humanos.
Nossa consciência da morte, da separação dos seres amados e a crença de que
a vida deveria ter sentido era matéria fértil para a imaginação dos místicos com na-
tural tendência a crendices, mas também se prestava a atender aos aproveitadores
espertos, esquizofrênicos, paranoicos, competentes em dar versões, ou criar histó-
rias que atendiam ou incitavam a imaginação do povaréu.
O temor e o terror logo se mostraram instrumentos interessantes na obtenção
da aceitação dos “desígnios divinos” e foram exaustivamente usados, como até
hoje, com o objetivo de desestimular, pelo medo, ideias defectivas. A contestação,
e mesmo a omissão em fazer oferendas e sacrifícios, poderia implicar em graves
consequências pessoais, ou à comunidade.
Os sacerdotes passam, com o tempo, a oferecer a recompensa da vida futura
boa, fossem os homens seguidores e servidores, ou o castigo eterno, se defectivos
ou apóstatas. Isso conferia aos religiosos respeito e temor, pois seu desagrado pode-
ria também ser o dos deuses a quem diziam servir, o que lhes fez gozar de crescente
prestígio e poder.
A vida mostrou a enorme vantagem, o interesse recíproco de sacerdotes e go-
vernantes, em promover conveniente aliança.
Não raro, os reis viam-se ameaçados por usurpadores, pessoas desejosas de
ocupar seus postos, ou mesmo por rebeliões de governados, contra decisões impo-
pulares que tinham de tomar. Com o endosso dos sacerdotes, os governantes des-
cobriram que tais inconvenientes eram substancialmente enfraquecidos, podendo
ser até mesmo eliminados, se lhes fosse conferido o aval divino à sua escolha e
permanência.
Os religiosos, em paga de não serem importunados em suas práticas religiosas
e depois, para serem defendidos, se necessário, pela força militar dos governantes,
criaram, aos poucos, a conveniente versão de que os reis que os protegiam eram
escolhidos, ungidos pelos deuses para ocupar tais postos, não dando a possíveis
usurpadores, ou aos governados insatisfeitos, qualquer legitimidade moral a even-
tuais pretensões de destituí-los.
Em troca dessa apregoada “escolha divina”, os sacerdotes recebiam pro-
teção e benesses, asseguradas pelos donos do poder. Um acerto de mútuas

43
P. Garaude

vantagens. E o poder assim se consolidava, legitimado pela palavra dos deuses


e pela força das armas.
Aos governados nada restava, senão aceitar os ditames emanados dos podero-
sos, fossem ou não de seu agrado.
A primeira proposta importante e organizada de monoteísmo ocorreu no Egito,
com Akenaton, faraó que passou a atribuir ao deus Sol, Aton, e apenas a ele, gran-
deza maior que a sua.
Esse faraó teve também o ineditismo de proclamar-se seu filho eleito, a quem
incumbia, exclusivamente, a tarefa maior de representar o deus-astro perante os su-
balternos, diminuindo, sensivelmente, a força dos sacerdotes, intermediários agora
dispensáveis.
Foi um grande erro e seu nome, após sua morte, foi condenado por heresia,
execrado e condenado ao total esquecimento. Suas representações gráficas foram
riscadas ou destruídas e até referências à sua esposa, Nefertite, parecem ter desa-
parecido, misteriosamente.
Mas sua inovação não terminou por aí e, em minha opinião, teve desdobra-
mentos importantes, não no Egito, mas fora dele.
Como alguns historiadores, acredito possível, e até provável, terem sido os
seguidores de Akenaton que conseguiram sobreviver à sua morte, como dissidentes
e escravos, os antecessores e até os ascendentes de alguns judeus. Bem mais tarde,
liderados por Moisés, os neosseguidores de Akenaton, alteram alguns conceitos,
assumem identidade e saem, com a autorização hesitante do faraó, a procura de
um lugar onde pudessem adorar, sem perseguições, a seu Deus único. Uma vez na
Palestina, guerreiam contra algumas tribos, mas acabam por misturar-se aos habi-
tantes locais a quem transmitem sua crença monoteísta: o culto a Javé, ou Jeová,
o deus Sol, único criador do céu e da terra. Há hoje prova substancial de que a im-
pregnação do monoteísmo entre judeus se deu não de uma vez, mas aos poucos.
De qualquer forma, para o assunto de nosso estudo, fica claro também que os
primeiros hebreus não dissociaram seus reis da escolha divina.
Moisés, Saul, David, Salomão, Josué: todos tiveram a unção divina para legitimar
suas lideranças. Pelas narrações bíblicas, chegaram a dialogar com o Criador que não
poucas vezes lhes transmitiu instruções sobre como derrotar os exércitos inimigos.
Nas Américas, entre os ameríndios, igual sina de aliança de religião e poder foi
realizada pelas civilizações tolteca, maia, asteca, inca…
Certa — e deliberada — confusão entre deuses e governantes ocorreu aí e em
outros sítios distantes, como a China, na qual deuses eram imperadores e vice-versa.

44
O Dogma dos três poderes

Os faraós, outros monarcas e, no Ocidente, especialmente Alexandre, o Grande,


foram precursores de grandes impérios formados sob a liderança inquestionável de
um só homem, misto de divindade e salvador.
Os césares, em Roma, para manter a aura e o poder, transformaram-se em
deuses vivos para seus súditos com o endosso pouco dissimulado dos sacerdotes,
cujo prestígio decaíra, pela vivência entre os mortais, do próprio deus. Mas os im-
peradores romanos inspiraram os reis da Idade Média a manter a liderança natural
decorrente de sua apregoada escolha pelo ente superior.
Os césares, durante muito tempo, cultivaram a ideia de que haviam sido esco-
lhidos pelos demais deuses — eles também o eram —, para exercer uma liderança
inconteste. O habilidoso imperador Constantino, antevendo, sob seu império, a
iminência da hegemonia da religião cristã, a adota e a oficializa, com a condição de
não ser contestado e ser reconhecido como imperador, por desígnio ou aceitação de
Deus. O cristianismo, a partir daí, expande-se a todo o império romano.
A divindade do imperador, na China, no Japão e em quase todos os países do
Oriente com governos organizados, baseou-se, sempre — no caso japonês até o
fim da Segunda Grande Guerra —, em dogmas inquestionáveis. Para seu povo, o
imperador não era apenas um líder, um pai, mas um deus vivo, submetidos os que
ousassem desafiar sua autoridade à infame e sumária eliminação.
Na Europa, durante toda a Idade Média, dezenas de pequenos reinos se for-
maram e dissolveram. Baseavam sua viabilidade e permanência em alianças com a
Santa Sé, em troca do reconhecimento dos papas. Estes, em nome de Deus, retri-
buíam com a outorga de legitimidade aos soberanos que lhes fossem simpáticos e
lhes dessem suporte.
O argumento da “escolha divina” imperou com pequenas e rápidas exceções,
até o fim do século XVIII, com a Independência dos Estados Unidos e a Revolução
Francesa.
A força da religião foi largamente usada para legitimar governos, impor res-
peito às leis. Se ajudava na imposição da ordem, perpetuava circunstâncias muito
negativas, como o imobilismo social, o determinismo ditado pela origem familiar,
a ignorância e o analfabetismo como destino da maioria, a obediência intelectual
como instrumento de total privação de liberdade. Mesmo quando inexistente a fi-
gura do rei, a manutenção de privilégios da aristocracia era vendida como inerente
à vontade de Deus.
John Locke, Rousseau e Voltaire haviam lançado as concepções filosóficas e
teóricas de um regime mais igualitário, a necessidade de um reformismo profundo

45
P. Garaude

no sistema vigente, desfraldando bandeiras libertárias, a separação de governo do


clero. Montesquieu não foi o primeiro pensador, mas o primeiro a sistematizar um
governo democrático moderno, lançando as bases teóricas da separação dos pode-
res, do estado e da Igreja.
Essas ideias liberais recebem o apoio nos Estados Unidos, de Thomas Jefferson,
Benjamin Franklin, George Washington e na França de Danton, Marat e Robes-
pierre, que lideraram a Revolução Francesa, a primeira tentativa europeia de elimi-
nação total do Absolutismo, da monarquia despótica.
Levanta-se a bandeira dos princípios básicos de liberdade, fraternidade e, prin-
cipalmente, da igualdade de todos perante a lei, novidade importantíssima no de-
senvolvimento cultural de nossa espécie, inédita, até então, apesar da adoção do
cristianismo, centenas de anos antes.
Apenas no século XIX ganha força a proibição da escravidão, extinta ao custo
de guerras e debates de conteúdo assombroso, para nossos dias. Só no século XX,
mais precisamente depois da Segunda Grande Guerra, o colonialismo, a não menos
infame dominação de um país sobre outro, foi sendo progressivamente eliminado
entre as nações civilizadas.
Mais recente ainda é a condenação ao preconceito racial, que por certo será
seguida da proibição às diferenças entre sexos e o reconhecimento ao direito indivi-
dual de exercer preferências, sejam elas religiosas, políticas, sexuais.
Mas, lamentavelmente, nada é fácil e conseguido sem contestações. Prova de
que nossa evolução se dá aos saltos, com idas e vindas e de forma desigual, é o
lamentável regresso ao mais odioso e retrógrado passado em países do Oriente Mé-
dio, como o regime wanabita da Arábia Saudita ou como foi estruturado o governo
do Irã, que imiscui estado e religião, com a condição nova de caber aos sacerdotes
sempre a última palavra na interpretação das ordens e desígnios de Deus, na vida
das pessoas, tanto quando ensina quantas vezes quer ser reverenciado, adorado e
louvado, tanto quando diz como as mulheres devem se vestir, se podem dirigir au-
tomóveis, frequentar escolas, se um candidato pode, ou não, ser eleito.
De qualquer forma, somos ainda vítimas dessa má tradição, herdada e transmi-
tida desde o início da história humana. Poucos nos países muçulmanos questionam
se Deus tenha, de fato, se comunicado conosco. Se o fez, pelos registros da Bíblia e
do Alcorão, mostrou-se vaidoso ao exigir adoração, louvação, fé, esta última equi-
valente a: não pergunte, não duvide, aceite e me adore, sem questionar.
Poucos investigam intelectualmente, com seriedade, a origem dos textos reli-
giosos, a época, a maneira e a autoria de relatos passados — e registrados — com

46
O Dogma dos três poderes

dezenas ou centenas de anos de atraso, ou decorrentes de manifestações psicoló-


gicas de megalomania, esquizofrenia e outras formas comuns de manifestações de
patologias psíquicas. Os que tem fé não o fazem.
Carl Jung desvendou o inconsciente coletivo, uma herança genética que nos
faz criar valores, símbolos, idiossincrasias e ideias, supostamente transmitidas de
geração para geração. Fé é uma dessas heranças genéticas impregnadas em nosso
inconsciente, o que leva pessoas extremamente inteligentes a julgar, ainda nos dias
de hoje, Deus nos tenha proibido de pensar ou de duvidar de sua existência.
O processo de aprendizagem foi várias vezes dificultado, até impedido, em
nome de um criador. Nada nos foi ensinado por um professor oculto, por vozes ou
palavras que lhe foram atribuídas por homens. Nosso processo de aprendizagem é
longo, árduo, às vezes hostil e depende só de nós.
Historicamente, é de se registrar consequências positivas e negativas na reli-
gião. Certa ordem decorrente do temor é um aspecto favorável e, em alguns ca-
sos, a comiseração manifestada por pessoas naturalmente cruéis, conseguida pelo
desejo da recompensa eterna, prometida. O fanatismo, o desestímulo à curiosi-
dade e ao conhecimento, o imobilismo social e cultural, os dogmas, a restrição à
liberdade quase sempre desnecessária, foram consequências, seguramente, muito
prejudiciais.

47
P. Garaude

Democracia não é opção… é conquista

A democracia foi inventada em Atenas. Se houve experiência anterior, não há


registro. Ali surgiram as primeiras tentativas de instituição de regimes de gover-
nantes eleitos, ainda que o universo de eleitores fosse restrito aos “patrícios” — a
oligarquia dominante —, em substituição a regimes de governos unipessoais.
Embora já houvesse sido tentada, não se pode, na verdade, chamar as experi-
ências anteriores à Revolução Francesa de democracia. O que existiu foram arranjos
celebrados entre aristocratas, visando compartir o poder. Eram, portanto, aristocra-
cias, não democracias.
Nos casos de Atenas e, especialmente, de Roma durante o período republicano,
embora o objetivo fosse diminuir o arbítrio sem contestação de uma só pessoa, não
houve grande preocupação em assegurar-se direitos; e a liberdade de manifestação,
mesmo entre poderosos, não poucas vezes era resolvida pela eliminação do dissi-
dente mais fraco.
A ideia de democracia é uma evolução. Vem no mesmo diapasão da proibição
da escravatura, do colonialismo, do preconceito legalizado à mulher, ao negro, ao
homossexual.
Democracia evoluída é a consciência cultural de que todos nascemos iguais
e a origem não deve nos distinguir; a percepção aceita de que a única restri-

48
O Dogma dos três poderes

ção à liberdade deve decorrer da lei democraticamente estabelecida e que esta


não pode suprimir a liberdade essencial das minorias. Sua superioridade sobre
qualquer outro regime é flagrante, só não acessível aos desprovidos de bom
senso ou boa fé. O respeito ao ser humano não deve se manifestar por meio de
dogmas, promessas ou recompensas em outras vidas, mas pelo uso da razão e
do amor hoje, agora.
Na democracia deve haver a conscientização positiva de amor à liberdade, à
igualdade, à fraternidade, ou solidariedade. Os valores que devem ser incutidos e
preservados são apenas os decorrentes do entendimento consensual: amar o pró-
ximo, ser útil, respeitar a opinião dos demais, aceitar suas preferências e conceder-
lhes a liberdade até o limite extremo de não impedir igual gozo pelos demais.
Os primados da democracia enobrecem o ser humano, porque lhe dão a liber-
dade de escolher o seu caminho. É, incontestavelmente, um sistema mais evoluído
do que qualquer outro. Mas emoldurá-lo num quadro, estratificá-lo, imobilizá-lo
é um grave erro, porque estamos ainda longe de cumprir esses seus objetivos. A
democracia é uma conquista permanente. Jamais atingiremos o regime perfeito,
acabado, imutável, como jamais atingiremos a perfeição. Devemos construir os ob-
jetivos democráticos diuturnamente, pensando e agindo sobre o que pode ser me-
lhorado… e sempre poderá, na construção de seus valores positivos.
Não há razão inteligente para sustentar que a tripartição seja a única maneira
de se praticar a democracia. Há a alternativa de uma organização verdadeiramente
republicana e democrática, que atenda melhor os propósitos de servir o povo e sua
vontade, objetivando a conquista dos valores maiores da humanidade. Isto passa
pela reforma profunda do sistema atual, já esgarçado e empoeirado pelo tempo.
A divisão em poderes está defasada como conceito. Até a palavra “poder”,
usada por Montesquieu, está sendo usada erroneamente, por desvirtuar a concep-
ção meio, instrumento organizado de um governo. Contraria o sentido de república
e de democracia em que apenas o povo é o poder.
Poder é força e, mesmo quando emanado do povo, leva a conclusões equivo-
cadas. Exclui dos órgãos governamentais sua característica “meio”, “instrumento”.
É um erro conceitual.
Poder de que, de quem, para que, contra quem? Governar, atividade hoje exer-
cida pelos três “poderes”, não é exercer poder, porque o termo envolve a ideia de não
consentimento. Mesmo emanado do povo, quando se separa dele, deixa de ser ele.
Se alguém tem poder sobre alguém, isso equivale a impor sua vontade, a von-
tade do dominador contra a do dominado. E não é a administração que impõe sua

49
P. Garaude

vontade contra a de um indivíduo. É a sociedade que faz isso, estabelecendo regras


para o cumprimento individual. É ela que se administra, e só ela tem poder.
O poder é o povo; portanto, não nasce, nem deriva, nem emana dele. É ele.
O que a sociedade deve criar, manter e fiscalizar é um governo com a função de
organizar o relacionamento entre as pessoas e lhe prestar serviços, solucionando, da
melhor forma possível, os problemas que os seres humanos, individualmente, não
podem, não querem ou não conseguem resolver.
Governos prestam serviços quando estabelecem normas de convívio, cons-
troem estradas, administram escolas, julgam e condenam à prisão um transgressor
da lei tipificada como crime. Administram, não exercem poder.
Em vez de dizer que todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido,
a constituição deveria começar com a expressão: Governo é o instrumento organizado
pela sociedade para lhe prestar serviços e regular a convivência de seus membros.
O debate que proponho, evidentemente, extrapola questões de vernáculo ou
mesmo filosóficas. Implica críticas e soluções. Quero ir a detalhes sobre a orga-
nização do governo para tentar convencer o leitor da viabilidade de opções. Na
escolhida, a ideia básica é de governo ferramenta, instrumento, coisa, pertencente
a todos para lhes prestar serviços… a rés pública. Nada de poderes, excelências,
autoridades. A ideia de servidor é a que importa.
Na prática, vários fatores estão aviltando a finalidade meio que, em qualquer
regime democrático, deveria ser impregnada ao conceito “governo”. Como disse,
estão já bem ultrapassados os conceitos que presidiram sua concepção original de
um mandando e todos obedecendo, sem contestação.
Não sei quando o sistema da tripartição, como hoje praticado, será eliminado
da vida orgânica das democracias, mas suspeito que será, algum dia, como simples
etapa de um processo de evolução inexorável na história da democracia.
A opção escolhida segue o caminho de divisão do governo em áreas especiali-
zadas de prestação de serviços, não em poderes.
Enfatizo a ideia de criar empresas ou órgãos equiparados a elas, treinados,
qualificados e profissionalizados para isso. Formulo opções, na minha opinião mais
inteligentes do que as atuais, para que a sociedade, única dona do governo, exerça
sua soberania com mais eficiência, fazendo sua formulação, sua cobrança, estabe-
lecendo os parâmetros e metas a serem cumpridas.
Proponho uma nova organização, partindo da premissa de que a especiali-
zação é a melhor forma de se conseguir bons resultados e pode ser usada com o
aperfeiçoamento da democracia e o aumento do poder decisório do eleitor.

50
O Dogma dos três poderes

Ao discutir a tripartição de poderes, ataco o dogma criado, a meu ver um erro


pernicioso. Constato, com estranheza, um longo e inexplicável silêncio de cientistas
políticos, sociólogos, filósofos e historiadores sobre essa importante questão, petri-
ficando, como imutável, um conceito, no mínimo, discutível.
Cristalizar posições é tendência que não condiz com progresso, com evolução.
É apenas manifestação de conservadorismo, dos que ou estão satisfeitos com a
situação reinante, ou não têm imaginação para pensar soluções melhores e não
aceitam qualquer um que as tenha, por desdém ou autopesar.
As raríssimas propostas de inovação, especialmente na área das ciências sociais
são, em geral, consideradas ingênuas, pretensiosas ou as duas coisas, sem qualquer
conferência séria. A velha história: “não li e não gostei”.
É inerente ao homem conservador achar que propostas podem ser boas ou
novas. Se novas, não são boas e, se boas, não são novas.
Perpetro a ousadia de produzir uma sugestão que, para mim, é nova e boa,
pelo simples fato de levantar um questionamento válido e oportuno, uma alterna-
tiva para uma democracia mais moderna, representativa e eficiente.
Qualquer proposta vitoriosa teve um primeiro momento e, provavelmente, a
mesma reação contrária. O caso da tripartição, por certo, não foi diferente.
Não concordo com os conservadores por convicção, por estarem satisfeitos
com uma situação que é muito ruim. Mas pior ainda são os conservadores por
conveniência e egoísmo, aqueles que, escoimados pelo discurso de que o melhor,
sempre, é não mexer, defendem, na verdade, privilégios que não querem perder.
Para os dispostos a pensar melhores dias, o questionamento “pode ser me-
lhor?” foi sempre o primeiro passo para uma decisão que o tempo sancionou.

51
P. Garaude

Arquétipos sociais

P ara Thomaz Hobbes, pensador do século XVII, o homem é egoísta por natureza.
Para impedir que vivêssemos em permanente guerra, consequência desse ego-
ísmo, haveria a necessidade de uma autoridade onipotente, não eleita, incumbida
de impedir a transgressão de regras que deveriam ser aceitas ou impostas. Em Le-
viatã, sua obra máxima, sustenta que nada temos de generosidade ao nascer, fal-
tando-nos qualquer vocação para o autossacrifício, o espírito comunitário, o amor
ao próximo. “Só nos movem nossos próprios interesses”, sentenciou.
Em contraposição a Hobbes, um século depois, Rousseau dizia que os homens
nascem bons e a sociedade é que os corrompe. Em sua obra O Contrato Social de-
fende que, com liberdade, democracia, uma influência positiva do meio, a implanta-
ção da igualdade entre todos, a paz e o amor triunfariam; o homem seria feliz.
Modernamente, Eric Hobsbawm, historiador consagrado e marxista histórico,
renova e reforma os conceitos de Rousseau, ao proclamar que a burguesia, ao longo
do tempo, criou tradições e regras de convívio para determinar o comportamento
das pessoas a servir a seus interesses. Os costumes a serviço do poder para manter
“status quo” conveniente aos dominadores é o primado de seu ensinamento. A
origem dos males, sustenta, está nesse processo de dominação, que retirou da alma
humana sua pureza inicial, restaurável pela vitória da revolução marxista.

52
O Dogma dos três poderes

A filosofia ou a teologia cristã, de modo geral, sustenta que a razão é um dom


inato, que nos faz ter o poder de discernir entre certo e errado. Temos o livre-arbítrio de
seguir o bom ou o mau caminho. Depende de nossa vontade optar por um ou outro.
Entre os racionalistas, para quem a base do conhecimento é a razão inata no
ser humano, ou os empíricos que o atribuem ao uso da experiência e dos sentidos,
surgiu uma posição nova, intermediária, diferente também daquela sustentada por
Immanuel Kant em suas obras Crítica da Razão Pura e Crítica da Razão Prática, nas
quais faz uma síntese das duas correntes, e condiciona o entendimento dos proble-
mas ao que chama de formas de sensibilidade: o tempo e o espaço.
Para pensadores modernos, o conhecimento acumulado pelo embasamento
científico não pode ser mais atribuído ao que os filósofos gregos chamaram de
“razão” ou “fenômenos transcendentais”, mas a fatores genéticos: a experiência
transmitida objetivamente de geração a geração.
A herança genética não é apenas física, mas intelectual. A somatória de ex-
periências de nossos ancestrais nos é transmitida pelos genes, resultando no que,
com o desenvolvimento do cérebro, dos neurônios, os antigos chamaram de “razão
inata”. Mas, se a razão hoje é inata, foi construída e transmitida por nossos ances-
trais e continua a ser. Na verdade, ela parece ter nascido do primeiro ser vivo que
conseguiu sobreviver graças a alguma astúcia e desde então vem evoluindo, sem
cessar. No ser humano, a evolução ocorreu principalmente a partir do momento em
que alguns ancestrais de nossa espécie resolveram descer das árvores e se aventurar
em busca de mais alimentos. Enfrentaram, deliberadamente, o risco de serem de-
vorados por predadores, mas, bem ou mal, subsistiram os mais competentes nessa
empreitada corajosa, em função de muita rapidez ao correr, e também, segura-
mente, a algum discernimento intelectual.
Sem prejuízo da enorme influência do meio, somos parecidos ao nascer e recebe-
mos, todos, tanto a herança física como a comportamental de nossos antepassados,
certa intuição, mas, sobretudo, a capacidade de raciocinar que, como espécie, esta-
mos e continuamos desenvolvendo há milhares de anos, por necessidade existencial.
Hoje, sabemos que as características do cérebro, quase iguais entre todas as
pessoas saudáveis, passou, no caso do ser humano, por profundas transformações,
ou melhor, por uma grande evolução.
Assim, aquilo que os filósofos do passado atribuíam a uma razão pura, inata,
transcendental, de origem divina, nada mais é do que um longo processo evolutivo
de nosso cérebro, de nossos genes, cujas características são passadas de uma gera-
ção de vencedores a outra geração.

53
P. Garaude

Aprendemos a raciocinar principalmente como arma de defesa e provisão,


transmitida hereditariamente. Essa transmissão hereditária ocorre não apenas entre
nós, mas em todos os seres vivos, como formigas, abelhas, hipopótamos, hienas,
gaivotas.
Herdamos “hardware” e “software” de nossos antepassados. Em nosso
caso, houve predomínio de um equipamento (o cérebro) e também de um pro-
grama chamado “raciocínio”, ao passo que, para outros animais, o “software”
mais importante foi a intuição ou o uso do cérebro para funções mais específicas,
automáticas: o instinto.
Em nosso caso, sem dúvida, houve uma interação contínua de desenvolvimento
do cérebro e do raciocínio, um agindo sobre o outro. Nossa capacidade de racioci-
nar é genética, vem da transmissão de genes programados, contendo informações
acumuladas por séculos.
O cérebro não é apenas o disco rígido vazio, virgem, com espaço para receber,
armazenar e processar as milhões de informações que lhe chegarão pelos sentidos.
Ele “já vem de fábrica” com instruções de uso e resumo de experiências importan-
tes, filtradas e processadas por nossos ancestrais. A mais importante é a disposição
para aprender, ser curioso, saber o porquê das coisas, o que fazemos desde nossos
dias de berço, passando pela fase gustativa, tátil, olfativa, auditiva, visual.
Outras heranças que trazemos gravadas no cérebro, agora um pouco mais
complexas do que o “software” puro, são conceitos que nossos antepassados con-
sagraram. São arquétipos, como a fé, a obediência, a esperança, a temperança, a
aceitação de regras, viver em comunidade, abrir mão do egoísmo sem medidas, em
troca de colaboração.
Aprendemos a pensar em função de nossa vida comunitária. Raciocinamos
como unidade, mas aprendemos que somos parte de um conjunto no qual estamos
inseridos. Como animais sociais, interdependentes, não teríamos algo em comum
com seres coletivizados que tem vida comunitária forte, um código de instrução
nesse sentido?
A observação da conduta de formigas, abelhas e alguns outros animais de
vida fortemente comunitária traz ingredientes interessantes para tentar estabelecer
paralelos com nossa espécie. Como nós, vários animais têm uma forte vida comuni-
tária. Nascem sabendo que dependem de outros. Não são autossuficientes, mesmo
após sua emancipação biológica.
No caso específico de alguns insetos, chegam ao extremo. São indivíduos, mas
ao mesmo tempo parecem ser uma só entidade, tal o grau de dedicação com que

54
O Dogma dos três poderes

executam suas tarefas em prol da coletividade à qual pertencem. Todos parecem sa-
ber exatamente sua função no corpo social e a executam sem hesitação, até com o sa-
crifício da própria vida, se necessário. Têm confiança absoluta em seus semelhantes.
Por que agem assim?
A ênfase na confiança como elemento de sucesso da espécie, parte da consta-
tação de que uma formiga, fora de seu contexto, em uma analogia simplória, age
como “barata tonta”. Parece estúpida, vai e volta para o mesmo lugar, não sabe
aonde ir e não tem ideia do que fazer. Mas recoloque-a em seu formigueiro e ela
voltará a agir como todas as outras, cumprindo, à risca, seu papel no grupo e as
tarefas que lhe competem.
O antes apregoado papel de grande líder a distribuir ordens, atribuído à rai-
nha, hoje sabemos, está limitado ao de poedeira de ovos. Sua majestade exerce
apenas esse importante, mas pouco consciente desempenho. Nenhuma liderança,
nenhuma ordem parte dela, pois suas súditas, também suas filhas, nascem sabendo
o que fazer, tem total interdependência e confiança em suas irmãs.
Comunicam-se apenas o necessário para transmitir notícias inéditas, que fo-
gem à sua rotina e mereçam informação. Se uma delas, incumbida de procurar nas
redondezas, encontra comida interessante, todas as que estão programadas para
isso, ao receberem a informação, partem para o local marcado pelo feromônio libe-
rado para indicar o caminho feito na volta, pela formiga que encontrou o petisco.
Por movimentos, umas comunicam às outras a descoberta e o local de sua
ocorrência. Nenhuma delas questiona a veracidade da informação. Confiam cega-
mente na informante. Confiam também que a comida trazida será partilhada.
Um sinal não questionado desencadeia em todas as operárias como um cha-
mamento ao dever de trazer o alimento encontrado para o interior do formigueiro,
onde o partilharão com a mãe parideira e suas irmãs nascituras, pacificamente.
Foi o fator genético que infundiu o comportamento, a disciplina e a confiança
de umas nas outras. E foi isso que tornou a espécie vencedora em todas as latitudes
não permanentemente gélidas do planeta.
Formigas, individualmente, por seu tamanho diminuto, sua incapacidade de
voar, podem pouco, sua defesa é limitada. Os danos, ao utilizar ferrões como ar-
mas, de pouca monta. Mas milhares, ou dezenas de milhares de ferroadas podem
provocar um enorme estrago. A instrução genética determina que, se necessário,
ela e todas as suas irmãs deem sua própria vida em defesa de sua rainha, de seu
formigueiro. Se agissem individualmente, sua possibilidade de sobrevivência seria
pequena. Talvez a espécie estivesse muito reduzida.

55
P. Garaude

Como apenas as que se adaptaram à vida coletiva conseguiram sobreviver,


desenvolveram e herdaram a instrução genética de permanecerem juntas, organi-
zadas em comunidade, com um número sempre e cada vez maior de indivíduos, o
que dá, a todas, mais poder e maior possibilidade de prover e armazenar comida,
defender-se de intrusos e predadores, aumentando sua sobrevivência. Confiança no
semelhante é indispensável. Criaram, em seu inconsciente, a marca indelével de que
o sacrifício de algumas se justifica-se pela preservação de um maior número.
Formigas, abelhas e outras espécies desenvolveram vida comunitária exitosa
porque a coletivização era conveniente a todos os indivíduos; desenvolveram uma
interdependência que lhes obriga a confiar e cumprir suas tarefas. Além de seu
componente material, das instruções de uso, há um terceiro elemento em sua for-
mação. A herança genética transmitiu às formigas valores, conceitos, uma espécie
de formação moral que as leva a dar a própria vida, se necessário.
Mesmo tendo havido variações em função de clima, solo, alimentação dispo-
nível, tipo de predadores e outros fatores desencadeantes, estejam no trópico seco
ou na zona temperada úmida, sua conduta é semelhante. Conosco, não é muito
diferente.
Essas instruções, inatas nas formigas, não são apenas o que nos restou de
intuição, como a procura do bico do seio materno, que fazemos instintivamente,
ao nascer. Há uma parte ainda mais complexa que também herdamos, como Jung
sentenciou com maestria: os arquétipos.
Além do “software” consistente do raciocínio, o inconsciente coletivo do ser
humano criou arquétipos, modelos, valores, um processo construído e transmitido
por várias gerações, como ocorre com formigas e abelhas.
A vida em formigueiro é entendida com mais clareza porque não somos atores
dela, somos observadores. É mais difícil ver quando estamos inseridos no processo.
Com Jung, toma vulto a ideia de herdarmos não apenas “hardware” e “software
puro”, mas também valores, alguns arquivos transmitidos de geração a geração. São
“os arquétipos”, como ele os definiu, uma espécie de inconsciente coletivo que passa
de geração para geração, trazendo algumas vantagens e algumas desvantagens.
Jung deteve-se na análise individual da pessoa, sua composição psíquica. A he-
rança genética, para ele, limita-se ao aspecto interno da individualidade, valores que
vão influir na personalidade do ser humano. Entretanto sua descoberta transcende,
como quase todas as descobertas importantes, o primeiro grau de observação. Há
outros, que estamos descobrindo. Herdamos valores transcendentais, que extrapo-
lam a individualidade.

56
O Dogma dos três poderes

Salvo deformações patológicas, trazemos informações de sociabilidade. Somos


forjados como criaturas sociais, com marcas genéticas gravadas em nossa persona,
de forma a perceber que somos um indivíduo mas, também somos um grupo, te-
mos obrigações e responsabilidades sociais.
Assim como as formigas, herdamos componentes de valoração positiva, para
nossa inserção no meio social. Todavia há fatores muito importantes a determinar
variações em nossa conduta social. O primeiro é um componente patológico, pois
nosso cérebro está a mercê de um sem-número de erros combinatórios, tanto físicos
como químicos. Há certa porcentagem de pessoas que vêm com vícios de progra-
mação, erros na composição genética que importam na não aceitação de valores so-
ciais positivos. E, não há qualquer dúvida, existe a importantíssima função do meio,
no qual o desenvolvimento cognitivo vai se processar. Ali se pode receber dado
amor, carinho, alimentação saudável ou, ao contrário, agressão, falta de alimentos,
indiferença e a necessária ajuda durante a fase de construção da personalidade.
Uma característica fundamental de nossa formação é a tentativa de nos equi-
pararmos ao procedimento normal da maioria, pois, assim, não seremos repudiados
pelo grupo. Quando compartilhamos o sentimento de pertencer a uma escola, um
clube esportivo, uma organização política, uma seita religiosa ou uma nação, inte-
ragimos, aceitando as regras. Aceitando-as ajudamos a mantê-las, pois os demais
se sentirão necessitados de aprovação, seguindo a maioria, em um círculo de causa
e efeito que se repete.
Mas a condição vigente pode levar a alguns paradoxos, quando a influência
do meio é manifestada de forma negativa, toda vez que o valor maior eleito exclui
outros indivíduos não inseridos no grupo, na pátria (como fez Hitler) com consequ-
ências sociais danosas.
Esses grupos podem se unir em torno de valores baseados em interesses egoís-
tas, desejos de vingança, antissociais, lastreados em um falso sentimento de honra,
como é o caso da Máfia que despreza os “outsiders”, relegados à condição de
inocentes úteis, inúteis ou prejudiciais — que devem ser eliminados. O governo da
maioria há de estabelecer normas de conduta positivas, colaborativas, solidárias, de
amor ao próximo.
Sentimento positivo de comunidade implica valorizar e adotar como conduta,
conceitos universais de confiança, respeito, honestidade, honra, seriedade, coerên-
cia de conduta respeito ao entorno e, mais adiante, amor à flora, aos animais, ao
belo, à arte, às coisas comuns, ao vizinho. Esses conceitos nos levaram ao sucesso,
como espécie.

57
P. Garaude

Gosto de rememorar uma experiência que tive, em abono a essa tese. Lem-
bro-me de uma ida que fiz há mais de quarenta anos, antes, portanto, dos recursos
informatizados, a uma “cafeteria” situada no campus de uma Universidade locali-
zada em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos. Presumo que já não
seja assim, dado o enorme avanço da informática.
Os sanduíches, refrigerantes, shakes e outros itens disponíveis ficavam expostos
em casulos em uma prateleira que tomava uma das paredes da pequena lanchonete.
Ninguém para servir. Bastava abrir a portinhola de vidro do casulo e de lá retirar o
item desejado. Após comer e beber o que quisesse, o “freguês” — assim se esperava
— deveria dirigir-se a uma caixa registradora, onde teclaria os números dos itens que
havia consumido. A máquina apresentava, em um visor, o valor de sua conta e abria,
automaticamente, uma gaveta onde o dinheiro do caixa ficava exposto em reparti-
ções, para que o pagamento fosse feito e retirado o troco, se houvesse.
Se o freguês quisesse ser desonesto, teria várias alternativas: 1) sair sem pagar;
2) pagar menos do que consumiu; 3) errar no troco a seu favor; e 4) não pagar e
ainda se apoderar de todo ou de parte do dinheiro que estava no caixa, saindo sem
ser vigiado, pois também não existiam as “web cams” comuns hoje em dia. Surpre-
endeu-me também o fato da lanchonete estar em uma Universidade com grande
número de alunos, sendo vários, como eu, de procedência estrangeira.
Soube, depois, que nenhuma diferença importante era apurada no movimento
diário, havia vários anos, o que me deixou extremamente feliz e otimista com a
espécie humana.
Em certos casos, e às vezes, é o próprio meio que vai determinar a conduta de
cada um. Nossa tendência é seguir os valores e costumes vigentes, comportando-nos
de acordo com as circunstâncias. No caso, os arquétipos positivos foram também
importantes, porque foram sancionados pelo dono do pequeno estabelecimento.
O meio deve sancionar os valores positivos. É inegável que quando a presunção
é de que todos são honestos, ou se portam como tal, agir em dissidência parece
criar no indivíduo a censura, o sentimento de mal-estar.
O meio, se saudável, age como se estivesse nos vigiando e recompensando
positivamente, quando nos portamos de acordo com as expectativas, ou negativa-
mente, quando frustramos nosso inconsciente social, ou coletivo.
Por outro lado, o meio, interagindo com o inconsciente, leva-nos à conduta de
manadas, tais como formigas e outras tantas espécies animais. A conjunção pode
não ser positiva. Ao contrário, pode resultar perniciosa.
Investidores agem racionalmente, mas têm a tendência de vender quando
veem muitos vendendo, e comprar quando muitos estão comprando, o que explica

58
O Dogma dos três poderes

as bruscas oscilações das bolsas de valores, e não tem nada de racional.


“Vou correr porque todos estão correndo.” É prudente acreditar que deve ha-
ver uma razão pra isso. Sentimo-nos parte de um grupo, de uma tribo, de uma
comunidade tentados a agir como a maioria age, porque herdamos essa informa-
ção de valor. Basta ver a multidão indo em certo sentido para, inconscientemente,
sermos impelidos a tomar o mesmo rumo.
Jung estudou o fenômeno na época da Alemanha nazista, formulando a teoria
da existência de um componente de inconsciente coletivo, o “Wotan”, a aceitação
popular de um semideus a impor sua vontade, a indicar o caminho que a coletividade
deveria seguir. Hitler, de certa forma, foi um condutor, mas também foi conduzido por
um “Wotan” que o aceitou e o ergueu como o messias para mentes carentes.
Jung concentrou-se na psique, mas sua teoria extrapola a mente humana. Sem
dúvida, deve também ser transferida para a área sociológica, como componente
importante na formação do comportamento social.
A teoria do inconsciente coletivo e seus arquétipos tem o foco no indivíduo
— a transmissão genética de valores do ser humano para seus descendentes. Seu
enfoque é interior, psicológico, pois contempla o inconsciente coletivo na constitui-
ção psíquica do indivíduo.
No terreno sociológico, há de se estudar a influência que o meio e a razão
podem exercer na eleição de valores, na aceitação de nossos arquétipos. Passou-se,
geneticamente, pouquíssimo tempo desde que deixamos de aceitar, como válidos,
conceitos como a escravidão, o colonialismo, a segregação, o despotismo, a hipo-
crisia sexual, a separação dos seres humanos pela sua origem…
Arquétipos recebem valoração no tempo e no espaço. Sofrem a sanção, a to-
lerância ou a reprovação da razão e do meio. Conceitos como justiça, liberdade,
respeito, confiança, solidariedade, curiosidade, fé, religiosidade, esperança (racional
ou irracional), egoísmo, vaidade, manipulação, exploração, liderança, obediência
são valores herdados, atávicos. Estão impregnados em nosso inconsciente coletivo e
repercutem na organização social.
Cabe-nos eleger os valores positivos e afastar os negativos. O meio e a razão
que construímos, vagarosamente, vêm sancionando os melhores.
Se desconstruirmos racionalmente tudo o que se conhece de governo organi-
zado, será conveniente, para chegarmos a idealizar uma nova forma, fazer certas
considerações sobre seu dono, o ser humano como um indivíduo, e seu conjunto,
a sociedade, o que esperamos de uma administração coletiva, quais valores devem
ser considerados, eleitos e perseguidos.

59
P. Garaude

Síndrome do salvador da pátria

O escritor inglês William Somerset Maugham ao observar, com grande acui-


dade, a alma humana, escreveu certa vez que, quando criança, tinha obsessiva ad-
miração pelos líderes mundiais, a quem atribuía a condição de seres quase divinos,
semideuses, diferentes dos comuns mortais. Achava-os carismáticos, superdotados,
seres de natureza invulgar. Aceitava, inconscientemente, a tese da predestinação
decorrente de carisma e inteligência invulgar que os diferenciava.
Ao tornar-se adulto e escritor famoso, foi-lhe dada a oportunidade que tentou
aproveitar, de conhecer vários deles, pessoalmente.
Teve grande decepção.
Percebeu que nada tinham de incomum. Ao contrário, em sua maioria eram
desprovidos de charme e, como descobriu com alguma perplexidade, de inteligên-
cia ou cultura para exercer tão grande arbítrio. Tinham, sim, a qualidade da esper-
teza, a de captarem rápido o que poderia lhes ser pessoalmente benéfico e pouco
escrúpulo em se utilizar disso.
Eram, enfim, pessoas não melhores ou piores do que aqueles com quem o escritor
trocava amenidades no jantar, apenas tinham menor dose de pudor e maior de ousadia.
Concluiu, então, o autor de Servidão Humana e O Fio da Navalha, ao analisar
os governantes, que não era o encanto que os tornava poderosos, mas o poder que
os tornava encantadores.

60
O Dogma dos três poderes

Em nossa memória genética de valores há os bons e os ruins. Um dos prejudi-


ciais é a expectativa de solução de problemas sociais, políticos e econômicos por um
“super-homem”, um salvador da pátria — um arquétipo criado em nossa mente
por nossa história de vida, como analisei anteriormente.
Como nos acostumamos à ideia de um grande chefe, desde a formação das
primeiras vilas, continuamos vivendo, até nossos dias, sob a expectativa de algum
líder decidir por nós, trazer-nos a solução para nossos problemas. Fomos educados
por séculos a ter esperanças, a aguardar pela solução de nossos problemas por ter-
ceiros: Deus ou seus enviados.
Há, para isso, o respaldo racional de que um deve mandar e os outros devem
obedecer, como forma de organizar tarefas coletivas.
Não nego procedência a ponderações de que na execução funcionam melhor
comandos unificados, conquanto presuma mais eficiente o que delega, do que o
centralizador.
O erro racional que continuamos cometendo é entender que unicidade de
comando e hierarquia na execução devem ser interpretadas como se apenas outra
pessoa, superdotada, um semideus encarnado, estivesse em condições de decidir
sobre tudo e todos, a vida e a morte de outras pessoas, como ocorreu no passado e
ainda aceitamos como um processo natural — um arquétipo negativo.
O poder de decisão que o sistema confere aos chefes de executivo é despro-
positado, uma herança de nossa crença na superioridade de seres superdotados.
Dependendo do poder militar do país, isto pode repercutir no destino de milhões de
pessoas. Confundir deliberação com execução não faz sentido. Embora até devam
interagir, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, como dizem os espe-
cialistas no óbvio.
Decidir e deliberar podem ser entendidos como a obtenção de informações,
muitas informações, eleger um objetivo com base nessas informações e em todas
as outras que acumulamos em nossa experiência de vida. Finalmente, estabelecer o
meio, o caminho a ser trilhado para se chegar ao objetivo.
Até a definição do caminho, a fase é deliberativa; apenas depois, para se trilhar
de fato o caminho, é que se entra na fase executiva.
Espero que, no futuro, as decisões de administração pública sejam tomadas em
colegiados razoavelmente especializados, com tamanho adequado, assessorados
por órgãos técnicos especializados; empresas de preferência engajadas e interessa-
das nos resultados. É a melhor forma de obter informações, estabelecer o objetivo
e traçar o caminho.

61
P. Garaude

Cumprir as deliberações, construir a estrada, exige chefia unificada.


Não evoluímos nesse sentido, pois, na prática, decisões sobre problemas que
dizem respeito a todos nós, a mim, a você, ao seu e ao meu filho, concentram-se
nas mãos de uma só pessoa ou de alguns poucos, escolhidos por ele, em geral, para
fazer-lhe coro. Um arbítrio exagerado, descabido nos dias de hoje. No sistema vi-
gente, o executivo é o poder real, de verdade, o que decide. O sistema da tripartição
baseou-se na experiência monárquica, com um chefe de estado e governo que é, de
fato, o grande mandachuva.
No sistema tripartite, o legislativo funciona, na melhor das situações e hipóte-
ses, apenas como um freio ao poder executivo e, em quase todos os casos, ratifica
suas decisões, exceto se o governante cometer muitas e desmesuradas besteiras,
grandes disparates, seja muito incompetente.
Em consequência, o poder decisório dos parlamentos é, na realidade, muito
baixo, e seu preço alto. A relação custo-benefício, péssima.
Por ter áreas especializadas, o executivo é bem mais eficiente do que o legis-
lativo. Praticamente, o órgão incumbido de executar na verdade monopolizou a
iniciativa dos projetos de leis importantes que serão aprovados.
O legislativo limita-se a assuntos de baixa complexidade e pouca impor-
tância real, pois propostas mais complexas demandam estudos, análises de
interface com outras medidas e situações, enfim, informações não disponíveis
a qualquer parlamentar isoladamente, nem às casas dos representantes como
um todo.
Tomar decisões de qualidade tem a ver com estar bem-informado, até em re-
lação a detalhes, ter pessoal apto a entender, eleger prioridades e propor soluções
que podem depender de uma enorme gama de variáveis e da análise de informa-
ções complexas, que vão do genérico à alta especialização.
O grande poder decisório do chefe do executivo sustenta-se nas informações
que recebe de seus subordinados, do primeiro, segundo e terceiro escalões, que o
levam, em geral, a aceitar tais propostas, desde que não contrariem seus interesses
políticos. Em geral, ele as acolhe, pelo simples bom-senso de reconhecer que tam-
bém não sabe o suficiente para deixar de atendê-las.
Mas pior é o oposto, o que ocorre com frequência. A decisão é primeiro to-
mada pelo chefe do executivo sem estudos maiores, em geral quando ainda apenas
está postulando o cargo. Então, falta-lhe o necessário embasamento no conheci-
mento de detalhes, inacessíveis, isoladamente, até ao mais sábio dos seres, o que
pode levar o governo a sérios erros de avaliação e decisão.

62
O Dogma dos três poderes

Sem qualquer estudo de viabilidade, os candidatos ao executivo fazem promes-


sas que depois se sentem obrigados a cumprir, sem estabelecer, necessariamente,
sua efetiva prioridade, dentro da escassez de recursos com que terá de trabalhar.
Nesta hipótese, os subalternos não têm autonomia para discordar, restando-
lhes, apenas, compatibilizar o decidido com a disponibilidade, amenizando efeitos
deletérios.
É conhecido o caso de uma grande obra realizada ao custo de algumas cen-
tenas de milhões de dólares, de uma sugestão dada por um marqueteiro político,
durante o processo eleitoral, com o único propósito de angariar votos para o can-
didato a quem prestava seus préstimos profissionais. Muito mais complexa, cara
e difícil na prática do que imaginava, o governante, infelizmente eleito, viu-se na
contingência de cumprir a promessa feita, sob pena de desmoralizar-se.
Não conseguindo inaugurar a obra, cara e complexa, fez o suficiente para
deixá-la na situação em que o pior seria não concluí-la, um enorme desperdício do
dinheiro público. Estudos posteriores concluíram que o custo-benefício está despro-
positado. A criatividade dos engenheiros, já na terceira gestão após o governante
que iniciou as obras, conseguiu utilizar o que havia sido já concluído, em um novo
projeto, bem mais inteligente. As campanhas eleitorais, em quase todos os países,
são verdadeiros jogos de esperteza e emulação. Pior ainda, não são pensadas e
planejadas por especialistas em governar, eleger prioridades, mas pela orientação
mercadológica de campanha e na melhor forma de obtenção da vitória eleitoral,
único objetivo almejado, não importa a que custo.
Geralmente os vencedores são os mais eficientes no processo de arregimentar
verbas, distribuir favores e contratar bons profissionais na área de marketing, pes-
quisa e propaganda política.
Por outro lado, o regime de chefia única de governo leva, com frequência, a
desvarios de poder.
Sentindo-se o iluminado, escolhido pelo destino, incensado por acólitos e en-
deusado por muitos a ponto de muitas vezes convencer-se de sua predestinação, o
líder passa, dissimuladamente, bem de necessária modéstia a se julgar superior aos
mortais comuns, o salvador da pátria e isso pode lhe induzir a erros de avaliação.
Prova de que evoluímos pouco na concentração de poder foi a decisão tomada
em um gabinete de poucas pessoas, no qual apenas a opinião de uma foi a decisiva,
de fazer a guerra do Iraque com milhares de mortos, bilhões de dólares de custo
e prejuízo, resultando, entre outras, consequências negativas não só para o povo
iraquiano, mas para toda a humanidade, especialmente para os Estados Unidos.

63
P. Garaude

As informações foram deformadas, estavam concentradas em poucos e eram fa-


cilmente manipuláveis, como foram. Parece ter pesado na decisão fatores psicológicos
da infância do presidente, disposto a mostrar a seu pai ser capaz de tomar decisões
que ele não havia tomado. As informações não foram verificadas adequadamente,
com a necessária isenção pelo pequeno grupo, cuja decisão já estava de fato tomada.
Foram passadas ao Congresso americano como absolutamente idôneas.
Não restou ao Congresso outra opção senão concordar com o mal menor, pois
correria o risco de ser responsabilizado por uma guerra bioquímica, fossem ver-
dadeiras as indicações passadas pelo executivo. Em “petit comitê” escolhido pelo
chefe entre os que têm opiniões parecidas com as suas, as deliberações acabam, se
adequadamente conduzidas, sendo sancionadas pela maioria desinformada.
A tomada de decisões importantes, mesmo no sistema atual vigente no parla-
mentarismo e, principalmente, no presidencialismo, fica a mercê quase exclusiva dos
humores de um só homem, ou de bem poucos, de sua visão de mundo, balizadas
em informações que geralmente lhe são passadas sem muita precisão, com omis-
sões. O objetivo dissimulado é agradá-lo, por oportunismo político de quem tem
atração forte pelo poder, suas proximidades e benesses. Os assessores têm interesse
em não contrariar a convicção do chefe, geralmente preexistente e conhecida.
O sistema favorece a corrupção, pois o legislativo passa de fiscal a cúmplice.
Ao chefe de governo realista, interessado em mandar, cabe apenas diminuir sua
eventual primeira intenção de ter escrúpulos. Percebe que, para governar, depen-
derá de sua competência em cooptar parlamentares, se não tiver, desde logo, a
necessária maioria.
Para tanto, envereda para uma nefasta troca de favores. Gera um toma lá dá
cá, sem limites. O parlamentar, para ganhar projeção, deve ter poder, fazer acordos
ou bem pouco conseguirá realizar por seus correligionários, de quem depende para
se reeleger. Sente-se na obrigação de retribuir quem lhe ajudou e, para isso, o re-
comendável é aliar-se ao poder emanado apenas do executivo, dono da chave do
cofre e da caneta que nomeia milhares de cargos.
A sensação de inoperância e impotência desestimula o político não cooptável,
idealista. Se na oposição, pouco pode além de denunciar e contrariar o governo, o
que passa a fazer de forma sistêmica — acredite ou não pontualmente, na denúncia
ou posição. Se na situação, compromete-se a apoiar sempre, a ponto de sacrificar
suas próprias convicções, em troca de cargos, poder, apoios financeiros.
Em ambos os casos, precisando do financiamento futuro de suas campanhas,
envolve-se com grupos de interesse a fim de prosseguir na carreira política, geral-

64
O Dogma dos três poderes

mente transformada em profissão. E esta, para ter êxito, depende de contatos,


prestígio e, sobretudo, de verbas.
Estando na situação ou na oposição, é dificílimo para o parlamentar apresen-
tar um projeto, uma sugestão de real interesse de seus eleitores ou da sociedade.
Torna-se um despachante de luxo, a serviço de interesses de grupos, pessoas, em-
presas, sindicatos, igrejas e, sempre, do seu próprio.
No sistema atual, o político no legislativo, além de prescindir de informações,
fica enredado a uma série de interesses que podem contrariar sua própria convicção
pessoal. Limita-se a perfumarias e propostas de restrito alcance, para marcar pre-
sença e justificar seu currículo em eleições futuras.
Certa vez, tive a oportunidade de conversar com um parlamentar, no exercício
do cargo, que mostrava seu profundo desencanto com a autorreconhecida inefici-
ência de seu desempenho. Sentia-se inútil, frustrado, inoperante.
Depois de ter sido prefeito em uma cidade média, com um bom poder de deci-
são e sentimento de recompensa e realizando um trabalho que frutificava, sentia-se
um número entre tantos, sem sequer conseguir aparecer naquela multidão de mais
de quinhentas pessoas, opiniões e interesses, não necessariamente nessa ordem.
Jamais tentou a reeleição para o Parlamento.
Como o legislativo é composto por mortais comuns, quando são discutidos
problemas importantes, mas técnicos, como a permissão para proceder à alteração
genética de um alimento, a conveniência e a possível repercussão de uma lei tribu-
tária, a organização do vestibular para ingresso no curso superior, todos assuntos
sobre os quais deveriam se manifestar com proficiência, os legisladores não estão
suficientemente preparados e informados para decidir. Com frequência, vão tomar
posição em função do papel que desempenham, situação ou oposição, ou, se inde-
pendentes, em função de interesses ou retribuição de favores.
A decisão tomada pelo executivo é sempre seguida pela situação e repudiada
pela oposição. É imperativo, necessário, ao chefe de governo tornar-se majoritário
no Congresso. Alguma temperança vem da análise sobre a conveniência política da
medida, muito mais importante na visão do governante e dos parlamentares do que
o interesse real da coletividade, visto como resposta, não como motivo.
Há outros inconvenientes ainda na concentração de poderes, especialmente no
presidencialismo.
A cooperação entre executivo e legislativo pode até acontecer, mas é desesti-
mulada pelas regras do jogo. O sistema não os põe no mesmo barco, já que serão
eleitos, reeleitos ou avaliados, separadamente.

65
P. Garaude

Como os legisladores não têm responsabilidade, nem mesmo solidária, pelo


bom desempenho do executivo — seu interesse político pode ser totalmente dis-
sociado dele —, pode ser obrigado a atuar de acordo com os seus interesses, não
poucas vezes os de que tudo dê errado, para se beneficiar do fracasso.
Estejam na oposição e, mesmo na situação, seu julgamento eleitoral, no sis-
tema distrital, no proporcional e mesmo no misto, é completamente separado do
desempenho geral do executivo.
Em geral, o eleitor premia com a reeleição os parlamentares que conseguiram
se destacar na mídia, independente da proficiência de seu trabalho. Na oposição, há
conveniência de vociferar contra todas as medidas adotadas pelo governo, esteja ou
não o parlamentar, pessoalmente, de acordo ou contra elas.
O político tradicional, no sistema tripartite, dá muito mais valor ao fato de
aparecer, do que ao de trabalhar. Em geral, trabalha para aparecer. Há total perda
de foco sobre a função parlamentar de representar seu eleitor.
No parlamentarismo baseado em voto distrital, pior ainda, muitas vezes a esco-
lha do representante se dá não por sua capacidade, mas pelo desejo de ver eleito o
primeiro-ministro do partido do eleitor, o que compromete sua representação.
Não deveria ser assim.
Aos que creem ser indispensável na democracia o regime da tripartição, não
deve haver esperança de avanço democrático.
Cada vez mais haverá concentração de poderes no executivo, único órgão efe-
tivamente instrumentalizado para desincumbir-se da enorme gama de tarefas, pro-
blemas e assuntos sobre os quais o governo deve manifestar-se.
Vendo o legislativo ser bem pouco útil, o julgamento feito pelos eleitores será
cada vez pior. A função parlamentar está fadada ao descrédito, à imagem de inefi-
ciência, corporativismo e, sobretudo, de corrupção.
Não há, na tripartição, melhora institucional possível.
Para o legislativo, não há mais esperança. Para o executivo, continuaremos a viver
de expectativas que se renovam de quatro em quatro anos, nos momentos eleitorais,
sonhando que o salvador da pátria está, finalmente, para chegar e ver se repetir a de-
cepção, o desencanto, pouco mais adiante, ao descobrirmos que não era ele, ainda.
Em resumo, atualmente, o sistema está capenga. Apesar de pagarmos para man-
ter todos, apenas um deles, muito mais forte do que os outros, ocupa quase todo o
cenário das decisões que realmente importam na vida das pessoas. Os outros ou lhe
criam problemas, ou lhe fazem coro, pano de fundo. Na prática, bem pouco subsiste da
sonhada independência e harmonia entre os poderes, concebidas por Montesquieu.

66
O Dogma dos três poderes

Meritocracia, opção incompleta

P ode, aos insatisfeitos, parecer pertinente a questão: se o objetivo da adminis-


tração é prestar serviços ao cidadão, não seria melhor se apenas os mais aptos
fossem escolhidos para exercer funções no governo, em função de seu mérito, sua
especialização ou capacidade? Conheci pessoas que defendem esse ponto de vista
e muitos mais que o defenderiam se lhes fosse proposta a questão.
“Empregando profissionais bem formados, gente qualificada, como nas empresas,
o êxito em prestar bons serviços seria conseguido, ou no mínimo aumentaria muito, em
relação aos padrões atuais” — seria o mote dos prosélitos da meritocracia.
O modelo inspirando na meritocracia proposta por Platão, em sua República,
quatro séculos antes de Cristo, seria a administração a cargo dos mais capazes, os
mais aptos.
O problema sempre foi definir quem são os mais aptos, estabelecer o objetivo
do governo, seu tamanho, o que deve fazer e a que custo, além de como escolher os
mais capazes e, aí, a democracia mostra sua superioridade, pois quem deve eleger e
escolher, tanto seus representantes como as prioridades, é a sociedade no papel de
tomadora dos serviços e, simultaneamente, a dona do governo que os presta.
Se o preenchimento dos cargos deliberativos ocorresse por concurso, a
banca julgadora — cuja subjetividade poderia ser enorme — ficaria investida

67
P. Garaude

de poderes ditatoriais. Meu professor monarquista certamente só aceitaria os


candidatos que enxergassem a verdade como a dele. Como julgar a banca exa-
minadora?
Vamos aprofundar a questão:
Um grande problema de comunicação é uniformizar os conceitos. Eles devem
ter significados iguais, ou pelo menos bem parecidos para as pessoas, sob pena da
comunicação ficar comprometida.
Na economia de mercado, existem termos mais ou menos universais para
as ideias de produtor, consumidor, prestador e tomador de serviços. A gradativa
sofisticação da economia está levando a tornar muitas vezes difícil, por exemplo,
a separação dos conceitos de produtor e prestador de serviços. Há confusão até
de ordem técnica. Como todas as matérias-primas existem em estado bruto na
natureza, toda vez que alguém as transforma em um algo útil ou em algum com-
ponente de produto que se tornará útil não a estaria produzindo, mas prestando
serviços ao consumidor final, que usará ou consumirá o produto acabado. De ou-
tro lado, consumidor e tomador de serviços também são divididos por uma linha
cada vez mais tênue. Quando vou a um restaurante fino, sou um consumidor de
comida, da bebida ou um locatário do espaço, um tomador de serviços do cozi-
nheiro, do garçom?
Não há por que alongar-se nesse terreno, a não ser para dizer que, ao contrá-
rio, há uma divisão clara entre ato de produzir e de consumir, entre prestar e tomar
serviços. Aí a clareza é meridiana. Um faz, o outro consome, embora quase todas as
pessoas exerçam na vida os dois papéis.
Uma das diferenças entre economia de mercado e socialismo planificado está
no fato de que, no primeiro, predomina o consumidor. No segundo tentou-se, sem
muito êxito, impor a vontade do produtor.
No livre mercado, são os consumidores e tomadores de serviços os verdadeiros
e últimos administradores. Seria efetivamente administrador o dono de uma indús-
tria de mil empregados que produz produtos que não consegue vender?
Não. O administrador é o conjunto dos consumidores. É ele quem dirá se o
dono da fábrica terá êxito ou não, pois é ele, o consumidor, que vai decidir se quer
ou não comprar o produto do empresário, em consequência do que poderá manter
seu quadro de funcionários, aumentá-lo ou demitir todos eles. O consumidor vai
dizer se o produto vendido deve ser melhorado, se o empresário poderá aumentar
o preço ou se deve diminuí-lo. Em geral, a sociedade de consumo vai ser rigorosa
no julgamento e impiedosa ao aplicar suas regras.

68
O Dogma dos três poderes

Aceito a tese de que, em uma economia de mercado, são os consumidores/


tomadores os verdadeiros donos da sociedade, os que vão ditar as regras. Quando
consumimos, viramos os donos do pedaço: quem decide, de fato.
No governo democrático, deve-se apenas mudar o conceito de consumidor
para o de tomador de serviços públicos prestados pelo governo. Quando somos
investidos na condição de tomadores de serviços públicos, nós é que devemos ditar
as regras. Sob esse aspecto, como ocorre nas ditaduras, a meritocracia seria a ten-
tativa de eliminar a palavra final do tomador de serviços públicos. Portanto, seria,
se implantada, um grave erro. O grande problema de atribuir mérito é a análise da
legitimidade de quem lhe outorga.
Devemos ter em mente a satisfação do cliente na democracia de prestação de servi-
ços. Como é ele quem deve ficar satisfeito, só a ele cabe opinar quais produtos e serviços
deseja e quanto se dispõe a pagar por eles, dentro de critérios realistas, pois só eles devem
limitar sua vontade. Só a realidade deve ter o poder de tolher a liberdade da sociedade de
tomar suas decisões. Ela vai estabelecer o limite entre desejável e possível.
Não há iluminados capazes de dizer o que a sociedade quer, o que de fato lhe
interessa, ou não, como arrogantemente pretende o déspota, cujo pretexto de per-
manência no cargo é o de achar que conhece, mais do que o próprio povo, todos os
seus desejos, autoproclamando-se o único em condições de executá-los.
Ditadores são pretensiosos, acima de tudo. Acreditam em elogios que fazem a
si próprios, sem o mais comezinho discernimento de perceber que elogio em boca
própria é vitupério — como diz o sábio ditado popular. Eles se autoelogiam e acre-
ditam no que dizem.
Ninguém mais indicado do que a própria sociedade, manifestando-se livre-
mente, para fazer o julgamento do que quer, usando sua sanção ou desaprovação,
decidindo se deve ou não deve manter os que escolher para cargos de sua con-
fiança, preenchidos e ocupados por sua delegação.
O julgamento deve caber exclusivamente ao eleitor. É ele, como tomador dos
serviços, quem está apto a julgar a competência, o mérito dos que se candidatam a
tomar decisões em seu nome. Não foi descoberta maneira melhor, mais eficiente do
que as eleições para julgar a competência de quem deve governar. Mas haveria uma
grande evolução se a decisão do eleitor se baseasse não apenas na pessoa física do
candidato, mas em suas ideias e propostas. Além de sua vida pregressa, a honesti-
dade, capacidade, bom-senso, haveria de contar muito a identificação entre convicção
do eleitor e programa do partido que escolhesse. A realização de eleições periódicas,
dentro do possível e viável, seria a mensuração da satisfação dos eleitores.

69
P. Garaude

Essa opção de escolha do destino do povo, feita pelo povo, em eleições demo-
cráticas, como disse Churchill, é a pior alternativa, com a exceção de qualquer outra.
No entanto, não há de se desprezar o conhecimento especializado. Ele deve
estar a serviço dos que devem decidir. Técnicos devem assessorar os mandatários do
povo a bem executar suas decisões. Devem, também, aconselhar os incumbidos de
optar entre as possibilidades.
Hoje, isso é feito apenas no executivo, sem o critério efetivo de mensuração da
capacidade, pois a maior parte dos postos relevantes de assessoria é de nomeação,
recaindo sobre os mais convenientes, não os mais competentes. Um sério erro.
No sistema proposto, empresas públicas especializadas — cujos membros chega-
riam ao topo por concurso e merecimento — teriam duas funções, ambas de grande
importância. A primeira seria executar, com o melhor custo-benefício, as decisões
emanadas dos comitês gestores, as holdings populares ou órgãos de representação.
A segunda função da empresa ou agência pública seria servir como órgão
de consultoria especializada, criando e recomendando alternativas na solução dos
problemas e na sua prevenção, com a incumbência de levantar custos para novos
projetos, estudar implicações, municiar o colegiado deliberativo de informações so-
bre as implicações negativas da proposta, realizar pesquisas, elaborar simulações e
estudos sobre a viabilidade, a superioridade de uma opção sobre as outras.
Seria também estimulado o uso de todas as informações levantadas por essas
empresas/agências por partidos políticos, já por ocasião da formulação e apresen-
tação de seus programas e opções submetidas aos eleitores. Deveria haver um dis-
positivo legal garantindo que essas informações, além de publicadas, fossem dis-
ponibilizadas a qualquer partido, órgão de divulgação, pela internet e informadas
quaisquer outras maneiras de acessá-las, posto serem de propriedade da coletivi-
dade, exatamente para utilizá-las.
Apenas a encomenda de novas pesquisas, para não se banalizarem, depende-
ria de regulamentação adequada.
É possível aproveitar todos os aspectos positivos da meritocracia. Ela não é
opção, mas, seguramente, pode ser uma complementação inteligente a um bom
sistema democrático.

70
O Dogma dos três poderes

O egghead

E m um curso que fazia na Universidade do Texas, certo dia adentrou nossa sala um
professor, sem paletó, usando camisa social de mangas curtas e gravata borboleta,
que logo defini, com certa ironia e pelo formato de sua cabeça, como o “egghead”,
o protótipo do intelectual “nerd”, intelectualmente bom, socialmente lerdo.
Havia ainda, naqueles idos, um quadro-negro, presumo hoje equipamento
obsoleto, tomou o palestrante de um giz e fez um desenho aparentemente sem
sentido. Começou com um ponto, forte e bem visível que chamou de “target” — o
alvo. Alguns centímetros abaixo traçou, cuidadosamente, um círculo achatado nos
polos e ligeiramente dilatado no Equador.
Propus ao meu vizinho ao lado, em tom de galhofa, que ele ia desenhar o pla-
neta Terra e iria propor uma viagem à Lua, mas logo, desfazendo minha impressão
inicial, escreveu dentro do círculo “information”.
Em seguida, traçou uma linha reta que ia do centro do círculo até o objetivo e
a essa linha deu o nome de “way” — caminho.
Virou-se em nossa direção e se pôs a falar:
— Toda vez que temos um problema, seja ele jurídico, econômico ou de física
quântica, devemos nos lembrar deste gráfico.
— A primeira coisa é a obtenção de todas as informações possíveis, até conhe-
cer todos os meandros do problema e, sendo ele um conflito de interesses, como

71
P. Garaude

ocorre para vocês, futuros advogados, entender o que pretendem os envolvidos,


quais seus interesses e pontos de vista.
— A segunda é estabelecer o objetivo, a finalização ótima que poderíamos
imaginar, se tudo dependesse apenas de nós.
— A terceira, por fim — disse o “egghead” —, era traçar a linha mais curta
entre as informações e o objetivo, poupando tempo, esforços, dinheiro.
— Muitas vezes o objetivo, também chamado de “ponto ótimo”, não é viável,
ou mesmo conveniente, em função de outras circunstâncias alheias ao problema,
principalmente por serem vários e irreconciliáveis os interesses em jogo.
— Nesses casos — concluiu — ao longo da linha “way” devemos estabelecer
novos pontos — e os chamou de aceitável, razoável e bom, além do ponto ótimo,
que seria o próprio objetivo, a meta, a solução ideal.
Quando temos as informações, não é apenas mais fácil estabelecer o ca-
minho mais curto até a meta, mas também nos colocamos em condições de ver
quais as variantes aceitáveis. Muitas vezes, podemos nos contentar com uma so-
lução que, ainda que não seja ótima, possa ser boa, razoável ou aceitável, pois
poderemos separar o joio do trigo, definindo o que é negociável e o que não é,
disse, encerrando o assunto.
Fiquei levemente atônito com aquela aula que praticamente se limitou a isso.
Pareceu-me de uma simplicidade ingênua, pois todos nós estávamos cansados de
saber de tudo aquilo. Confirmava-se minha teoria do “nerd”…
Jamais esqueci essa aula, esse precioso ensinamento.
Ao longo de minha vida, a lição foi de enorme valia. Percebi, em uma autoaná-
lise, quantas vezes deixara de usar o método e como é enorme o número de pessoas
que jamais o usam. Lamentavelmente, a grande maioria.
Quantos advogados, economistas, médicos, contadores, engenheiros, políti-
cos, donas de casa, empresários fazem coisas sem saber por que as fazem, sem
dispor de todas as informações necessárias, sem fixar um objetivo claro e traçar
qualquer estratégia.
Obter informações, traçar um objetivo e um caminho são procedimentos tão
óbvios quanto, tristemente, desusados.
Resolvi transcrever essa história por entender não havermos definido, com cla-
reza, os objetivos que pretendemos conseguir, com a adesão coletiva que fizemos
a um governo constituído.
Pra que governo? É uma pergunta que raramente fazemos.
Parece-nos suficiente o fato dele existir.

72
O Dogma dos três poderes

Não sabemos bem onde colocar o objetivo, não estamos muito interessados
nas informações e jamais discutimos se a nossa estratégia ou linha para atingir os
objetivos está correta, é a mais conveniente, a mais curta. Para estabelecer qual
governo queremos, é importante o cumprimento das três fases: as informações, o
objetivo e o caminho para chegar a esse objetivo.
Fazer indagações históricas, conceituais, práticas e tentar obter respostas são
os passos iniciais dados nos capítulos anteriores.
Quanto ao objetivo, para quem rejeita os sistemas totalitários, é consensual
que governo deve ser entendido como um instrumento de prestação de serviços
públicos a seus cidadãos, meio de suprir as necessidades coletivas, não passíveis de
serem realizadas individualmente ou por pequenos grupos.
Não há, sem informações e objetivo, como se estabelecer a estratégia. Cumpre
esmiuçar as informações disponíveis, ter em mente o fim colimado e fixar o “modus
operandi”, se necessário desconstruindo o que está errado.
Se o objetivo é ter um governo prestativo, democrático, republicano, atento
aos desejos de seus beneficiários e efetivo em sua execução, não há por que deixar
de pensá-lo, sem dogmas ou preconceitos, da melhor forma possível.
Na parte das informações, cabe ressaltar um diagnóstico muito importante. O
universo do conhecimento humano hoje é imenso, inacessível em sua totalidade a
qualquer pessoa, sem exceção. Mesmo especialistas tornam-se cada vez mais espe-
cializados em certos segmentos na sua atividade.
Por outro lado, quem decide deve estar muito bem informado, conhecer sobre
o que vai decidir.
O conhecimento superficial para tomar decisões é insuficiente e pode levar a
graves equívocos. É preciso experiência, vivência, conhecimento específico. A divi-
são por áreas de atuação é altamente recomendada.
No sistema atual, a lei, ou seja, a mais importante decisão da vida comunitária
na democracia, é feita por pessoas não especializadas, que em geral desconhecem
o assunto sobre o qual terão de decidir.
Estará certo esse critério?
Não há pessoa de bom-senso que se ache capaz de conhecer tudo, mas, no
que tange à elaboração das leis, àquelas que irão definir aspectos muito importan-
tes de nossas vidas delegamos poderes para decidir sobre todos os assuntos. É uma
incongruência.
Hoje, nosso voto tem um recado implícito a nosso representante: decida sobre
todos os problemas, não importa se os conheça ou não.

73
P. Garaude

Tendo de estar a par de um universo enorme de questões e não conseguindo


fazê-lo, o legislador acaba sendo levado a pronunciar sobre algo que não conhece
e acaba o fazendo sob influência, pressões, interesses.
O resultado são leis de má qualidade, votadas não em função de ponderações
pesadas e sopesadas, como deveriam ser, mas de interesses, jogos de influência,
lutas pela manutenção ou conquista do poder, que nada têm a ver com a vontade
efetiva, o real interesse do eleitor.
Em função disso, acostumamo-nos a ter um sistema tributário de péssima qua-
lidade, educação de baixíssimo nível, que sequer forma cidadãos, saúde pública de
país de terceiro mundo, um sistema de segurança que não nos protege, processos
que levam anos sem solução.
Analisando o que há de ruim, temos alguma condição de estabelecer onde
queremos chegar.
No que tange a objetivos, não é difícil estabelecê-los.
Como para prestar serviços o governo tem de arrecadar dinheiro da sociedade,
deve, em contrapartida, usar muito bem o que conseguir angariar, sangrando nos-
sos bolsos. Essa arrecadação deve ser a mais indolor possível, desfalcando apenas
nossos bolsos, não nossa paciência, saúde mental e bem-estar.
Deve gastar esse dinheiro em nosso benefício, com parcimônia e eficiência,
seguindo prioridades que a sociedade estabeleça, com clareza e precisão.
Deve garantir a segurança, o cumprimento das leis, a educação e a saúde para
os despossuídos que não possam pagar por elas e a ajuda econômica para os que
não tenham condições efetivas de se sustentar.
São esses os desafios que temos. São eles que devemos levar em consideração
ao pensarmos na construção de um governo verdadeiramente democrático e efi-
ciente, o que é a minha pretensão, neste livro.

74
O Dogma dos três poderes

Objetivos, metas, parâmetros

A dministrar é elaborar propostas, discuti-las, aprová-las e executá-las para atin-


gir os objetivos estabelecidos.
O grande pulo do gato, em termos de produtividade e eficiência, é a fixação
de metas. Sem parâmetros, sejam eles entre órgãos semelhantes ou entre períodos
diferentes no mesmo órgão, não há referência para a melhoria da atividade. A falta
de objetivos quantificados induz ao desinteresse, à falta de criatividade, à acomoda-
ção, sempre mais fácil do que o trabalho perseverante, persistente, entusiasmado.
Vemos isso no atletismo ou em natação, em que as marcas são sistematica-
mente derrubadas, o que leva a aperfeiçoamentos constantes, seja na alimentação
do atleta, em seu treinamento físico e até psicológico, seja no instrumental que lhe
é posto à disposição, desde o melhor tênis, a melhor roupa, até os aparelhos de
exercícios, resultando em constantes avanços em toda a área esportiva, na quebra
sucessiva de recordes.
As guerras, tão deletérias, tiveram contribuição positiva ao progresso tecnoló-
gico, em função da competição entre os países envolvidos, na produção de arma-
mentos cada vez mais eficientes e letais para tentar vencer o inimigo.
Métodos, sistemas e os próprios equipamentos idealizados então foram utili-
zados com grande sucesso por empresas, quando sobreveio a paz. Triste é afirmar

75
P. Garaude

que foi a guerra a responsável por um grande número de melhorias tecnológicas


havidas. Mas isso é a realidade. A premência da vitória ou de evitar a derrota trouxe
um enorme empenho em novas descobertas, ou na melhoria das existentes. Só
não aprendemos a mais importante: sem desafios, sem metas, raramente ocorrem
grandes invenções, melhoras tecnológicas, sociais, culturais, econômicas. E não há
necessidade de guerra para estabelecer objetivos. O grande inimigo de uma educa-
ção eficiente é a total falta de metas, parâmetros de desempenho dos alunos, pro-
fessores, diretores, delegados regionais de ensino, que só recentemente, no Brasil,
passaram a ser timidamente aferidos.
Só o fato de terem criado o ENEM, um exame de verificação de desempenho,
já provocou melhoras.
O cumprimento de metas deve, na medida do possível, ser usado em toda a
atividade governamental, e a melhor forma de fazê-lo é, exatamente, por meio das
agências públicas, organizadas como empresas, cujo desempenho seria pautado em
objetivos estabelecidos, partindo da comparação com períodos passados, ou outros
parâmetros a serem constantemente melhorados.
Subordinadas a comitês de representação popular, trabalhariam, portanto,
necessariamente, com metas fixadas por eles, em função de seu programa de go-
verno, por sua vez submetido ao eleitor.
A concessão de prêmios àqueles que cumprissem seus objetivos poderia bene-
ficiar toda a agência pública, seus diretores e funcionários ou apenas a segmentos,
partes dela, a critério dos comitês gestores.
Isto seria recomendável, por exemplo, no âmbito de desempenho de unidades
escolares específicas, que atingissem metas, ao contrário de outras que poderiam
não cumpri-las.
Além do estímulo, haveria ainda outro ponto, extremamente positivo, como
decorrência subjacente. Se um grupo de pessoas se irmana para atingir certo obje-
tivo, a cobrança de um sobre o outro membro do grupo exercerá pressão positiva
na obtenção de mais produtividade, eficiência e dedicação por parte dos envolvidos,
na busca de resultado.
Teria também o objetivo saudável de fazer com que aqueles efetivamente em-
penhados, além de passar a cobrar dos não cooperativos e pouco cumpridores de
suas obrigações, viessem cobrar sua substituição, se recalcitrantes.
Poderia se esperar grandes melhoras, se o processo fosse adotado, o que seria
viabilizado no sistema proposto.

76
O Dogma dos três poderes

Agências organizadas como empresas

A s empresas particulares, ao longo do tempo, vêm se aperfeiçoando, melhorando


sua produtividade, a ponto de atender o consumidor com produtos e serviços cada vez
mais eficientes, baratos e confiáveis, empregar um número crescente de pessoas e car-
regar, com os impostos que paga, os maiores ônus de sustentar os serviços públicos.
Por isso, está na hora de tentarmos um sistema público baseado em seu dese-
nho, desempenho e organização: empresas públicas estruturadas como particula-
res, adaptadas à prestação de serviços públicos.
Lavoisier sentenciou: “No mundo nada se cria, tudo se transforma”. Há outro
ditado, mais recente e jocoso, não menos profundo, que sustenta: “na vida, nada
se cria, tudo se copia”. Criação tem tudo a ver com observação, o aproveitamento
de ideias, soluções, estruturas exitosas já existentes, vistas sob um novo ângulo,
aproveitadas de uma forma diferente da que foi inicialmente concebida. Afinal, até
o fogo produzido veio da observação e da cópia.
A sugestão não é a tentativa de fazer cópia integral, até porque não seria pos-
sível, mas a adaptação das estruturas empresariais modernas privadas às empresas
públicas. Ao contrário da arcaica concepção de divisão em repartições e autarquias,
todos os órgãos do governo passariam a funcionar como a organização de empre-
sas, inclusive a justiça e as forças armadas.

77
P. Garaude

A primeira constatação é que empresas modernas têm estrutura gerencial su-


perior à de qualquer órgão de governo, o que as leva a mais eficiência no seu de-
sempenho, com menor custo. Para usar um termo em voga, seu custo-benefício é
muito melhor.
A estrutura empresarial, sua organização, seus métodos de pesquisa, vendas,
comunicação, atendimento aos clientes, sua operação, seu controle de qualidade,
seu organograma, a promoção de seus funcionários por merecimento, a possibili-
dade de cobrança, a dispensa mais descomplicada dos funcionários desinteressados
e ineficientes, além de, principalmente, o estabelecimento em muitas delas de me-
tas e objetivos são as formas mais adequadas e inteligentes de produzir serviços e
produtos, e não vejo qualquer razão para excluir os serviços públicos desse rol.
É evidente que as agências públicas — como as chamaria — teriam algumas
características diferentes das empresas particulares. Diferenças existem mesmo en-
tre as organizações privadas, mas, pelo menos, as bem-sucedidas preservam uma
identidade intrínseca que possibilita sua identificação como empresa.
Em uma comparação grotesca, sabemos que um enorme dog alemão ou um
pequenino chiuaua são espécies de distintas raças de cães. Suas diferenças são
grandes. Um vai ser usado para guarda, o outro como mascote, mas a sua essên-
cia, seus órgãos internos, o funcionamento da fisiologia corporal são do mesmo
animal.
A sugestão implica no aproveitamento da estrutura básica de uma empresa,
muito embora seja recomendável que haja organizações diferentes, próprias, espe-
cíficas, cada uma com a sua área de atuação. Até entidades muito especializadas,
como o exército, a justiça, um órgão de saúde ou de formação de técnicos de nível
secundário, deveriam possuir a estrutura empresarial com suas especificações pró-
prias, inerentes às suas especialidades.
É evidente que, se adotado o sistema, haveria uma fase algo traumática de
transição do regime atual para o proposto. Nada impediria que, em um primeiro
momento, houvesse o aproveitamento dos funcionários públicos, cuja experiência
e conhecimento seriam aproveitados. Problemas de magnitude, ou do universo de
alcance, não seriam obstáculos intransponíveis, até porque hoje grandes empresas
atuam em dezenas de países e têm problemas da mais alta complexidade e vastidão,
como costumes locais, moedas, legislação diferentes, para dizer só um pouco.
A diferença de escopo entre empresa privada e agência pública, na verdade, se
resumiria à adaptação do conceito de que, na primeira, o objetivo é o lucro, na se-
gunda, apenas a boa prestação de um serviço, a custo baixo. No caso das agências/

78
O Dogma dos três poderes

empresas públicas, à falta de um patrão totalmente identificável, como nas socieda-


des anônimas ou grandes empresas, é recomendável o reconhecimento pecuniário
aos diretores e funcionários, proporcional ao sucesso.
No caso deles, além de um salário fixo mensal, a sugestão é que os comitês
gestores tenham condições de premiar diretores e funcionários pelo cumprimento
de metas e parâmetros, no exercício, com décimo terceiro, quarto, quinto salários.
Consequência subjacente dessa premiação seria um inteligente combate à cor-
rupção. Supondo o caso de um diretor que se acumplicia a um fornecedor comprando
seus produtos a preços maiores do que os de mercado, além do crime de peculato
cometido, seu ato viria em detrimento dos funcionários e diretores que poderiam, em
função da fraude, perder prêmios de participação. Uma fiscalização fácil e exequível.
Igualmente, não vi obstáculos para a substituição da relação empresa-acionis-
tas, para agência-povo, pois em ambos os casos o interesse é legítimo, perfeita-
mente identificável.
No caso da agência pública, a sociedade é, ao mesmo tempo, dona e cliente. Não
há impedimento para isso, pois boa parte dos acionistas de empresas privadas são tam-
bém seus fregueses habituais. Mas haveria diferenças. Há de se importar alguns conceitos
fundados na meritocracia, que viriam atender especificidades da empresa pública. Toda
a admissão nas agências públicas deveria ser exclusivamente feita por concurso, o que
implicaria, a meu ver, na benéfica eliminação de qualquer tipo de apadrinhamento.
Há ideias que podem ser copiadas, não apenas das empresas privadas, mas
também das estruturas militares, universitárias e de bancos de capital majoritaria-
mente estatal. A exemplo das forças armadas, deveria haver uma hierarquia quase
militar nas agências, que seriam obrigadas a definir os cargos de carreira e, ainda,
as formas de promoção.
Os diretores seriam sempre e necessariamente funcionários de carreira. Ao chega-
rem ao topo hierárquico, ou seja, ao mais alto posto na agência pública, se tornariam
passíveis de serem nomeados diretores da agência. Como ocorre nos cargos de general,
almirante e brigadeiro ou reitores de universidades, a escolha para a chefia e outros car-
gos de comando seria feita pelos comitês gestores entre os servidores que atingissem a
mais alta graduação hierárquica, por escolha do presidente da holding pública, a quem
a agência estivesse submetida — “ad referendum” do pleno do próprio comitê.
Como toda empresa, ela deveria decidir a eventual vantagem de terceirizar
serviços alheios a seu escopo principal ou, quem sabe, a conveniência de delegar
alguns serviços de sua responsabilidade principal a fornecedores ou concessioná-
rios. Em casos específicos, para desenvolver trabalhos de consultoria sem vínculo de

79
P. Garaude

emprego, poderia ser recomendável a contratação de técnicos especializados não


pertencentes ao quadro próprio, como ocorre com as empresas particulares.
Essa tendência vem se mostrando cada vez mais interessante para todas as em-
presas, para haver melhor desempenho, consequente na concentração em seu foco
principal. Os conceitos “just in time”, a execução terceirizada de partes de produtos
e serviços mediante sua adequação ao projeto, e rígido controle de qualidade, além
de outras tantas técnicas modernas de administração, poderiam e deveriam ser con-
sideradas pelas agências governamentais, no desempenho de suas funções.
A função das agências/empresas públicas extrapolaria, também, a prestação direta
de serviços ao público, alterando a sistemática hoje vigente, de dissociar a elaboração
da lei de seu cumprimento. Elas passariam a desempenhar a função de consultoria aos
comitês gestores — órgãos de deliberação, além de poder apresentar projetos de lei.
Vê-se a enorme conveniência disso, ao se verificar que todo o projeto de norma
legislativa vem prefaciada por um estudo que expõe as razões e justificativas para
a sua aprovação.
Vivendo os problemas decorrentes da execução, ninguém melhor do que as
empresas públicas para sugerir medidas que viessem melhorar seu desempenho, or-
ganização e eficiência na realização de suas tarefas e até algumas outras, nas quais
possam interagir com outras agências. Como sugerido no caso do cumprimento de
metas, seria interessante a fixação de prêmios pelas sugestões ou projetos de lei que
viessem a ser aprovados pelo comitê.
Nesse ponto, ainda, volto a lembrança que fiz, um pouco atrás, da falta de
condições do atual poder legislativo de não se desincumbir de sua tarefa de legislar,
em função de lhe faltarem informações, estudos, simulações e parâmetros.
Assessorado por agências especializadas, toda vez que um comitê gestor en-
tendesse conveniente estudar com mais profundidade os efeitos prováveis de uma
lei, ou adotar certa decisão, poderia encomendar estudos às empresas a ele subordi-
nado, para fazer as simulações e análises, podendo assim melhor aferir as vantagens
e os inconvenientes possíveis.
Não vejo conveniência de me alongar nesse tema. A medida, se adotada, abri-
ria espaço para milhares de administradores de empresas e outros profissionais for-
mularem propostas sobre a organização das agências públicas.
A flexibilidade mais inteligente de um organograma, a melhoria em organiza-
ção e métodos, hoje inexistentes, seria saudavelmente procurada para aprimorar
o desempenho das empresas públicas. A criação de prêmios pelo cumprimento de
metas seria o combustível para a ponderação na implantação de medidas inteligen-
tes, na busca de maior eficiência.

80
O Dogma dos três poderes

Eleições, partidos, programas

A ntes de discorrer sobre os órgãos de deliberação, sua organização e suas ta-


refas, entendi ser conveniente me deter na análise de como seria sua eleição pela
sociedade e, dentro das opções, escolher a melhor forma de obter representação.
Não há democracia sem partidos políticos. Eles são o instrumento mais efetivo
de participação popular. Atuando em liberdade, representam a melhor forma de
canalizar as aspirações da sociedade, suas opiniões, seus julgamentos.
Se democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, e se a função do
governo é lhe prestar serviços, é de se indagar o que a sociedade quer, quais suas
aspirações, opiniões, quais os seus interesses, qual o seu posicionamento sobre as
diversas possibilidades. Ambos, governo e sociedade, devem manter permanente
diálogo com perguntas e respostas de qualidade para questões como:
•• Quais serviços o governo deve prestar?
•• Quanto a sociedade está disposta a gastar para isso e como angariar os
recursos necessários?
•• O governo deve oferecer educação gratuita, do primeiro grau ao curso superior?
•• Quanto deve ser gasto em segurança e quais as prioridades?
•• Quanto deve ser dirigido a programas como o seguro social a desemprega-
dos e aposentados, aos idosos, aos doentes, à assistência aos necessitados?
Quais devem ser as fontes de financiamento?

81
P. Garaude

•• O governo deve prestar serviços gratuitos de saúde, preventiva e terapêu-


tica? Quanto deve gastar?
•• Como combater o crime e tratar os criminosos?
•• O prazo atual para resolver conflitos está bom ou deve ser abreviado?
•• Quanto gastar em saneamento, estradas, usinas de energia?
•• Como organizar o sistema de telecomunicações?
•• Como evitar a degradação do meio ambiente e quais medidas devem ser
tomadas para impedi-la?

E outras tantas perguntas devem ser feitas e respondidas com uma clareza hoje
inexistente.
Organizar as questões e suas alternativas, democraticamente, conhecê-las,
identificá-las e adequá-las às possibilidades reais para a sua execução, passa por
partidos políticos e, em minha sugestão, pela segmentação de suas participações
nas áreas de atuação do governo para as quais concorreriam, como Finanças, Eco-
nomia, Segurança, Saúde, Educação, Infraestrutura, Meio Ambiente, Bem-Estar e
Seguro Social…
Em outras palavras, a mudança profunda que se estabeleceria nesse diálogo
governo-sociedade seria feita a pelos partidos que, não mais teriam, em seus pro-
gramas, propostas para todas as áreas, como ocorre, mas apenas para aquelas em
que se especializassem. Só poderiam concorrer em um segmento de atividade go-
vernamental.
O partido que se inscrevesse para participar da eleição para o comitê gestor de
educação só poderia participar nas eleições que seriam realizadas para preencher os
cargos desse comitê, vedado postular participação em qualquer outro comitê. Para
melhor aferir a vontade popular e responder às perguntas de real interesse da so-
ciedade democrática, de forma apropriada, seus programas seriam restritos a cada
uma das áreas de atuação do governo e realizadas eleições por setores.
As vagas, em cada comitê, seriam preenchidas pelas agremiações, proporcio-
nalmente à votação conseguida, pelo sistema de listas. Se o partido fizesse jus a oito
vagas, apenas os oito primeiros candidatos de sua lista seriam considerados eleitos,
ficando os demais como suplentes na ordem de sua participação na chapa.
As eleições deveriam ser realizadas em diferentes ocasiões, para cada comitê
gestor setorial, iniciando-se pela escolha dos membros do comitê gestor de finan-
ças, incumbido de promover a elaboração do orçamento geral, a obtenção e a
divisão de recursos e o acompanhamento de sua execução.

82
O Dogma dos três poderes

O ideal seria que os demais comitês fossem eleitos em ano diferente da eleição
do financeiro, após ter havido a destinação dos recursos e a definição das participa-
ções porcentuais, o que ensejaria a discussão das opções existentes, já dentro dos
limites orçamentários de cada um, conhecidos antecipadamente pelos partidos, ao
elaborar seus programas.
Evidentemente, no comitê financeiro, as alternativas teriam grande repercus-
são, pois nele se decidiria o valor a ser arrecadado e a destinação de verbas para
cada segmento de serviços, pela eleição de prioridades no campo administrativo
com implicações político-filosóficas.
Outra questão decorrente seria como organizar o sistema tributário e quais as
alíquotas necessárias para a obtenção do valor a ser arrecadado, como também o
acompanhamento da execução financeira, pelos comitês.
Além dos partidos que concorressem ao comitê financeiro, outras agremiações
partidárias concorreriam aos comitês de economia, educação, saúde, segurança,
infraestrutura e meio ambiente, bem-estar e seguro social e outros, se julgado con-
veniente aumentar esse rol.
Discorrerei, mais adiante, sobre o Conselho de Estado e a área de relações ex-
teriores, que em minha proposta seria diretamente vinculada a ele.
A partir das verbas que lhes fossem destinadas pelo comitê gestor de finanças,
os partidos políticos concorrentes aos demais comitês fariam suas propostas de
gestão naqueles segmentos a serem levados à consideração dos eleitores, sempre
com o voto facultativo.
Na escolha dos programas, todas as informações seriam de domínio público,
inclusive os valores inalteráveis, os já comprometidos e simulações sobre os custos de
propostas que dependessem de investimentos financeiros e a forma de arrecadá-los.
Uma agência pública, submetida ao comitê gestor de finanças, assessoraria
os comitês gestores e também os partidos políticos com informações e pesquisas,
destinadas a elaborar suas propostas, como o conhecimento das despesas fixas, as
contratadas e em execução, além do eventual custo aproximado para a realização
de investimentos opcionais, constantes de seus programas.
Na elaboração desses programas, os partidos concorrentes ao comitê gestor
de finanças deveriam especificar a parte de despesas fixas, especialmente os custos
salariais, alternativas para a sua redução ou aumento, além do que seria destinado a
cada área específica, a título de verbas para melhorias em cada uma das áreas. Essa
definição seria necessária para que os partidos concorrentes levassem suas disponi-
bilidades efetivas em consideração.

83
P. Garaude

Há uma grande conveniência na existência de um órgão imparcial de pesquisa


de governo incumbido de estudos de projetos, em geral. Estudos de viabilidade,
custos, impactos sociais, ambientais e econômicos, mesmo se não executados,
trariam, pelo melhor detalhamento de opções, enorme aumento na qualidade de
decisões.
A representação por programas, propostas e ideias, segmentados pelos vá-
rios assuntos aos quais o governo deve se dedicar, aproxima o eleitor da decisão,
força-o a pensar na coletividade e renova a opção democrática, como um sistema
que pode, a um só tempo, ser prudente ao introduzir alterações, pois só poderiam
ser adotadas pela maioria de um colegiado, mas dinâmico em adotar as que fossem
efetivamente aprovadas, pois já estariam previamente identificadas, estudadas e
sua execução ficaria ao encargo de empresas especializadas.
Se certas medidas preconizadas por algum partido não pudessem ser aprova-
das nos comitês, em razão de não conseguirem maioria, isso representaria a posi-
ção da sociedade. Talvez fosse mesmo conveniente a sua não adoção, ao menos
naquele momento.
O julgamento popular teria sido feito e, não conseguida a aprovação de uma
proposta nova, isso seria entendido como um desejo de não mudar. Uma decisão
perfeitamente democrática.
Evidentemente, além de propostas de investimento, há todo um posiciona-
mento em várias questões, sobre as quais o povo não vem sendo consultado — uma
castração à democracia, ao agrado dos fascistas camuflados.
Apenas alguns exemplos:
Em educação seria possível a existência de um partido que defendesse a ma-
nutenção das universidades públicas gratuitas enquanto outro poderia defender a
cobrança de mensalidades, simultaneamente à concessão de bolsas de estudos para
alunos carentes.
Na área do bem-estar e seguro social, poderia um partido defender a aplicação
de um grande programa de planejamento familiar enquanto outro poderia conside-
rar esse ponto não fundamental, e assim por diante.
Na área de segurança, seria possível um partido defender a utilização das for-
ças armadas no combate ao crime ou a pena de morte para delinquentes conside-
rados irrecuperáveis enquanto outros poderiam defender um sistema de penas mais
brandas.
As eleições, bem mais frequentes, não trariam trauma à vida normal da popu-
lação, nem custo elevado. Realizadas em domingos ou feriados, o fato do eleitor

84
O Dogma dos três poderes

votar apenas no partido tornaria a eleição fácil e a apuração rápida, simples, feita
em poucas horas. Uma agradável rotina democrática de consulta e julgamento dos
governantes.
Não vejo necessidade da existência da Justiça Eleitoral. No caso brasileiro, um
tribunal existente para levar a cabo eleições de dois em dois anos, ocioso quase
integralmente no restante do tempo. Uma fundação como o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas (IBGE), além de recenseamentos periódicos do tamanho da
população, poderia perfeitamente somar às suas incumbências a organização das
eleições, mediante sua remuneração adequada. Seria uma grande economia, uma
enorme racionalização do trabalho.
Pelo critério de opção menos ruim, defendo a cláusula de barreira, ou seja,
os partidos que obtivessem baixa votação, digamos menos de dez por cento, não
teriam representação e ficariam impossibilitados de concorrer às próximas eleições.
Mas poderiam ser refundados.
A multiplicidade exagerada de partidos participando do governo levaria a um
mal maior: a dificuldade de governar. A democracia deve conciliar a melhor repre-
sentação possível, com a eficiência no cumprimento da vontade da maioria. Prejudi-
car a adoção de medidas preconizadas pela corrente majoritária seria a pior opção.
O caráter personalista da disputa seria substancialmente diminuído, mas não
totalmente eliminado, pois os eleitos seriam os primeiros nomeados de suas chapas,
até o limite de participação do partido. É evidente que a qualificação dos represen-
tantes também seria levada em conta. No sistema atual, não se julga caráter, nem
programa.
Defendo intransigentemente o voto facultativo, em que o eleitor tenha o di-
reito, jamais a obrigação, de se manifestar. Isso daria àqueles que não se sentis-
sem suficientemente esclarecidos ou interessados a condição tranquila de abster-se.
Neste caso seria acertadamente considerado que quem optasse por não votar esta-
ria delegando aos que o fizessem o direito de representar sua vontade. Nada mais
democrático. Uma procuração consciente.
Todos os eleitores interessados teriam o direito de filiar-se a apenas um par-
tido no segmento que escolhesse e participar da formulação de seu programa com
propostas, sugestões, ideias, embora, evidentemente, como eleitor, podesse votar
em partidos concorrentes a outros comitês. O que não convém é que um eleitor se
inscreva em mais de um partido, por haver o risco de contaminação de interesses.
A organização dos partidos se daria de forma absolutamente democrática, aberta
à participação de quem quisesse. A estruturação seria em células de abrangência

85
P. Garaude

geográfica, isto é, o partido, uma vez organizado em um distrito, ficaria aberto à


inscrição de qualquer pessoa domiciliada nele, não participante de outro partido,
mesmo em outra área.
Ali, se quisesse, participaria das discussões programáticas a serem levadas à
convenção e, ainda, se o desejasse, na escolha do delegado para representar sua
célula no conclave de discussão e aprovação do programa do partido, além da esco-
lha de seus candidatos. Um procedimento não muito complicado.
A possibilidade de compra de delegados seria reprimida de forma exemplar, com
a cassação política, multa pecuniária e pena de reclusão aos infratores. Discorrerei mais
adiante sobre as ideias que tenho para evitar qualquer crime de peculato e corrupção.
A fundação de partidos seguiria um critério semelhante ao atual, com um nú-
mero mínimo de assinaturas e a precisa identificação do eleitor em sua ficha no
órgão de organização das eleições, na qual seria feita a averbação da inscrição,
automaticamente cancelada se fizesse nova inscrição em outra agremiação.
Como já disse, o partido que não atingisse a votação estipulada pela cláusula
de barreira, em certa eleição, ficaria automaticamente desqualificado para concor-
rer à próxima. Mas nada impediria que seus membros participantes criassem um
partido novo, sujeitando-se a novo procedimento de registro, podendo concorrer à
nova eleição, desde que o cumprimento das exigências necessárias fosse concluído
com até um ano de antecedência das eleições.
A sugestão me parece importante para poder proporcionar a reoxigenação
de ideias, propostas e pessoas. Conseguido certo número de eleitores, seria aberto
um espaço nos órgãos de comunicação para que os interessados conhecessem seu
programa e assinassem sua lista de fundação.
O eleitor, mesmo não participando diretamente dos partidos, seria efetivamente
colocado como o que vai decidir, com as opções disponibilizadas pelas agremiações
nas áreas de seu interesse, quais as mais convenientes e inteligentes, aquelas que
melhor se coadunassem com suas opiniões.
A discussão básica sobre o valor a ser arrecadado, a destinação para cada setor
de serviços, a adequação entre o que se quer e o que se pode levariam o eleitor a
sentir o nexo de causalidade entre pagar imposto e o custo necessário para o go-
verno prestar serviços, realizar melhorias.
A falta de visão objetiva dessa situação é uma séria deficiência da democracia
que vem sendo praticada. A possibilidade de se manifestar mais decisivamente seria
uma enorme evolução na prática democrática, a verificação plebiscitária da opinião
dos eleitores na escolha de programas e propostas.

86
O Dogma dos três poderes

Hoje, delegando a um parlamentar o direito não adjetivado de representação,


sua posição pode, perfeitamente, ser completamente contrária à opinião pessoal
de seu eleitor.
Os partidos políticos passariam a discutir, muito mais intensamente, seus pro-
gramas de governo, não só porque seriam obrigados a apresentá-los, mas também
para convencer a sociedade de sua superioridade, no cotejo com os programas
elaborados pelas demais agremiações.
Não tenho dúvidas de que o eleitor se sentiria mais importante, mais próximo
da decisão. Além disso, com medidas simples e facilmente exequíveis, o sistema do
voto partidário segmentado reduz, muito, a possibilidade de influência do poder
econômico, com a adoção simultânea de medidas que dependem, apenas, de von-
tade política.
As despesas de campanha seriam totalmente financiadas pelo poder público,
vedado e definido como crime usar qualquer dinheiro particular com o objetivo
de alterar a vontade popular autônoma, tomada tão-somente pelo convencimento
intelectual. Desde as convenções partidárias, até a campanha, nenhuma despesa
particular seria permitida. Os partidos receberiam verbas públicas necessárias ao seu
desempenho e funcionamento.
A divulgação do programa do partido e o currículo de seus candidatos seriam
feitas em veículos de comunicação, obrigados a ceder tempo e espaço necessários
para que os eleitores interessados conhecessem suas propostas, a argumentação a
favor de sua adoção e a vida pregressa de seus candidatos.
Apenas o programa e a vida sucinta dos postulantes seriam apresentados, nada
massacrante para os espectadores ou ouvintes não interessados. Duas, três ou no
máximo quatro apresentações de cada partido, em igualdade de condições, em
emissoras de rádio, televisão, jornais, revistas e páginas da Internet seriam suficien-
tes.
Há muito tempo já deveriam estar proibidos faixas, cartazes, outdoors, “santi-
nhos”, brindes, comícios, shows, carreatas e quaisquer outros tipos de propaganda.
Seu efeito é apenas deletério à aferição democrática da vontade do eleitorado. Um
anacronismo. O poder econômico em eleições, sob qualquer ângulo, é a porta de
entrada da corrupção no governo.
A propaganda que dependa de recursos do candidato ou de terceiros se torna,
além de porta aberta à bandalheira, sério fator de indução a erro de avaliação, além
de ser desprovida de qualquer valor no cotejamento de propostas e biografias dos
postulantes.

87
P. Garaude

Todos os partidos participantes das eleições seriam tratados de forma igualitária,


para evitar qualquer interferência do poder econômico, cuja manifestação seria consi-
derada crime, tipificado como “tentativa de injunção contra a vontade popular”.
Eliminar o debate em torno de pessoas, para focá-lo verdadeiramente em ideias
e propostas é didático, útil para a informação e na formação de cidadãos conscien-
tes de seus direitos e obrigações.
Parece-me pueril alguém se dizer seguidor incondicional de um político, como se
fosse um ser superior, acima de seus adversários, em função de suas autoatribuídas
qualidades pessoais.
É sabido que o bom político não deve se posicionar sobre questões controver-
sas. Seu programa costuma ser uma coleção de obviedades que sirvam a qualquer
cardápio, a agradar ao maior leque possível de pessoas e opiniões. Quanto mais
genérico, menos se compromete, menos desagrada um bom número de pessoas. A
proposta, se houver, o que é raro, deve ser habilmente escondida dos que podem
não gostar dela.
O que o eleitor faz atualmente é uma combinação de empatia com um exer-
cício improvável de adivinhação. Tenta vislumbrar o futuro baseado em suposições
que lhe são passadas em uma campanha publicitária destinada a vender a imagem
do candidato, não necessariamente verdadeira.
São muito frequentes os desencantos do eleitor, pois os enganos são comuns
no julgamento de competência e caráter, mesmo quando convivemos diariamente
com outro ser humano, imagine no julgamento da imagem de alguém preocupado
apenas em querer convencê-lo de ser o melhor.
Ser um bom candidato não significa ser um bom governante, nem um bom
legislador.
O debate de ideias, atualmente, é feito durante a campanha eleitoral de forma
grotesca, quase primária, porque visa apenas conseguir a vitória nas urnas. Se con-
veniente eleitoralmente a defesa de certo ponto de vista, ele será defendido, pouco
importando se contraria ou não a convicção pessoal do candidato.
A mensagem concisa do candidato em um cartaz, um folheto ou nos poucos
segundos em que seu rosto é estampado em um programa gratuito de televisão tem
como objetivo impactar e induzir a memorização de seu nome, rosto, número.
Não é assim que deveria ser escolhido quem vai decidir problemas sérios como
o valor do seu imposto, a segurança de sua família, a educação, saúde, a política
energética, medidas que podem ter impacto e importância na vida de milhares de
pessoas, além da sua e de seus entes queridos.

88
O Dogma dos três poderes

Não é o caso de desistir do sistema democrático porque, mesmo com todas as


suas imperfeições, ele é, de longe, o melhor. Mas também não é o caso de defender
o imobilismo, por falta de opções ou de criatividade. A democracia deve reinven-
tar-se, reestruturar-se, sempre, buscando ser melhor do que é ou foi, aproveitando
experiências boas e descartando as más, sempre que apareça possibilidade melhor,
a um custo vantajoso.
Identifico, desde logo, pelo menos quatro grupos de críticos à proposta do
voto em listas, que daria ao eleitor a condição de tomar decisões ou pelo menos
participar efetivamente delas:

•• O primeiro é constituído pelos que não a aceitam por convicção. Veem difi-
culdades contornáveis como problemas insolúveis.
•• O segundo é formado por aqueles que acham que o povo não está pre-
parado para se governar, opinar diretamente sobre os problemas que lhe
dizem respeito, como seria o voto em programas, por áreas. São fascistas
enrustidos; não passam de pseudodemocratas e sua identificação é difícil,
pois se travestem de defensores da liberdade. Só não esclarecem que, para
eles, liberdade não inclui autodeterminação. Julgam haver um enorme fosso
entre elite e plebe, esta incapaz de tomar decisões.
•• O terceiro é menos sutil e sorrateiro. São os adeptos assumidos do pessi-
mismo de Hobbes, cuja premissa é a de que não passamos de um bando
de egoístas, incapazes, interesseiros e mal-intencionados. São os fascistas
assumidos que acreditam em predestinados, nos salvadores da pátria, nos
conhecedores da verdade, desde que coincidente com a sua.
•• O quarto, e último grupo, é o dos mal-intencionados. Aqueles que têm
consciência de que o voto em listas, ou chapas, é superior, mas não lhes
interessa. Por isso, farão todo o possível e procurarão todas as justificativas
e desculpas para evitar sua implantação.

Os adversários, como se vê, são muitos. E poderosos.

89
P. Garaude

Os comitês gestores

C om a reorganização do governo, a divisão por funções passaria a ser feita ape-


nas entre órgãos de deliberação e de execução, estes últimos submetidos aos pri-
meiros, como ocorre nas empresas.
Os órgãos deliberativos ou comitês gestores seriam eleitos pelo povo, da forma
como expus no capítulo anterior: proporcionalmente, por chapas, concorrendo em
todo o território nacional. Sua função não seria apenas legislativa — fazer as nor-
mas pertinentes a seu segmento —, mas também a de supervisionar as agências/
empresas incumbidas de executar suas decisões.
Esse poder hierárquico seria exercido de duas formas: pela obrigação das agên-
cias de cumprir as normas deliberativas; e pela nomeação do diretores-presidentes
responsáveis pelas empresas/agências, entre os funcionários de carreira que tenham
atingido o posto hierárquico mais alto.
Pressuposto do sistema é que todas as funções de certa atividade governamen-
tal ficariam a cargo de um só comitê gestor. A princípio, imaginando a área finan-
ceira, por exemplo, seria difícil, em um primeiro momento, entender como o comitê
gestor poderia ficar encarregado tanto de elaborar as normas como de arrecadar,
de defender os interesses financeiros do governo e de julgar as questões financeiras
de seu próprio interesse.

90
O Dogma dos três poderes

Discorrerei mais adiante sobre essa questão, mas desde logo adianto que, pelo
sistema, será o povo que vai cobrar total isenção. A imparcialidade seria respeitada,
junto com conceitos como responsabilidade, atenção e presteza.
Diferentemente do imaginado, o leitor verá que isso não apenas seria possível,
mas recomendável, no sentido de melhorar, muito, a qualidade daquilo que hoje
se costuma chamar de judiciário, sem qualquer prejuízo aos direitos individuais dos
cidadãos.
Comitê gestor seria, portanto, um colegiado, eleito pelo povo, com o escopo
de deliberar e administrar assuntos pertinentes a determinada área de prestação de
serviços governamentais.
Os ministérios seriam extintos e substituídos por esses comitês gestores, a quem
as empresas públicas, incumbidas de executar suas decisões, ficariam submetidas.
Sob outro ponto de vista, os comitês seriam semelhantes às holdings, empresas
constituídas com o objetivo de participar de outras empresas. Seus acionistas seriam
todos os eleitores, toda a sociedade, que escolheriam seus representantes, ou seja,
os integrantes desses comitês ou holdings, para deliberar, administrar e ter, sob seu
poder hierárquico, os órgãos de execução: as agências ou empresas de serviços pú-
blicos. Nada melhor para fazer entender a ideia do que esmiuçá-la em suas possíveis
divisões e atribuições:
O comitê gestor de finanças, colegiado incumbido de normatizar sua área de
atuação e as agências a ele submetidas, teria, como foi dito, a função de cuidar
basicamente de prover os recursos financeiros para o governo desempenhar suas
tarefas. Seria, na verdade, uma função meio, instrumento: prover recursos.
Ficariam sob sua alçada hierárquica as seguintes agências: A agência de or-
çamento e gestão, incumbida de elaborar, acompanhar e fiscalizar a execução do
orçamento; a agência da Receita Federal, com a incumbência de arrecadar os im-
postos; a agência de administração do patrimônio federal; a agência de advocacia
federal, incumbida de advogar na defesa dos interesses do governo; a agência de
direito administrativo, com o encargo de julgar todas as questões relativas à rela-
ção entre governo e seus funcionários e pessoas a quem possa dever por razões
não especificamente tributárias; a agência de direito financeiro, a quem caberia
solucionar todas as questões entre governo e contribuintes; a agência de controle
dos gastos públicos, substituindo o Tribunal de Contas e CGU, com a tarefa de
tomar e fiscalizar a contabilidade de todos os órgãos públicos governamentais
e; a agência de investigação e combate à corrupção, esta objeto também de um
capítulo exclusivo.

91
P. Garaude

Seu grau de autonomia, como já disse, não poderia ir além de sua responsabi-
lidade inerente, qual seja, a de arrecadar recursos para o perfeito funcionamento do
governo, definindo quantias indispensáveis a seu funcionamento e verbas opcionais
para serem usadas em investimentos e melhorias na qualidade dos serviços, a cargo
de outros comitês.
O comitê gestor de economia teria como propósito manter a estabilidade da
moeda; promover o desenvolvimento econômico; o progresso das empresas e ci-
dadãos; o abastecimento; o bom funcionamento de todos os setores da atividade
econômica; executar a justiça econômica entre cidadãos entre si, entre empresas
e cidadãos e entre empresas entre si, de cujas decisões decorressem condenações
econômicas. Suas agências seriam: o Banco Central; a agência de indústria, co-
mércio e serviços; a agência de agricultura e abastecimento; a agência de assuntos
fundiários; o Banco do Brasil; o BNDES, a agência do trabalho e emprego; a agência
de exportação e comércio exterior; a agência de ciências, pesquisas e tecnologia; a
agência de turismo, a agência de direito civil; a agência de direito empresarial e; a
agência de direito do trabalho. Discorrerei sobre justiça em capítulo exclusivo, mais
adiante, justificando o porque dessa nova abordagem.
No regime capitalista, o governo, como regra, não deve participar de empre-
endimentos econômicos, salvo exceções justificáveis. Tem, no entanto, um grande
número de tarefas de suporte.
A aparente junção, em um só comitê, de tarefas aparentemente tão díspares
como o Banco Central, a agência de turismo e as agências de direito civil, empresa-
rial e trabalhista pode parecer não fazer muito sentido. Mas faz.
Todas essas atividades governamentais têm como característica fundamental
o suporte, o apoio que o governo deve prestar aos cidadãos, como sujeitos da
atividade econômica, e também às empresas, cuja finalidade básica é essa. Deve,
por isso, promover a regulação das atividades; a indução para o uso de todos os
meios possíveis para promover o desenvolvimento econômico; o pleno emprego; o
fortalecimento da indústria, do comércio, da agricultura, e também o julgamento
de conflitos de pessoas com pessoas, de pessoas com empresas ou destas entre si,
cuja origem esteja na atividade econômica.
O comitê gestor de infraestrutura seria incumbido de preservar o meio am-
biente de forma a mantê-lo saudável; administrar, regulamentar, prover, direta ou
indiretamente, melhorar e aumentar a oferta e a concorrência de produtos e servi-
ços, nos segmentos de comunicações, energia, transportes, saneamento básico, ha-
bitação. Seus órgãos seriam: a agência de preservação do meio ambiente, a agência

92
O Dogma dos três poderes

nacional de energia; a agência de telecomunicações; o departamento de estradas


de rodagem; o departamento de estradas de ferro; o departamento de portos e rios
navegáveis; a empresa nacional de saneamento e águas; a agência de fomento à
habitação e infraestrutura urbana; além de outros.
O comitê gestor de educação, cidadania, ciência, cultura e esportes teria como
possíveis órgãos subordinados: a agência de educação fundamental; a agência de
educação de nível médio; a agência de ensino superior; a agência de educação téc-
nica e profissionalizante; a agência de ciências; a agência de cultura; a agência de
esportes e; a agência de cidadania e comunicação social.
O comitê gestor de saúde teria a função de atuar no bem-estar físico e mental
da população, essa segunda parte muito negligenciada. estariam subordinadas a
ele: a agências de planejamento da saúde; a agência de saúde preventiva, a quem
caberia a vigilância sanitária, serviços educativos, preventivos e de vacinação e; a
agência da saúde terapêutica, a quem caberia estabelecer regras, parâmetros, ob-
jetivos e metas para toda a rede pública de postos de saúde, clínicas, hospitais; o
Sistema Único de Saúde; a agência de vigilância sanitária; a agência de supervisão
de fármacos e alimentos; a agência de saúde mental e; a agência de planejamento
familiar, cujo objetivo seria ensejar à população meios voluntários de evitar o nas-
cimento de crianças não desejadas ou daquelas que não pudessem ser tratadas,
alimentadas e educadas convenientemente.
Ao comitê gestor do bem-estar e seguro social estariam submetidas: a agência
do seguro social; a agência de assistência social; a agência de amparo aos indíge-
nas; a agência de amparo ao idoso; a agência de proteção ao menor; a agência de
amparo ao deficiente físico; a Curadoria de Ausentes e Incapazes e; a agência de
serviços notariais, esta última disciplinando toda a importante área de registro civil,
imobiliário, comercial, notarial e outros.
Essas agências cuidariam também de todos os que, na sociedade, merecem a
proteção ou preocupação especial do estado, seja em função de idade, doenças, ou
da falta de condições físicas, intelectuais ou psicológicas. A agência de assistência
social, seria uma excelente novidade, uma área hoje completamente negligenciada
ou politizada de maneira inadequada. Pensei na possibilidade de criar, nessa área,
a agência de direito social. Não vi necessidade. Hoje, é a Justiça de Menores quem
decide a aplicação de uma medida corretiva a um menor infrator, assim como lhe
incumbe decidir sobre a guarda de uma criança abandonada e sua possível adoção.
Esses problemas não são, na realidade, de natureza judicial, por lhes faltar o ingre-
diente “controvérsia”. São administrativos e, por isso, ficariam melhor no âmbito

93
P. Garaude

da agência de proteção ao menor, especializada, contando em seu quadro com ba-


charéis em direito, assistentes sociais, psicólogos, um órgão mais apto, portanto, a
tomar decisões nessa área, com base na sua própria regulamentação organizativa.
A previdência social, como hoje está colocada, em meu entender deve ser re-
pensada e dividida, conforme detalharei mais adiante.
As alterações mais profundas que proponho, possíveis com a adoção do novo
sistema, estão na área de segurança e justiça, cujas estruturas atuais considero ul-
trapassadas, arcaicas, superadas, em total desacordo com a época de informatiza-
ção e progresso científico e cultural em que vivemos.
O conceito de segmento, área de atuação do governo, presta-se a colocações
mais plausíveis e corretas, ao se pensar na separação que se deve proceder.
O termo “defesa”, hoje empregado para prevenir e defender o país de um
ataque de país estrangeiro, não tem mais qualquer atualidade, posto esta possi-
bilidade, de tão remota, não merecer qualquer prioridade. Melhor seria incluir o
conceito de defesa em “segurança”, termo mais abrangente, que incluiria tanto a
defesa externa como a interna.
Na qualidade de contribuinte, tenho muito mais interesse na proteção de mi-
nha família contra um ataque de um delinquente do que na inviável proteção contra
a invasão externa do País.
Formulado esse conceito, portanto, o comitê gestor de segurança teria por
finalidade legislar e administrar toda a área de garantia da paz individual, social e
nacional, tanto na prevenção como na identificação e punição dos que infringissem
suas regras cometendo delitos. Deveria, portanto, esse comitê englobar todos os
aspectos relativos à segurança: a integridade territorial, a integridade física e moral
do indivíduo, da coletividade, garantindo-lhes os direitos que lhes cabem por lei: a
vida, a liberdade, a incolumidade física, o patrimônio legítimo, dignidade, integri-
dade física e mental, a paz individual e coletiva.
O comitê gestor de segurança passaria a abrigar, na solução que preconizo,
os seguintes órgãos: o Exército, a quem se juntariam as polícias militares federal
e estaduais — sobre o que discorrerei adiante —, a Marinha, a Aeronáutica, o de-
partamento de investigações criminais, a agência de direito criminal e a agência de
administração penitenciária.
Em minha proposta, não posso deixar de defender a ideia de aproveitamento
das forças armadas, mediante a adoção de programas de adaptação e formação
progressiva de seus profissionais, no policiamento preventivo, dissuasivo e execu-
tivo. Em um país pobre, como o Brasil, não há sentido em Exército, Marinha, Aero-

94
O Dogma dos três poderes

náutica, deixarem de prestar serviços à sociedade que os mantém, em época de paz


externa, que se espera definitiva.
É possível e conveniente aumentar suas funções, para realizar serviços úteis
e necessários em tempos de paz externa, mas de insegurança individual, com a
população sendo agredida por delinquentes que declararam guerra a cidadãos mal-
protegidos.
Sua missão hoje é, quase exclusivamente, cumprir a função dissuasória a inva-
sões externas, nada lhe respeitando a questão de um cidadão sofrer algum tipo de
violência, ser vítima de um crime.
Hoje, a possibilidade de movimentos terroristas faz interagir os conceitos de
guerra e de crime. Organizações criminosas são criadas com o objetivo quase único
de infringir a lei, desrespeitá-la, agredir o indivíduo e a sociedade que precisam de
proteção, muito mais do que a nação em uma remotíssima possibilidade de invasão
estrangeira.
Seria, também, criada a agência de investigação criminal, uma evolução da
atual Polícia Federal, incumbida de proceder investigações para determinar a auto-
ria de crimes, da busca a fugitivos e de trabalhar na área de inteligência preventiva
contra o crime organizado. Isso se daria com o aproveitamento de parte do quadro
da Polícia Federal e do Ministério Público, e das policiais civis que seriam fundidos
em um órgão único, destinado à identificação dos responsáveis e à acusação penal
dos autores de crimes, até final julgamento.
A agência de direito criminal teria a incumbência de julgar todas as infrações
à lei criminal, passíveis de aplicação de pena restritiva de liberdade, que é tema,
também, de um capítulo exclusivo.
Ficaria ainda sob a égide do comitê gestor de segurança a administração do
sistema penitenciário com a criação da agência de administração penitenciária, se-
parada da agência de direito criminal, cuja atribuição cessaria assim que transitadas
em julgado as decisões, tanto absolutórias como condenatórias. É bem de ver, aí,
a completa superioridade da proposta sugerida. Hoje, cabe ao judiciário a admi-
nistração da pena, mas não a dos presídios, que compete às secretarias estaduais
de Segurança e de Administração Penitenciária. Um “imbróglio” do qual participa
também o legislativo, a quem cabe cuidar da legislação.
Pela sugestão nova, tão logo condenado o réu, o assunto passaria para a al-
çada exclusiva da agência de administração penitenciária, que passaria a cuidar da
pena, do presídio e da situação individualizada da pessoa do preso, hoje confusa-
mente diluída.

95
P. Garaude

Na minha proposta, como já disse, o governo deixaria de ser dividido em pode-


res, com o fim dos conceitos de executivo, legislativo e judiciário.
O judiciário, especificamente, seria desmembrado em seis agências especia-
lizadas atreladas a três comitês: a agência de direito administrativo e a agência
do direito tributário, ambas submetidas ao comitê gestor financeiro; a agência de
direito criminal, subordinada ao comitê gestor de segurança; e a agência de direito
civil; a agência de direito empresarial e a agência de direito trabalhista, referindo-se
hierarquicamente ao comitê gestor de economia. A justiça empresarial, pela suges-
tão, ficaria restrita ao conhecimento de problemas específicos das empresas, como
questões societárias, falências e as recuperações judiciais.
É necessária uma grande diminuição da ingerência do governo na questão pre-
videnciária. Sem prejuízo de direitos adquiridos, que seriam respeitados desde que
não fossem privilégios, seria recomendável separar o passado do futuro. Seria criado
um grande fundo com administração autônoma, com ativo e passivo iguais, no qual
o passivo seria a estimativa do valor calculado para o pagamento de todos os cré-
ditos previdenciários devidos até a data de sua criação — inclusive os proporcionais
que coubessem ao pessoal ainda na ativa. Desse passivo estimado, seria diminuído
o valor que o governo continuaria a pagar diretamente pelo modelo novo, como
exposto a seguir.. O ativo seria constituído por ações pertencentes ao governo e por
títulos da dívida pública emitidos para complementar a diferença.
Feita essa separação, deixariam de haver as contribuições previdenciárias das
empresas, dos empregados e dos autônomos, com sua substituição por impostos
mais inteligentes (há um capítulo específico, no qual discorro sobre esse tema).
O governo, por meio do comitê do bem-estar e seguro social, passaria a admi-
nistrar todas as aposentadorias e pensões por um valor único — algo como um sa-
lário mínimo —, fixado para todos os seus beneficiários, cujos recursos proveriam e
seriam previstos em orçamento. Caberia também ao comitê do bem-estar e seguro
social promover uma ampla campanha de esclarecimento sobre as conveniências de
cada trabalhador na ativa aderir a um bom plano de previdência privada.
No âmbito do comitê gestor do bem-estar e seguro social, haveria também a
agência de serviços notariais, com conceito diferenciado. A ela ficariam submetidos
todos os cartórios e registros existentes no país, que passariam a ser entendidos
como uma prestação de serviços públicos, como os civis, de imóveis, de notas, de
protestos, as juntas comerciais, marcas e patentes, títulos e documentos e todos os
outros. Seria da alçada dessa agência a fiscalização e a fixação de regras de funcio-
namento para todos esses serviços.

96
O Dogma dos três poderes

Defendo que se estabeleça um número ótimo de cartórios por áreas geográfi-


cas, algumas vezes maior, outras vezes menor do que os existentes, de preferência
especializados, dos quais se cobraria eficiência e rapidez. A concessão desses servi-
ços seria provida pela realização periódica de concursos para o preenchimento dos
cargos de oficial maior. Estes teriam responsabilidade civil e criminal sobre os atos
aos quais dessem fé e também os incumbidos de melhorar a qualidade de atendi-
mento aos usuários. Seria conveniente a adoção de uma bem elaborada tabela de
preços desses serviços, excetuando, adequadamente, aqueles de registro obrigató-
rio e gratuito, como nascimentos e óbitos.
Não vejo qualquer necessidade de varas específicas de família, nem do menor.
Elas podem ser substituídas com muito mais propriedade, dependendo do que verse
a questão. O interesse de menores ou incapazes, mesmo nos casos de disputa de
sua guarda, deveria passar para a alçada da agência de proteção ao menor, que
pode ser muito mais eficiente, nesse mister, do que atribuir a questão a juízes, sem
formação específica. Ela também se manifestaria, necessariamente, nos casos de
partilha de bens nos quais houvesse o interesse de menores. No caso de delinquên-
cia, o julgamento poderia caber à agência de direito criminal a quem caberia apli-
car a legislação específica sobre o menor infrator. Mas a administração da medida
corretiva imposta passaria para a incumbência da agência de proteção ao menor, a
quem incumbiria a administração da situação do menor infrator, como um todo.
As agências de direito, assim como todas as demais agências públicas, não teriam
competência para aprovar leis, mas poderiam, perfeitamente, apresentar projetos e
trabalhar como consultoras dos comitês gestores, dando pareceres técnicos especiali-
zados, toda vez que solicitadas por aqueles colegiados de representação popular.
A eficiência da justiça passaria a ser cobrada. Como disse, a inexistência de
parâmetros, métodos e objetivos comprometem, na raiz, a eficiência dessas áreas
fundamentais na prestação de serviços governamentais. Só a criação de objetivos e
metas seria razão de uma enorme melhoria.
Por fim, pergunta pertinente seria quanto ao número de integrantes que cada
comitê deveria possuir e se seu número seria igual para todos eles.
Apenas por intuição, sugeriria um primeiro número, único para todos, cuja
quantidade recomendável só poderia ser alcançada com o funcionamento, a prá-
tica, o dia a dia. Os comitês deveriam começar com cinquenta membros. Existe
sempre um número ótimo e ele deve ser não maior do que o necessário e nem
menor do que o suficiente. Cinquenta seria um palpite friccionável com a realidade
sentida.

97
P. Garaude

O conselho de Estado

N o início do processo de idealização do sistema de empresas públicas de presta-


ção de serviços, imaginei que os comitês gestores de áreas de atuação, ou holdings,
teriam a mesma graduação hierárquica, agiriam em harmonia, pois teriam atribui-
ções diferentes, portanto, não conflitantes.
Logo vi que haveria a necessidade de existir, acima dos comitês, um outro
órgão, incumbido de harmonizar eventuais conflitos e solucionar pendências que
poderiam ocorrer.
Esta possibilidade seria bem real. Há a indiscutível necessidade de uma palavra-
final quando houver divergências, discrepâncias. E, realisticamente, não há como
evitá-las.
Haveria sempre zonas nebulosas de atribuições, que demandariam definição
clara, podendo envolver vários comitês. Necessário, portanto, haver um órgão que
decidisse, claramente, as atribuições, funções, alcance de decisões e normas que
envolvessem assuntos mais complexos e intercorrentes entre mais de um comitê.
Esse órgão seria o Conselho de Estado. Sua composição permitiria várias opções.
Descartei a de sua eleição direta e segregada, por várias razões: diminuiria, sensivel-
mente, a importância dos comitês, pois, se eleito separadamente e tendo a última
palavra, estaria acima deles, podendo imiscuir-se em seus assuntos, enfim, criando

98
O Dogma dos três poderes

novos conflitos. Faltaria integração com os demais órgãos colegiados, necessária,


para que os problemas de cada um fossem vistos em um contexto maior, mas não
excludente, nos quais os próprios comitês estivessem representados.
Pensei, então, na possibilidade de que fosse integrado por dois, três ou quatro
representantes de cada comitê, indicados por eles, segundo um critério uniforme
e padronizado. Essa opção me pareceu superior a qualquer outra. Deveria, ainda,
esse órgão harmonizador ter algumas funções próprias que não convêm fossem
atribuídas a qualquer comitê.
Seriam atribuições não abrangidas pelos comitês, mas complementares a
suas tarefas: a agência superior de direito, a agência de relações exteriores e a
ouvidoria geral.
A função da agência superior de direito seria diferente daquela exercida hoje
por qualquer órgão de justiça, porque não se manifestaria sobre uma demanda
específica, em nível de recurso, mas, em tese, sempre que provocado, dando pa-
receres sobre a constitucionalidade e a legalidade das leis. Sua decisão deveria ser
necessariamente ratificada pelo Conselho de Estado, como órgão supremo da Re-
pública. Uma vez ratificada, teria a força de lei superior hierarquicamente às origi-
nárias dos comitês.
Sua provocação seria restrita a certas entidades, como os comitês, as agên-
cias, o próprio Conselho de Estado, órgãos de classe, partidos políticos, confede-
rações sindicais e alguns outros órgãos autorizados. Apenas esses órgãos, depen-
dentes de decisões coletivas, poderiam provocar o pronunciamento da agência
superior de direito.
Teria, evidentemente, como todas as agências técnicas, a função consultiva:
a assessoria ao Conselho de Estado, sobre a conveniência, ou não, de alterações
legais ou constitucionais, para o que, sempre, seu parecer seria necessário.
A agência superior de direito seria constituída por juízes de carreira, de última
graduação hierárquica, escolhidos por indicação do presidente do Conselho de Es-
tado e aprovados pela maioria de seus membros, exercendo suas funções por prazo
indeterminado, mas demissíveis pela mesma maioria. Diferentemente do que ocorre
com o atual Supremo Tribunal Federal, nenhum juiz seria indemissível.
Não acredito em funções vitalícias que estejam a salvo do desinteresse, da
omissão e do acomodamento. Assim, se um juiz se acomodasse, se desinteressasse,
ou mesmo tivesse sua lucidez diminuída, sua substituição não seria impossível. É o
mal menor, ante a possibilidade, a meu ver muito remota, de haver qualquer tipo
de pressão externa para mudar os votos.

99
P. Garaude

A agência de relações exteriores substituiria o ministério hoje incumbido


dessa tarefa. A conveniência de não ser um comitê autônomo é manifesta. Tra-
ta-se de área meio, suporte às demais áreas de atuação governamental, devendo
representar não a unidade, nem a unanimidade, mas a posição consensual, ou da
maioria dos comitês em relação à política externa, tanto em relação ao comércio
exterior como na política geral de relacionamento entre países e organismos in-
ternacionais.
A formulação da política externa caberia ao Conselho de Estado, mas a exe-
cução de suas decisões e a formulação de parâmetros e propostas poderia ser de
competência da agência de relações exteriores.
Ainda, afeto ao Conselho de Estado, estaria a ouvidoria nacional.
Considero sua criação uma saudável volta ao passado, mediante a adaptação
aos tempos atuais.
Se fosse subordinada ao executivo, como ocorre em alguns estados, seria
cooptada para defendê-lo e, se ao legislativo, não funcionaria.
No sistema proposto, esses inconvenientes, hoje possíveis, seriam totalmente
evitados, pois a ouvidoria se faria principalmente para atender reclamos populares
contra agências públicas, das quais manteria conveniente distância, para livrar-se
do compadrio. Emitiria recomendações aos órgãos envolvidos, os quais, após certo
tempo, deveriam respondê-las.
Outra função importante do Conselho de Estado seria a ratificação, ou não, de
tratados internacionais celebrados pelo presidente do conselho.
Sendo o mais alto órgão hierárquico, ficaria a seu cargo tanto a elaboração da
lei constitucional como sua alteração por quórum qualificado; este necessário para
possibilitar um sistema estável, sem alterações frequentes, mas tampouco enges-
sado para o progresso político, cultural e econômico.
Uma vez, participando da elaboração de estatutos de uma sociedade, ao termi-
narmos a redação de um dos últimos artigos, aquele que previa a possibilidade de
sua alteração, disse a um colega de comissão:

“Esse artigo (que prevê a alteração do estatuto) é o mais importante de todos os que
escrevemos. Só a fricção entre o que imaginamos e a realidade vai dizer se os outros vão
funcionar.”

Certo de ter tido um rasgo de lucidez, fiquei feliz com o meu comentário.

100
O Dogma dos três poderes

O chefe de Estado

A pesar de não aceitar o arbítrio descabido e exagerado de um chamado


chefe de governo — no sistema atual quase um monopolizador do poder de
decisão —, reconheço conveniente, por tradição e necessidade prática, a figura
do chefe de estado, uma única pessoa para exercer a representação do país,
tanto no exterior como internamente, em cerimônias, conclaves, tratados e ou-
tras situações.
Suas funções seriam, concomitantemente, a de presidente do Conselho de
Estado e chefe de estado, não de governo, função que seria abolida.
A figura de chefe de estado é conveniente. Ela existe em todos os países, nas
monarquias constitucionais, na pessoa do rei ou rainha, e nos regimes parlamenta-
ristas republicanos, na pessoa do presidente da República. Há, até, uma projeção
romântica do cargo, cuja conveniência se impõe.
No sistema presidencialista puro, e mesmo no misto, a função desempenhada
pelo presidente da República pouco difere da de um rei absolutista. As diferenças
ficam na eleição pelo povo e na periodicidade da função: vitalícia, no caso do rei;
temporária, no caso do presidente. No presidencialismo típico norte-americano, co-
piado por quase todos os países do continente, o presidente acumula as funções de
chefe de estado e de governo; uma concentração descabida de poder e pompa.

101
P. Garaude

Na proposta, o presidente do Conselho de Estado teria funções equivalentes às


de um presidente da República ou de um rei em um regime parlamentarista, mas
não só. Suas funções seriam as de chefe de estado, não de governo. Mas, diferen-
temente de monarquias ou repúblicas parlamentaristas, pelo sistema proposto, as
funções do presidente não seriam meramente protocolares, de simples representa-
ção cerimonial.
Seriam ampliadas, de tal sorte a não haver nem a diminuição total de respon-
sabilidades, ocorrente em alguns regimes parlamentaristas, nem o poder descabido,
exagerado, unipessoal, dos regimes presidencialistas.
No modelo imaginado, o presidente do conselho de estado teria, além da co-
ordenação desse órgão, a supervisão dos órgãos que lhe estariam afetos, a agência
de relações exteriores, a agência superior de direito e a ouvidoria nacional. seria de
sua competência indicar seus presidentes para a aprovação ou ratificação pelo con-
selho. Seria o mandatário oficial do país em reuniões com outros chefes de estado,
conclaves, cerimônias, eventos, visitas oficiais; e representante do país na assinatura
de tratados internacionais.
Neste mister, evidentemente, sua representação teria a assessoria da agência
de relações exteriores, cabendo-lhe ouvir, também, o Conselho de Estado, do qual
seria o presidente. Este último para lhe dar o necessário apoio na formatação de
diretrizes internacionais.
A função deveria caber, necessariamente, a um dos conselheiros. No que tange
a prazo de mandato, deve ser indeterminado. Não há vantagem em se determinar
um período certo para o exercício de um cargo de eleição por um órgão com pou-
cos membros, cuja eficiência pode ser verificada a qualquer tempo.
Se estiver desempenhando a contento, não haveria razão para deixar de ocu-
par a função ao fim de certo prazo. Se não estiver agradando, não haveria razão
para aguardar o seu término.
Os mandatos de presidentes, tanto do Conselho de Estado como dos comitês
gestores, deveriam, portanto, ser exercidos por tempo indeterminado, até a eleição
de um novo ocupante, como ocorre nas empresas. Mas isso criaria um problema
evidente. Se o mandato do presidente do Conselho (e estendo a sugestão para os
comitês) fosse indeterminado, ele precisaria ser conselheiro (ou comissário). E se
não fosse reeleito, como ficaria a situação?
Para viabilizar a lógica do sistema, logo que eleito, o presidente do Conselho
no exercício do cargo se tornaria conselheiro nato, ou seja, seria conselheiro até
completar a idade de aposentadoria compulsória. Esta previsão seria necessária para

102
O Dogma dos três poderes

que seu mandato não fosse exaurido quando ocorresse a eleição de um novo con-
selho, o que poderia importar na vacância do cargo.
Por outro lado, seria de sua alçada exclusiva a escolha, dentre os demais con-
selheiros, dos outros cargos da diretoria do conselho, para que houvesse, sempre,
recomendável harmonia entre seus membros.
Haveria regras específicas para a escolha do presidente, mas imagino um pro-
cesso de eleição instalado apenas se e quando um quórum, como um terço do total
de membros do Conselho de Estado, se manifestasse expressamente a favor da
substituição do mandatário de então, o que provocaria uma sessão específica para
deliberar sobre sua substituição, ou não.
Caso os solicitantes conseguissem maioria absoluta — o que implicaria na ime-
diata substituição do presidente —, seria realizada, em continuidade, nova sessão
específica, agora para eleger seu sucessor.
A eleição poderia demandar alguns escrutínios para a obtenção de maioria ab-
soluta, com a eliminação, em cada um deles, do candidato, ou candidatos, menos
votados. Não obtida a maioria absoluta até o quarto escrutínio, no quinto apenas
os dois candidatos mais votados no último turno concorreriam, considerado eleito
o que obtivesse o maior número de votos.
Se ocorresse a morte, renúncia ou impedimento do presidente do Conselho de
Estado, aquele por ele próprio nomeado vice-presidente seria logo empossado nas
funções, até sua possível substituição por um novo presidente, eleito pelo mesmo
processo. Esta solução me parece conveniente, também, para todos os comitês
gestores, por evitar qualquer espécie de conflito desnecessário.

103
P. Garaude

Quando menos é mais

U ma das mais benéficas consequências do modelo proposto, além de eficiência


e diminuição da corrupção, seria a enorme economia nas despesas operacionais do
governo, que se tornariam factíveis. Envolveria, é bem verdade, uma outra grande
revolução no modelo existente, contrariando costumes, tradições, interesses, privi-
légios e, principalmente, um grande dogma artificialmente construído.
Pela lógica da proposta, ao se organizar o governo-instrumento, há de se pro-
curar o tamanho ótimo. Nem menor do que o necessário, nem maior do que o
suficiente. Muitas vezes, menos é mais.
Há de ocorrer uma permanente preocupação com que os serviços administra-
tivos sejam executados com eficiência pelo menor custo possível. No sistema tripar-
tite, não há essa preocupação. Não há estudo sobre o tamanho do executivo, do
legislativo, do judiciário, nem sobre o nível em que se deve dar a divisão territorial
de competências e atribuições. Imaginou-se, com base no modelo norte-americano,
que serviu de paradigma para todos os países latino-americanos, que seriam neces-
sários três níveis administrativos.
Com a adoção do sistema de empresas públicas de prestação de serviços, é
possível e recomendável eliminar essa superposição de três níveis de administração
e diminuí-los para dois, sem prejuízo da eficiência na prestação de serviços e com
uma enorme economia de recursos públicos.

104
O Dogma dos três poderes

A administração do Distrito Federal em vários países, como no Brasil, provou


que isso é totalmente possível, tanto quando a capital do País se situava no Rio
de Janeiro como agora em Brasília, nas quais dois níveis de governo se mostraram
totalmente suficientes.
A existência de três níveis traz muito mais desvantagens do que benefícios. Um
custo desproporcional em relação a seus pequenos benefícios.
Hoje, no Brasil, além do governo central, existem vinte e seis estados, um dis-
trito federal e mais de 5 mil municípios. É muito governo. É um exagero de prefeitos,
governadores, deputados, senadores, vereadores que pouco têm a fazer para justi-
ficar seus salários, além de tentar em manter-se em seus empregos pagos por toda
a sociedade. O que fazem é bem pouco em termos de resultados. Uma farra com o
dinheiro público tratado como cão sem dono pelos incumbidos de administrá-lo.
Acresce a inconveniente falta de especialização de quase todos os políticos, le-
gisladores e administradores, com poucas exceções malpreparados para exercerem
suas funções, sem conhecimento de métodos, organização, finanças, do direito.
Incrivelmente, apesar de milhares de políticos e funcionários “trabalhando”
pelo povo, o serviço público é de péssima qualidade. Há filas que são um desres-
peito às pessoas que ficam horas aguardando para reclamar um seu direito ou por
um serviço pelo qual pagaram. As escolas, malconservadas, com professores mal-
remunerados e malpreparados, sequer conseguem passar os conhecimentos mais
elementares. Hospitais sem higiene, sem médicos, sem leitos, sem equipamentos,
uma polícia despreparada, desmotivada e mal-equipada, um judiciário que leva
anos para resolver os problemas que lhe são submetidos.
Deputados e vereadores pouquíssimo produzem. Trabalham a maior parte do
tempo como despachantes para conseguir vantagens pessoais para seus possíveis
futuros eleitores, aos quais dão preferências nas filas e nas agruras do serviço pú-
blico. Parece terem interesse em manter tudo na má situação atual, para valorizar
seu poder, prestando ajuda aos que lhes procuram. Lembram a situação do corrupto
que cria dificuldades para vender facilidades.
Há alternativas a um só tempo mais democráticas e eficientes, além de muito
mais baratas.
Na sugestão de empresas prestadoras de serviços, não haveria necessidade de
três, mas de apenas dois níveis de atuação e, consequentemente, de apenas duas
instâncias geográficas de deliberação. Uma enorme economia. Mais do que dois
níveis seria superposição desnecessária, um grande gasto a ser cortado, meta de
todo administrador competente.
Para administrar com eficiência, seriam suficientes apenas agências federais
e outras regionais, estas últimas atuando em áreas geográficas semelhantes, em

105
P. Garaude

extensão, na média, ao atual Distrito Federal. As primeiras teriam abrangência em


todo o território nacional e as segundas, apenas em parte específica do território.
O ideal seria a eliminação de estados e municípios e sua substituição por regi-
ões administrativas, entre duzentas e trezentas, no caso brasileiro.
Evidentemente o que viabilizaria o sistema seria a divisão equitativa do imposto
arrecadado entre as regiões, em função de suas populações — e talvez uma parte
menor em razão de suas áreas. No sistema supletivo de impostos que parte da pre-
missa de que o município deve fazer tudo que pode e assim por diante, é necessária
a existência de tributos federais, estaduais e municipais, gerando confusão, desne-
cessária burocracia e injustiças que se autoalimentam e se perpetuam.
No sistema supletivo, o município pobre arrecada menos, por ser pobre deve
ser ajudado pelo governo federal. Isso deixaria de existir. Resolvido o problema da
divisão de impostos, como sugerido em outro capítulo, não há qualquer vantagem
no sistema de três níveis regionais.
Para alguns serviços, não seriam recomendáveis divisões em áreas autônomas,
mas apenas hierárquicas, devendo haver centralização de comando. Colocaria neste
rol justiça e segurança, cuja permanência apenas na área federal seria conveniente.
É que há, nesses serviços, a necessidade de profissionalização, hierarquia, especia-
lização, organização e abrangência, porque, cada vez mais, os problemas estão
transcendendo o espaço de sua ocorrência. Não faz sentido um criminoso ir para
outro município e ser tratado como cidadão de bem.
No caso da segurança, seria recomendável que apenas algumas de suas funções
permanecessem na área regional: as de cunho preventivo, informativo e assistencial.
Fora isso, seria conveniente haver planejamento, treinamento, uso de equipamentos
modernos de última geração, laboratórios, centros de estudo e pesquisa, arquivos
informatizados de abrangência nacional, além de uma série de outras necessidades,
cada vez mais técnicas e sofisticadas.
Seria conveniente a existência de cargos de carreira que demandariam o início
em áreas mais fáceis até chegar às mais difíceis e complexas, seguindo a carreira hie-
rárquica por promoções galgadas em vivência, experiência e preparação. Há áreas de
alta criminalidade e outras em que o número de delitos é baixíssimo, o que indicaria a
conveniência de distribuição não necessariamente em função de população, mas pelo
número de infrações legais. Um planejamento baseado em informações.
Igualmente na área da justiça, há conveniência da existência de carreiras que
devem transpor as fronteiras regionais para efeito de promoções, cursos, treina-
mento e preparação com decorrente reconhecimento financeiro.

106
O Dogma dos três poderes

Não existe atualmente e seria difícil imaginar a possibilidade de um funcionário


de carreira passar, por promoção, de uma empresa municipal para uma federal.
Assim, se fosse procedida, como sugerido, a fusão do Ministério Público com
a polícia em uma única agência, haveria conveniência de que os funcionários, ad-
mitidos por concurso na esfera federal, cumprissem uma trajetória hierárquica que
começaria em regiões mais remotas e menos problemáticas, galgando postos mais
elevados, paulatinamente. Com os juízes de carreira também divididos pelo sistema
nas seis agências sugeridas, a situação seria igual.
Por que polícias federal, estaduais e municipais, fazendo quase as mesmas
coisas e perdendo coordenação, ou por que juízes divididos em níveis, gerando
conflitos de jurisdição e competência?
Uma divisão recomendável seria feita por funções, apenas entre as adminis-
trações federal e as regionais, dentro do princípio de cada um ter sua tarefa, sem
desnecessária e inconveniente superposição ou confusão.
Em algumas áreas de administração, a participação federal teria a função pre-
ponderante de estabelecer critérios, métodos e metas e dois níveis de abrangência
seria uma solução administrativa excelente. Haveria, por exemplo, alguma conveni-
ência em se manter agências de educação nas esferas federal, estadual e municipal?
Mais de duas seria desnecessária repetição.
Deveria se atribuir ao órgão federal de educação a definição das diretrizes,
ainda que flexíveis, de todos os cursos e disciplinas, desde a pré-escola até o curso
de pós-graduação, a autorização e fiscalização de funcionamento de todos os cur-
sos didáticos, a fixação de parâmetros e objetivos a serem alcançados por todos os
cursos licenciados e autorizados a funcionar e, principalmente, a avaliação dos alu-
nos e das unidades escolares, mediante exames periódicos, de alta conveniência. A
preparação, a organização e a realização de provas anuais, como o Enem, caberiam
à administração federal da educação, por meio de uma agência exclusiva incumbida
de planejá-los, organizá-los e realizá-los.
Afora essas incumbências, não há qualquer razão lógica para que as regiões
deixem de cuidar de todo o resto, ou seja, da administração das escolas, da admis-
são e contratação de professores, da execução das diretrizes de educação, desde o
maternal até os cursos de pós-graduação situados em seu território.
Com parâmetros federais e verbas proporcionais ao número de habitantes, os
governos regionais deveriam cumprir recomendações, metas, manter cursos técni-
cos, proporcionalmente ao número de habitantes, seguindo a vocação econômica
de sua região.

107
P. Garaude

Na saúde, também não haveria necessidade do que mais de dois níveis de


atuação. O federal cuidaria do licenciamento e da fiscalização de hospitais e outros
órgãos de saúde, fixação de parâmetros, diretrizes e objetivos de saúde nacional,
organização de campanhas de prevenção, vacinação (no que diz respeito a pre-
paração logística e aos insumos), além do abastecimento de remédios em casos
específicos. A regional cuidaria de todo o mais como o funcionamento de hospitais,
ambulatórios, postos de saúde e pronto-socorros.
No caso de infraestrutura, não vejo também qualquer conveniência em mais
de duas alçadas: a cargo do governo federal ficaria toda a área de grande infra-
estrutura, como recursos hídricos, elétricos, comunicações, transportes ferroviário,
hidroviário e rodoviário; a cargo das empresas regionais, o problema da distribuição
de água, luz, esgoto, a construção e manutenção de todos os logradouros e vias
urbanas, as estradas regionais, o planejamento e a administração do trânsito local e
itens evidentemente urbanos.
Na área de economia, seria desnecessário o nível intermediário. Sob a adminis-
tração federal, ficariam problemas como licenciamento e funcionamento de ban-
cos, o Banco Central, moeda e crédito, toda a área de financiamento a projetos
de interesse nacional, a justiça econômica, além de agricultura, indústria, serviços,
comércio externo, habitação; ao passo que a regional cuidaria de assuntos como
habitação, indústria, serviços e agricultura local, abastecimento, turismo e outros
voltados para o seu desenvolvimento.
O setor previdenciário deveria continuar federalizado enquanto a política as-
sistencial funcionaria bem melhor se coubesse às regiões. A estas deveria tocar
programas como o bolsa-família, de amparo a famílias pobres e necessitadas, os de
amparo ao menor, ao idoso, ao incapaz, programas de formação profissional, en-
fim, todos os que viessem em prol do desenvolvimento social, cultural e educacional
do cidadão. Ao governo central, além do sistema de aposentadoria, pensões, salário
desemprego e programas de grande envergadura, caberia a fixação de alguns parâ-
metros, objetivos e metas a serem cumpridos pelas empresas públicas regionais.
Em vez de polícia municipal, deveria ser criado, regionalmente, um órgão,
com pessoal treinado, destinado a prestar serviços úteis aos moradores. Seria uma
guarda municipal desarmada, para realizar o policiamento de trânsito, de escolas
e logradouros públicos, o auxílio a doentes, em acidentes, a prevenção e primeiro
combate ao fogo, assistência em emergências, a incapazes, a pessoas deprimidas,
enfim, auxiliar a população, especialmente crianças, velhos, deficientes físicos,
doentes, parturientes, executando e providenciando auxílio material, social, psi-
cológico e humanitário.

108
O Dogma dos três poderes

Caberia-lhe, também, o policiamento das praças, jardins, do verde, de museus,


bibliotecas públicas. Poderiam ainda organizar mutirões de limpeza, plantação de
árvores, a realização de festas e espetáculos artísticos, culturais, sociais. Na área de
prevenção ao crime, os guardas, munidos apenas de instrumentos modernos de
comunicação, teriam a incumbência de informar casos suspeitos, como também a
ocorrência de qualquer delito, acionando a polícia armada, se necessário.
Como sugestão para programas partidários regionais, deixo uma ideia para os
programas de combate ao desemprego: o aumento no contingente da guarda mu-
nicipal com o aproveitamento de jovens desempregados em tarefas comunitárias e
sua preparação com cursos de alfabetização, cidadania e profissionalização.
A economia substancial ocorrida com a eliminação de órgãos superpostos ou,
pior, desnecessários provocaria sobra de verbas suficiente para iniciativas como esta,
ou parecidas.
O sistema atual despreza o conceito de economia. Não se vislumbram opções pos-
síveis decorrentes de um grande corte de gastos em uma área, porque hoje a eliminação
de despesas em um setor gera excedentes para novos desperdícios em outros. A econo-
mia é vantagem suficiente, mas haveria grande racionalização e consequente melhoria
na prestação dos serviços de governo, hoje feitos abaixo de qualquer expectativa.
Tenho lido sobre a existência de municípios cuja arrecadação é insuficiente para
pagar até seu pessoal administrativo. É um escárnio ao princípio de utilidade do
governo remunerar apenas alguns com o dinheiro de todos. Se não podem sequer
prestar serviços, para que existem?
O governo municipal existe para prestar serviços a todos os seus munícipes,
não apenas para uma minoria esperta e privilegiada — seu prefeito, vereadores,
seus parentes e amigos, empregados do serviço público.
Certamente, há um número de variação recomendável para a existência de
regiões administrativas. Hoje, enquanto o município de São Paulo é constituído por
mais de 10 milhões de habitantes o de Borá tem menos de mil. A população da ca-
pital do estado é, portanto, mais de 10 mil vezes maior do que o pequeno município
do sul do estado. E ambas as unidades federativas tem estruturas legais parecidas:
prefeito, câmara de vereadores, secretários…
Deve haver mais equilíbrio e bom-senso nessa divisão. São Paulo, em minha opi-
nião, não deveria ser dividido, mas não há qualquer sentido em Borá possuir adminis-
tração própria, incapaz de realizar qualquer serviço de interesse de sua população. A
proporção, dada a necessidade de uma infraestrutura operacional, deve diminuir para
cerca de vinte, ou seja, a maior região administrativa não poderia ter mais de vinte
vezes o número de habitantes da menor, uma diferenciação razoável.

109
P. Garaude

Por lei, nenhuma região administrativa deveria ter menos de quinhentos mil
habitantes, sendo talvez um milhão o número ótimo, a ser buscado sempre que
possível. A exceção poderia ocorrer em locais pouco povoados, como no interior da
Amazônia, onde as regiões administrativas poderiam ter população inferior a qui-
nhentas mil pessoas, porque também não seria conveniente que suas áreas fossem
excedentes a 100 mil quilômetros quadrados (mais ou menos a área do estado do
Rio de Janeiro). Portanto, esses dois parâmetros deveriam ser observados: popula-
ção mínima de 500 mil habitantes, salvo se, por esse critério, a área da região admi-
nistrativa viesse a exceder 100 mil quilômetros quadrados, limite máximo de área.
Com essas duas limitações estruturais, mais o critério de divisão da receita unificada
pelo número de habitantes, teríamos um sistema bem equacionado para a existência de
agências, ou empresas governamentais em condições de funcionar, prestando bons ser-
viços à população, o que, mantido o critério atual, está muito longe de ser exequível.
Nas regiões administrativas, cabendo melhor estudo, deveriam haver o comitê
de finanças, o de economia, o de educação, o de saúde, o de infraestrutura e do
bem-estar social. A eles ficariam submetidas as agências ou empresas necessárias
para dar conta dos serviços que devem ser decididos e executados mais próximos
dos contribuintes e ganhar mais eficiência. A exemplo do que ocorreria em órgãos
federais, os funcionários das agências/empresas regionais só seriam admitidos me-
diante concurso e promovidos por merecimento, com a escolha dos diretores a
cargo do comitê, restrito aos funcionários de maior escalão.
Não me parece difícil o critério de uma redivisão de atribuições, muito menos a
divisão das tarefas que cabem aos estados e municípios. Algumas regras de reestrutu-
ração resolveriam os problemas: estradas vicinais e internas das regiões administrativas
seriam de sua competência, outras poderiam ser partilhadas, ao passo que as grandes
rodovias ficariam no âmbito da administração federal. A parte de comunicação, como
já é feito, seria apenas federal. A geração de energia e a transmissão até centros de
distribuição seriam da alçada federal, ao passo que a distribuição, no varejo, caberia
às regiões, supervisionando as concessionárias terceirizadas e assim por diante.
Imagino um caso para exemplificar: no sistema de águas e esgotos, a divisão
se faria com a União como detentora do monopólio sobre rios e lagos, além do su-
primento e tratamento, ao passo que as regiões ficariam incumbidas de manter as
redes e a distribuição no varejo. Soluções seriam buscadas, caso a caso.
Um estudo a cargo de uma comissão incumbida do assunto preveria situações,
tanto as mais simples como as mais complexas e delicadas. No sistema de empresas
especializadas, não é preciso mais do que dois níveis de representação popular.
Concluo voltando ao início. Há de haver governo tanto que necessário. Não há
de haver governo mais do que o suficiente.

110
O Dogma dos três poderes

Melhorias possíveis com a


adoção da proposta

A partir deste capítulo tentarei mostrar como a adoção da proposta de divisão


do governo em setores, pela natureza dos serviços, poderia redundar em melhorias
significativas na qualidade de vida. Há conceitos cuja implantação não dependeria
de um sistema novo, mas que, integrados em um único conjunto, trariam, a um só
tempo, mais simplicidade, eficiência, justiça social e menores males decorrentes da
necessidade de existência de um governo organizado.
Um primeiro ponto:
A sociedade em bem pouco ou em nada se manifesta sobre assuntos de seu in-
teresse. O que ela quer, o que pensa, como se posiciona entre algumas opções pos-
síveis, nada disso lhe é seriamente indagado. Em questões realmente importantes,
os partidos, que seriam os veículos de implementação de programas e propostas,
nada oferecem ao eleitor. Há um silêncio cômodo sobre as questões polêmicas, pois
não interessa aos “representantes do povo” divulgar sua opinião, se é que tenham
alguma. Há sempre o risco da sua ser contrária à do eleitor.
Por que correr riscos?
No sistema atual, o verdadeiro centro de decisão não é o povo, nem os deputa-
dos e senadores, mas o executivo, em geral uma única pessoa, que vai dar a palavra-
final sobre as questões de nossa vida, que ele julga importantes ou convenientes
sejam levantadas, ou não.

111
P. Garaude

A solução de alguns problemas é tomada em função de um marketing que


visa manter intacta, ou aumentar, a popularidade dos legisladores e governantes.
Questões embaraçosas são deliberadamente adiadas ou eternamente engavetadas
por falta de interesse ou carência de vantagens.
A questão tributária, a judiciária, a segurança, a reforma política, a traba-
lhista, todos esses assuntos não merecem atenção, nem discussão séria, porque
envolvem interesses políticos e econômicos, privilégios, tradições e situações cô-
modas e vantajosas.
Se não é para mudar, o conveniente é deixar o assunto esquecido, não colo-
cá-lo em pauta.
A participação do eleitor é nula na formulação de programas, na escolha das
prioridades, não apenas de investimentos, mas de propostas de mudanças que real-
mente poderiam mudar alguma coisa importante.
O eleitor jamais é consultado, nem indiretamente, sobre a construção de uma
estrada, de uma usina elétrica, a conveniência da compra de um submarino militar
ou, ainda, na elaboração de normas que vão ditar sua segurança, a educação de
seus filhos, a saúde pública, a justiça, a previdência social.
O indivíduo é tratado como uma parte infinitesimal de uma multidão, a massa
de manobra, sobre a qual jogadas políticas e de marketing devem acontecer. O jogo
é travado entre políticos, não entre opções de interesse do povo. Neste contexto,
o julgamento do eleitor não se fará sobre a capacidade do candidato governar ou
fazer leis. Ele será eleito se conseguir perpetrar boas jogadas visando à sua autopro-
moção. Os iniciantes querem tornar-se conhecidos. Os já conhecidos não querem
ser esquecidos. Então, a solução é aparecer. Aparecer o mais possível.
Pode haver, nos parlamentares, a intenção de fazer alguma coisa boa em be-
nefício da sociedade. Mas o sistema, ao cabo de algum tempo, leva-os a colocar
seus interesses pessoais em primeiro lugar. Com raras exceções, até os idealistas
embriagam-se com o poder, pelo poder, ou pelas vantagens que pode lhe trazer.
O cidadão sequer tem canais adequados de comunicação. Sendo seu voto
aleatoriamente dado ao candidato que lhe parece mais simpático ou próximo, sua
opinião não lhe será indagada, nem na elaboração de um programa, nem após a
eventual eleição de seu candidato, e o eleitor será esquecido pelos seguintes três
anos e meio.
A periódica manifestação do cidadão se fará outra vez, sem qualquer convicção.
Sua escolha recairá, muito provavelmente, sobre outro candidato, por ter se es-
quecido em quem votou na última eleição. Aí, sua nova decisão estará entre o

112
O Dogma dos três poderes

candidato que viu no “santinho”, no que achou simpático pela televisão ou, mais
provavelmente, naquele que lhe foi indicado por um amigo ou parente que pode
receber compensações de caráter pessoal se seu candidato for eleito.
Há um cemitério de alternativas. Nenhuma discussão sobre programas, proje-
tos viáveis que saiam de intrínseca falta de importância. Novamente, a sociedade
não será convocada a trazer sugestões, como se nenhuma colaboração merecesse
ser considerada. Uma democracia tosca, na qual seu dono, o povo, não tem voz
nem palavra.
O modelo não gera condições de diálogo e estímulo a propostas que poderiam
trazer bons resultados, como unificar o combate à corrupção, para falar de alguma
coisa que poderia ser consensual. Com a adoção do sistema de segmentação por
atividades, esses canais de comunicação entre sociedade e governo se abririam e
poderiam se tornar permanentes.
Por interesse dos partidos, especialistas em educação, saúde, finanças, tribu-
tos, segurança passariam a levantar temas discutidos em simpósios, conferências,
nas quais o eleitor interessado poderia comparecer e participar.
Propostas aprovadas poderiam ser incorporadas pelos partidos para discuti-las,
primeiro em suas células, depois em suas convenções. Como o debate se focaria
em ideias, as agremiações setoriais tentariam apropriar-se das mais viáveis e inteli-
gentes. Seria importante para sua vitória eleitoral e, sem dúvida, uma boa jogada
mercadológica, com efeitos sociais extremamente positivos. A iniciativa do partido
em realizar congressos, palestras, cursos, fóruns de debates seria uma forma de
divulgar seu trabalho e dedicação e, assim, cooptar novos membros.
Os partidos teriam interesse em adotar sugestões que se mostrassem interes-
santes, convenientes ou vantajosas e incluí-las em seus programas.
Passariam a ser instrumentos permanentes de debates e discussões sobre os
problemas nacionais, em suas áreas de atuação, dando espaço e vez a idealistas
hoje relegados e cada vez menos interessados em apresentar sugestões. Hoje, até
em mesas de bar — nas quais comumente se realizavam discussões sobre os pro-
blemas nacionais —, o debate político cinge-se a um rápido e enfadonho desabafar
de decepção, indignação.
Como estão, partidos são simples instrumentos de iniciação e continuidade
no jogo do poder, pelo poder, feudos de interesseiros e interessados apenas em se
perpetuar nele.
Lamentavelmente, a imprensa não poucas vezes faz coro a esse enfadonho
embate de egos. Vários comentaristas, esquecendo-se de sua função crítica, além

113
P. Garaude

de informativa, se ocupam de assuntos como alianças, traições, ofensas e ataques


pessoais, manobras, interesses abertos ou dissimulados pela ocupação de cargos.
Parecem ter especial gosto pelo jogo político inconsequente, cujas regras vão do
pontapé na canela ao dedo no olho.
Alguns jornalistas veem, nesse vale-tudo, matéria de interesse dos leitores.
Quanto mais sórdida a briga, mais interessante para o leitor, o ouvinte, o teles-
pectador.
Ergueu-se um enorme círculo vicioso. Por que discutir assuntos de interesse
social se em nada resultarão? Não se vê divulgação sobre propostas formuladas por
parlamentares, exceto aquelas que diminuam ou aumentem seus próprios privilé-
gios, vergonhosos em país rico, muito mais em país pobre, cheio de carências.
A possibilidade de propostas sobre modificações nas regras de trânsito ou so-
bre mudanças no currículo escolar, feitas por parlamentares, dificilmente tem eco
nos órgãos de divulgação.
Abertos fóruns válidos de debates sobre alternativas administrativas, sociais,
culturais, econômicas, aparecerão, certamente, vários de bom alcance e efetivo be-
nefício. Hoje é recomendável que pessoas prudentes fiquem à margem. Se tiverem
sugestões não terão como encaminhá-las. A possibilidade de alguma vingar é tão
remota, tão longínqua, que o bom-senso recomenda não divulgá-las.
No modelo proposto, por certo os canais de debate seriam abertos, mesmo
aqueles que não quisessem, diretamente, fazer da política sua profissão. Incluo-me
nesse rol. Julgo-me em condições de trazer sugestões para áreas de meu conhe-
cimento e interesse, como o combate à corrupção, melhorias possíveis na justiça,
prioridade na segurança ao que interessa, radical simplificação tributária.
Sigo com algumas recomendações que complementariam a proposta. Há te-
mas a serem estudados e discutidos com seriedade. Há opções diferentes que po-
dem ser boas, levar a vida das pessoas a patamares melhores do que esses que nos
acostumamos a aceitar, algumas vezes indignados, inconformados, mas inexplica-
velmente silentes, impassíveis, omissos…

114
O Dogma dos três poderes

Um órgão unificado de
combate à corrupção

I magine a situação de dois homens que conseguiram se salvar de um naufrágio.


Pouco depois de chegar à praia, um deles, por estar no lugar em que a comida de
bordo foi parar, retira-a dos destroços e nega-se a partilhar com o outro, alegando
ter sido ele quem a encontrou e recolheu. Como a lei assim o proclama, não há o
que questionar. O achado é todo seu.
Dias depois, o outro, com fome, se aproveita do sono de seu companheiro de
infortúnio e se apropria de alguns biscoitos.
Para aqueles que acreditam no pão, pão, queijo, queijo, houve um crime de
furto, juridicamente caracterizado. O saqueador não foi honesto. No entanto, a
grande maioria de nós, nessa situação, agiria, provavelmente, da mesma forma.
Não somos santos. Se fôssemos, sequer precisaríamos de lei.
A questão de sermos ou não “intrinsecamente desonestos”, como sugerido
por pensadores proeminentes tem um defeito de origem: é inócua. O que de prá-
tico podemos fazer é tornar a desonestidade temerária, difícil, inconveniente, bus-
cando diminuir, substancialmente, a corrupção.
Se não somos santos, e não conseguimos deixar de prevaricar aqui e ali, é
preciso levar isso em conta para estabelecer boas regras de convivência. O desafio
permanente e instigante da sociedade é tornar perigosa a opção pelo delito, conve-
niente a escolha da honestidade, porque ela deve ser convertida, sempre, na opção
mais fácil, cômoda, vantajosa.

115
P. Garaude

Só os tolos e egoístas não veem que a honestidade é altamente benéfica e van-


tajosa para a sociedade, trazendo mais riqueza e bem-estar para a imensa maioria das
pessoas. Mas, como somos egoístas, é preciso haver vantagens, ou pelo menos compen-
sações para todos os que prefiram não infringir a lei. Em outras palavras, é preciso tornar
a contravenção e o delito cada vez mais inconvenientes, arriscados, sujeitos a penas
consistentes de tal sorte que não delinquir seja a melhor opção, a mais conveniente.
No caso do dinheiro público, a falta de uma vítima identificável é questão a ser
considerada, pois é essencial em qualquer estado bem-administrado.
A corrupção, a despeito de ser um crime socialmente hediondo, é altamente
praticada por serem diluídos os interesses contrariados, vitimados por sua prática.
Quando ladrões se apossam de um automóvel alheio, seu proprietário ou a
companhia de seguros terão o máximo empenho em recuperá-lo, porque seu pre-
juízo, seja de um ou de outro, será grande. No caso de uma pensão indevida, frau-
dulentamente obtida do governo, o interesse é bem mais difuso. Nem por isso,
entretanto, merece tratamento e punição menos rigorosos.
A sociedade, por ser composta por milhões de pessoas, tem interesse fluidifi-
cado, difuso, longínquo — os prejudicados não sentem diretamente o prejuízo, pois
repercute em pequeníssimas doses, embora os efeitos deletérios sejam enormes e
atinjam a um universo enorme de vítimas. É aí que se assenta seu caráter tenebroso
e cruel. A quantidade e a qualidade das vítimas.
Ao contrário do que cada um sente, esse tipo de crime, longe de ser menos
nocivo, tem gravames: corrompe a sociedade toda e acaba resultando em que os
pagantes paguem mais; os beneficiários, como crianças em idade escolar, aposen-
tados, doentes, incapazes, recebam menos.
O raciocínio “se ele faz, também vou fazer” é um pretexto a ser combatido
na raiz, que devemos transformar em um novo conceito: “não vale a pena correr
riscos, como fez aquele maluco, hoje na cadeia”.
Honestidade é aprendizagem, um ensinamento constante que deve se tornar
a atitude normal de um cidadão. Mas convém seja incutida diuturnamente como
conduta boa, necessária, justa, fraterna. O ideal é que se torne um valor consciente
e inconsciente, um arquétipo social. Cabe a sociedade mostrar e tornar efetiva a
conscientização de sua conveniência. A boa lei é a que torna inconveniente o seu
desrespeito, sua inobservância. Isso não ocorre no sistema vigente.
Quando se pensa em um tributo, a possibilidade alta de sua sonegação é quase
desprezada pelos seus formuladores. Em geral, ao se estabelecer a alíquota de um
imposto, a expectativa de gerar um resultado necessário já leva em conta que trinta
ou quarenta por cento serão sonegados.

116
O Dogma dos três poderes

Essa posição, tão esdrúxula quanto real, vai estimular a corrupção, porque leva
a uma situação em que os honestos e bem intencionados ficam em desvantagem
competitiva ou passam também a sonegar por necessidade de sobrevivência. Co-
nheço casos de empresários — exceção rara — que foram à falência por se recusa-
rem a sonegar.
Tal como a sociedade se acha organizada, a desonestidade não é apenas ques-
tão de caráter, pois muitas vezes ela é tão necessária que se torna imprescindível.
É preciso que a legislação se preocupe em tornar a honestidade exequível, pos-
sível, razoável, por que é ingênua quando parte da premissa de que somos santos e
burra quando torna a transgressão questão de sobrevivência.
Ainda que seja impossível acabar com a corrupção, o que devemos fazer é
dificultá-la, partindo da premissa de que, se as condições forem favoráveis, tanto
pela facilidade de execução quanto pela dificuldade da descoberta do autor, qual-
quer um pode tornar-se um pequeno delinquente, porta de entrada para trilhar um
caminho progressivamente pernicioso.
Devemos, sim, partir da premissa de que todos são honestos, mas a prevenção
e a punição rigorosas são necessárias.
Embora discutível, o ditado “a ocasião faz o ladrão” pode se tornar verda-
deiro. Deixar uma fazenda que dá frente para a estrada sem cerca, sem portão, sem
ninguém pra tomar conta, é convidar o alheio a entrar. Depois de algum tempo, é
provável que tudo o que nela existe não esteja mais lá.
No caso do dinheiro público, do qual os proprietários são milhões, as pessoas
o veem como “sem-dono”. Até senhores de caráter podem sentir-se estimulados
a delinquir ao passarem pela estrada, na frente da fazenda, com bens valiosos em
seu interior, sem cerca ou portão, ninguém para vigiar, nenhum risco de ser pego, a
certeza de que, se não for você, será outro.
De forma planejada e inteligente, há de se fazer cercas, colocar portões, con-
tratar alguns guardas e cachorros e colocar um aviso de “não entre”, de tal sorte
que ninguém seja tentado a invadir a fazenda. Mas, acima de tudo, o ladrão deve
saber que, se for pego, e corre o risco disso, será rigorosamente punido.
A desonestidade é de tal forma nefasta que enfrentá-la corajosamente deve
ser considerada a prioridade das prioridades. Por não haver vítima individualmente
muito prejudicada, é preciso que a corrupção seja tratada por um órgão específico,
exclusivamente destinado a identificar seus autores e puni-los de forma exemplar.
Para combatê-la, é necessário competência, criatividade, organização, co-
mando unificado forte, incorruptível, bem-estruturado; um eficiente serviço de in-

117
P. Garaude

teligência, que se ocupe apenas desse tipo de crime, em período integral, tal a sua
frequência e a aparente facilidade, com que se deparam os que cuidam, de alguma
forma, de valores ou bens públicos.
A agência de investigação e combate à corrupção (AICC), ou outro nome qual-
quer, ficaria subordinada ao comitê gestor de finanças e se dedicaria exclusivamente
a essa finalidade, amparada por uma legislação moderna e adequada, que autori-
zasse procedimentos sofisticados, em termos de informações contábeis, tecnologia
informatizada e capacitação investigativa.
Unificar todas as investigações em um só órgão me parece altamente positivo e
eficiente. Não é que se deva proibir a polícia comum de investigar. Mas seria conve-
niente que, tão logo percebida a possibilidade de estar ocorrendo alguma corrupção,
o fato fosse comunicado a essa agência específica, sob pena de omissão criminosa.
Voltando um pouco à estrutura do comitê gestor de finanças, é conveniente
lembrar que, pela proposta, o trabalho de cobrança administrativa ficaria a cargo da
agência da Receita Federal enquanto o Tribunal de Contas, fundido à controladoria-
geral, manteria a parte contábil, a fiscalização dos gastos e a tomada de contas de
todos os órgãos governamentais, de todas as instâncias.
O indício de crime levantado, tanto pela Receita como pela controladoria seria
de notificação obrigatória à AICC, o que não impediria sua própria iniciativa para
a investigação de suspeitas, até desses mesmos órgãos. Todavia os procedimentos
de investigação de possíveis crimes praticados contra o dinheiro público deveriam
ficar concentrados na agência de investigações, sob uma só coordenação, um co-
mando único, dividida em áreas especializadas de atuação, com bom orçamento,
equipamentos modernos, pessoal muito bem treinado. Como medida de economia
inteligente, o órgão deveria ter à sua disposição a tecnologia mais moderna, escolas
de alto-nível para formar pessoal, uma área de pesquisas, outra de logística e inteli-
gência para montar operações preparadas para impedir ou punir de forma exemplar
os ladrões do erário. Seu funcionamento, com esse objetivo, merece dedicação ex-
clusiva e integral de todos os seus componentes.
Os funcionários, totalmente hierarquizados, necessariamente bem-remunera-
dos para serem admitidos, além do concurso público, teriam de passar por rigorosos
testes de avaliação de caráter e cursos de formação. Se aprovados, fariam cursos
periódicos, eventualmente no exterior, para se atualizarem com as melhores técni-
cas e se reciclarem.
Pelo menos uma divisão da agência deveria se constituir de funcionários não
identificados, que trabalhariam secretamente na preparação e execução de opera-

118
O Dogma dos três poderes

ções, visando esclarecer crimes contra o governo, infiltrando-se, se necessário, em


lugares passíveis de sua ocorrência.
Agindo agora em conjunto com a controladoria, seria conveniente a criação
de um enorme banco de dados, diariamente atualizado, com cotações do preço de
todos os produtos e serviços que tivessem sido ou pudessem ser fornecidos às várias
agências públicas, em todos os níveis do governo, atualizando sempre os bens e
serviços correlatos, disponíveis no mercado.
De posse desses dados, ambas as agências iriam aferir se as compras praticadas
pelas empresas governamentais (todas feitas com registro na Internet e transpa-
rência) estariam compatíveis com esses preços. Qualquer discrepância deveria ser
investigada.
As licitações, em todos os níveis governamentais, de todas as empresas e re-
partições, seriam comunicadas “on-line”, necessariamente, a essa central de dados,
com a quantificação e a discriminação completa de todos os insumos que entrem
na composição do produto ou serviço a ser adquirido e seus preços constitutivos
unitários.
Nas licitações, tanto as propostas vencedoras como as vencidas, seriam enca-
minhadas “on-line” à controladoria, sob pena de crime de responsabilidade. Ali
seriam emitidos relatórios de inconsistências; discrepâncias entre os valores cons-
tantes no banco de dados, os praticados no mercado e aqueles adquiridos pelas
entidades governamentais. Mostrada uma falta de compatibilidade, o assunto seria
necessariamente encaminhado à agência de investigação e combate à corrupção,
para a devida apuração.
Outras medidas similares me parecem de fácil adoção:
A título de prevenção, todas as pessoas que se tornassem, de alguma forma,
incumbidas de manejar ou administrar o dinheiro público ficariam obrigadas, periodi-
camente, a assistir palestras, cursos, submeter-se a entrevistas de avaliação com psicó-
logos e assinar termos declarando ter conhecimento claro de suas responsabilidades
e deveres, não estar praticando atos delituosos contra o patrimônio público e estar
consciente das penalidades a que estariam sujeitas. Isto parece simplório, mas não é.
Em matéria de punição, entendo que corruptos devem ser tratados com mais
rigor do que ladrões comuns, pois o povo deve ser entendido como vítima quali-
ficada. As penalidades para os condenados deveriam ser bem-pesadas, constituin-
do-se, além da privação da liberdade, da perda do patrimônio havido indevida-
mente, acrescido de multa de cem por cento sobre o produto do enriquecimento
sem causa, ou algo semelhante.

119
P. Garaude

Como inimigo da burocracia desnecessária, entendo que a dificuldade sem


justificativas claras induz à corrupção.
Simplificar drasticamente a legislação tributária e sua alta possibilidade de so-
negação, como direi adiante, eliminar toda a burocracia desnecessária, punir rigo-
rosamente o suborno, a má-fé, a facilitação ou compactuação com delitos, inclusive
os pequenos, podem trazer resultados surpreendentes.
Os procedimentos burocráticos, vistos sob o prisma de avaliação de custo-be-
nefício, devem ser examinados um a um, para verificar se não estão sendo mais
prejudiciais do que benéficos.
“Criar dificuldade para vender facilidade” é um dos pilares da corrupção, resultado
da burocracia de formulários que ninguém lê, requerimentos sem finalidade clara, pro-
cessos difíceis, demorados, legislações convenientemente obscuras e maldivulgadas.
Por que essa profusão absurda de dispositivos legais consubstanciada em mi-
lhares de leis que devem ser combinadas, carecem de hermenêutica só acessível
aos avançados e se prestam a interpretações contraditórias, a gosto de qualquer
freguês, ou de qualquer fiscal?
Procedimentos ordenatórios, ou seja, destinados a dar uma sequência lógica e
adequada a atos, a fazer provas e a assumir responsabilidades não podem ser con-
fundidos com burocracia. Eles são necessários, quando se destinam à obtenção de
informações que serão usadas. Por isso, qualquer procedimento burocrático deve
ser amplamente discutido, e aprovado somente quando tiver uma finalidade posi-
tiva, nitidamente vantajosa e viável.
Essa opção ficaria totalmente clara, em minha proposta, pois os fazedores de
leis, decretos, regulamentos, seriam julgados por os terem feito, e por isso pensa-
riam duas vezes antes de criar procedimentos inúteis, hoje tão comuns.
Além do procedimento investigativo, caberia à AICC manter em seus quadros pro-
curadores de combate ao crime de corrupção, ou seja, promotores judiciais incumbidos
de apresentar as denúncias e acompanhar o processo judicial, até seu encerramento.
A competência para o julgamento de crimes de corrupção seria sempre da
agência de direito penal, mas, tão logo encerrado o processo, cópia da decisão seria
remetida à agência de direito financeiro para fazer coisa julgada no mérito e dar iní-
cio ao procedimento de liquidação por quantia certa do valor do prejuízo, acrescer
as multas aplicáveis e executar o valor da condenação.
A corrupção é um crime cruel, sub-reptício, insidioso, destruidor dos pilares da
sociedade. Se tivermos a pretensão de construir uma convivência saudável entre os
seres humanos e tornar o governo um instrumento de promoção de sua felicidade,
há de se combater esse mal, por todos os meios a nosso alcance.

120
O Dogma dos três poderes

Uma análise histórica necessária

N unca entendi porque, em meu curso de bacharelado em leis, tive direito ro-
mano, mas não tive história do direito. Esta matéria, tão importante, simplesmente
não existe. Parece que tudo começou em Roma, mas não foi assim. Para entender
o direito e a justiça é preciso ir a raízes mais remotas.
Gosto de fazer retrospectivas históricas para melhor compreender e diagnos-
ticar o presente, porque pretendo fazer sugestões, e elas dependem de uma visão
histórica. No passado estão as fontes dos problemas. Conhecê-los é a única forma
para fazer críticas consistentes e imaginar soluções baseadas na experiência, nos
erros e acertos.
Primeiro uma conceituação: justiça (no sentido de sistema judiciário) tem por
escopo a solução de litígios, conflitos. Se não houvesse conflitos, não haveria a ne-
cessidade de justiça. São vários os conceitos de direito, começando por: um lado do
corpo. Para o que interessa, Direito é a ciência que estuda os fatos e atos jurídicos,
os valores e as leis, ou, ainda, como é mais usado, um conjunto de leis vigentes em
um estado soberano.
Antes de se organizar em vilas e cidades, as desavenças entre humanos eram
resolvidas pela força, com a provável vitória do mais forte. Logo a força foi subs-
tituída pela astúcia — ciladas armadas para eliminar os inimigos mais favorecidos

121
P. Garaude

pelo físico, mas menos espertos. Depois, a barbárie absoluta evoluiu para algo mais
organizado, com algumas regras — lutas —, com o uso de pedras, porretes, instru-
mentos cortantes, arco e flecha. A sofisticação da violência ocorreu com os duelos
(espada, pistola), como assistimos nos filmes de época.
Disputas por terras, bens materiais, honra, tinham essa forma de desfecho: a
morte, ou pelo menos o alijamento físico de um dos desafetos; seu reconhecimento
da derrota.
Às vezes, os conflitos se davam entre uma pessoa e o grupo. O indivíduo prati-
cava atos proibidos pela tribo, o povo, a nação. A sociedade era a parte ofendida.
Aos considerados culpados por roubo, assassinato, conspiração, sedição e
outros delitos graves, após julgamento sumário com pouco ou nenhum direito a
defesa, era imposta a pena de morte, com sofrimentos como a fogueira, o afo-
gamento, o sufocamento, a crucificação, a forca, a empalação, o corte dos mem-
bros e outras modalidades cruéis e exóticas. O aspecto dominante na punição dos
“culpados” era a dissuasão aos que atentavam contra a ordem, a necessidade de
submissão incondicional ao poder dos governantes.
No decorrer da História, o comum era o forte não levar em conta o direito
do fraco. A espada era mais decisiva do que a balança na solução de entreveros.
O poder dos governantes era quase irrestrito. O direito à defesa poucas vezes era
reconhecido.
É verdade que, mesmo antes de Cristo, começamos a imaginar a justiça
como a definição da responsabilidade ou culpa pela investigação, a apresen-
tação de provas, um juiz imparcial e a paulatina aplicação da lei escrita, como
chegou a ser feito em algumas cidades-estado, como Atenas, depois em Roma.
Nesta se dá a mais importante sistematização da lei. A previsão de atos e fatos
jurídicos antes mesmo de sua ocorrência. O estabelecimento de regras definindo
o que poderia e o que não poderia ser feito e a solução quando ocorressem as
situações previstas.
Com a queda de Roma, o conceito da legislação preexistente perde espaço
para o direito canônico. A legislação laica recebe poucas contribuições. Salvo alguns
reis interessados em definir direitos e obrigações comuns, por meio de suas ordena-
ções, as leis para compor litígios têm pouco uso e desenvolvimento durante todo o
Feudalismo e Absolutismo monárquico.
Ganha importância o julgamento religioso, muitas vezes levado a cabo pelos
sacerdotes, a partir do entendimento dos escritos sagrados. Mas dada a inexistência
de leis específicas, tanto de mérito quanto de procedimento, o arbítrio do julgador

122
O Dogma dos três poderes

prevalecia, o direito à defesa não tinha qualquer amparo legal. A decisão poderia
emanar do governante, sem lhe dar qualquer justificativa.
Todas as tentativas de implantação de um sistema avançado de justiça, com
normas preexistentes e juízes imparciais, foram abortadas por monarcas despóticos,
os quais, por conveniência e convicção em sua predestinação, com aval divino, não
aceitavam soluções que poderiam não lhes interessar, se vindas de juízes que não
fossem de sua nomeação e confiança, o que subvertia, por completo, a ideia de
isenção, imparcialidade, independência.
Algumas codificações impostas pelos reis tinham caráter assumido de discri-
minação, preconceitos contra plebeus, camponeses, mulheres, discordantes, infiéis
e todos aqueles que tentassem subverter até por pensamento e palavras a ordem
reinante, dando razão, sem dúvida, àqueles que entenderam o caráter opressivo da
justiça na manutenção do interesse dos poderosos.
Ainda na Idade Média tem início o obscuro período da Inquisição, uma caça às
bruxas. Nos países católicos, a Inquisição passa incólume pela Renascença e chega
até o século XVIII, impondo o reinado do terror e do medo, do denuncismo, do pre-
conceito contra a Ciência e a liberdade de expressão, de pensamento.
De ressaltar, positivamente, apenas o surgimento, no direito comum, das orde-
nações manuelinas e, mais tarde, das filipinas, na Península Ibérica. Mesmo elabo-
radas com técnica duvidosa, são marcos de algum avanço.
Sem leis escritas, a justiça decorria apenas do entendimento do julgador, às
vezes o próprio rei, ou seus mandatários, com poderes absolutos, que julgavam
terceiros sem a obrigação de seguir regras ou justificar decisões. Sua percepção,
mesmo quando isenta e desinteressada, levava em conta seus próprios valores, nem
sempre partilhados por seus contemporâneos. O entendimento poderia ser dife-
rente daquele escolhido pelo resto da sociedade. Pouco importava.
Após a Revolução Francesa e a Independência americana, tem início um enorme
progresso social. No século XIX, surgem grandes juristas que bebem no direito ro-
mano a inspiração para normas que hoje consideramos atuais.
Atualmente, Justiça é um modelo instituído, destinado a resolver conflitos, com
isenção. Ela parte do pressuposto de que uma pessoa conhecedora das leis, íntegra e
desinteressada, pode legalmente ser investida à condição de solucionar controvérsias
entre duas ou mais pessoas, ou imputar a autoria de um crime, a partir da interpreta-
ção das regras emanadas da sociedade e seu cotejo com as provas produzidas.
Com o passar do tempo e repercutindo indiscutível evolução social, fomos en-
tendendo que nossa diversidade tinha de ser resolvida, não pelo confronto físico,

123
P. Garaude

nem pela opinião isolada de apenas uma pessoa, mas pela opinião consensual da
maioria aplicada à controvérsia. Ao juiz, cumpria seguir a lei emanada da sociedade,
gostasse ou não.
Felizmente, a dolorosa chaga da injustiça decorrente da opressão, antes aceita
como normal e praticada de forma consciente e egoísta, é cada vez menos frequente
e abominada pela quase unanimidade das pessoas. Mas ainda hoje há resquícios de
nosso barbarismo. Entre nações mantemos, sob poucos protestos, o velho hábito da
agressão física: a guerra. Continuamos mantendo exércitos e o persistente defeito
de tentar resolver diferenças pela agressão de um país a outro, um arquétipo social
da infância da humanidade. Para isso, ainda gastamos bilhões e bilhões, como o ob-
jetivo único de manter forças armadas treinadas e preparadas para a “defesa”, cujo
conceito parte do pressuposto de que a agressão por outro país é possível, gerando
um infantil círculo vicioso.
Por podermos elaborar regras coercitivas de convivência no interior dos países,
inexistentes no panorama internacional, a situação institucional é, em geral, me-
lhor interna do que externamente. Apenas organizações sem real poder, tratados e
acordos internacionais têm sido elaborados com o objetivo de levar as nações a um
tratamento civilizado, com a intenção de evitar possíveis guerras.
Na prática, dado o enorme volume de dinheiro gasto com armamentos, são
ainda inventadas situações para justificar os enormes investimentos em armas, do
que decorrem vantagens econômicas que alimentam a ganância dos beneficiários e
daqueles a quem corrompem.
No interior de quase todos os países, caminhamos para conceitos civilizados de
justiça, com a elaboração de leis, fruto, ainda que imperfeito e falho, do bom-senso
— entendido este como a média da opinião de todos ou, não sendo ela possível, a
da maioria.
Estamos longe de uma justiça boa, mas hoje alguns países, não democráticos,
dispõem de legislações razoavelmente lastreadas na opinião da maioria, em alguns
casos eivadas de princípios retrógrados de caráter religioso, como aqueles ainda
vigentes em países de ortodoxia muçulmana.
Em países de vocação totalitária, em geral, criam-se arremedos de legislação
democrática, provida de formas e maneiras de condenar os dissidentes ou indese-
jáveis. Mas, com poucas exceções, vigoram conceitos universalmente reconhecidos,
como o direito à defesa, a um julgamento justo por um juiz ou um tribunal impar-
cial. Tais princípios são endossados por leis escritas em quase todos os países, o que
é melhor do que o arbítrio sem disfarces.

124
O Dogma dos três poderes

Como regra universal, o magistrado, cuja isenção é pressuposto, deve julgar


em consonância com a lei, mesmo contra sua própria opinião e consciência, se con-
trária à da maioria das pessoas. Isto é fruto do regime democrático.
É o reconhecimento de que posições e opiniões devem ser obtidas consensu-
almente, ou pela maioria das pessoas, em nome das quais se elaborou a lei. Se é
diferente da opinião pessoal do juiz, vale a da maioria e ele deve cumpri-la. Com a
codificação escrita em leis, procurou-se padronizar entendimentos, visando impedir
a ocorrência de transgressões, incertezas e instabilidades.
Fossem as decisões baseadas apenas na opinião de quem as toma, haveria a
incerteza em um sem-número de situações.
Não havendo como se conhecer, previamente, a opinião de quem pudesse vir a
ser chamado para resolver a questão, haveria consequente incerteza na elaboração
de contratos, acordos, na definição de direitos e obrigações. Se não codificados,
como saber qual seria a opinião de um juiz?
A democracia, sob esse aspecto, é a forma organizada do povo decidir como
compor litígios, ou aplicar penas aos infratores, definindo regras que não podem ser
violadas, esclarecendo direitos e obrigações.
A lei é o corolário desse entendimento social.
Ela deve decorrer da vontade soberana da sociedade, ser conhecida e existir pre-
viamente ao ato jurídico para definir o que pode ou não pode ser feito, qual a solução
para os problemas nos quais os interesses das pessoas possam ser colidentes.
A vida em sociedade obriga-nos à renúncia da liberdade absoluta. Ela só seria
possível se fôssemos eremitas, sem a necessidade um do outro, ou anjos, sem dese-
jos ímpios e os defeitos terrenos.
Temos o livre-arbítrio na solução de nossos problemas e na condução de nossos
interesses individuais. Mas há de se proteger também as demais pessoas, estabele-
cendo limites tanto para nós como para elas.
Como princípio democrático, vivendo em sociedade, a lei pode não refletir
nossa opinião. Temos de nos submeter à maioria e aceitar a decisão, mesmo se
estiver em desacordo com nosso ponto de vista. Mas o tratado social sob o qual
estamos inseridos deve ser, para legitimar nossa submissão, resultante de uma legis-
lação democrática emanada da maioria, pois só assim essa aceitação pode se tornar
ética, moral.
Esta nova forma de ver a justiça democrática, ou seja, de o juiz ser obrigado
a cumprir a lei, mudou o conceito do próprio judiciário, hoje limitado a executar
a norma jurídica, a aplicá-la, deixando de haver qualquer razão técnico-científica

125
P. Garaude

para considerar o judiciário um poder autônomo. Como o executivo, ele está


obrigado a executar a lei.
O fato de o judiciário ser demandado a interpretar a norma como atribuição
exclusiva, não é razão suficiente para diferenciar tarefas.
A justiça não é, hoje, a única a interpretar a lei. Todos, no governo ou fora dele,
são obrigados a interpretar, respeitar e aplicar a regra democrática.
Hoje, com normas complexas de atribuições, o executivo, como exemplo, é
obrigado a fazer uma rigorosa análise interpretativa, antes de realizar suas tarefas.
Delas também podem redundar condenações importantes. Muitas vezes, como no
judiciário, o executivo age a partir de denúncias feitas por pessoas prejudicadas, seja
individualmente, seja por fazer parte da coletividade.
Isso pode ocorrer com o engenheiro de um órgão incumbido de zelar pelo uso
do solo, ao aprovar ou não um projeto arquitetônico. Deve observar se está em
consonância com os dispositivos legais, às vezes complexos. Ao fazer a vistoria final,
deve verificar a adequação da obra ao projeto. Tudo isso implica julgar, interpretar,
emitir juízos de valor ao aplicar a lei.
Na saúde, na educação, na previdência social, na infraestrutura, ao se elaborar
um edital e julgar uma licitação, ao organizar uma campanha de vacinação que tem
de atingir um vasto território, os agentes do executivo interpretam a lei, a regra
emanada por seus superiores, do tipo “só crianças em situação de risco devem ser
vacinadas”.
O fato da justiça julgar controvérsias não é da essência de sua atividade, pois,
a rigor, a possibilidade de sua ocorrência já foi julgada, antecipadamente, pela so-
ciedade, quando criou a lei.
O juiz vai aplicá-la ao caso concreto, interpretando-a, como faz todo serven-
tuário público. No caso do juiz, a situação dada é a denúncia de uma infração à lei
cometida por uma pessoa que deve ser punida por isso.
Não tendo autonomia científica para se constituir em poder ou função autô-
noma, a divisão do governo, também nesse respeitante, deveria ser feita apenas
pela natureza do serviço prestado, como proponho.
Por outro lado, tem se entendido que muito do progresso social, cultural e
econômico de um povo ou um país se assenta sobre regras claras, isenção, baixa
corrupção, respeito a direitos — não privilégios — legitimamente adquiridos e, prin-
cipalmente, à eficiente, o que quer dizer especialmente rápida, aplicação da lei.
Pendências são nocivas à sociedade e aos indivíduos. É preciso diminuí-las, seja
evitando sua ocorrência, seja encerrando rapidamente as inevitáveis.

126
O Dogma dos três poderes

Não basta a lei ser boa. É preciso que seja eficaz. Isto decorre da boa aplicação
da justiça, que deve ser oportuna, isto é, imposta em tempo hábil.
Não é verdade que a justiça tarda, mas não falha. Não é porque tarda que não
falhará e, se ela tarda, é falha, seja qual for a decisão.
O desafio de aplicar a lei é fazê-lo com isenção e rapidez. Conseguidos esses
objetivos, o papel da justiça será de grande relevância, ainda que, como sustento,
não haja qualquer necessidade de haver um “poder” autônomo para aplicar as
regras democráticas.
Todos nós devemos cumprir, respeitar, executar, aplicar a lei. Alguns devem ape-
nas estar investidos da condição de aplicar as regras quando haja dúvidas quanto à
autoria de um delito ou definir a responsabilidade, quando ocorrer um conflito.
Essa nobre função deve estar inserida em um sistema que não separe as res-
ponsabilidades de quem faz a lei, de quem a aplique. Essa interação, ao contrário
do que ocorria nos regimes absolutistas, hoje é conveniente. A divisão deve partir
da natureza dos assuntos sobre os quais a lei deve versar. Ela deve ser elaborada e
aplicada de forma coordenada, para se conseguir isenção, eficiência, rapidez. A uni-
cidade de comando, do que decorreria sua clara identificação, por certo devolveria
à sociedade, democraticamente, a cobrança disso tudo aos responsáveis por ambas
as atribuições, hoje diluídas.

127
P. Garaude

Desconstruindo o judiciário

A proposta de revisão no conceito dos três poderes passa pela desconstrução do


poder judiciário e sua reconstrução em outros órgãos, sob preceitos mais modernos,
eficientes, focados no objetivo de fazer cumprir a lei, dissuadir seu descumprimento
e penalizar os infratores.
O desenho tripartite de governo redundou em um poder não eleito, o judiciá-
rio. Na verdade, essa opção constitucional implicou na adoção parcial da meritocra-
cia, aproveitando tudo o que esse sistema tem de ruim: a impossibilidade de haver
cobrança pelo tomador dos serviços.
Sem cobrança e sem patrão, a qualidade cai, pois a satisfação do cliente jamais
é conferida nem levada em conta. A sociedade deve aceitar o que lhe é oferecido,
goste ou não.
Sem desmerecer os profissionais que se dedicam à Justiça, um enorme nú-
mero de pessoas trabalhadoras, competentes e responsáveis, o sistema levou juízes,
promotores, advogados, serventuários a promover uma aliança corporativa, de tra-
ços fortemente conservadores na manutenção de privilégios, sem levar em conta a
baixa qualidade dos serviços que presta.
Ao longo de um lento processo, a perda de foco levou os profissionais a se tor-
narem, eles também, vítimas do sistema. As consequências negativas redundaram

128
O Dogma dos três poderes

em descrédito, improdutividade, ineficiência, morosidade excessiva, muito trabalho


e responsabilidade para poucos, nem um nem outro para muitos, uma enorme
quantidade de tempo perdido e improdutivo, sem qualquer vislumbre de solução
para o problema do acúmulo exagerado de processos, que se agrava dia a dia, em
vez de melhorar.
Feita a soma do que a justiça custa para a sociedade, vai chegar-se à conclu-
são de que é muito cara para pouco resultado. Só para recordar, ao calcular o que
representa em dinheiro, deve-se levar em conta as despesas necessárias à formação
de milhares e milhares de bacharéis, anualmente diplomados, milhares, ou seriam
milhões, de serventuários públicos pagos pelo contribuinte, honorários advocatícios
contratados e os oriundos da sucumbência, cobrados dos envolvidos em questões
judiciais e extrajudiciais, o aluguel (pago ou não a terceiros), pela ocupação das
dependências necessárias.
Milhões são despendidos com ajudas de custo, despesas operacionais, concur-
sos, cursos, livros, doutrina, publicação de livros, jurisprudência, além de perícias,
pareceres, recursos e procedimentos burocráticos.
Ademais, os gastos com todos os outros tipos de material de escritório, só
o papel consumido em petições, despachos, termos, procedimentos, certidões,
cópias, arrazoados e contra-arrazoados, sentenças, recursos, acórdãos, cópias de
doutrina e jurisprudência, equivalem a uma floresta inteira de pinhos e eucaliptos,
devastada anualmente.
O que se escreve, bem menos lido do que o produzido, daria para publicar
dezenas e dezenas de enciclopédias britânicas ou alguns milhares de livros.
Acho que só o que o governo gasta com a justiça para tentar cobrar o que
lhe é devido a título de impostos, multas, taxas, daria para executar uma linha de
metrô por ano. O pior é que o arrecadado está longe de cobrir a despesa com esse
objetivo. Seria muito útil checar, imparcialmente.
É indiscutível a validade da afirmação de que tempo é dinheiro. Há de se
somar também todo o tempo perdido pelos envolvidos, inclusive as testemunhas,
em geral várias vezes convocadas para prestar depoimentos em audiências costu-
meiramente adiadas.
Tudo isso se justificaria se tivéssemos uma Justiça boa, mas o resultado é
tristemente ruim, sofrível, nos aspectos eficiência, confiança e, principalmente,
celeridade.
Sem ser cobrada diretamente pelo tomador dos serviços, a justiça passou a
viver um mundo à parte.

129
P. Garaude

A sociedade tornou-se refém de uma armadilha. Apesar de pagar para man-


tê-la a seu serviço, ser cliente e dona do sistema, para preservá-la “independente
e imparcial”, convencionou-se que ela não deveria submeter-se a quem quer que
fosse. Nem à coletividade que lhe sustenta.
Só recentemente, sob oposição ferrenha de alguns magistrados, foi aceita, no
Brasil, a tese de que independência e isenção na decisão não tem a ver com a falta
de cumprimento de obrigações. Mas a fiscalização atual, feita intra corporis, ou
seja, pela Corregedoria e pelo Conselho Nacional de Justiça, tem apenas o objetivo
de zelar pela necessária e nem sempre respeitada probidade, sendo quase inócua
em relação à qualidade e eficiência, deixando de verificar a enorme morosidade
com que os procedimentos ocorrem e se processam.
Os órgãos de fiscalização não medem o desempenho e nada sugerem para
melhorar organização e métodos, dependentes muito mais de um legislativo ino-
perante e também incapacitado, não apetrechado para oferecer propostas de mu-
dança. Uma inaptidão geral e generalizada.
Não defendo a eleição de juízes. Seria um mal ainda maior.
Nos estados norte-americanos, onde magistrados, promotores e xerifes são
eleitos pelo povo e, portanto, podem ter seu trabalho aquilatado, o resultado passa
de ruim a pior, pois a isenção fica comprometida. O fato da escolha desses agentes
da lei recair em pessoas que precisam de votos e demandarem apoio financeiro para
serem eleitos torna as consequências ainda mais sombrias: os que se candidatam
tem mais interesse em garantir o voto e o apoio financeiro necessário, do que man-
ter equidade e isenção.
Não passa por aí a solução. A constatação apenas mostra a impropriedade
do sistema de tripartição do governo, um erro de origem, de essência, nos dias de
hoje.
No sistema atual, os dois extremos — o da eleição e o da autonomia total —
mostraram-se insatisfatórios. Há grande conveniência no sistema de meritocracia
dos membros do judiciário — e eu incluiria todos os outros cargos executivos — no
que tem de bom: a admissão por concurso, a realização de cursos de aperfeiçoa-
mento, a promoção por merecimento e outros tantos.
A isenção é, evidentemente, o postulado básico das atribuições dos juízes e sua
cobrança deve ser feita sempre. É a premissa mais importante de qualquer sistema
avançado de justiça.
Outras situações, porém, devem ser radicalmente alteradas: a prestação de con-
tas, no que diz respeito à eficiência, aos colegiados eleitos que lhes atribuiria metas e

130
O Dogma dos três poderes

parâmetros de qualidade e, finalmente, a interação de interesses entre quem faz a lei


e quem a executa, os primeiros, por sua vez, submetidos à cobrança popular.
Os juízes e todos os demais profissionais da Justiça devem se reportar aos co-
mitês gestores, órgãos de deliberação e administração, representantes eleitos pela
sociedade para tais funções. A eficiência na aplicação, não apenas da lei, mas dos
parâmetros, metas e objetivos quantificados pelo comitê, passaria a ser rotineira-
mente cobrada.
Aí vai residir o necessário equilíbrio entre a isenção do juiz, que deve aplicar
a lei sem beneficiar ou prejudicar qualquer das partes, e deve estar submetido or-
ganicamente à sociedade e seus representantes, incumbidos, inclusive, de cobrar
isenção, em nome do povo que o elegeu. Nem eleição direta dos juízes, nem me-
ritocracia sem patrão: as únicas opções hoje disponíveis. Nenhuma delas é efetiva-
mente boa.
É preciso promover uma enorme reforma no judiciário, com o objetivo primeiro
e principal de dissuadir a infração às leis, o que passa por ser rigoroso e rápido em
sua aplicação e punição, se desrespeitadas ou infringidas.
Normas legais, segundo todos os estudos disponíveis, quanto mais respeita-
das, mais elevam o nível de progresso social e bem-estar da comunidade. Há uma
indiscutível relação de causa e efeito entre respeito à lei e nível de desenvolvimento,
entre impontualidade e inadimplência e segurança nos negócios.
O trabalho dos profissionais da Justiça pode ser muito mais útil e produtivo,
o que, em uma análise macrossocial, não vem ocorrendo na proporção necessária.
Um primeiro ponto é colocá-lo a serviço da dissuasão, da diminuição sensível do
número de descumprimento aos primados da lei. Evidentemente isso redundaria na
diminuição proporcional no número de litígios.
Levando o conceito para o âmbito da saúde, é preferível o governo trabalhar
na prevenção da doença do que na cura dos doentes. Assim também deveria ocor-
rer com os que labutam na área jurídica: dedicar-se mais à prevenção do problema
do que à tentativa de remediá-lo.
Na sistemática proposta, o poder judiciário deixaria de existir e, em seu lugar,
a Justiça seria dividida em três áreas, nas quais é possível se identificar, com clareza,
as partes, o interesse na condenação e o objeto do litígio: a justiça administrativo-
financeira (que envolve o relacionamento do cidadão com o governo); a justiça
penal (que define a autoria e aplica punições aos que infringem o que a lei define
como delito); e a justiça econômica (civil, empresarial e trabalhista), que trata do
relacionamento econômico entre pessoas (físicas e jurídicas), a ser pautado por leis

131
P. Garaude

e contratos lícitos, cujo descumprimento justifique a condenação do infrator a res-


sarcir financeiramente o prejudicado.
Há uma série de atribuições hoje a cargo do judiciário que não tem qualquer
razão para sê-lo. Alguns procedimentos na área de família são demasiadamente bu-
rocratizados, como é o caso da partilha entre herdeiros, quando todos são maiores
e capazes.
Outros não dispensam o acompanhamento da sociedade, quando o interesse
de incapazes está em jogo. Tais procedimentos, esmiuçados em lei, contariam com
a assistência de representantes da área do comitê do bem-estar social, indispensável
para gerar efeitos jurídicos. Mas, em tais casos, a decisão estaria melhor com assis-
tentes sociais, psicólogos e, também, bacharéis, do que com juízes, como é o caso
da guarda de filhos menores quando o casal de pais se separa.
Outros cabem na área econômica, como o pagamento de pensão alimentícia,
que é um problema pecuniário. Sugiro também a subtração do problema da ad-
ministração de penas, hoje a cargo da Justiça Penal, e a sua atribuição a um novo
órgão, especializado no assunto, a agência de administração penitenciária, afeto ao
comitê gestor de segurança, sobre o qual já me manifestei.
No geral, entretanto, pelo critério sugerido, a atuação do governo no que hoje
é chamado judiciário, ficaria a cargo de órgãos subordinados aos seguintes diferen-
tes comitês: ao comitê gestor de finanças, a justiça administrativo-financeira; ao co-
mitê gestor de segurança, a justiça penal; e ao comitê gestor de economia, as justiça
civil, empresarial e trabalhista, quando versarem sobre interesses pecuniários.
Esse redesenho de organização não se esgota no plano teórico. É na prática
que esse conceito novo teria consequências, não tanto em razão da separação, mas
pela integração dos órgãos judicantes aos centros de deliberação, aos quais ficariam
submetidos.
A melhoria na aplicação da justiça seria enorme. As consequências extrema-
mente benéficas para a sociedade.
A divisão proposta, como se vê, está presa às atividades governamentais, con-
forme sua natureza, sua finalidade, evidentemente, sob o primado da aplicação da
lei e dos ideais de justiça.
No caso da área administrativo-financeira, a aspiração, no relacionamento
estado-cidadão, é que a contribuição individual seja dada com justiça entre os con-
tribuintes e que o estado seja justo ao administrar. Todos devem colaborar com o
governo, com o restante da sociedade, com o bem-estar público, de maneira pro-
porcional à sua condição, na conformidade da lei.

132
O Dogma dos três poderes

Os que não pagarem os tributos que a lei determinar devem ser condenados
a fazê-lo. Mas o governo também pode prejudicar o cidadão; e a sua reparação, se
prejudicado, seria outra finalidade desse segmento.
O que deixaria bem caracterizada essa área seria a identificação das partes,
uma delas, necessariamente, o próprio governo. Os outros órgãos incumbidos da
área tributária e administrativa ficariam, necessariamente, engajados em evitar a
demanda, diferentemente do que ocorre.
Na área de segurança, não há dúvida de que muito pode ser feito na prevenção
ao crime, antes de processar um infrator. A conjunção de esforços, nesse sentido,
passaria a ser cobrada dos comissários eleitos na área, de tal sorte a se aquilatar seu
sucesso, estatisticamente possível, nos dias de hoje.
No caso da jurisdição criminal, dificuldade grande não é a aplicação de pena a
quem infringe a lei, quantificada em seus extremos pelo legislador, mas estabelecer
a autoria de quem a transgride, pelo fato de o infrator, em regra, tentar esconder o
delito, desfazendo, ocultando ou destruindo provas que possam incriminá-lo.
O hiato entre a identificação do culpado e a aplicação da justiça, que hoje
ocorre, é um equívoco. Não é apenas o juiz que deve ser isento. A polícia e o Mi-
nistério Público, cuja união em um só órgão é recomendável, também têm essa
obrigação, cabendo ao juiz examinar a isenção de sua conduta e a eficiência de seu
trabalho, inclusive assegurando ao acusado o necessário direito de defesa.
Tanto a justiça criminal como o órgão decorrente da fusão do Ministério Público
com a polícia civil, além da polícia militar, devem trabalhar para prevenir e impedir
o delito. Mas, se ocorrer, devem reunir todas as provas possíveis para identificar o
delinquente e julgá-lo com isenção: se considerado culpado, excluí-lo do convívio
social, tanto para tentar incutir-lhe o arrependimento como para prevenir que rein-
cida; empenhar-se na reintegração do delinquente à sociedade e; principalmente,
promover a dissuasão à transgressão, pois o cidadão deve se atemorizar com a pos-
sibilidade de ser punido, se praticar o que a lei define como crime.
Esses objetivos não são colidentes, mas convergentes. Cada um cumprindo sua
tarefa específica. O trabalho de todos deve ser complementar, jamais antagônico.
Em uma democracia, há de se assegurar a defesa do acusado, mas, mesmo
antes disso, deve se evitar acusar um inocente. Este é um trabalho que não cabe a
um juiz ou a um Júri, mas a todo o segmento que enfeixe a responsabilidade pela
segurança, a partir da polícia que passaria a integrar o conjunto de órgãos que ob-
jetivem não a condenação pela condenação do delinquente, mas a diminuição da
delinquência.

133
P. Garaude

Por fim, a terceira grande divisão do que hoje se chama poder judiciário é a
definição de regras e consequências para a relação econômica entre as pessoas,
no sentido de tornar esse relacionamento saudável, com o menor número possível
de atritos.
Na maior parte das vezes, no procedimento do direito econômico, não é re-
querida investigação pelo governo, ao contrário da Justiça penal. Ao juiz cumpre
presidir e organizar as provas trazidas pelas partes, aceitando-as ou não e, assim,
convencer-se sobre a responsabilidade de uma das partes pelo descumprimento de
uma lei ou de um contrato celebrado dentro dos parâmetros legais, em consequên-
cia do que tenha resultado prejuízo pecuniário a quem cumpriu sua obrigação.
Um dos grandes problemas da justiça, sua morosidade e ineficiência, decorre
do conceito equivocado de colocar essas três atividades diferentes sob um único
“poder”, partindo da falsa premissa de que são atividades jurídicas de uma só natu-
reza. São áreas tão diferentes como são a ortopedia e a ginecologia, embora ambas
sejam áreas da medicina.
Já não podemos viver numa sociedade generalista com ortopedistas fazendo
partos e obstetras tratando fraturas do fêmur. A tendência é dos hospitais especializa-
dos e das maternidades exclusivas. O crescente conhecimento colocado à nossa dis-
posição, com milhares de informações surgindo a cada hora, torna mais do que nunca
oportuno o princípio de que, para melhorar a eficiência, é preciso se especializar.
Repito que, na essência, a proposta visa eliminar o indesejável e desnecessário
hiato existente entre criar e aplicar a lei. Não se deve criar a lei e… pronto — o
problema é do outro. Nem se deve aplicar a lei para se eximir de responsabilidades
quanto a seu resultado.
Leis ruins e órgãos ruins ao aplicá-las encontram a perfeita combinação de des-
culpas para os dois lados justificarem a ineficiência. Aquele que faz alega que a lei não
é bem-aplicada. O que a aplica tem a justificativa fácil de que não foi bem-feita.
Há, no sistema vigente, uma cômoda diluição de responsabilidades, totalmente
substituível por um procedimento mais moderno, de cobrança efetiva e funcional,
pela sociedade, aos responsáveis por ambos os procedimentos e nos resultados
concretos que poderão ser aferidos.
Por meio do sistema de colegiados deliberativos eleitos pelo povo, o arbítrio
decorrente da cumulação das funções de criar e aplicar a lei não tem como ocorrer,
pois a sociedade, sempre a legítima dona do sistema, pode despedir os incompeten-
tes e rever suas decisões. A razão da separação — e seus inconvenientes — desa-
parece. Entendia-se que o poderoso, a quem competia fazer a lei, se fosse também

134
O Dogma dos três poderes

aplicá-la, estaria tentado a agir com arbitrariedade, surgisse algum caso de seu
interesse direto ou indireto.
Inexistente a premissa, há conveniência de que as pessoas incumbidas de fazer
a lei se tornem responsáveis por sua aplicação. A tarefa de quem delibera, ao criar
a lei, não estaria esgotada com sua publicação, como hoje ocorre, mas com o seu
sucesso, sua implantação, seu funcionamento, com dois objetivos: pensar e estudar
mais as consequências, ainda na fase de projeto, e acompanhar sua aplicação prá-
tica, para fazer, se necessário, correções de rumo.
Hoje, a simples correção de uma vírgula que possa dar margem a dezenas
de processos judiciais pode levar anos, um processo burocrático inexplicavelmente
complexo, difícil, custoso.
A interação de responsabilidades entre quem faz a norma e quem vai aplicá-la
dará ao primeiro a possibilidade de conferir a consequência, ter o que, em inglês,
chama-se de “feedback”: a aferição e o acompanhamento do resultado para deter-
minar a necessidade de ajustes.
Atualmente, com o nível de progresso alcançado, há a necessidade de especia-
listas ao elaborar as regras e especialistas para aplicá-las, trabalhando em sintonia.
No sistema proposto, é exatamente isso o que se pretende viabilizar.

135
P. Garaude

A Justiça eficaz

M eu professor de medicina legal insistia, à exaustão, que nenhum aluno seria


admitido na classe após a sua entrada, sempre procedida com pontualidade britâ-
nica, no momento exato em que soava o segundo toque da campainha.
Em sua quinta ou sexta aula, depois de ter repetido em todas elas e com todas
as letras a ladainha aborrecida do desrespeito a ele e aos demais alunos represen-
tada pelo atraso, mais de cinco minutos passados do início da preleção, discorria
sobre um tema qualquer, quando se ouviram batidas insistentes na porta.
Após parecer não se importar, como as batidas continuavam, o professor sus-
pendeu, dramaticamente, sua explanação, dirigiu-se à entrada da sala e abriu o
pórtico de madeira.
Um nosso colega, bem conhecido, cumprimentou-o com um rápido “bom dia”
e, sem qualquer desculpa ou explicação, ingressou na sala de aula, sentou-se, como
se ignorasse toda a pregação do mestre, repetida tantas vezes.
Para nossa maior surpresa, não foi o professor quem o admoestou, mas outro
aluno que se levantou e se dirigiu em direção ao retardatário, em postura agressiva,
interpelando-o duramente por sua atitude desrespeitosa.
Seguiram-se insultos e sopapos de parte a parte. Uma colega que tentava
apartar foi atingida (ou não) e pareceu desmaiar. Houve um grande alvoroço. A

136
O Dogma dos três poderes

turma do “deixa disso” entrou em cena, mas parecia conturbar, ainda mais, o
ambiente de confusão, estupefação geral, mal-estar generalizado.
O professor, que aparentemente assistia impassível a toda aquela cena, foi
então até o tablado que elevava sua mesa à proeminente altura, ergueu os braços
teatralmente e disparou:
— Silêncio! Silêncio!
Todos os participantes do entrevero se refizeram. Seguiu-se um silêncio sepul-
cral. Ele chamou o bedel e mandou distribuir folhas de papel em branco.
— Muito bem — proclamou. — Os senhores vão relatar o que se passou nes-
tes últimos minutos, com a maior riqueza de detalhes possível.
Algumas aulas depois, pediu a uma aluna que lesse nossos depoimentos escri-
tos dias antes, minutos após a ocorrência.
As discrepâncias eram enormes: além dos fatos serem narrados em sequencias
diferentes, alguns inverteram o nome do colega atrasado com o de quem lhe afron-
tou; o que ambos teriam falado durante a discussão, a intenção da turma do “deixa
disso”, da aluna que teria desmaiado, a reação do professor e a da classe.
— Minha aula, hoje — disse então —, versará sobre a relatividade do testemu-
nho e de seu valor como prova. Em geral, lembramos apenas do essencial e come-
temos erros de memória ao reportar os detalhes — concluiu.
Temos de fazer algumas escolhas. Seria fácil escolhermos entre duas situações
ótimas. Lamentavelmente, não é assim. Seria ótimo decretar o fim dos acidentes de
trânsito, mas essa situação só seria possível se proibíssemos a circulação de todos
os veículos ou condenássemos todas as pessoas a ficar confinadas em casa. Seriam
males maiores do que o que se quer coibir, mesmo se mortes fossem evitadas em
um primeiro momento.
Imaginar que estamos apetrechados para fazer justiça absoluta é uma pretensão
arrogante, uma tentativa de decretar o fim dos acidentes de trânsito, utopia que pode
apenas nos servir de foco, sempre e eternamente perseguido, jamais alcançado.
No entanto, nossos juristas parecem acreditar que a Justiça perfeita é possível.
À Justiça cabe a aplicação das leis, zelando pelo seu efetivo cumprimento.
Cabe-lhe a tarefa de aplicá-la com isenção, rapidez e eficiência.
Ela tem falhado nos dois últimos objetivos, por estar centrada apenas no pri-
meiro ponto e de forma errada. Pretende uma perfeição inalcançável. Confunde
isenção com justiça absoluta, um ideal, um foco, não a realidade possível.
A Justiça, como feita, é pretensiosa e contraditória. Dá tão amplo direito de
defesa ao réu a ponto de comprometer o direito de quem pede ou precisa de re-

137
P. Garaude

paração, principalmente quando o agredido é a sociedade. Como todos aqueles


que pretendem agradar a dois lados, consegue desagradar a ambos.
Fala-se muito em direito de defesa e muito menos do que o necessário em de-
fesa do direito à reparação, de consegui-la de forma eficiente, rápida, tempestiva.
O objetivo de conseguir a perfeição tem como resultado a ineficiência, tanto ao
reparar como ao dissuadir.
Há de se estabelecer limites, sob pena de os inadimplentes tornarem-se impu-
nes, tal o grau de recursos dilatórios à disposição de um advogado sagaz. O direito
de produzir provas, atualmente, merece quase nenhuma restrição. Basta alegar que
o réu pretende ouvir uma testemunha more aqui ou em outra cidade, ou país, seja
isso importante ou não, verdadeiro ou falso e todo o processo estará paralisado de
fato, até que seja a dita testemunha ouvida, sob pena de caracterizado o cercea-
mento do direito de defesa.
Assim a lei atual alarga ao infinito e coloca à disposição do advogado interes-
sado em ganhar tempo métodos protelatórios para retardar a decisão, o que gera
a injustiça da justiça não feita, ou feita com o atraso que caracteriza ineficiência.
Pior, mantém-se a instabilidade gerada pelo litígio inconcluso, destruindo a princi-
pal finalidade da Justiça que é a paz social, a redução do número de conflitos em
andamento.
Muito disso se deve ao acúmulo de processos. Mas, feito um bom diagnóstico,
vai-se perceber que essa circunstância é consequência de uma legislação malfeita.
O acúmulo é causa, mas também consequência de leis que não tiveram qualquer
preocupação prática com a celeridade processual. Pretendendo fazer a justiça per-
feita, não fez sequer a razoável.
Impõe-se uma legislação que, efetivamente, sem prejudicar o direito de defesa
legítimo, impeça, com rigor, seu uso como expediente protelatório, definindo este
expediente como atentado à Justiça.
Se não buscarmos o equilíbrio e continuarmos a procurar apenas a perfeição,
não conseguiremos equilíbrio e muito menos perfeição.
É preciso partir-se da premissa de que a melhor Justiça é a que pode ser feita.
Se não for rápida, dificilmente será boa.
No direito penal, assegura-se ao réu tantos instrumentos de protelação que
a melhor defesa, em muitíssimos casos, é arrastar o processo até a prescrição do
crime, tarefa nada difícil para um advogado hábil. Terá apenas o trabalho de mos-
trar que é possível o erro, que não há certezas absolutas… e elas não existem, como
ensinou meu professor de Medicina Legal.

138
O Dogma dos três poderes

No cível, no empresarial, no trabalhista, inadimplentes óbvios, quando com-


pelidos judicialmente a reparar o não cumprimento oportuno de seus deveres, o
farão tanto tempo depois que a mora, ainda purgada, lhes terá sido vantajosa, em
detrimento ao direito de quem cumpriu suas obrigações.
Há de se procurar o equilíbrio rompido entre direito de defesa e risco de im-
punidade, porque, se dependêssemos de certezas absolutas, o crime cometido no
interior de uma sala, onde estivessem apenas o delinquente e sua vítima, e mesmo
aquele praticado em público, jamais resultaria em condenação.
Outro professor proeminente, de processo civil, defendia que a função mais
importante do judiciário é resolver o litígio, mais ainda do que fazer justiça.
— O objetivo do processo — dizia ele —, é a coisa julgada: o caso submetido
ao judiciário resolvido definitivamente, com isenção e rapidez.
A incerteza e a demora produzem a descrença na eficácia da Justiça. Quando se
arrastam por anos, as pendências têm consequências sociais mais perversas do que a
injustiça, o erro da decisão, porque o derrotado sempre se considerará injustiçado.
A “coisa julgada” é o objetivo extremo da Justiça. É a meta, o fim, o propósito
que não deve ser esquecido jamais, pois alcançada, além de eficiente, a Justiça, e
consequentemente a lei, tornam-se eficazes.
Outro pressuposto enganoso é o de que a repetição de julgamentos acabará,
por fim, consagrando a Justiça. Não há qualquer garantia disso, a meu ver, nem a
probabilidade de corrigir o erro é aumentada.
Claro, em geral há a conveniência de submeter o julgamento a mais de uma
pessoa. Isto deveria ser automático. O problema é que, da forma que o sistema
funciona atualmente, essa possibilidade pode se estender muito mais do que o
necessário, em tempo, trabalho, dinheiro, sem qualquer certeza ou probabilidade
de melhorar a decisão.
Alguém será sempre injustiçado, quando não se decide.
O resultado é que a inadimplência passa a ser convidativa, mesmo que não
possa o descumpridor da obrigação assumida fugir a um desfecho (nem sempre)
desfavorável. Isto se deve, a par de outros erros, a escravizar o procedimento judi-
cial a conceitos extremamente formais e individualistas, sob a falaciosa desculpa
de assegurar amplo direito de defesa, o que leva a Justiça a tratar o inadimplente
com injustificada candura, o assassino confesso com o respeito devido a uma freira
dedicada à caridade.
Evidentemente, não devemos desistir de procurar a verdade e fazer justiça,
muito menos voltar à época em que os conflitos eram solucionados a porretadas.

139
P. Garaude

Provas são o único meio eficaz de trazer os fatos à colação. Ao juiz cabe interpretá-
las e criar a versão mais plausível, mesmo que lhe falte a convicção absoluta. Ela é
sempre inalcançável e, se não entender isso, não poderá julgar.
Justiça total não é opção possível, é aspiração. Por isso, é falso o dilema de uma
escolha excludente: ou justiça ou rapidez. O resultado de buscar justiça perfeita,
demore o que demorar, é muito ruim, pela eliminação, ou, no mínimo, a grande
subestimação de seu objetivo dissuasório, o mais importante.
Temos de ser realistas para reconhecer que os seres humanos, por não serem
perfeitos, jamais poderão fazer a justiça perfeita. Devemos fazê-la social, útil, ágil,
eficiente, dissuasória e isso significa ser rápida.
Fomos levados, por vício de concepção herdada do liberalismo exacerbado,
a pensar que não há alterações possíveis a fazer no judiciário, que sua lentidão e
ineficiência são insolúveis, inevitáveis, que suas sentenças, para serem justas, hão
de ser tomadas sem qualquer pressa. Um erro. No mínimo, uma generalização
simplória. O médico que espera até seu paciente apresentar condições ótimas
para fazer a cirurgia, poderá perder a ocasião e o paciente. Em toda a atividade
humana, quando se busca um resultado, não se deve proceder com açodamento,
muito menos com a paciência contemplativa de um monge budista. No caso da
Justiça, há muito que se pode fazer, sem qualquer prejuízo à qualidade final das
decisões judiciais.
Não conseguida a perfeição, a Justiça deve ser considerada inconveniente, te-
mida e desagradável, pelos infratores e devedores, e não pelos que precisam dela
para se ressarcir de prejuízos. Na sistemática vigente, ela não alcança sua função
dissuasiva, socialmente mais importante do que a reparação pecuniária ou a puni-
ção tardia.
Se for muitas vezes ineficiente, a Justiça torna-se ineficaz e isso é o pior dos
mundos. Gera a insegurança jurídica, atingindo todos os que precisam recorrer a ela
e aos que passariam a temer precisar dela, se necessário.
A finalidade do direito é a segurança social, conseguida pela dissuasão da in-
fração à lei. O não cumprimento da lei é inevitável, tanto quanto o são a doença, o
acidente de trânsito…
Patologias antissociais são uma realidade, queira-se ou não. Conflitos são ine-
rentes à personalidade humana, não apenas porque somos egoístas, mas por ver-
mos e interpretarmos os fatos e situações de modo diferente, sempre com a parcia-
lidade de nossa própria ótica, ao ver melhor o nosso interesse do que o alheio.
Uma vez, perguntei a um médico, meu amigo, como estava passando.

140
O Dogma dos três poderes

— Vou mal — disse ele. — Está havendo uma enorme crise de Saúde.
Evidentemente, como o conhecia o suficiente, soube entender que se tratava
de uma brincadeira. Mas também foi a forma que ele encontrou para mostrar o lado
ruim de sua profissão, tão nobre. Se ninguém ficasse doente, não ganharia dinheiro.
Doenças, acidentes de trânsito, separação de casais, a própria morte, são acon-
tecimentos de que não gostamos, mas são inerentes à vida.
No caso da Justiça, a pessoa ser processada ou precisar processar alguém são
situações desagradáveis, mas sua existência, como as coisas ruins, são inevitáveis.
Assim como devemos lutar contra a doença, os acidentes, tentar levar a morte
para idades provectas, quando é mais bem aceita, não há por que deixarmos de
fazer todo o possível para tentar diminuir os crimes, as desavenças, os conflitos, a
inadimplência.
Mas é pretensão achar que a Justiça pode ser absoluta, recompondo total-
mente uma situação anterior. A Justiça pode reparar, não recompor. Como mal
inevitável, devemos ser realistas, fazendo-a eficiente e eficaz, sabendo logo que não
pode ser perfeita. Pode ser isenta, mas dificilmente, na opinião do condenado, será
justa, seja ele culpado ou não.
Uma dessas consequências é entender que jamais poderemos satisfazer a to-
dos, devendo, por isso, aceitar que o bem-estar de muitos é mais importante do
que o de poucos, e isso significa terminar rapidamente o chamado “procedimento
judicial”, porque esse é o interesse da grande maioria dos seres humanos — aqueles
que cumprem suas obrigações.

141
P. Garaude

Simplificar o procedimento

N os primórdios do direito civilizado, quando o objetivo do processo era pecuni-


ário, duas pessoas apresentavam-se ao juiz, expunham suas razões, suas provas e o
magistrado decidia a favor de quem lhe parecesse ter razão.
Essa maneira simples de solucionar litígios é o oposto do que ocorre nos dias
de hoje. Por alguma razão que não compreendo muito bem, desenvolvemos, ao
longo do tempo, o conceito, o arquétipo social de complicar o simples, sempre que
possível.
Pela razão, ou bom-senso com que estamos contemplados no momento, o meio-
termo parece ser o ideal. Mas é preciso, sem chegar ao extremo, simplificar muito.
É preciso, é possível e é recomendável. Algumas modificações importantes deveriam
ocorrer no sentido de agilizar o procedimento, especialmente na parte recursal.
Alguns processos não precisam, sequer, de dupla apreciação jurisdicional. É
o caso de condenações a penas não restritivas à liberdade, como a execução por
quantia líquida e certa, as cobranças simples, decorrentes de contrato ou conven-
ção (de baixo valor), despejos, no cível, além de outros casos de baixa ou pouca
complexidade.
A lei há de distinguir o que é simples do que é complexo. Como descobriram os
consternados com a comprovação do óbvio, isto é evidentemente possível.

142
O Dogma dos três poderes

Os demais casos, não excepcionados por sua simplicidade, deixariam também


de ser passíveis de recurso, mas estariam, automaticamente, sujeitos à dupla apre-
ciação, duplo grau de jurisdição — entendida esta como submetida a um segundo
juiz de instância ou gradação superior.
Após exarada a sentença pelo juiz de primeira instância, de ofício, ou seja,
automaticamente, o processo deveria ser submetido a outro magistrado, de grau
mais elevado, com mais experiência, sorteado para proceder à revisão processual.
Se mantivesse a sentença, haveria o trânsito em julgado.
Também de forma automática, ou seja, sem a necessidade de provocação da
parte vencida, se o segundo juiz alterasse a decisão de seu colega, um terceiro juiz
seria automaticamente convocado, também por sorteio, para se manifestar, desem-
patando a questão definitivamente.
Nos casos expressamente excepcionados, seriam necessários pelo menos dois vo-
tos a mais para ocorrer o trânsito em julgado. Este procedimento, além de aplicável a
questões mais complexas, seria também recomendável quando o réu fosse pessoa que
estivesse desempenhando função pública elegível, para eliminar a possibilidade de deci-
sões pautadas em interesses, convicções políticas ou pessoais. Além disso, uma série de
medidas poderiam e deveriam ser tomadas para agilizar a justiça: a informatização ra-
dical, com a eliminação de processos mantidos em milhares de páginas de papel, e sua
substituição por arquivos eletrônicos e cópias de segurança. É absolutamente necessária
a eliminação de todos os procedimentos meramente formais e desnecessários.
Em hipótese alguma deveria ocorrer a repetição de atos. A citação inicial, por-
tanto, seria válida para todos os termos e atos processuais subsequentes, inclusive a
execução, bastando a intimação dos advogados.
Outra medida interessante seria a eliminação das custas processuais pagas ini-
cialmente e durante o processo, um enorme fator de burocracia, percebida pelos
militantes do Direito.
Como devem ser suportadas pela parte culpada, essas deveriam ser equivalen-
tes aos honorários advocatícios devidos pelo vencido, a chamada sucumbência. A
execução seria simultânea. Duas vantagens:

•• Primeira: a justiça passaria a ser gratuita para os demandantes sem culpa,


não apenas aos sem recursos. Em consequência, não haveria necessidade
do burocrático programa de justiça gratuita, pois ela seria inicialmente
isenta para todos. Mas a parte culpada pagaria caro tanto pela infração
legal cometida como pelo uso desnecessário da Justiça, se procurasse se
utilizar dela, sem ter razão para isso.

143
P. Garaude

•• Segunda: o fundo constituído com o valor das condenações geraria recursos


provavelmente suficientes para o judiciário manter, sob regime de exclusivi-
dade de emprego, uma boa equipe de peritos profissionais especializados,
aptos a auxiliar aos juízes em suas decisões, toda vez que houvesse a neces-
sidade de conhecimentos específicos.

Julgo conveniente a existência de um corpo permanente e integrado de peritos


em áreas em que sua especialidade seja necessária à assessoria judicial. Com o nú-
mero determinado pelas necessidades comprovadas, eles passariam a ser sorteados
para a execução da tarefa, com prazo para apresentar seu laudo, mais simples do
que o atual, apenas com as respostas aos quesitos formulados pelas partes e não
impugnados pelo juiz. Hoje, uma simples perícia, além de caríssima, pode levar mais
de um ano para ser feita, a um custo exagerado, suportado pelo interessado na
demanda, geralmente a parte prejudicada. Uma incongruência desnecessária.
Em suma, não há por que deixar de retornar aos princípios básicos do direito e
da justiça. No direito econômico, qualquer um que se julgasse prejudicado poderia,
por meio de um advogado, baseado em uma suposta infração legal ou contratual,
formular um pedido a um juiz, no sentido de citar alguém para defender-se, respon-
dendo à pretensão do requerente de ser ressarcido de um prejuízo.
Todas as provas documentais deveriam ser apresentadas, instruindo a inicial e a
contestação. Haveria apenas mais uma manifestação do autor sobre a contestação
oferecida. Se, a pedido das partes, o juiz entendesse necessário ouvir testemunhas,
marcaria uma audiência e as partes apresentariam, em cinco dias, suas razões finais.
Se não convencido, o juiz poderia designar perito, fazer vistoria ao local, quando
entendesse conveniente, ou determinar outras diligências.
Mas, se não considerasse necessária a ouvida de testemunhas, ou perícias, pro-
feriria a sentença imediatamente, na audiência, ou logo após. Sua decisão, como
já se disse, ficaria sujeita às revisões automáticas sugeridas, sem recursos, sem tri-
bunais de segunda, terceira ou quarta instância, órgãos tão custosos como desne-
cessários.
Caberia incluir no pedido inicial da parte ou do Ministério Público a tutela
antecipada, se houvesse comprovado risco de periclitação do interesse da parte ou
da sociedade.
Procurando fazer a Justiça eficaz, além de mais detalhamentos para casos es-
pecíficos, não haveria por que ir muito além disso, em se tratando de procedimento
ordenatório ou ritos processuais.

144
O Dogma dos três poderes

As agências de direito civil,


empresarial e trabalhista

N o direito civil, trabalhista, empresarial, mesmo no campo tributário e admi-


nistrativo, o objetivo do litígio é pecuniário. A condenação resolve-se em dinheiro.
É necessária essa constatação do óbvio, para desmistificar parte de um conceito
romantizado e enraizado de Justiça, como se seu objetivo fossem valores essenciais
à dignidade humana.
Na interpretação de uma lei de direito privado ou de uma cláusula contratual,
o resultado final é econômico, apenas. Vira sempre dinheiro. É ele o objetivo final
da discussão. Se for considerada culpada, a parte deve, ao fim das contas, pagar à
inocente, ou diminuir seu patrimônio a seu favor — se o tiver.
Como somos, na verdade, muito apegados a dinheiro, levamos demais a sério
a justiça econômica, achando que ela existe, como verdade ontológica, autônoma,
extrema, essencial. “O que é meu é meu; o que é seu é seu” — a manifestação do
mais puro egoísmo infantil.
A finalidade da justiça privada — prefiro chamá-la de “justiça econômica”, posto
serem seus preceitos também de ordem pública —, seja ela civil, empresarial, traba-
lhista, muito mais do que fazer justiça — tarefa muito difícil — é dar segurança aos
negócios. É nesse ponto que reside sua enorme importância. No entanto, não há
porque sacralizar assunto tão material, já que nada levaremos para o além-túmulo.

145
P. Garaude

Se a justiça econômica ficasse a cargo do comitê gestor de economia, por


meio de suas três agências de direito (a civil, a empresarial e a trabalhista), como
proponho, a maior vantagem seria a adequação das leis de relacionamento entre as
pessoas e empresas à verdadeira conveniência da sociedade, que consiste na dimi-
nuição de conflitos e na sua solução rápida, caso ocorram.
Não estou, como poderiam pensar alguns, indo contra o interesse de meus
colegas advogados. Acho que a função seria bem mais útil se canalizada para a
necessária prevenção de conflitos, com muito mais validade social e interesse de
todos, do que a pugna judicial na reivindicação de direitos, ou na defesa de quem
é demandado.
Trabalhar na prevenção, elaborando contratos justos e adequados, é tarefa
que desafia muito mais a inteligência do que ver-se na contingência de argumentar
quem é o culpado na demanda, pelo não cumprimento de sua obrigação.
De qualquer forma, as ideias que defendo poderiam, no sistema de administra-
ção por áreas de atuação do governo, ser aprovadas ou não. O que acredito é que,
mesmo como leigos, os eleitores devem se manifestar sobre opções programáticas
que possam manter o status quo, ou, ao contrário, como proponho, votar em um
partido que proponha uma grande agilização da Justiça. Essa opção jamais foi colo-
cada ao eleitor, uma diminuição injustificável de sua condição de cidadão e eleitor.
Os programas partidários iriam, necessariamente, posicionar-se sobre as
questões dessas áreas, de tal sorte a permitir ao eleitor opinar, sufragando aquele
partido que tivesse propostas mais semelhantes às suas. Lembro que, na proposta,
todos os comitês seriam responsáveis pela aplicação das leis que criassem, o que
vale dizer que tudo fariam para que as decisões das justiças a ele submetidas fos-
sem isentas e rápidas.
Nessa sugestão, tanto a parte referente à família como a de sucessões com
menores herdeiros deveriam passar para a área que ficaria a cargo do comitê do
bem-estar social, como disse.
A transferência de bens por sucessão a adultos capazes pode e deve, perfei-
tamente, ser feita perante um cartório de notas, um tabelião, que lavraria, obser-
vados os preceitos legais, uma escritura de partilha de bens entre os herdeiros.
Além do registro imobiliário, nenhum outro procedimento seria necessário. Não
haveria, sequer, necessidade de homologação judicial, um procedimento burocrá-
tico desnecessário.
Existe a possibilidade de um ou mais herdeiros se recusarem a assinar a es-
critura de partilha. Há duas hipóteses possíveis, nesses casos. Se a partilha for no

146
O Dogma dos três poderes

sentido de deixar os bens pro indiviso, ou seja, mantidos em comum, não haveria
razão para a recusa do herdeiro e ele poderia ser compelido a fazê-lo por meio de
ação cominatória (obrigação de fazer), com multa diária pelo inadimplemento. Na
hipótese de não haver acordo sobre a partilha, porque os bens seriam divididos de
maneira desigual, seria o caso de algum herdeiro requerer a venda judicial. Em am-
bos os casos, a competência seria da justiça econômica.
Evidentemente, não declarada a existência de um herdeiro, este teria todo o di-
reito de mover uma ação de anulação de ato jurídico, com os consectários criminais
decorrentes do estelionato. Separações amigáveis também poderiam ser feitas por
escritura, exceto se existissem menores.
No caso da existência de menores ou incapazes interessados, a agência de
proteção ao menor designaria um curador para defender seus interesses, ficando
ele investido da condição de assistir, necessariamente, o representante do menor
(pai, mãe, etc.), em todos os atos de seu interesse, inclusive na escritura de partilha,
de venda de bens e todos os outros que envolvam seu patrimônio, sob pena de
nulidade.
Na parte empresarial, há uma dinâmica de acontecimentos que já redundaram
no instituto da recuperação judicial, muito melhor do que a antiga concordata pre-
ventiva, mais ainda aperfeiçoável em função de um progresso enorme nas relações
negociais. Também cabe uma revisão completa na legislação societária, distinguindo
melhor as pequenas das grandes empresas. Deve haver pleno incentivo à criação
de negócios legalizados, garantindo ao pequeno empresário direitos, não apenas
obrigações, como ocorre.
A legislação trabalhista, especialmente a processual, tem o cheiro apodrecido
do fascismo, imaginado há quase um século.
Só para pensar:
Li, sem conferir, duas notícias, críveis ambas, sobre a Justiça do Trabalho no
Brasil. A primeira é de que é a maior do mundo em número de processos, juízes,
funcionários, custos e todos os outros parâmetros. Dessa informação não tenho
dúvidas, pois confirma outras tantas leituras. Mas a que mais me impressionou foi
uma outra, de que o custo da Justiça do Trabalho seria maior do que o valor das
condenações às empresas, recebidas por seu intermédio. Aí, fiquei em dúvida. Mas,
como diz o italiano, “se non é vero é bene trovato”.
Não apenas a legislação trabalhista, mas também a Justiça do Trabalho deman-
dam imediata reforma.
Cito um exemplo de péssimas consequências:

147
P. Garaude

A não condenação do reclamante ao pagamento de custas e honorários de ad-


vogado, se perdesse a causa, teve motivação justa e pragmática. A execução, se o
reclamante não conseguisse comprovar seu pleito, era, sobre injusta, também inócua,
pois não havia dinheiro, nem patrimônio exequível. Os juízes, sentindo a realidade,
deixaram de condenar os reclamantes nas custas e honorários, se perdessem a recla-
mação. Além de infrutífera, a condenação atemorizava o trabalhador a pleitear seus
direitos, que poderiam ser legítimos, mas não reconhecidos pelo juiz, um ser falível.
Isso levou o legislador a sancionar a prática jurídica e proibir tal condenação.
Mas a solução teve um preço. Tapou um buraco, mas abriu outro, maior ainda.
Advogados especializaram-se em patrocinar, sem riscos para eles e seus clien-
tes, as mais extravagantes reclamações com pedidos três, cinco, dez, cem vezes
maiores do que o sabidamente devido.
Os processos explodiram aos milhares, hoje milhões. A primeira possibilidade
era a empresa faltar à audiência e ser condenada em valores significativos — a
legalização judicial do estelionato. Havia também a possibilidade de erro, a falta
de prova, pois o ônus, transferido integralmente ao empregador, poderia pegá-lo
desprevenido por estar mal-organizado, o que ocorria em geral com as menores
empresas, menos preparadas. Há milhares de casos em que a Justiça ocasionou o
que mais deve impedir: o enriquecimento sem causa.
Advogados espertos especializaram-se em tentar essa apropriação ilícita do pa-
trimônio alheio.
O mal maior, no entanto, foi ainda outro: a medida provocou um enorme aumento
das demandas judiciais, com o consequente emperramento do judiciário e uma grande
diminuição na qualidade dos julgamentos, feitos sempre com açodamento, pois o juiz
passou a presidir dezenas de audiências em um só dia, a dar um número quase igual de
sentenças, sob pena de ficar definitivamente atolado em milhares de processos.
É incalculável o tempo que milhões de pessoas perdem em função da Justiça
do Trabalho no Brasil. Às audiências, além das partes e de seus advogados, com-
parecem testemunhas obrigadas a faltar ao trabalho, a suportar horas de atraso
e, frequentemente, dois ou três adiamentos. São submetidas ao vexatório castigo
de esperarem horas em pé, em salas minúsculas, sem nada para fazer, para serem
dispensadas em alguns minutos, com o sistemático adiamento das audiências, ou
sua solução amigável, sem sequer ver a cara do juiz.
Hoje, tramitam pelas varas do Trabalho milhões de processos distribuídos a
juízes insuficientes para julgá-los, resultando que os procedimentos, além de se
eternizarem, tenham desfechos estapafúrdios.

148
O Dogma dos três poderes

Não é incomum o juiz confundir processos e dar uma sentença lembrando do


que lhe foi dito por alguém, em outro caso.
Isso não é bom para os empregos, para as empresas, nem para os emprega-
dos, os mais prejudicados no fim das contas. O sistema desencoraja a contratação
de novos funcionários, estimula empresas a deixar de cumprir suas obrigações e
postergar o pagamento correto dos haveres do empregado, para ganhar tempo ou
tentar diminuir, em acordo, o que deveria lhe pagar.
Empregadores com baixo grau de sensibilidade social foram premiados com
o sistema. Sabendo que a reclamação seria inevitável, passaram a não pagar até o
essencial, a espera de uma condenação em um futuro longínquo, ou de um acordo
que o reclamante, premido pela necessidade, seria obrigado a aceitar.
Medida de grande e positivo impacto seria o reconhecimento de que a já ne-
cessária homologação da rescisão de contrato de trabalho feita no sindicato pas-
sasse a ser considerada quitação válida e definitiva de todos os direitos trabalhistas
decorrentes do vínculo de emprego rompido. Ainda que haja alguns inconvenien-
tes, é o chamado mal menor.
Não há por que proceder-se à homologação sindical da rescisão se ela não tiver
consequência prática. Hoje ela não implica quitação. É apenas mais um ato buro-
crático a infernizar, desnecessariamente, a vida das pessoas. O alegado direito de
recorrer — um benefício inalienável — ao judiciário não deveria implicar em não se
atribuir o poder de quitação geral ao documento firmado pelas partes sob a fiscali-
zação do sindicato do trabalhador.
A pretendida extensão da proteção judicial ao reclamante é uma falácia, bas-
tando lembrar que, após muito tempo, quando for realizada a primeira audiência
de conciliação, sem muito critério, será forçado pelo juiz a fazer um acordo para
por fim ao litígio, dando quitação geral. Só que terá também de arcar com os trinta
por cento de honorários do advogado que foi obrigado a contratar para realizar
um trabalho inútil, não lido, assim como ocorrerá com a defesa do reclamado,
onerado com honorários de seu advogado que teria sido desnecessário. Um cipoal
de asneiras.
Apesar de ter exercido a profissão, sou obrigado a reconhecer que só houve
um beneficiário nessa história.
Passando a valer como quitação geral, a fiscalização pelo sindicato faria sen-
tido. Ele seria o responsável pela salvaguarda dos direitos de seu afiliado, cumprindo
seu papel de defensor e guardião do cumprimento da lei e dos termos dos dissídios,
cujo conhecimento lhe é essencial.

149
P. Garaude

Os sindicatos recebem de todos os trabalhadores que representam, filiados ou


não, contribuição obrigatória anual equivalente a um dia de seu salário. O benefício
aos trabalhadores limita-se à sua “representação” em dissídios coletivos ou serviços
prestados por ocasião da homologação meramente burocrática de acordos rescisó-
rios. Um custo-benefício despropositado.
A reclamação trabalhista deveria ser de responsabilidade do sindicato e patroci-
nada por ele, se apurasse irregularidade na indenização do trabalhador despedido.
Hoje, além do desconto sindical, ao contratar um advogado, o reclamante com-
promete de vinte a trinta por cento do que receber. Se optasse pela reclamação e
perdesse, o sindicato deveria ser condenado em custas e honorários. Se vitorioso,
seria o seu beneficiário.
Logo, a diminuição do número de processos trabalhistas seria tão grande que
o sindicato passaria a não homologar qualquer acordo por valor menor do que o
devido, pois o reclamante seria logo ressarcido pela condenação judicial, e ele pelos
honorários, quebrando o círculo vicioso hoje existente.
Nada impediria o empregado de contratar seu próprio advogado, mas a lei
poderia tornar o profissional solidário no pagamento das custas e honorários se
perdesse a demanda, tanto quanto se beneficiaria dele, se vitorioso. Não há dúvida
de que a redução significativa no número de reclamações implicaria na consequente
melhoria da qualidade dos julgamentos.
Se não adotadas medidas eficientes e inteligentes no sentido de diminuir o
número de processos trabalhistas no Brasil, estaremos alargando o fosso entre em-
presas e empregos, desencorajando a racionalidade, a honestidade como procedi-
mento, a paz, a concórdia e o bem-estar, como o objetivo de todos.
A legislação atual está superada. É um prato cheio para os aproveitadores e
para os adeptos da teoria de “quanto pior, melhor”.

150
O Dogma dos três poderes

As agências de direito tributário


e administrativo

P ela proposta de divisão em razão da natureza do assunto versado, todo o relaciona-


mento financeiro entre cidadão e governo seria da alçada da agência de direito tributá-
rio e da agência de direito administrativo, subordinadas ao comitê gestor de finanças.
Isso, a princípio, poderia ser interpretado como uma perigosa acumulação de
funções: fazer a lei tributária, arrecadar e julgar, ficariam sob a mesma égide, sob a
responsabilidade de um só órgão deliberativo. Como lhe dar a incumbência de criar
as leis tributárias, promover a arrecadação e cobrar o contribuinte?
Não se estaria pondo o lobo para vigiar o cordeiro, dando à parte interessada
a condição de juiz?
Essa pergunta tem sido respondida de forma ingênua e perniciosa, com ranços
históricos que a justificaram no passado, hoje superados pelo advento da democracia.
O conceito tem a ver com a ideia de governo como ente abstrato: o Leviatã,
de Hobbes.
Não há contradição de interesses entre fisco e contribuinte. Deve haver entre
bons e maus pagadores, pois quem não paga transfere o ônus pela inadimplência
de suas obrigações a quem as cumpre.
No mundo real, quando é preciso arrecadar de cem contribuintes e vinte dei-
xam de pagar, o fisco vai ratear o que os vinte faltantes deixaram de pagar entre os

151
P. Garaude

oitenta pagantes. Estes, além de pagarem em dia, acabarão pagando pelos inadim-
plentes. Uma grande injustiça.
Na verdade, a confrontação fisco-contribuinte deve ser eliminada. Não há qual-
quer razão para existir. Haverá sempre o interesse da sociedade e esta sim dará a
última palavra. Preservar direitos lícitos será, por certo, um objetivo cobrado, fiscali-
zado, exigido de quem cobra e fiscaliza o governo: a sociedade.
Ao comitê gestor de finanças competiria a responsabilidade pela arrecadação.
Pela lógica integral da proposta, seu interesse, no entanto, mais do que o volume
arrecadado, seria a justiça e a eficiência com que o fizesse.
Seu julgamento, pela sociedade, não seria pela obtenção de verbas — até por
que não lhe caberia aplicá-las, nem beneficiar-se delas —, mas pela correção e efici-
ência com que exerceria suas funções, o que vale dizer, sua isenção.
De qualquer maneira, o fato de estarem sujeitos ao mesmo colegiado não signi-
ficaria que a agência específica, incumbida de arrecadar, se acumpliciasse com aquela
incumbida de aplicar a lei tributária e decidir questões da relação fisco-contribuinte.
Não haveria qualquer razão para terem interesses comuns ilícitos, como o au-
mento indevido da receita. Teriam, sim, o objetivo final do julgamento popular:
prestarem bom serviços, cada qual em sua função específica. A Receita tentando
arrecadar eficientemente. A Justiça fazendo com que, quem deva, pague; e, quem
não deva, não pague.
Caberia ao comitê gestor de finanças não apenas se responsabilizar pela quan-
tidade da arrecadação, mas também por sua qualidade, o que se traduziria em pres-
teza, eficiência e justiça, dirimindo questões interpretativas e não as prolongando,
indefinidamente, como ocorre hoje.
Preenchida, como todos os demais órgãos ou empresas públicas, pelos critérios
de concurso e promoção por merecimento, a agência de direito tributário ficaria sa-
tisfatoriamente independente para decidir contra a agência da Receita Federal, cujo
pessoal lhe seria estranho. Mas sua agilidade seria cobrada pelo comitê financeiro,
interessado, a um só tempo, em dirimir questões tributárias, fazer justiça e também
em arrecadar. A morosidade hoje reinante não tem sentido nem para beneficiários,
senão os inadimplentes e sonegadores.
Pela lógica da unicidade de comando, é provável que os fiscais da Receita
passassem a agir, sempre, em consonância com as decisões da agência de direito
tributário, que passaria a balizar o entendimento de possíveis dúvidas, diminuindo,
consideravelmente, as tarefas inutilmente repetitivas, com resultado tão nefasto
quanto ineficaz.

152
O Dogma dos três poderes

Se não fizesse isso e não agisse assim, a Receita estaria sujeita à oportuna repri-
menda pelo comitê gestor de finanças e, até, à sua responsabilização administrativa
e criminal a si e aos funcionários que deixassem de cumprir o preceito.
Incrivelmente, hoje isso não ocorre e, não obstante a posição firmada em sú-
mula por um tribunal, a Receita continua a dar seu próprio entendimento, na cha-
mada fase administrativa, sempre a seu favor, em todos os assuntos de sua conve-
niência, mesmo contrariando, taxativamente, uma decisão judicial.
As razões para isso, como sempre, estão na tripartição. Eliminada, não haveria
qualquer razão para o processo passar, antes do ajuizamento, por um contencioso
administrativo. Apurada a infração, o direito de defesa seria dado ao devedor na
fase judicial, sem qualquer necessidade de litigioso administrativo. Hoje ocorre um
absurdo “bis in idem”.
Todas as questões tributárias, mesmo a do contribuinte contra o governo, te-
riam o foro adequado na agência de direito tributário.
Questões de indenização movidas por funcionários contra o governo teriam
foro na agência de direito administrativo. Se um funcionário de uma agência estatal
recebesse menos do que o devido ou se achasse no direito de receber, legalmente,
mais do que recebeu pela demissão, ou o caso do desapropriado não justamente
indenizado, ou, ainda, daquele que sofresse prejuízo decorrente de negligência, im-
prudência ou imperícia do governo, poderiam ajuizar ações contra ele, pleiteando
seus possíveis direitos na agência de direito administrativo.
Como partes interessadas, as agências de direito a ele subordinadas teriam a
incumbência de sugerir ao comitê gestor de finanças a edição de leis e normas de
procedimento, ferramentas para se tornarem rápidas e justas.
Com o governo dividido por assuntos, por itens de prestação de serviços,
seria fácil aquilatar o desempenho de seus vários órgãos. Tanto a secretaria da
Receita Federal como as agências de direito passariam a ser avaliadas pelo seu
desempenho. Seu julgador final não seria nem mesmo o comitê gestor de finan-
ças, mas o povo, que renovaria, ou não, o mandato outorgado aos partidos com
poder de representação.
Importante ressaltar que, além de funcionários e diretores de empresas pú-
blicas, também os membros dos comitês poderiam ser condenados pela agência
de direito administrativo no respeitante a ressarcimento por danos causados por
procedimentos culposo ou doloso que tivessem gerado prejuízo ao erário público.
A condenação seria sempre pecuniária porque, evidentemente, a condenação pela
prática de crime seria da alçada da agência de direito penal.

153
P. Garaude

No caso de mandatários eleitos, seria recomendável o aumento no número de


votos dos juízes incumbidos de prolatar a decisão, tanto para a condenação como
para a absolvição, como sugeri no capítulo sobre o procedimento.

154
O Dogma dos três poderes

Agência de direito penal e agência


de administração penitenciária

N o direito penal, a condenação pode consistir na privação de liberdade do


infrator, ou pena alternativa. A vítima não é ressarcida pela sentença condena-
tória ao delinquente. O interesse de agir é o da sociedade e consiste em segre-
gar, ressocializar e dissuadir a delinquência. A demora na aplicação da lei é uma
enorme diminuição de sua função dissuasória, ainda mais importante do que os
dois outros objetivos. O medo de condenar um inocente está tornando impunes
os culpados.
As atividades de prevenção, combate e investigação de crimes, como também
o julgamento e a punição de infratores, pelo nosso projeto de buscar a interação en-
tre deliberação e execução, ficariam sob a coordenação e administração do comitê
gestor de segurança. Discorrerei no capítulo seguinte sobre a grande reforma que
entendo necessária nessa área. Aqui, exporei minhas sugestões para a agência de
direito criminal, cuja incumbência seria a de julgar e aplicar penas aos infratores.
Há a necessidade de uma profunda mudança nas vetustas regras atuais, supe-
radas em função do desenvolvimento tecnológico, social e cultural.
Com a unificação da polícia investigativa e do Ministério Público, o inquérito
seria feito sob a presidência do promotor incumbido de oferecer a denúncia, o que
agilizaria sua tramitação e o próprio processo judicial, instruído com provas colhidas

155
P. Garaude

desde o início, sob a supervisão do promotor. O formalismo e o próprio contraditório


atual na fase de inquérito passariam a ser dispensáveis.
O objetivo da fusão entre polícia e Ministério Público em um só órgão, sob co-
ordenação una, é plenamente justificado no sistema proposto, pois ambos, além de
militarem na área de segurança, teriam tarefas comuns e complementares na área
de investigação de autoria de crimes, em matéria probatória e acompanhamento
judicial, que justificam o trabalho conjunto.
Evidentemente, a unificação dos órgãos não impediria a existência de funções
e carreiras diferentes, como já existe na polícia civil a de detetive ou investigador é
diferente da carreira de delegado.
A fusão permitiria a agilização e simplificação do inquérito policial, com a co-
leta de provas de maneira menos formal, supervisionada, desde o início das investi-
gações, pelo promotor-chefe ou outro promotor por ele designado para presidir o
inquérito, oferecer denúncia e acompanhar o processo, até seu final.
O delegado, por sua vez, teria função menos burocrática, mais investigativa,
coordenando essa atividade entre seus subordinados.
A denúncia só seria apresentada quando o promotor, obrigado à isenção tanto
quanto o juiz, estivesse convencido não necessariamente da autoria do crime, mas
da possibilidade de condenação e viabilidade probatória.
O inquérito conteria apenas os laudos periciais, os documentos e os depoimentos
que poderiam ser resumidos, transcritos pelos policiais que os colhessem, não neces-
sariamente assinados pelos depoentes, já que não teriam qualquer valor probante.
A principal consequência disso seria a desburocratização das investigações na
fase do inquérito, a diminuição do formalismo, pois a denúncia significaria apenas
a opinião fundamentada do promotor de Justiça quanto à existência, à prática e à
autoria de um crime. Apenas os depoimentos colhidos na fase judicial, na presença
do advogado do réu, sob condições de segurança e imparcialidade, seriam consi-
derados pelo juiz.
Como disse, deixariam de existir os recursos e, consequentemente, os tribunais
de Justiça, como atualmente. A Magistratura seria dividida em Juízes de primeiro,
segundo e terceiro grau.
Assim como sugerido no procedimento civil, o julgamento dos crimes cuja
pena fosse igual ou inferior a dois anos, com possibilidade de conversão em pena
alternativa, ficaria a cargo de um único juiz. Nos casos de penas de mais de dois, até
quinze anos, a decisão do juiz instrutor dependeria de confirmação por outro juiz de
segundo grau e a manifestação de um desempatador, se necessário.

156
O Dogma dos três poderes

Seria como se houvesse recurso automático “ex oficio” obrigatório a outro


magistrado, que funcionaria como revisor de instância superior. Havendo discre-
pância quanto à culpabilidade, um terceiro juiz de graduação ainda mais alta seria
convocado para desempatar, independentemente de provocação.
A desnecessidade de recursos, posto a decisão ficar sujeita, automaticamente,
à revisão por um segundo juiz, evitaria chicanas, procedimentos que tomam tempo
do judiciário, com o objetivo de impedir a aplicação da lei.
Crimes sujeitos a penas de mais de quinze anos ficariam a cargo de um colegiado
misto, formado por juízes e especialistas, em substituição ao ultrapassado júri.
O conselho de jurados justificou-se na História pelo princípio, totalmente su-
perado, do julgamento de iguais, por iguais. Isso remonta à época da divisão da
sociedade entre nobres e plebeus.
Então, os juízes eram fidalgos da Corte e o princípio do júri foi instituído sob
a suposição de que iguais deveriam ser julgados por iguais. Hoje, isso não faz qual-
quer sentido.
Os juízes são pessoas comuns, iguais a todos os outros cidadãos. Não há razão
plausível para excluí-los de julgar, pelo pressuposto inicial de elitismo. Ao contrário,
sua vantagem seria a especialização, inexistente para os não versados, não afeitos a
problemas que não são de sua alçada e conhecimento.
Jurados não são os melhores julgadores, por lhes faltar, no mais das vezes,
critérios de isenção, imunidade a discursos emotivos e a técnicas de convenci-
mento.
Ademais, por não estarem a par da legislação, os jurados limitam-se a res-
ponder certas perguntas com um sim ou não maniqueístas, limitativos. A pena é
imposta e quantificada pelo juiz, cabendo aos jurados uma participação secundá-
ria, custosa, onerosa à sociedade e aos cidadãos, em geral convocados contra sua
vontade, obrigados a deixar seus afazeres perdendo dias de trabalho ou lazer, sem
qualquer remuneração.
Muito melhor seria se, em vez de júri, nos casos de crimes cujas penas pudes-
sem chegar a quinze anos (???) ou mais — uma ampliação ao conceito atual de
crimes contra a vida —, o julgamento ficasse a cargo de um colegiado composto
por dois juízes e por especialistas em medicina legal, criminologia, psicologia e
psiquiatria.
Os depoimentos de testemunhas seriam tomados por qualquer um dos dois
juízes togados sem a necessidade de presença dos demais, mas poderiam ser repe-
tidos a pedido de qualquer um dos membros do colegiado.

157
P. Garaude

A audiência de instrução e julgamento poderia ser realizada sem a presença


do réu (para não haver qualquer tentativa de intimidação), mas com a presença
dos julgadores ou seus substitutos, além do advogado de defesa e do promotor. A
cada um deles seria dado o prazo de 30 minutos para ler ou expor verbalmente suas
razões. Terminada a fase de exposição, apenas os julgadores permaneceriam, em
local fechado, para deliberar sobre a pena. Não havendo consenso, seriam elabora-
das duas propostas e submetidas à votação, ganhando a mais votada. Em hipótese
alguma os julgadores poderiam se ausentar do recinto sem ter proferido a decisão,
tal como ocorre em sessões do júri, em alguns estados americanos.
Os especialistas não juízes que fossem integrar o colegiado julgador deveriam
ser obrigados a ter dedicação exclusiva, admissão por concurso e cursos de especia-
lização em criminologia com frequente atualização. Aliás, criminologia deveria ser
incluída nos cursos de direito penal, neurologia, psiquiatria, psicologia e sociologia,
tal a importância de seu estudo, causas, meios de prevenção e tratamento.
Defendo que caiba ao promotor a decisão de manter ou não a prisão tem-
porária, não apenas quando houver flagrante, mas também em caso de ameaça à
segurança pública, tanto pela natureza do delito como em função de reincidência
do infrator, ou ainda quando julgar importante a preservação de provas.
O pedido de relaxamento da prisão poderia ser feito ao promotor por qualquer
advogado do detido, devendo a resposta, afirmativa ou negativa, do promotor ser
dada por escrito, em quarenta e oito horas após seu recebimento. Se negativa,
poderia, ainda, por iniciativa do advogado do preso, ser submetida a um juiz de
plantão para nova apreciação.
A partir da denúncia, a decisão sobre a manutenção da prisão ou seu relaxa-
mento ficaria a cargo apenas do juiz de instrução, mas, nos casos mais graves, de-
veria haver a manifestação de pelo menos dois juízes, e ainda um terceiro, em caso
de empate de votos entre os dois primeiros.
Diferentemente do que ocorre hoje, também sugiro que o apenado saia total-
mente da jurisdição judicial assim que transite em julgado a decisão, passando todo
o gerenciamento de sua situação presidiária para o âmbito da agência de adminis-
tração penitenciária e de proteção social.
Essa agência, também funcionando como órgão subordinado ao comitê gestor
de segurança, seria, por sua vez, subdividida em juntas.
As juntas penitenciárias ficariam incumbidas de administrar as penas unificadas
de certo número de detentos. Vice-versa, todo apenado ficaria submetido a uma
única junta penitenciária.

158
O Dogma dos três poderes

Cada preso teria seu prontuário unificado, informatizado, com a juntada de


todos os processos julgados, informações sobre sua vida pregressa e cópias das
principais peças de processos em andamento contra si, em pastas infográficas indi-
vidualizadas, que ficariam sob os cuidados da junta a que ficaria subordinado.
Como consequência desse sistema, a junta passaria a tratar os presos indi-
vidualmente, mas de forma integral, não apenas por um crime, mas por sua vida
pregressa, seu comportamento na prisão e pelos traços de personalidade, passando
a ser de sua incumbência exclusiva a administração da pena, a possibilidade de con-
ceder benefícios, a conversão do tipo de pena a outra modalidade, quando julgasse
conveniente.
Independente de provocação, as juntas passariam a fazer avaliações periódicas
quanto ao comportamento do apenado, acompanhamento de cursos sugeridos,
trabalhos realizados e outros aspectos relacionados, para o fim de concessão ou não
de benefícios, inclusive a liberdade condicional.
Como forma de diminuir as penas, a junta poderia determinar a realização de
tarefas, cursos de alfabetização, profissionalização, cidadania e tratamentos psico-
lógicos, além de outros procedimentos ressocializantes. Sua competência iria, inclu-
sive, até o fim do período de liberdade condicional.
Finda a pena, o prontuário seria colocado em arquivo bem organizado, para o
fim de ser reutilizado no caso de reincidência em qualquer outro delito…
A eficácia das juntas seria acompanhada pela agência de administração peni-
tenciária e proteção social, no que diz respeito à consecução de metas e parâmetros
e a desta, pelo comitê gestor de segurança.
Defendo, também, apesar da grande polêmica existente sobre o assunto, que
a junta penitenciária, quando constatasse a total impossibilidade de ressocialização
do apenado, o declarasse “delinquente irrecuperável”.
Declarada essa condição, seria procedida a execução do preso, de forma sumá-
ria e indolor. O sofrimento de um doente social irrecuperável e seu custo na prisão,
para a sociedade, não se justificam.
Não seria correto aplicar-se o termo pena de morte porque, na verdade, elimi-
nado, o preso não cumpriria qualquer pena. A verdade é que um indivíduo patologi-
camente antissocial, desprovido de qualquer possibilidade de sentir compaixão pelo
próximo, se considerado incurável, não tem razão qualquer para sofrer na prisão.
Sou dos que acredita existir pessoas — não reconhecidas por exteriorizações físi-
cas como pensou Lombroso, mas pela manifestação inequívoca decorrente de análise
de conduta anterior — que sofrem de uma variada gama de psicoses, patologias

159
P. Garaude

antissociais. Entre essas pessoas algumas são, além de prejudiciais ao convício so-
cial, totalmente irreversíveis à normalidade comportamental, pelo menos em função
de nosso atual grau de conhecimento.
Pessoas são irrecuperáveis se, além de praticar o delito, o fazem sem qualquer
compaixão. Há um número significativo de pessoas que matam, sequestram, estu-
pram, sem sentir o mínimo remorso, ou pena, sem demonstrar arrependimento,
amor, respeito ao próximo. São incapazes de se colocar na posição da pessoa que
está sofrendo. Uma patologia clara.
Tais indivíduos, até que a ciência desenvolva um remédio eficaz que possa mu-
dar seu caráter, não devem voltar a viver no seio da sociedade, pois, sabidamente,
reincidirão. Também não há por que permanecerem presos pelo resto da vida, ou
boa parte dela. Nada podem aprender na cadeia, senão o aperfeiçoamento e o
ensinamento de métodos criminais cruéis e desumanos. Seu convívio com outros
delinquentes será pernicioso. Nada aprenderão, mas irão transmitir, ensinar todas as
suas mazelas àqueles que, embora fracos de espírito, poderiam ser recuperados.
Ao contrário de cruel, a medida evitaria o desnecessário e prolongado sofri-
mento desses doentes, mantidos presos por anos e anos, sem qualquer possibili-
dade de reintegração social. Um castigo desnecessário, inútil.
Não poucas vezes, somos forçados a tomar decisões desagradáveis, mas, como
diz o ditado, “ao decidir pela preservação da vida de um lobo, poderemos estar
condenando ovelhas à morte”.

160
O Dogma dos três poderes

Melhorar muito a segurança

O sistema vigente deixa-nos à margem de tomar decisões sobre um grande


número de problemas que nos dizem respeito. Somos tratados como cidadãos de
segunda classe, inaptos a opinar quando se trata, por exemplo, de nossa própria
segurança, um valor essencial em nossas vidas.
A rigor não somos consultados sobre nada. Ninguém do governo quer saber o que
pensamos. Não há opções: a polícia, a Justiça, os presídios, são como alguns acham que
devem ser e ponto. Cabe-nos aceitar a decisão não se sabe de quem, gostemos ou não.
É pertinente a pergunta:
Por que não somos consultados sobre as possíveis opções de como o governo
deve gastar nosso dinheiro em segurança interna e externa?
Foi decidido, há não sei quanto tempo, que corremos o risco de sermos invadi-
dos pela Argentina, pelo Uruguai, pela Venezuela, Guiana, ou talvez pelos Estados
Unidos. Outros acham que devemos ser uma potência militar respeitada, seja lá o
que isso significa, ou que benefício nos traria.
Por causa dessa “ameaça iminente de invasão” pela Colômbia ou pelo Pa-
raguai, devemos manter nossas forças armadas treinadas, equipadas, preparadas
para repelir imediatamente a agressão armada alienígena, seja da Bolívia, seja dos
Estados Unidos… É que nunca se sabe o que pode acontecer.

161
P. Garaude

Na verdade, a alegada finalidade dissuasória das forças armadas só é válida


para quem parou no tempo. A Costa Rica aboliu totalmente as suas há mais de cem
anos e jamais foi invadida por seus vizinhos, desde então… Talvez até porque seus
vizinhos deixaram de vê-la como qualquer ameaça, ao contrário do que acham os
arautos da beligerância.
Ora, a possibilidade de uma invasão por um país estrangeiro hoje, no Brasil,
é menor do que a de se ganhar na loteria. Chega a ser não apenas improvável. É
quase impossível. Nenhum vizinho, ou qualquer outro país teria interesse em nos
invadir por terra, mar e ar, se não os agredíssemos primeiro, o que também, sábia e
sabidamente, não temos a menor pretensão de fazer.
Por outro lado, somos incomodados diariamente com a preocupação de ser-
mos — nós ou nossos familiares e amigos — assaltados, roubados, assassinados,
sequestrados, levados insidiosamente a consumir drogas por traficantes bem trei-
nados.
A pergunta agora pertinente é a seguinte: “Contribuinte, você quer que o di-
nheiro de seu imposto seja gasto com melhorias na prevenção e combate ao crime,
ou na prevenção de uma agressão externa pela Argentina, por Cuba, ou pelos Es-
tados Unidos? A obviedade da resposta é manifesta e seria assim decretada, se nos
fosse dada a possibilidade de decidir.
A delinquência está para a sociedade como o câncer ou a doença cardiovascu-
lar está para o indivíduo. Nos espreita na esquina, hoje, amanhã, daqui a um ano ou
dois, quem sabe? A violência e a criminalidade são ameaças verdadeiras, presentes,
extremamente preocupantes. Devem ser combatidas sem tréguas, na busca de vaci-
nas efetivas contra suas causas e remédios eficientes para suas consequências.
Não há hoje, como deveria haver, guerra declarada contra o inimigo pre-
sente: a criminalidade. No entanto, estamos preocupados com um improvável
inimigo futuro…
A delinquência é combatida de maneira desorganizada, mal-planejada e execu-
tada sem recursos financeiros suficientes, sem estudos mais aprofundados de suas
causas e consequências, trazendo indefinições importantes, omissões imperdoáveis.
A definição de responsabilidades, na área de Segurança, é atabalhoada, confusa,
inadequada, quando em nenhum outro segmento é tão necessária a unicidade de
comando, planejamento e ação.
O legislativo tem a incumbência de elaborar a política geral, as leis definidoras
dos crimes, das penas, do procedimento de investigação, da instrução processual,
do julgamento e do regime penitenciário. Ao executivo estão afetos a prevenção,

162
O Dogma dos três poderes

o combate, a investigação de autoria, as prisões, as casas de detenção, as peni-


tenciárias. O Ministério Público tem a obrigação de fazer a denúncia, acompanhar
o processo, produzir provas e desempenhar as funções acusatórias na defesa da
sociedade. O judiciário tem parte dele incumbida de julgar a inocência ou culpabi-
lidade dos infratores, aplicar penas, reduzi-las, administrá-las e acompanhar o seu
cumprimento, até o fim.
Isso em teoria, porque na prática a confusão é bem mais generalizada.
Na verdade, como sempre, o executivo legisla muito mais que o legislativo
e é mais importante na vida do preso condenado do que o judiciário. A confu-
são de atribuições começa na delegacia, passa pelos fóruns e termina na peni-
tenciária. A polícia prende, a Justiça solta… é a explicação esfarrapada para a
existência de ladrões atuando em plena luz do dia, sob o olhar desesperançado
da população.
A divisão de atribuições produz uma indefinição de responsabilidade, um legis-
lativo amorfo e omisso, sem conhecimento específico para fazer a lei, e um judiciá-
rio não suficientemente especializado. Muitos juízes que detestam a área do crime
têm, na aplicação da lei em área da qual não gostam, excelente justificativa para a
sua ineficiência.
As normas criminais são antigas, desatualizadas e difíceis de serem mudadas
por um legislativo despreparado, que não prioriza objetivos, nem formula qualquer
política coerente para a área. O executivo gasta bilhões com a desnecessária segu-
rança externa — no caso do Brasil mais de 20 bilhões de reais por ano — e migalhas
com uma polícia despreparada e mal-equipada.
As polícias, tanto a civil quanto a militar, têm sua organização e funcionamento
submetidos aos executivos estaduais, cujas verbas para mantê-las estão muito
aquém das reais necessidades.
A polícia prende, o judiciário solta, e todos jogam a culpa um no outro, pela
mais completa ineficiência gerencial no combate à criminalidade.
Todo o trabalho, que envolva definição de objetivos, planejamento, organi-
zação, formulação e execução da política contra o crime, deveria ficar a cargo de
um comando único e específico, eleito pelo povo, com sua eficiência e probidade
julgados e cobrados, em eleições periódicas.
No sistema de prestação de serviços de utilidade pública, como proponho,
haveria fiscalização, não só da eficiência como da agilidade do procedimento da
acusação criminal, sem diminuir o direito de defesa do acusado, a quem deve ser
assegurada assistência de advogados e a isenção total dos juízes.

163
P. Garaude

A mídia e o povo estariam evidentemente atentos ao desempenho dos eleitos


para cuidar só desse assunto, sem lhes dar pretexto para justificar maus resultados
e atribuir responsabilidade a outros centros de decisão.
No sistema atual, essa cobrança é longínqua, sem alvo.
Naquilo de atribuição do judiciário, ou seja, a determinação da culpabilidade e
das penas aos infratores, teríamos não apenas assegurada a isenção e independên-
cia do juiz, mas também a cobrança de seu desempenho. Hoje, isso é timidamente
exercido, no Brasil, pelo Conselho Nacional de Justiça, cujos poderes são limitados,
não submetidos a qualquer crivo de aprovação ou desagrado.
Em minha sugestão, o comitê gestor de segurança teria toda a responsabi-
lidade legislativa e administrativa sobre o problema da criminalidade. Além de
prover a defesa contra improváveis agressões externas, dando a esse assunto a
importância reduzida que merece, teria sob sua responsabilidade o objetivo de
prevenir, investigar a autoria de delitos, denunciar, julgar, punir e excluir os infra-
tores do convívio social. Um alfabeto iniciado com “a” e terminado com “z”, mas
restrito ao tema.
Só para deixar consignado, gastamos hoje, no Brasil, mais de cinquenta por
cento das despesas realizadas na América do Sul com forças armadas. Isso repre-
senta mais de 20 bilhões de reais por ano (dados de 2008). Muito dinheiro para um
país pobre, como o nosso.
Militares hoje aprendem, por anos, doutrinas, estratégias de combate, teoria
e prática da guerra ao inimigo inexistente. São feitas manobras de treinamento, ao
custo de milhões de reais, treinamentos de simulação de um ataque estrangeiro,
por terra, mar e ar, como se estivéssemos a ponto de sermos invadidos. Mas pou-
quíssimo é gasto contra o inimigo presente, real: o criminoso. Uma inversão de
prioridades, imperdoável.
Há de haver planejamento, treinamento, estudo, compra e desenvolvimento
de equipamentos e armas modernas na prevenção e no combate o crime, este sim,
de real importância, verossímil, perigoso.
Minha sugestão não é a eliminação das forças armadas, mas a sua unificação
com as polícias militares e seu aproveitamento integral, nos momentos de paz, que
nos últimos cem anos representam noventa e oito por cento deles.
É evidente que todos deveriam ser reciclados e treinados para assumir essas no-
vas incumbências. Obviamente, também, a adaptação seria feita progressivamente,
com a inclusão de matérias ligadas à segurança e prevenção ao crime, nos cursos
de formação de oficiais das forças armadas. Em um primeiro momento, as polícias

164
O Dogma dos três poderes

militares seriam integradas a elas, para o início de operações conjuntas, não deman-
dantes de longa preparação.
A bem da economia e da eficiência, deveria ser sumariamente eliminado o inútil
serviço militar obrigatório, de origem medieval, passando o ingresso nas forças arma-
das a ser feito apenas por concurso, com a total profissionalização e a realização per-
manente de cursos de atualização e reciclagem para suas várias áreas de atuação.
Em outro capítulo, sugiro o aproveitamento de jovens no serviço do bem-estar
social, muito mais proveitoso, tanto para a sociedade como para os que dele quises-
sem participar, voluntariamente.
Exército, Marinha e Aeronáutica passariam a cuidar da prevenção — não da
investigação — de delitos e crimes, da segurança das fronteiras, do ar e do mar, não
apenas para impedir a remotíssima possibilidade de invasão por nossos vizinhos,
mas para evitar os vivíssimos crimes de contrabando, tráfico de armas, pirataria,
o terrorismo e qualquer outra forma de delinquência hoje praticada com enorme
desenvoltura. Hoje, por força de lei, os militares não podem, senão quando convo-
cados, atuar na defesa da sociedade agredida de forma tão sórdida, como o é, pelos
agentes do crime.
Na otimização de suas funções, passariam também para a incumbência das
forças armadas, com a absorção dos serviços de salvamento e resgate, problemas
decorrentes de intempéries e desastres naturais.
O trabalho de prevenção, além de dissuasório ao crime, vigiando e impedindo
sua prática, certamente abrange a busca de foragidos, a detenção de infratores e a
obtenção de provas que possam ser úteis à polícia civil, na identificação do autor do
crime e na produção de provas. Mas essa função seria subsidiária, como já ocorre
com a polícia militar a ser incorporada pelo Exército, que, pela sugestão, aproveita-
ria todo o seu efetivo, patrimônio e experiência.
A atividade de prevenção ao crime deve ser militarizada, organizada e plane-
jada. Sua eficiência, em muito, decorre da formação militar e hierarquizada, com
funções definidas e tarefas claras. No âmbito federal, Exército, Marinha e Aeronáu-
tica deveriam realizar, permanentemente, operações de combate ao crime organi-
zado, trabalhando na prevenção ao tráfico de drogas, em busca de armas letais,
cuja simples posse não autorizada deveria ser tipificada como crime autônomo de
prisão inafiançável e pena grave.
Já a área da polícia civil unida ao Ministério Público, não militarizada, deve
manter seu caráter investigativo. Compete-lhe investigar a autoria do delito e usar
serviços de inteligência na sua prevenção. Sua participação pode ser preventiva, mas

165
P. Garaude

essa não é da sua essência. A rigor, ela só deve atuar após a ocorrência de um crime
ou sob sua iminência.
Hoje há confusões de atribuições entre as polícias militar e civil. A divisão é
importante, pois ambas têm finalidades diferentes, mas a distinção deve ficar muito
clara. A militar é preventiva, de combate ao crime. A civil é de investigação. Sua
participação vem depois de consumado um crime, ou quando houver suspeita de
sua ocorrência, de sorte a justificar uma ação preventiva de investigação. Mas, evi-
dentemente, isso não impediria a recomendável realização de operações planejadas
e executadas em conjunto, sempre que conveniente e necessário, pois o comando
de ambas seria o comitê gestor de segurança, ao qual estariam submetidas.
A atividade de Segurança deveria ser, basicamente, federalizada, para que hou-
vesse uma coordenação-geral efetiva no combate ao crime, deslocando maiores
contingentes para as áreas em que sua incidência e necessidade fossem maiores.
A atividade complementar de Segurança caberia aos municípios e ficaria restrita
ao policiamento de trânsito, defesa do patrimônio, policiamento de escolas, eventos,
museus e outros logradouros públicos, além de um importante segmento de ajuda
aos munícipes, especialmente àqueles parcial ou totalmente incapazes, que necessi-
tam de auxílio e acompanhamento. Sua função subsidiária à Segurança seria a sua
obrigação de obter informações e informar quando ocorresse a prática de um delito.
No âmbito federal, minha sugestão é que Exército, Marinha e Aeronáutica se-
jam divididos em zonas sob comandos hierárquicos. No caso específico do Exército,
fundido com a polícia militar, a divisão se daria em zonas, subzonas e distritos, com
jurisdição por áreas.
Na reestruturação de funções, seria anexada ao comando hierárquico das
forças armadas, a carreira de assistentes administrativos com várias incumbências,
inclusive o registro das infrações criminais. A eles também incumbiria manter, pre-
servar e enviar às forças militares as provas recolhidas pelo pessoal da ativa, com
técnicas modernas como fotos, vídeos, gravações ou outros meios modernos que
deveriam passar a ser admitidos, exceto se expressamente proibidos.
Por seu turno, a polícia civil, dividida em áreas de investigação conforme a na-
tureza do crime, seria acionada logo após a sua ocorrência, para iniciar o inquérito
policial e tomar as devidas medidas de busca e apreensão de provas e identificação
dos culpados.
Evidentemente, há uma lista interminável de crimes complexos que envol-
vem diversas tipificações, mas a especialização de uma equipe não a impediria
de investigar a prática de outros, se conexos.

166
O Dogma dos três poderes

Imagino, para a polícia civil, divisões, subdivisões e equipes, com um número


determinado de componentes. Cada equipe seria chefiada por um promotor-chefe
e integrada por mais quatro ou cinco promotores, cinco ou seis delegados, vinte
detetives e mais alguns auxiliares-gerais ou outros números de funções, mais bem
estudados. Para cada equipe, seria estabelecido certo número de inquéritos, depois
transformados em denúncias, ou não.
Importante seria a transformação da Corregedoria de Polícia em órgão de aten-
dimento ao público, a exemplo do que ocorre nas empresas.
Qualquer denúncia contra policiais e promotores seria objeto de exame por esse
serviço, estruturado para agir com todos os instrumentos necessários à apuração de
eventuais irregularidades, inclusive a demora na apresentação de denúncias.
Concluindo, deveria ser feita uma grande reestruturação na área governamen-
tal ligada à Segurança. É preciso tornar o crime um perigo, um risco considerável,
não para o cidadão de bem, mas para o delinquente.

167
P. Garaude

A injusta (e consagrada) teoria


da suplementação

C ontinua politicamente correto o ideário municipalista. É bonito e parece justo o


princípio de que o governo municipal deve fazer tudo o que puder, o regional o que
aquele não pode fazer e o nacional apenas o que restar.
A Federação, historicamente, é baseada nesse princípio. Municípios delegam
poderes a estados, estes à União. Chamarei esse enfoque de teoria da suplementa-
ção. Seu princípio é o de que a esfera de governo superior só deve agir para suple-
mentar o que a inferior não tem condições de realizar.
Essa situação tem consequências tributárias importantes, porque envolve a ne-
cessidade de municípios terem, para fazer tudo o que puderem, seu próprio orça-
mento, os estados suas próprias fontes de receita e a união também.
Ocorre que a lógica da suplementação poderia ser mesmo muito justa e dese-
jável se fôssemos iguais. Em Rhode Island, nas proximidades de Nova York, onde a
renda per capita anual chega a mais de duzentos mil dólares, o imposto municipal
é quase nulo. Ali tudo está pronto. As ruas são de concreto. Há água, luz, gás, te-
lefone, internet wireless. Todas as conquistas da civilização estão lá instaladas. Há
bem pouco a fazer além da conservação dos parques e jardins, executada com o
emprego de modernas máquinas que requerem pouca mão de obra. A remoção da
neve no inverno seria outro problema sério, não fosse feita por máquinas computa-

168
O Dogma dos três poderes

dorizadas de última geração. Em tese, com um por cento da renda dos moradores,
já haveria folga nas contas municipais. Em Quixeramobim, no Ceará, o confisco
de todo o rendimento dos moradores não seria suficiente para pagar o salário dos
(poucos e malrremunerados) médicos e professores municipais. Em Rhode Island,
esses serviços são desnecessários porque não há uma só pessoa que não tenha
plano de saúde e pouquíssimas crianças estudam nas excelentes escolas públicas.
Há excelentes escolas particulares ao acesso de quase todos os moradores.
Os exemplos extremos foram colocados apenas para demonstrar a injustiça do
sistema, bonito na teoria, injusto na prática. Quem é rico recebe muito mais do que
quem é pobre. O sistema nada faz para diminuir as desigualdades sociais enormes.
Ao contrário, as perpetua. O sistema de suplementação gera círculos virtuosos e
viciosos que se autoalimentam.
O sistema bem-concebido, na verdade. parte de um individualismo exacerbado
que contraria qualquer ideia de solidariedade, justiça social.
Se houvesse igualdade entre as pessoas, se todas as crianças nascessem em la-
res bem-formados, recebessem comida e afeto, seria plausível, talvez recomendável,
que a comunidade menor fizesse tudo o que pudesse e assim sucessivamente. Mas
não é assim. Não somos assim.
Pela teoria da suplementação, na verdade, pouco damos. O objetivo é que o
contribuinte veja e saiba que o grosso do imposto que paga será gasto por perto,
quase sob suas vistas, de preferência com ele mesmo. O imposto municipal estaria
sendo revertido na escola para o filho do contribuinte, no posto de saúde, se ficasse
doente, na segurança contra a possibilidade de ser roubado, na justiça de cobrar a
devolução de uma mercadoria não paga e assim por diante. Toda a contrapartida
bem próxima de seus olhos. Ele, contribuinte, sempre o beneficiário, direto ou indi-
reto, dos tributos que paga.
Essa circunstância, da proximidade entre pago e recebido, a princípio, é reco-
mendável, mas egoísta, porque se limita ao “toma lá dá cá”: nada devo fazer se
não receber algo em troca.
Na realidade, essa posição, sobre ser egoísta, ignora e despreza as diferenças,
maiores do que gostaríamos. Ela não é a opção da solidariedade, da fraternidade e
do amor, necessários a uma sociedade desejável.
Há pouquíssimos estudos sobre a divisão de arrecadação e as atribuições entre
os níveis de governo. Os existentes, em geral, partem de premissas dadas como
verdadeiras e, por isso, não questionadas. Um dogma, como todos, pouco inteli-
gente.

169
P. Garaude

Enfocando os níveis de atuação do governo, é possível haver solução mais


justa. A alegada necessidade de uma divisão de baixo para cima, entre outros males,
gera custos desnecessários, um sistema tributário complexo, confuso e prejudicial
a toda a sociedade, com impostos para cada um dos níveis do governo, pois todos
devem ter fontes autônomas e próprias. Não há sentido em cobrar imposto sobre
os serviços baseado no faturamento de quem já paga o imposto de renda, em tese
mais justo. Tampouco haveria razão para brigas entre estados produtores e consu-
midores em relação a créditos de cada um, na partilha do imposto sobre a circulação
de mercadorias e serviços, ou sobre o valor agregado.
Na verdade, o contribuinte jamais é consultado sobre as opções. Nosso grau
de participação e decisão, na área tributária, é simplesmente inexistente. Existem
alternativas muito superiores àquela hoje em vigor.
Gostaria que houvesse um partido político levantando a bandeira da justiça
social viável, possível, real, atuando na área do comitê gestor de finanças. Sua
proposta passaria também por uma enorme melhoria do sistema tributário, para
torná-lo menos pesado, agressivo, menos sonegável, não prejudicial à paz e ao
bem-estar das pessoas, além do necessário.
Muitos problemas poderiam ser solucionados se a partilha de todo o imposto
arrecadado fosse feita no final, em sua destinação, já que seria todo dirigido a um
caixa único e, daí, no mínimo, distribuído a cada região administrativa, conforme o
seu número de habitantes.
A unificação das várias caixas de entrada de dinheiro para o governo sim-
plificaria muito a vida do contribuinte, reduzindo muito o número de impostos e
o fundo único serviria para eleger, com mais eficiência, as verdadeiras priorida-
des, sem prejuízo de uma conveniente descentralização administrativa, quando
possível.
Estamos errando duplamente. Dividimos mal e cobramos de forma ainda pior
os tributos devidos ao governo. Perdemos o foco. Fomos vitimados pelo progresso
econômico engessado por um modelo ultrapassado e conceitos que não resistem a
uma análise aprofundada.
Não é ao arrecadar, mas ao dividir, que se faz justiça social.
O ideal seria que os tributos, ou boa parte deles, fossem destinados a um
fundo para ser usado na educação, saúde, segurança, planejamento familiar dos
moradores das regiões mais pobres, pelo menos na mesma proporção das ricas,
o que o sistema de suplementação, ancorado no regime tributário esdrúxulo que
adotamos, está muito longe de conseguir fazer.

170
O Dogma dos três poderes

Rever a tributação

A falta de cobrança da sociedade no que diz respeito à eficiência do governo


deixa marcas especialmente amargas nas áreas de segurança, de justiça e tributá-
ria. Nesta, a área fiscal, o sistema vigente está muito abaixo do aceitável. De seus
vários objetivos, como prover o governo de recursos, fazer justiça social, dificultar
a sonegação e custo baixo, só o primeiro item é atingido ao custo de sacrificar os
demais escopos.
Não se consegue fazer qualquer justiça tributária. O sistema é mais furado do
que peneira, para tentar impedir a passagem da água podre e fétida da sonegação.
O requisito eficiência é ignorado pelos formuladores da lei, que pouco se importam
se os dispositivos legais se limitem a mil ou atinjam cem mil. Já não é possível contá-
los. O custo de arrecadar, tanto para o governo como para as empresas e indivíduos,
é desmesuradamente alto, com milhões de pessoas trabalhando em algo que não
produz um só centavo de riqueza real, produtos e serviços úteis.
No modelo de governo proposto de divisão da administração por áreas, a parte
tributária ficaria a cargo do comitê gestor de finanças, possibilitando algo inusitado:
a cobrança ao governo no desempenho dessas funções.
Os partidos concorrentes a esse segmento certamente teriam propostas
mais eficientes para a arrecadação de impostos, mas gostaria que um deles, pelo

171
P. Garaude

menos, encampasse um programa próximo ou semelhante àquele que defendo


com entusiasmo.
Os defeitos do sistema tributário atual são tantos que criticá-lo seria tão co-
varde e inócuo quanto bater em morto. Quase nada nele é bom. Acho sua for-
mulação péssima, pois desconsidera quatro conceitos fundamentais: insonegabili-
dade, universalidade, simplificação e justiça na distribuição dos resultados. Defino
os conceitos:
Insonegabilidade é dificultar ao extremo a sonegação. Universalidade é a cen-
tralização de todos os impostos em um caixa único. Simplificação é a total elimi-
nação de impostos declaratórios e a geração do imposto em poucos locais, por
informações que independam de burocracia e subjetividade. Justiça na distribuição
dos resultados é a distribuição do valor arrecadado pelo número de habitantes e
pelo diagnóstico das necessidades de cada um.
Defendo um sistema muito mais simples, justo e barato na cobrança de tri-
butos. Os arautos da teoria de complicar o que pode ser simples, por certo não
concordarão com meus pontos de vista. Suas costumeiras teses lastreadas em
premissas erradas, como a de que impostos “diretos”, como o incidente sobre
a renda, são mais democráticos do que os “indiretos”, sobre o consumo, não
resistem a uma análise mais profunda, que se recusam a fazer. Na verdade, essa
nomenclatura está invertida.
Sem consumo não haveria renda, nem tributo. No caso do sistema tributário,
a demagogia engoliu a análise pormenorizada e fria. Ninguém está preocupado em
identificar as origens para chegar às conclusões.
A discussão necessária é sobre a indagação: quem, de verdade, paga os im-
postos?
Por certo não serão os que o recolhem na boca do caixa, mas aqueles que
serão onerados com seu custo. Portanto, a pergunta correta seria: de que bolso os
tributos vão realmente sair?
Se o chamado contribuinte consegue repassar, ou passar adiante, o imposto
recolhido, o fato de ser o agente arrecadador não significa tenha sido ele o onerado
com o custo do imposto. Foi simplesmente um posto de arrecadação.
Vamos fazer uma primeira análise simplória considerando a lata de cerveja
vendida no supermercado: quem fornece o alumínio vai repassar o imposto que re-
colheu a seu preço de venda; quem dobrou e cortou a lata vai acrescentar o tributo
em cada unidade pronta, obviamente. A indústria de bebidas vai também acrescer
o custo final da lata ao preço do produto, ou seja, vai repassá-lo ao supermercado,

172
O Dogma dos três poderes

que vai repassá-lo ao consumidor. Logo, todos os impostos recolhidos durante a


cadeia de produção da lata de cerveja irão recair sobre o consumidor final, tanto o
do conteúdo como o do continente. Isso é bastante óbvio e todo mundo sabe.
O que não parece óbvio é que, além desses impostos chamados “indiretos”,
mais uma dezena de tributos também vão ser incorporados ao preço de venda,
antes da cerveja ser vendida ao consumidor.
Imagine que o salário do diretor e dos funcionários das indústrias de alumínio,
de latas, da cerveja e do supermercado foram onerados com todos os encargos
sociais, como INSS, PIS, Cofins, além do imposto sobre a renda, o de serviços, o de
valor agregado e outros tantos.
Todos esses tributos e encargos, inclusive o imposto sobre a renda, da empresa,
dos diretores, dos funcionários, retidos de seus salários, foram levados em conta e tam-
bém incorporados ao custo do produto e, consequentemente, a seu preço de venda.
O que normalmente não se vê é que isso ocorre com todos os tributos, sem ex-
ceção, inclusive o imposto de renda, considerado não incidente sobre o consumo.
Há o caso bem elucidativo do médico que pergunta ao cliente se vai querer
recibo ou não. Se o cliente optar pelo recibo, terá de pagar pelo acréscimo do valor
do imposto que, do contrário, o médico sonegará. Se não sonegar, quem vai pagar
não é ele, médico, mas o seu cliente, o consumidor de seus serviços.
Mesmo quando rigorosamente honesto, o médico pré-estima o valor do imposto
ao definir o que cobrará pela consulta, consciente ou inconscientemente. Ao fixar o
valor da consulta, levará em conta seus custos como o consultório, o salário da recep-
cionista, outros tantos itens e, também, o imposto de renda que terá de pagar.
Quando consulto um médico, constituo um advogado, ou contrato um enge-
nheiro sou eu, consumidor, quem vai pagar seus honorários. É querer tapar o sol
com a peneira, supor que, quando fixam seus honorários, médicos, advogados,
engenheiros, deixam de incluir o imposto de renda que terão de recolher se hones-
tamente o fizerem.
Só não o farão se pretenderem, como é comum, sonegá-lo. Mas não quero
incriminar só os profissionais liberais. Isso vale também para cabeleireiros, encana-
dores, técnicos em software, autônomos de toda a sorte. No caso do assalariado, a
situação é um pouco mais complexa, mas o resultado é igual. Quem vai pagar seu
imposto de renda também é o consumidor.
Senão vejamos: quando uma indústria admite um técnico em manutenção
oferece um salário de x. O assalariado, ao saber que receberá x, sabe, perfeita-
mente, que, na verdade, receberá x–y, sendo y o valor do imposto e da Previdência

173
P. Garaude

Social. Seu salário líquido será x–y. É isso o que de fato vai receber. Ao aceitar o
salário que receberá, sabe que sofrerá descontos de INSS e imposto sobre sua
renda. Logo, vai pedir um salário maior do que pediria se não fosse onerado com
esses encargos.
Ao vender seus produtos ou serviços, a empresa, por sua vez, vai levar em
conta o custo do salário do técnico de manutenção, que para ela foi x, e não x–y.
Evidentemente, o custo do imposto de renda do assalariado será repassado ao preço
do produto ou serviço.
A empresa também repassará todo o imposto sobre a renda de pessoa jurídica
e da pessoa física de seus sócios para o consumidor. Novamente vale o raciocínio:
quando fixar o preço de venda, a empresa levará em conta o lucro que precisa ter.
Ao tentar quantificá-lo, a empresa prevê o quanto vai pagar de imposto para calcu-
lar o quanto vai lhe sobrar, de fato: seu lucro.
Por sua vez, o investidor, aquele que comprou ações dessa empresa, ao gerar
sua expectativa de retorno, levará em consideração, também, o imposto de renda
que vai pagar sobre o que receber de dividendos. Lá atrás, quem fez o cálculo do
preço a ser cobrado do consumidor levou tudo isso em consideração na hora de
fixar o preço de venda do produto ou serviço. Se não o fez, foi incompetente.
Se a sociedade anônima não der um resultado que remunere adequadamente
o acionista, já descontado seu imposto de renda, ele não vai ter o retorno esperado
e o preço da ação vai cair. Isto, provavelmente, será a desgraça dos diretores das
sociedades anônimas que foram escolhidos para conseguir lucros.
Outra situação seria a do proprietário de imóvel que vai alugá-lo. Na hora de
fixar o aluguel, o valor do imposto de renda que terá de declarar e pagar vai ser
acrescido ao preço, a menos que sua intenção seja a de sonegar. Se acrescentar o
imposto devido ao valor líquido do aluguel, como deveria fazer se for bom adminis-
trador, estará o repassando a seu inquilino.
Enfim, não há dúvidas de que todo o imposto será gerado e pago, efetiva-
mente, pelo consumidor ou usuário, sem exceção. O assunto é tão desprezado
pelos técnicos que vale a pena aprofundar um pouco mais: as considerações.
Quando constituo uma sociedade, ou compro ações de uma sociedade anô-
nima, tenho em vista a rentabilidade do capital que investi. Jamais poderia deixar de
considerar o valor dos impostos que tanto a empresa como eu teremos de pagar.
Se tivesse a informação de que iria me render menos do que uma aplicação
de renda fixa, certamente não faria a compra. E, se aplicar na poupança me render
mais do que em uma aplicação em ações, optarei pela poupança, como é óbvio.

174
O Dogma dos três poderes

Como sei que a empresa cujas ações comprei será tributada e eu também serei
tributado pelo rendimento, tenho a expectativa de que a renda, descontados todos
esses impostos, será conveniente, ou tampouco farei a aplicação.
Quando o acionista compra uma participação societária em uma empresa, sua
expectativa é de que o resultado, ou lucro, após o desconto do imposto de renda
da empresa, seja compensador.
Portanto, a empresa, ao fixar e definir o preço do produto ou do serviço que vai
vender, tem de levar em conta o valor dos insumos, a mão de obra, os impostos e
o lucro que deverá pagar ao acionista, essa última remuneração já descontado seu
imposto de renda, sob pena de frustrar o investimento ou o valor da ação.
Em resumo, ao comprar um produto ou contratar um serviço de uma em-
presa, o consumidor arcará com todo o custo de produção, incluindo nisso todos
os impostos chamados diretos, incidentes sobre a renda bruta do assalariado e dos
diretores — levados em conta quando foram contratados. No preço pago pelo con-
sumidor, além do lucro de todos os envolvidos na cadeia produtiva, estará incluído
também o imposto de renda a ser recolhido pela empresa e também o do acionista,
porque há de haver uma sobra, pois é dela que virá sua remuneração.
Ao contrário do que parece, é sempre, sem exceção, o consumidor quem
paga o imposto de renda. Paga-o indiretamente, mas é ele quem paga. Está
embutido no preço do serviço ou produto, quando o adquirir. E não é mal que
seja assim.
O imposto mais justo é aquele incidente sobre o consumo, diretamente.
Cada vez que como carne de boi, estou diminuindo uma pequena fração do
total de carne disponível. Se não a consumisse, outros iriam fazê-lo. É justo que
pague à sociedade um valor proporcional ao que consumi, pois na confecção de
qualquer produto ou serviço, como no caso da carne, estará entrando água limpa,
energia, sol, solo e “n” outros insumos de propriedade de toda a humanidade
como donos do planeta.
A grande vantagem dos tributos incidirem sobre o consumo é o fato de pode-
rem ter alíquotas diferentes em decorrência da utilidade social maior ou menor do
produto ou serviço. É possível e justo tributar a bebida alcoólica e isentar o remédio,
tributar a gasolina e isentar o diesel usado no transporte coletivo, socialmente me-
nos danoso.
Exceto um pouco mais do que a alimentação básica e o vestuário simples, todo
consumo é opcional. É adquirido por decisão de quem vai consumi-lo, portanto não
é exatamente um imposto, mas uma opção.

175
P. Garaude

Já ouvi pessoas inteligentes dizerem que o imposto sobre o consumo é injusto por
tributar proporcionalmente mais o pobre do que o rico. O raciocínio continua falho.
Se um milionário usuário resolve passar toda a sua vida recluso em um quarto
a pão e sopa, o que é comum, não gastará seu dinheiro e também não o levará
para o túmulo.
Embora sua lucidez seja questionável, é justo que não pague impostos, mesmo
tendo imensa renda. Desperdiçou sua vida, mas não impediu ninguém de usar os
serviços e produtos que poderia ter consumido. Poupando e investindo o que deixou
de gastar, certamente deve ter contribuído para aumentar a produção e beneficiado
todos os demais cidadãos. Seu dinheiro mantido em banco foi emprestado para em-
presários aumentarem sua produção. Seus imóveis serviram de moradia para muitas
pessoas, sem que tenha, nem mesmo, se beneficiado dos aluguéis que recebeu.
Ao contrário, se uma pessoa sem muita renda passa toda sua a vida usando
gasolina em seu carro para se locomover, se empanturrando de cerveja e carne,
deve arcar com o preço da extração e refinação do petróleo, da água limpa, da luz,
do solo, da limpeza do estrume gerado pelas cabeças de gado que consumiu em
sua vida.
Dividir impostos em diretos ou indiretos é apenas definir a forma e a quem
caberá a tarefa de recolhê-los, mas todos vão incidir, direta ou indiretamente, sobre
o consumidor ou usuário, o único que não tem a quem repassar.
O imposto sobre a renda de pessoa física é sempre transferido ao usuário de
um serviço, ou ao consumidor final de um produto. Não há, nem mesmo, exceções.
Há situações um pouco mais complexas que parecem fugir à regra. O lucro na venda
seria um exemplo.
Sem tirar o caráter aleatório — a sorte —, cuja ocorrência não pode ser con-
trolada pelo governo, quando alguém recebe uma grande diferença entre preço
de compra e de venda, seja de imóveis, ações ou outros bens, o lucro do alienante
foi pago pelo comprador. Mas, se o vendedor pretendesse ou precisasse declarar
seu lucro, a margem poderia ter sido menor. Se não o sonegar, situação mais
frequente, o vendedor irá calcular o valor do imposto no momento em que fixar
o preço de venda.
Na aplicação financeira que o investidor faz em banco ou outra instituição in-
termediadora de valores, ele levará em conta o retorno líquido de seu capital. Se o
dinheiro aplicado no banco for emprestado, o tomador do empréstimo arcará não
apenas com o imposto de renda do investidor, mas também o do banco, embutido
em seus custos.

176
O Dogma dos três poderes

Evidentemente, o tomador procurará uma remuneração adequada para pagar


os juros incidentes sobre o capital que tomou emprestado. Seu custo será levado
em consideração quando ajustar o preço de seu produto ou serviço na hora de
vendê-lo, sob pena de insucesso.
Quando o pagador é o governo, como ocorre com as pensões e aposenta-
dorias, a situação ainda é mais esdrúxula. Aí, parece que não há transferência ao
consumidor, mas também há, pois o governo vai cobrar as contribuições previdenci-
árias para arcar com o pagamento do aposentado. E o custo da contribuição vai ser,
como tudo, repassado ao preço final do produto. Enfim, não há hipótese do custo
do imposto, qualquer que seja ele, deixar de ser pago pelo consumidor final. Sua
variação dependerá mais da habilidade dos intermediários na cadeia produtiva para
passá-lo adiante. Se calculou mal e o recolher, como deve, poderá ter prejuízo.
Se, hipoteticamente, deixássemos de consumir energia elétrica, combustíveis,
alimentos, vestuário, enfim, todos os produtos e serviços, não haveria geração de
um só centavo de renda. O consumo é o desaguadouro de todos os tributos.
A somatória de erros do sistema em vários casos tem ainda agravantes: é o
caso da contribuição previdenciária que incide sobre a folha de pagamento, o que
desencoraja a contratação por tornar o custo efetivo do trabalhador bem maior do
que seu salário.
Além de ser sempre repassado ao consumidor, o resultado subjacente é de-
sencorajar a contratação de mão de obra e, via de consequência, desestimular o
consumo e a produção.
O imposto sobre a renda tem, entre todos, o pior dos defeitos: como imposto
declaratório é fácil e convidativamente sonegável.
Imaginava que o problema de sonegação do tributo estivesse ligado ao fator
cultural e que seria bem menor em países desenvolvidos. Concluí que, neles, ape-
nas a legislação é mais rígida, menos tolerante e, mesmo assim, isso não impede a
tentativa de burlar o fisco. Quando empossado, o presidente Barack Obama teve de
enfrentar a renúncia de seis de seus membros do primeiro escalão, por problemas
de sonegação. Dá pra ter uma ideia.
Tanto mais rico o contribuinte, maior a tentação, a possibilidade e a ocorrência
real de sonegação por meio de artifícios contábeis, legais ou não.
Rendas são omitidas, com baixíssima possibilidade de serem descobertas ou de-
tectadas pelo fisco, não obstante seus esforços tecnológicos altamente sofisticados.
Haverá sempre interesses convergentes dos atores da vida econômica em dimi-
nuir a parcela do fisco. Por depender de um processo autoacusatório, ele pode, em

177
P. Garaude

um primeiro momento, ser declarado, declarado a menos ou não declarado, como


fazem milhões de pessoas que vivem na clandestinidade financeira — traficantes,
estelionatários, agiotas, corruptos, exploradores da prostituição, sequestradores, as-
saltantes e ladrões comuns.
Outro erro é achar que o imposto de renda tem finalidade distributiva, ou seja,
quem ganha mais paga mais. A alta tributação do imposto de renda de americanos
e europeus, ao contrário do que se presume, não é a causa de sua igualdade social.
Ela não decorre da porcentagem de imposto que pagam, mas de sua formação
educacional e cultural, muito semelhante.
As grandes discrepâncias de renda existentes em países subdesenvolvidos de-
vem-se à falta de qualificação de milhões de pessoas.
Como os qualificados são poucos, as discrepâncias são grandes e as rendas
também. E isso não é o imposto de renda, progressivo ou não, que vai corrigir, como
jamais corrigiu. Se o trabalho de um engenheiro é útil e rentável para a empresa,
sendo poucos os aptos a desempenhá-lo, seu salário será fixado proporcionalmente.
Quanto maior o imposto de renda, maior será seu salário, para compensar o abati-
mento e adequá-lo ao mercado.
Por outro lado, em países subdesenvolvidos há uma quantidade enorme de
mulheres semianalfabetas, sem qualificação profissional para qualquer outra ativi-
dade, a não ser trabalhar como empregadas domésticas. A menos que seja bondosa
e reconhecida, sua patroa é tentada a não aumentar sua remuneração, pois sua de-
missão, mesmo sendo boa funcionária, provavelmente não fará muita falta. Haverá
dezenas, centenas dispostas a ganhar o mesmo salário.
Se a usina precisar de cortador de cana e receber três candidatos por vaga,
por que pagaria mais a um deles? Afinal, a opção de dois deles será ganhar me-
nos, ou nada.
O imposto sobre a renda não tem qualquer papel distributivo. Quem pode, vai
repassá-lo adiante, e seu custo não tornará o rico mais pobre, nem o pobre mais
rico, apenas diminuirá o poder aquisitivo do consumidor que arcará com todos os
custos tributários.
Milhares de pessoas trabalham para atender e tentar contornar, como pude-
rem, a legislação do imposto sobre a renda e outros de caráter declaratório, um
trabalho totalmente inútil em termos de criação de riquezas, só gerando perda de
tempo, burocracia improdutiva, apreensão, medo, desconfianças, corrupção.
A resposta psicológica ao imposto sobre a renda é péssima. Ele diminui, sem
qualquer vantagem, o índice de felicidade bruta das pessoas. Não estimula o em-

178
O Dogma dos três poderes

preendedor, o investidor, nem o poupador. Antes vem atormentá-los, criando uma


realidade em que são obrigados, muitas vezes, a sonegar pouco, ou muito, para
poder sobreviver. Quando o fazem, viverão o desconforto de poderem ser pegos por
fiscais corruptos ou por um governo indiferente à sua sorte.
O imposto sobre a renda vai ser, sempre, desagradavelmente convidativo à
fraude, omissão, expedientes para diminuir o valor a ser pago, sempre maior do que
o contribuinte gostaria que fosse.
Enfim, um convite aberto ao trambique que a lei tenta, inutilmente, tornar me-
nos possível ou interessante, sem conseguir, pois haverá sempre meios novos e mais
sofisticados para burlá-lo. Um desestímulo permanente à honestidade.
Sendo declaratório, ou seja, autoacusatório e sonegável, o imposto de renda
demanda uma legislação cada vez mais complexa, burocrática, cara, uma fiscaliza-
ção também cara, difícil, corruptível.
A fama de ser um imposto justo deve-se à sua intenção. Mas, como dizem os
realistas, “de boa intenção o inferno está cheio”. Há um fosso enorme entre um
projeto interessante e um resultado pífio, pois o tributo bem-intencionado jamais
conseguiu diminuir a distância entre pobres e ricos, como seria seu propósito.
Só há uma saída para melhorar a distribuição de renda e ela está na boa des-
tinação dos impostos: educação, higiene, saúde, melhoria de qualificação do ser
humano. Não há qualquer outra opção.

179
P. Garaude

Soluções simples, eficientes, justas

S implificar pode ser ingênuo ou sábio, dependendo do caso. Complicar o simples


é o disfarce encontrado pelos que não sabem ou, por comodismo, não se preocu-
pam em distinguir situações.
Uma cobrança possível e necessária, se um dia for implantado o sistema de
divisão do governo por suas áreas de atuação, é uma revolução simplificadora na
forma de cobrar tributos.
O custo de arrecadar, em vários países e, especialmente, no Brasil, tem várias
qualificações adequadas: complexo, injusto, ineficiente, atrasado, irracional, bu-
rocrático, ilógico e outros tantos pouco lisonjeiros. Consequência de todos esses
defeitos, tem um custo desproporcional ao benefício: ocupa horas, dias, anos, do
trabalho de milhares de pessoas, sem qualquer aumento na quantidade ou quali-
dade de produtos ou serviços úteis às pessoas.
A filosofia do fisco é cobrar alíquotas altas, já estimando um alto nível de
sonegação. Sua forma de fiscalizar a adequação a uma legislação difícil, complexa
e contraditória é bater em alguns para que os outros imaginem o que pode lhes
acontecer se forem pegos sonegando. Um terrorismo legalizado.
Não há por que estapear o paciente, antes de operá-lo. Nem há por que ope-
rá-lo sem anestesia, se o anestésico está a nossa mão e não tem efeitos colaterais.

180
O Dogma dos três poderes

O modelo proposto de separar os assuntos a serem submetidos aos eleitores


levará a sociedade a repensar a qualidade dos impostos para torná-los menos agres-
sivos, desnecessariamente dolorosos.
Incrivelmente, isto é perfeitamente possível.
Na busca de tornar a cobrança de impostos menos traumática, certos conceitos
ou parâmetros estão a nosso alcance, dependendo, apenas, de um rasgo de lucidez
e de decisão política.
A razão mais forte para a existência de vários impostos é, para uma comuni-
dade, a multiplicidade de níveis de governo com receitas próprias. O conceito de
níveis administrativos autosuficientes, de baixo para cima, com receitas para cada
um deles é bem intencionado, mas as consequências de sua adoção são dupla-
mente negativas: complica a vida dos contribuintes muito além do necessário e,
simultaneamente, frustra o espírito de altruísmo, solidariedade e justiça social, que
deveria ser seu objetivo.
A centralização dos impostos em caixa única e sua divisão, não pela sua ori-
gem, mas pelo número de possíveis beneficiários e suas necessidades são medidas,
além de mais fraternas, mais práticas e eficientes.
É aí, pela destinação do dinheiro arrecadado, que se vai fazer justiça social, não
pela forma como é cobrado, já que sempre recairá no consumidor.
De certa forma, o imposto sobre o consumo faz justiça. Ele é proporcional, pois
quem consome mais paga mais para usufruir de produtos e serviços resultantes do
trabalho de muitos. É a apropriação de bens raros e caros que gera o imposto sobre
o consumo, resultando lógica e adequada a tributação feita dessa forma.
Ora, se todos os impostos recaem sobre o consumo, não há razão para complicar
mais do que o necessário para proceder sua arrecadação. Antes, o contrário, a exação
deve ser simplificada ao extremo, pois diminui o custo da arrecadação e diminui a
possibilidade de sonegação, o pior de todos os males em se pensando em tributos.
O sistema tributário que proponho alcança não exatamente o consumo, mas o
que chamo de disponibilidade para consumo e uso. Quando compro uma garrafa
de uísque, mesmo que não a tome de imediato, devo pagar o imposto, pois a colo-
quei à minha disposição.
Três impostos são suficientes para o governo suprir seu caixa, todos inciden-
tes sobre a disponibilização do consumo, ou uso de bens. Não há qualquer razão
inteligente para a existência de outros tributos, especialmente os repetitivos. Não é
inteligente complicar mais do que o necessário, porque, como todo rio deságua no
mar, todo imposto deságua no consumo. O que exceder a três tributos, a meu ver,

181
P. Garaude

é exercício de masoquismo. É aumentar e dificultar, desnecessariamente, o caminho


do rio. É torná-lo cheio de curvas e cachoeiras para quem precisa trafegá-lo para
chegar ao mar, de qualquer jeito, com ou sem obstáculos.
As regras básicas para os impostos devem ser: simplicidade, justiça, dificultar a
sonegação e indução positiva.
Os impostos devem ser simples e isso, hoje, quer dizer automático, não decla-
ratório. Incumbir o contribuinte de declarar o que vai pagar, como ocorre com o
imposto de renda, o imposto sobre valor agregado e outras dezenas de tributos, é
colocar o lobo faminto para tomar conta do carneiro.
O imposto declaratório, ou autoacusatório é burocrático, ineficiente, traba-
lhoso, inútil, instiga o contribuinte a fazer tudo para pagar menos. A partir de uma
adequada avaliação do custo-benefício, o contribuinte é levado a concluir que é
melhor correr o risco de sonegar.
E, insisto, não há mal maior, socialmente, moralmente, do que a sonegação.
Ela é a porta de entrada para a desonestidade que gera tantos males.
Quando uns pagam, outros não, o tributo está indo na contramão de todo
o ideal de justiça verdadeira, pois, além de atingir mais algumas pessoas do que
outras, faz com que os honestos fiquem em desvantagem competitiva e sejam in-
duzidos à sonegação para sobreviver.
Hoje, não poucas vezes, a conveniência de sonegar atinge graus de sobrevivên-
cia, de extrema necessidade. A opção passa a ser: morrer ou não pagar impostos,
pois os sonegadores, iniciando um círculo vicioso de concorrência desleal, tornam a
sonegação necessária, com propagação para todo o segmento. Em consequência,
o honesto e bem intencionado é levado ao mal caminho, é obrigado a sonegar
também, ou deixar de concorrer, ver seu negócio morrer.
Sendo subjetiva a disposição para correr riscos, os mais ousados são em geral
premiados por serem desonestos. Com isso, levam honestos a se corromperem,
por falta de opção competitiva. O início triunfal de uma sociedade mergulhada em
valores enfraquecidos e na moral tolerante.
A qualidade maior de um tributo é a dificuldade em sonegá-lo. Não há nada
mais prejudicial, injusto, mais desaconselhável, mais antissocial do que a sonegação.
O que o sistema atual vem fazendo é torná-la não opção, mas necessidade.
Se não é possível eliminar totalmente a sonegação, é preciso torná-la uma opção
temerária, desaconselhável, pouco inteligente. É preciso um aval claro para que o
mercado não condene à morte o comerciante honesto, que recolhe seus tributos.
Ademais, para suprir o valor não arrecadado pela sonegação, o imposto é ma-

182
O Dogma dos três poderes

jorado, onerando ainda mais os que pagam. Gera, portanto, indesejável círculo
vicioso. Quanto mais alto o imposto, mais alta a tentação de sonegá-lo. Quanto
maior a sonegação, mais alto ele deve ser.
O imposto deve ser justo. É necessário que o contribuinte tenha a sensação real
de estar sendo tratado com isenção e equidade. Pagando o imposto no momento
em que se utiliza de um bem ou serviço, ou os disponibiliza, ao contrário do que se
apregoa, o contribuinte não se sente lesado, porque, de fato, não o está sendo.
Outro objetivo do imposto é propiciar ao contribuinte a percepção de que o
que está pagando terá retorno útil. Mesmo sendo obrigado a pagar tributos, isso é
bem mais aceito quando o contribuinte se sente reconfortado, tal como ocorre com
o filantropo. Ele deve ter a sensação de que o que pagou foi útil para a sociedade.
Há estudos mostrando que o ser humano normal sente uma agradável sensa-
ção de conforto quando ajuda, faz alguma coisa em benefício do próximo.
Hoje, em relação a pagamento de impostos, essa ideia está destroçada. Quando
se paga um imposto, o cidadão tem a sensação de estar sendo lesado, não de estar
contribuindo, de forma útil, com o bem-estar social.
Haverão de dizer que esses ideais são inalcançáveis. Mas, como disse um escri-
tor, nada pode ser alcançado pelo homem que fica sentado e imóvel.
Ainda que seja impossível chegar à perfeição, é comodismo covarde aceitar o ruim.
Como já disse, em minha opinião, o ideal é reconhecer que não somos perfei-
tos, mas isso não deve deixar subjacente a ideia de que não adianta fazer nada. Ao
contrário, sempre haverá o que melhorar, é a lição a tirar. O que não podemos fazer
é ficarmos sentados, esperando que outros deem a solução a um problema que é
de todos, nosso também.
Voltando a ser mais específico, julgo que os conceitos básicos podem ser reu-
nidos, dentro de nossa limitação, em três tributos necessários e suficientes: o sele-
tivo (incidente sobre produtos e serviços eleitos como de tributação conveniente e
diferenciada); o de movimentação financeira; e o territorial. Todos, como disse, são
sobre a disponibilização para o consumo ou o uso.
O imposto seletivo não seria muito diferente do atual Imposto sobre Produtos
Industrializados, o IPI, no Brasil. Ele incluiria o imposto de importação com eventual
majoração de sua alíquota, quando a procedência do produto for de fora do país.
Sua finalidade de arrecadar seria convenientemente temperada com a uti-
lidade social do produto ou serviço tributado. Assim, poderia não incidir sobre
alguns produtos, menos ou mais sobre outros, em função de sua maior ou menor
necessidade. Alíquotas zero, ou diferenciadas, valeriam para alimentos básicos

183
P. Garaude

não industrializados, remédios indispensáveis, material de construção não sofisti-


cado e seus ingredientes, além de outros de consumo essencial. O imposto pode-
ria ser médio na área de comunicações, energia elétrica, água, e alto em artigos
como roupas de grife, joias, perfumes, bebidas, cigarros, automóveis de luxo,
combustíveis e alguns outros.
Caberia à sociedade, por meio do comitê gestor de finanças, escolher os produtos
de incidência e fixar as alíquotas conforme sua utilidade e benefício social decorrente.
Caso a merecer especial destaque são os combustíveis.
A meu ver, os energéticos derivados de petróleo, conquanto não exatamente
supérfluos, especialmente a gasolina, têm de ser altamente gravados por impostos,
para compensar o seu custo social e desencorajar o uso dispensável, ou opcional.
Ademais de poluírem, exceto nos transportes coletivos e de carga, são usa-
dos de forma egoísta e prejudicial à coletividade. Mesmo no caso de transportes
de carga, sabe-se hoje da conveniência de meios de transportes menos onerosos,
como o ferroviário e o hidroviário.
Mas o pior, sem dúvida, ocorre com o automóvel.
Quem quiser usar os combustíveis fósseis para seu transporte individual — e
me incluo nesse privilegiado rol —, deve ter assegurada sua liberdade de fazê-lo,
mas deve pagar caro por esse direito gerador de um ônus extremamente gravoso
para o restante da sociedade.
Governos são obrigados a investir o dinheiro público e conservar ruas e estra-
das, a combater a poluição, fiscalizar e administrar o trânsito para impedir conges-
tionamentos quilométricos e uma centena de outras decorrências.
Com o perdão dos aficionados e comodistas, como eu, devemos convir que
andar de carro é um privilégio antissocial.
Para me transportar de casa para o trabalho, muitas vezes sozinho, se opto por usar
meu automóvel, ponho em área pública uma máquina que chega a pesar três toneladas e
ocupa sete metros quadrados, em média, para deslocar meus noventa e poucos quilos.
Se movido a gasolina, o veículo, ao me locomover de um ponto a outro, precisa
ser abastecido com o combustível extraído das profundezas da terra, bombeado e
transportado por centenas ou milhares de quilômetros, refinado por máquinas e
equipamentos cujo processo requer enorme investimento, uma operação logística
de magnitude. As consequências para o meio ambiente são deletérias. Tudo isso
com a finalidade de ter o conforto de chegar a meu escritório.
Tenho à minha disposição um posto de combustível próximo para abastecer
meu veículo, ter a liberdade e o conforto de me locomover sozinho. Se opto por

184
O Dogma dos três poderes

andar de carro, a incidência sobre o valor do combustível me levaria a, quanto mais


usá-lo, mais pagar imposto, o que me parece recomendável e justo.
Seria possível, com o aumento do imposto sobre combustíveis, a eliminação
dos pedágios, uma solução eficiente, mas injusta. O pedágio, além de incidir pe-
sadamente sobre os veículos de transporte de carga e ser repassado mais tarde
ao consumidor, não é, sem qualquer razão lógica, cobrado no trânsito por áreas
urbanas. Por que devo pagá-lo apenas quando trafego por estradas e não quando
perturbo o trânsito dentro das cidades?
A eliminação do pedágio não impediria a concessão da manutenção e con-
servação de estradas a empresas privadas terceirizadas. Ao contrário, tornaria a
remuneração mais justa, menos aleatória, se fixada como deveria ser sempre, por
quilômetros conservados e outros fatores ponderáveis.
Esta solução, a meu ver, deveria, inclusive, ser estendida para áreas urbanas,
mantidas e conservadas por empresas particulares.
Detive-me sobre o segmento de combustíveis, pegando seu exemplo mais pu-
jante, apenas para exemplificar qual o critério que deve presidir a taxação do im-
posto seletivo.
Outra consideração seria a de que, a bem de sua conveniente simplicidade,
deveria e poderia incidir apenas uma única vez, no estágio de produção ou do de-
sembaraço alfandegário, mas sempre sobre o valor presumido de venda, como já
ocorre com algumas bebidas industrializadas.
A incidência apenas uma vez simplifica muito a tributação, pois diminui os
postos de arrecadação, facilitando a fiscalização.
Não é difícil, com os modernos meios de informatização, especialmente a in-
ternet, fazer a investigação sobre a média de preços de venda ao consumidor, tanto
internamente ou, à sua falta, em outros países, para efeito de se estabelecer essa
estimativa e elaborar uma tabela abrangente para a aplicação da alíquota de forma
nada subjetiva, o que é desejável.
Além de dificultar a sonegação, simplificando o trabalho dos auditores fiscais, fa-
cilitaria a vida de milhares de contribuintes ao tornar desnecessário o complexo sistema
de créditos e débitos dos impostos sobre valor agregado, que cria problemas para todas
as empresas envolvidas, dispensadas de contabilizá-los (e sonegar o que puderem).
Incidindo apenas sobre produtos selecionados, a fiscalização seria concentrada
em poucos lugares, com menor custo e mais eficiência.
O segundo imposto, sobre movimentação financeira, tem enormes vantagens sobre
quaisquer outros tributos: é universal, não declaratório, simples e dificilmente sonegável.

185
P. Garaude

Com algumas medidas adicionais a serem estabelecidas, sua sonegação seria


dificílima, quase impossível, o que por si só é uma qualidade insuperável.
A tendência da moeda ser cada vez mais escritural vem em seu abono. Mas
enquanto ela não ocorre totalmente, questão de tempo que poderia ser agilizada,
seria recomendável a proibição do endosso e do cheque em branco, preenchido
sem o nome do beneficiário — cuja exibição (em branco) pelo portador lhe renderia
multa imposta ao emitente, no ato da apresentação e de valor igual ao do cheque.
Outra providência seria proibir o saque em dinheiro de quantias altas, pois hoje
não há necessidade de se manter grandes quantias em dinheiro físico para realizar
operações lícitas.
Não está longe o dia em que todo o dinheiro será escritural, o que será um
enorme avanço. Ficará depositado em banco e será transferido de uma pessoa a outra
por operações eletrônicas de débito e crédito. O papel-moeda ficará cada vez mais
restrito a pequenas transações, até desaparecer, com a evolução sociocultural.
Uma excelente consequência disso seria dificultar, ao extremo, a prática de
crimes como roubos, assaltos, extorsão mediante sequestro, o tráfico de drogas e
armas, além de vários outros delitos.
O imposto sobre transações financeiras implica em tributar o pagamento sobre
a compra e venda de bens e serviços, pois quase toda a transferência de dinheiro
tem esse objetivo, exceto doações, aplicações e empréstimos. Mas, como direi um
pouco adiante, mesmo esses casos justificam sua incidência.
O fato de incidir — como apelidaram seus detratores — em cascata, tem sua
motivação em transferências de bens e serviços, de forma contínua, transparente,
insonegável, quase indolor, quando comparado com outros impostos incidentes
sobre a produção e renda.
No exemplo mais extremo usado pelos críticos, ele estaria incidindo quatro ou
cinco vezes sobre o mesmo bem, mas é preciso lembrar que o imposto cresce no
final, pois sua incidência bruta será tanto maior quanto mais elevado o valor da
transação e o produto que, necessariamente, passa por várias fases, vai ter seu valor
acrescido à medida que fica mais próximo do consumidor final.
Na verdade isso é bom, pois só o custo da matéria-prima sem beneficiamento
será tributado algumas vezes quando for pago pelo consumidor. Os ingredientes in-
termediários só serão tributados quando incorporados. O lucro do lojista será tribu-
tado apenas uma vez. Se atingisse um patamar razoável e recolhido tanto pelo pa-
gador como pelo recebedor, ainda assim teríamos o valor do imposto muito abaixo
de vinte por cento do valor do bem (um caso extremo).

186
O Dogma dos três poderes

No caso de bens de primeira necessidade, o tributo seria bem inferior a dez por
cento, considerando todas as etapas normais de sua comercialização.
Como produtos de uso necessários ficariam isentos de todos os demais impos-
tos, essa porcentagem seria tudo o que o consumidor final pagaria — muito menos
do que é tributado hoje.
Quanto a produtos com muitos insumos, portanto complexos, é justo que se-
jam tributados.
A crítica mais eloquente contra o imposto de movimentação financeira tem a
ver com um possível desestímulo ao investimento, especialmente em ações e aplica-
ções de curto prazo. Também aí o resultado é positivo, por desestimular a especula-
ção de curto prazo, de consequências sociais negativas.
Há uma tributação alta, nessas operações, mas ela é desejável. Não há conveni-
ência em operações especulativas, como ocorre hoje, quando alguns especuladores
compram ações em um dia para vender no mesmo ou no outro, além do que o
imposto não incidiria, quando houvesse transferência apenas de modalidade — tipo
depósito à vista para poupança — quando o titular for o mesmo.
Por outro lado, no sistema proposto, todos os demais tributos incidentes sobre
a operação de curto prazo: estariam eliminados, uma grande simplificação.
Outra crítica frequente é a de que a tributação em “cascata” poderia induzir a
uma “indesejável (???)” verticalização da produção, ou seja, o próprio fabricante do
carro faria, em um exagero exemplificador, desde a extração do ferro, até a venda
do veículo para o comprador. Mas isso, pela possibilidade da “economia” que ocor-
reria pela não incidência do tributo, parece um total despropósito. Se conseguisse
tal economia de escala, seria mesmo socialmente interessante que fizesse a extração
do ferro e a venda do veículo. Só que isso é muito difícil e certamente lhe sairia
muito mais caro.
Outro argumento é o de que o imposto incidiria sobre a exportação de pro-
dutos, desestimulando-a. Outro absurdo. Bastaria haver a isenção sobre os demais
tributos hoje incidentes sobre os produtos exportados, para se ter uma enorme
redução de carga tributária, mesmo com a incidência total do imposto de movi-
mentação financeira. É só pensar na eliminação da Previdência Social para ver o
despropósito dessa afirmação.
A inteligência do imposto sobre movimentação financeira seria a eliminação, e
a substituição por ele, com vantagens, de todos os demais tributos. Para citar ape-
nas um, ele pode substituir o imposto sobre serviços, de péssima qualidade, uma
injusta bitributação do imposto de renda.

187
P. Garaude

Para ilustrar, vamos imaginar um dono de oficina de funilaria. Hoje ele paga (na
verdade deveria pagar), direta ou indiretamente, um número incontável de tributos.
Vamos nos limitar aos mais importantes, que são o ICMS sobre todos os insumos
que utiliza; o IPTU do prédio que ocupa; o INSS da empresa e retido sobre o salário
do titular e de todos os empregados; o imposto sobre serviços (e taxas de funciona-
mento); além do imposto de renda, se o seu estabelecimento, como se espera, der
algum lucro, depois de tanto já ter pago, para poder trabalhar. Se optou pelo sim-
ples, elimina alguns desses tributos, mas sua incidência é alta para compensá-los.
Para cuidar dessa parafernália burocrática, inclusive se optar pelo simples, o
titular do negócio terá contratado uma pessoa interna para extrair as notas fiscais,
escriturar a contabilidade e um escritório de contabilidade externo que, para estar
a par de toda a vasta legislação que enquadra esse e todos os demais negócios,
cobrará quase o salário de um outro funcionário. Um monumental desperdício de
tempo, dinheiro, esforço, cujo resultado em produtos e serviços úteis ao dono do
carro e à sociedade é zero.
Há mais tributos bem intencionados e mal sucedidos:
A transferência ou circulação de mercadorias, base de incidência para o im-
posto sobre o valor agregado, gera permanentes desavenças sobre onde deve ser
cobrado, se na origem ou no destino. Demanda complexa escrituração de débitos e
créditos para os contribuintes, emissão de notas, fiscalização complexa, levada até
as estradas na checagem de cargas em veículos, que além de custosa não impede
a corrupção. É bem subjetivo fazer a conferência entre o que está na nota e o que
está sendo transportado.
A vantagem apresentada pelos defensores desse imposto, considerado de boa
qualidade por não gerar bitributação, é nula. Ele incide sobre o consumo e, portanto,
não teria a vantagem apregoada de ser um “tributo direto”. A alegada vantagem
de não ser cumulativo é perfeitamente substituível pela incidência única do imposto
seletivo. E o efeito cascata resultará, para o contribuinte, em menor contribuição, sem
custo administrativo interno. Para o governo, dificilmente redundaria no mesmo valor
de arrecadação do imposto sobre o valor agregado, se este fosse pago por todos os
que deveriam pagá-lo. Como isso não ocorre, talvez o resultado final fosse positivo.
Para o fisco é totalmente indiferente fazer incidir o imposto em cada operação
na modalidade “valor agregado”, ou certa porcentagem que resultasse no mesmo
valor, na modalidade “cascata”, acrescido, se for o caso, do imposto seletivo inci-
dente apenas uma vez, sendo nula em relação à arrecadação, portanto a vantagem
alardeada da primeira modalidade.

188
O Dogma dos três poderes

Se a vantagem apregoada é zero, todas as demais diferenças, como nível de bu-


rocracia, dificuldade de sonegação, universalização, simplicidade, resultam em um
placar de dez a zero a favor do Imposto sobre a Movimentação Financeira (IMF).
Com alíquota bem menor do que a devida no caso do valor agregado, a van-
tagem do IMF vai ser, adicionalmente, sua baixa incidência sobre produtos simples,
que demandam pouca sofisticação, com pequena agregação de insumos. É o caso,
exatamente, dos produtos consumidos pelos mais pobres.
O fato de o imposto sobre a movimentação financeira incidir sobre as transa-
ções, mesmo intermediárias, aos poucos, repercutindo no preço final do produto,
traz um sem-número de vantagens: independe de declaração, de jogos de crédito
e débito, livros, registros, guias, contadores, fiscais, fiscalização contábil e física,
barreiras em estradas, burocracia, possibilidade alta de sonegação, inventários e mil
outros aborrecimentos que se tornariam desnecessários.
Ao contrário dos que o criticam, o fato de o IMF incidir em doses homeopáticas
é mais confortável ao contribuinte do que arcar com grandes quantias, de uma só
vez. Torna excessivamente menor a vantagem da sonegação.
É, de todos os tributos, o que mais se espalha, pois é devido por todos, até
por estelionatários, assaltantes ou contraventores, lamentavelmente existentes no
mundo real, hoje anistiados pelo fisco.
Não vale dizer, honestamente, que pobre pagaria tanto quanto rico. Isso só seria
verdade se ganhassem e gastassem o mesmo, um argumento sem qualquer sentido.
O imposto sobre a movimentação financeira é um avanço da lógica. Como
forma de arrecadar é a que menos agride.
Com a exceção do imposto seletivo, todos os demais, incidentes sobre o con-
sumo, podem ser substituídos pelo de movimentação financeira. No regime atual,
o imposto sobre serviços já seria desnecessário; um “bis in idem” do imposto de
renda de pessoa física. Só serve para atormentar o contribuinte e só se justifica pelo
fato do IR ser federal e ele, municipal. Mas é desnecessário e contraproducente.
Presta serviços todo trabalhador, tenha ou não vínculo de emprego. Assim, tri-
butar o prestador de serviço sem vínculo empregatício duas vezes, uma pela renda,
outra pelo serviço, é fazê-lo pagar duas vezes pelo resultado de seu trabalho. É tão
aberrante a situação que, na verdade, a explicação para esse absurdo, no sistema
atual, é contrabalançar os ônus do autônomo com os do assalariado, cujos outros
encargos o empregador vai lhe descontar.
Não haveria qualquer necessidade de tributar o prestador de serviços, fosse ele
pessoa física ou jurídica, além do que recolheria a título de IMF.

189
P. Garaude

Além de simplificar enormemente sua vida, a verdade é que o IMF seria repas-
sado ao consumidor, como hoje são os impostos de renda e de serviços. No caso,
a grande vantagem é o fim de uma burocracia, cujo sentido se perdeu no tempo e
cuja razão foi esquecida.
No sistema atual, o trabalhador sem vínculo de emprego paga o imposto de
renda, taxas de licença, publicidade, IPTU, o imposto sobre serviços, o INSS e outros
tantos. Uma burocracia desestimulante ao empreendedor, que pode acrescer rique-
zas em benefício de todos.
Não demoraria muito para que a contabilidade do pequeno comerciante ou
prestador de serviços fosse eliminada e substituída pelo seu extrato bancário. Uma
simplificação possível e conveniente, já que todos os seus pagamentos e recebimen-
tos estariam ali consubstanciados. Não demoraria para que os bancos oferecessem
uma modalidade de extrato, muito simples, classificando em itens a movimentação
do mês, para que o comerciante pequeno dispensasse, por completo, a necessidade
de contabilidade à parte.
Outra maneira de impedir uma eventual sonegação também é facilmente al-
cançável, sem necessidade de fiscais ou procedimentos burocráticos — ao contrário
— até eliminando vários. A quitação de qualquer valor proveniente de compra de
serviços, produtos, salários ou qualquer outro, contratado ou não, só seria admitida
por lei e, juridicamente validada, mediante comprovação de débito e crédito em
conta bancária do pagador e do recebedor.
Nas relações de emprego, só a transferência bancária do valor seria aceita
como prova de quitação de salário. Além de descomplicar, a medida teria o efeito
secundário de tornar o empregador e o empregado fiscais um do outro.
Não seria mais aceito como comprovação de pagamento qualquer recibo. Ape-
nas seria válida como prova a transferência bancária, sob o argumento já ensinado
pelos romanos de que nemo auditur, propter turpidudinem alegans, ou seja, nin-
guém pode ser ouvido alegando sua própria torpeza, ou seja, ter infringido a lei.
Como a lei proibiria pagamentos sem a intermediação bancária, não fazê-lo
caracterizaria tentativa de sonegação, e o não cumprimento da lei não poderia be-
neficiar seu infrator. O resultado seria menos burocracia.
Qualquer pagamento feito sem incorrer em movimentação financeira seria so-
negação e, assim, não haveria por que fazer recibos, bastando discriminar, se neces-
sário, as parcelas e os eventuais descontos.
Com o IMF todos os demais impostos, inclusive os incidentes sobre transferên-
cia de domínio, seriam eliminados. É o caso do imposto de transmissão intervivos,

190
O Dogma dos três poderes

incidente sobre o valor de imóveis, quando vendidos e outros inventados apenas


para alimentar as burras dos governos, mas que, além de facilmente sonegável, é
extremamente prejudicial ao crescimento econômico e ao bem-estar social.
O imposto de transmissão intervivos, também chamado “sisa”, tem os dois
inconvenientes de ser, a um só tempo, parcialmente sonegável e um empecilho,
uma dificuldade e um senão indesejável na obtenção de liquidez dos imóveis, incon-
veniente ao crescimento da construção civil e à solução do problema habitacional.
Suportado adicionalmente no momento de venda e compra do imóvel, seu acrés-
cimo ao preço onera sempre o comprador, à vista, no momento em que está mais
carente de recursos.
É altamente conveniente haver muita liquidez na venda de imóveis, tornar fácil
a transmissão de domínio, pois isso vem ao encontro de interesses convergentes,
do vendedor, que quer se desfazer do bem, e do comprador, que quer adquiri-lo.
A facilidade na venda de imóveis cria bem-estar social, ajuda a resolver o problema
habitacional e gera empregos, muitos deles de baixa qualificação.
O causa mortis, aparentemente justo, é também inconveniente. Além de de-
sestimular a poupança e o investimento, rende pouquíssimo ao governo, talvez
menos do que o custo de arrecadá-lo, e tem a consequência subjacente e nefasta de
alongar, por anos, desnecessariamente, um inventário, pela necessidade burocrática
de seu pagamento, o que complica, sobremaneira, a partilha dos bens. Não fosse
o imposto, o inventário poderia ser feito por escritura, quando todos os herdeiros
estivessem de acordo com a partilha, situação mais comum.
Inventários que duram décadas, pela não conveniência ou falta de disponibili-
dade para pagar o imposto, geram atritos, sociedades indesejáveis, a falta de liqui-
dez e o não desembaraço rápido de problemas sucessórios. Além disso, de forma
injusta na prática, o imposto não pega móveis, dinheiro vivo, joias e obras de arte,
um preconceito odioso. É verdade que, teoricamente, incidiria sobre todos esses
bens, inclusive depósitos bancários ou aplicações financeiras.
Quanto aos móveis, joias e obras de arte, não há qualquer razão lógica para
incluí-los na herança, se houver acordo quanto à partilha e, em todos os casos
que conheço, existe um segundo “titular” da conta ou do investimento, que pode
retirá-lo todo, sem qualquer tributação, sendo também desnecessária a declaração
de sua existência no inventário.
A única pequena inconveniência do tributo da movimentação financeira é sua
incidência sobre empréstimo, quando é, evidentemente, repassado ao tomador,
tanto na tomada do dinheiro como na devolução.

191
P. Garaude

Na verdade é apenas aí que o imposto deixa de ter a característica de incidir


sobre a transmissão de domínio de bens, produtos ou prestação de serviços. Mas
seria ingênuo acreditar que qualquer outro tributo, como o Imposto de Renda pago
por quem empresta o dinheiro, não seria pago, também, pelo tomador.
Enfim, o imposto sobre a movimentação financeira é o resultado do progresso
tecnológico que o viabilizou, mas ainda não o fez consagrado.
Ele há de ser, por muito tempo, criticado pelos arautos do imobilismo, por não
atender a interesses de tributaristas, contadores, fiscais, um sem-número de pessoas
que se beneficiam desse cipoal de impostos complicados, facilmente sonegáveis,
ineficientes, antissociais e injustos. São defensores de privilégios consubstanciados
em seu lucrativo status quo. Mal sabem que seriam também beneficiários finais da
simplificação e seu trabalho poderia ser levado a produzir bens e serviços mais úteis
para si e para a sociedade.
O terceiro e último imposto tem mais características de promover justiça social,
acesso democrático e utilização da propriedade, do que, propriamente, ser grande
fonte de exação. O imposto territorial incidiria, em minha proposta, apenas sobre
o valor do terreno. É que, pela lógica do sistema, todas as benfeitorias agregadas a
ele já teriam sido tributadas pelo imposto seletivo. E não se deve tributar duas vezes
as mesmas coisas ou situações.
No caso de terras e terrenos, especialmente aqueles situados em áreas valiosas,
servidas de transporte, água, luz, esgoto, além de, na verdadeira essência, serem
bens universais, eles foram, ainda, beneficiados pelo trabalho coletivo de milhares
ou milhões de pessoas. Não seria justo que alguém se reservasse o direito de usá-los
sem pagar à sociedade por esse uso restritivo e excludente.
Se alguém é dono de 15 toneladas de arroz, o que fará com elas? Evidente-
mente, não irá comer toda essa quantidade.
Quando muito, se adorar arroz, se fartará com um quilo, ou dois. O fato de o
arroz estar, temporariamente, sob o domínio de quem não vai consumi-lo, na verdade
é apenas uma forma de armazená-lo e distribuí-lo, modo eficiente de prestar serviços
a coletividade.
Muito provavelmente o comprador do arroz o comprou de quem o produziu,
necessitado de capital de giro, ou ainda por que não quis correr riscos com variações
no preço, ou ainda por que não soube a quem, onde, quando e como vendê-lo.
O mais comum é que esse “esperto” especulador — na verdade um agente eco-
nômico útil — tenha percebido que o excesso de oferta em uma época poderia justificar
sua guarda, para venda em momento mais oportuno, quando estivesse em falta.

192
O Dogma dos três poderes

De qualquer maneira, tributar a propriedade do arroz seria só transferir o imposto


para o consumidor final, que, de qualquer forma, é quem vai se beneficiar e pagar
por ele. Não há almoço de graça, e eu acrescentaria, nem imposto sobre o arroz que
o consumidor deixe de pagar. Mas é diferente quando alguém mantém um terreno
para seu uso exclusivo. Aí ele está privando outras pessoas de poder usá-lo.
Se um cidadão subtrai o uso de um bem útil, raro, e elimina a possibilidade de
seu aproveitamento por outras pessoas, deve pagar por esse uso.
Quanto mais valioso o terreno, mais bem localizado, servido das benesses do
progresso, como água, luz, esgoto, transporte, asfalto, mais importante e valiosa
deve ser a retribuição social do proprietário ao restante da sociedade para usufruir,
em seu detrimento, desse direito exclusivo.
No caso de imóvel rural, o proprietário da terra tem o direito de fazer dela o
que quiser; plantar, criar gado ou deixá-la sem qualquer utilização. Ele se apropria
não apenas da terra, do solo, mas do sol que incide sobre ela, da água que lhe mo-
lha, patrimônio de todos os habitantes do planeta, beneficiários dessas preciosas
doações da natureza.
O direito de propriedade é útil, mas ao contrário do que sustentam os defen-
sores de seus privilégios, não é natural.
Deve ser respeitado e garantido, até com força policial, a bem da ordem. Mas
aqueles que foram privados desse direito devem ser ressarcidos pelos ocupantes e
usuários, seja em função de estarem excluídos, seja por que todos, inclusive os não
proprietários, pagam para garantir sua exclusividade, mantendo um aparato policial e
judiciário para protegê-la de uma invasão ou apagar o fogo, se ocorrer um incêndio.
Apesar de discordar de sua proposta, por ser inviável, partilho com Proudhon
seu diagnóstico sobre a essência legal e social da propriedade, quanto à sua origem
iníqua e viciada. Mas discordo a partir desse diagnóstico.
A propriedade mostrou-se necessária ao desenvolvimento social, econômico
e cultural da humanidade e nenhuma outra solução foi até agora inventada, com
mais vantagens, para substituí-la.
As fazendas coletivas, por exemplo, têm a vida efêmera da constatação de que,
por sermos diferentes, pela capacidade, pelo interesse, pela dedicação, haverá um
momento em que os mais dedicados vão cansar, e se sentir profundamente injus-
tiçados por trabalhar muito mais, e terem participação, na partilha das benesses,
igual aos outros que pouco ou nada produziram.
Seria inviável o progresso se não houvesse a divisão em glebas, frações de áreas
disponíveis, facilitando a administração próxima e interessada dos donos, além de eli-

193
P. Garaude

minar conflitos maiores, se a apropriação se desse por outro critério, como se apoderar
pela força. Mas o direito da propriedade tem também a característica de “dever”.
O fundamento social do imposto sobre a propriedade reside na exclusividade,
ou na exclusão de outros. Se alguém tem um direito excludente — ou seja, que
exclui o uso por outras pessoas —, usando ou não, deve retribuir à sociedade a
exclusividade de tê-lo e vê-lo garantido.
Se quero ter uma casa na praia, para ir quando quiser, devo pagar a uma retri-
buição justa, pelo simples fato de estar privando outras pessoas de usarem aquele
terreno, servido de água, luz e esgoto, à beira mar, e de chamar a polícia gratuita-
mente, para me defender de uma invasão. Pago para usá-lo quando quiser. Se o
vender, transfiro ao adquirente a exclusividade e o ônus do imposto.
A base do imposto é o uso, ou o direito de usar. Sustento, como imperativo de
justiça, que deve ter alíquota igual para todos, exatamente para não ferir o princípio
de que todos são iguais perante a lei.
O que deveria variar, e muito, é o valor do imóvel.
O problema decorrente do imposto sobre a propriedade é aquele de determi-
nar qual o valor da base de tributação, ou seja, qual o valor do terreno, ou, melhor
ainda, qual o seu valor tributável. Excluídas as benfeitorias, cuja manutenção já é
um importante ônus ao proprietário, a tarefa fica bem mais fácil, objetiva e exe-
quível. Em meu entender, o programa para definir o valor de um terreno, cabe na
memória de um computador.
Após a elaboração de parâmetros e mapas bem cuidadosos, os dados seriam
inseridos e o resultado apareceria, de imediato. Isso não me parece difícil e facilitaria
muito, pela não necessidade, agora, de avaliar a área construída, sua qualidade e
acabamento, informes muito subjetivos.
O mapeamento por satélite permite um número enorme de informações, mas
outras não serão difíceis de se obter.
No caso de terreno urbano, vários fatores hão de ser considerados, como o
logradouro onde se situa, a disponibilidade de melhoramentos, a largura da rua, a
metragem frontal e de fundos, a distância de centros de serviços e outros critérios
que possam levar a avaliação a ser justa, isenta de influências personalizadas, van-
tagens ou acertos escusos.
A avaliação, salvo mudanças, seria feita apenas uma vez, com a inserção de
variantes, se ocorressem.
Cobranças retroativas de diferenças, se fossem verificados erros, tornariam de-
saconselhável, para o proprietário, vê-lo avaliado abaixo de seu valor real.

194
O Dogma dos três poderes

Outro fator importante na avaliação do terreno, ou da fazenda, seria a possi-


bilidade de edificação ou de sua exploração comercial. Quando se pode construir
quatro vezes sua área, evidentemente, o valor do terreno será muito maior do que
o local onde se pode edificar apenas uma vez, ou apenas metade dela.
Isso induziria o aproveitamento de áreas urbanas servidas de infraestrutura. A
incidência do imposto apenas sobre o valor do terreno passaria a gravar, proporcio-
nalmente, muito mais o proprietário de um terreno vazio, do que o vizinho prédio
de apartamentos cujos condôminos teriam o mesmo ônus diluído entre vários.
Terrenos servidos de todas as benfeitorias, que fossem mal-utilizados, passariam
a ser um pesado ônus e isso é justo e merecido. Induziria seu melhor aproveitamento,
o adensamento demográfico saudável de regiões servidas das benfeitorias públicas
como a facilidade de transporte coletivo, água, esgoto, comunicações, segurança.
Por isso, não se há de tributar cada apartamento edificado em um terreno,
mas apenas este, cujo valor foi fixado levando-se em consideração a possibilidade
da construção adensada em edifício. No caso de um edifício com dezenas de apar-
tamentos, evidentemente o terreno há de ser caro por nele ter sido permitida uma
construção tão grande.
Se, ao contrário, o proprietário o mantém, sem nada nele erigir, um terreno
onde poderia edificar quatro vezes sua área, por estar privando os demais cidadãos
de usufruir, deve arcar com o custo e as consequências.
No caso de imóvel rural, evidentemente a fixação do valor do hectare depen-
deria da disponibilidade para a agricultura, ou pecuária, a área de preservação am-
biental necessária, a ser excluída, o acesso à água, a qualidade do solo, estradas,
facilidade de escoamento da produção, luz, telefone e outras benfeitorias existentes
para servi-lo, como também sua proximidade de centros de consumo ou facilidade
de escoamento da produção.
É evidente que, se a lei estipula a necessidade de preservação de mata nativa
em oitenta por cento do imóvel, o proprietário não poderá usá-la e, por isso, pagará
o imposto apenas sobre os vinte por cento que poderá usar.
Um inconveniente do imposto seria a possível inadimplência. Por isso, a lei po-
deria resolver de forma inteligente. Se o débito ultrapassasse dez por cento do valor
do imóvel, ou outro porcentual fixado, além da multa e juros pelo atraso, o imóvel
seria colocado em uma situação de “disponível”.
Se aparecesse um comprador disposto a pagar o valor de inscrição do imóvel,
ele depositaria esse valor à disposição do governo para que este, após receber o
tributo e os acréscimos, restituísse ao antigo proprietário o valor remanescente.

195
P. Garaude

Essa medida teria a dupla finalidade de garantir o ressarcimento justo do


proprietário inadimplente e de instar a todos no sentido de manter adequados
os valores-base de suas propriedades para efeito de tributação e ressarcimento,
nessa hipótese.
Benfeitorias que não pudessem, sem grande desvalorização, ser removidas
passariam para uma situação diferente. Se não houvesse acordo entre novo e velho
proprietário quanto a seu valor, qualquer um deles poderia pedir sua avaliação. O
ex-dono teria, então, o direito de receber o valor avaliado da benfeitoria, sob pena
de lhe ser lícito reter o imóvel até receber todo o preço, decrescido de um aluguel,
digamos, de um por cento sobre o valor da benfeitoria avaliada e um por cento do
valor inscrito do terreno enquanto permanecesse em sua posse ou, ainda, se preferir
desocupá-lo, colocar em mora o devedor e cobrá-lo judicialmente.
A lei deveria vedar, taxativamente, a possibilidade de o imposto territorial ser
repassado ao inquilino.
Lamentavelmente, um grande número de pessoas, seja por opção, seja por falta de
condições, passará toda a sua vida sem poder se tornar proprietário de um imóvel.
Estariam, como prêmio a uma existência frugal, não apenas isentas do imposto
territorial como passariam a receber, indiretamente, daqueles que pudessem ou
quisessem usar um espaço de terra. Um reconhecimento à função social da proprie-
dade, uma opção justa e uma adequada resposta à crítica de Proudhon, para quem,
historicamente, a terra é de todos.
Esta justiça deve ser feita sem a diferenciação de alíquotas, pois, para a fixação
do imposto, deve prevalecer apenas a diferença do valor do espaço ocupado, único
critério efetivamente justo e democrático, dentro da sistemática preconizada.
No caso de produtores rurais, em contrapartida à alta elevação que ocorreria
com a cobrança do imposto territorial, haveria a total isenção de impostos inciden-
tes sobre produtos agropecuários.
Considero muito mais inteligente, justa e social a tributação mais pesada do
imóvel rural, passível de exploração e mal-utilizado, do que tributar alimentos. Ha-
veria estímulo em manter áreas produtivas e um poderoso ônus por mantê-las ocio-
sas, quando pudessem ser utilizadas em benefício de todos.
Hoje, nada produzindo, o proprietário não pagará o imposto sobre a mercado-
ria — por que não a produziu —, um prêmio às avessas pela sua inércia, egoísmo,
desinteresse, razão suficiente para a existência do imposto territorial.

196
O Dogma dos três poderes

Imagine
Imagine, there’s no countries,
It isn’t hard to do.
Nothing to kill or die for,
And no religion too.
Imagine all the people,
Living life in peace…

John Lennon

N ão acredito em predições. Nosso futuro não está escrito. Nós o faremos. Ele só
poderá ser registrado e discutido, quando for passado, se tornar História.
Nada me impede, entretanto, de sonhar o porvir, pois, para mim, o limite do
sonho é o tamanho de minha imaginação.
Somos donos dos nossos devaneios. Podemos construí-los como quisermos,
sob encomenda, a nosso gosto.
Martin Luther King criou um sonho viável. Não o viu realizado, por pouco.
Hoje, ficaria orgulhoso de ver Barack Obama na presidência dos Estados Unidos.
Uma remissão dos omissos, que denunciou com maestria.
John Lennon “imaginou”, mas sabia que não iria viver seu sonho, mesmo se
não fosse assassinado. Tinha consciência de tratar-se de uma utopia inalcançável
naquele momento, mas, para a sorte de seus admiradores, ele a poetou em notas
musicais que ecoaram sua mensagem pelo mundo todo, ou quase todo.
Agora vou imaginar meu sonho. Sou dono dele. Tem em comum a aspiração,
mas guarda grande desproporção de competência entre seus autores, atores e o
palco restrito em que a minha será recebida. Não tem a pretensão discursiva de M.
L. King ao proferir o seu maravilhoso “I have a dream”, nem a mensagem em forma
de poesia de John Lennon em seu “Imagine”.

197
P. Garaude

Apenas a ilusão inventada, que gostaria de ver e espero seja real, um dia.
Também imagino:
Em Davos, Suíça, o termômetro está bem abaixo de zero, embora o sol apareça
entre poucas nuvens. Limusines negras chegam sob forte proteção policial e vários
ocupantes saem, aparentemente ansiosos, com o amparo de pessoas treinadas para
impedir que escorreguem no piso gelado da rua.
São presidentes, primeiros-ministros, mandatários de vários países que chegam
para uma conferência que poderá iniciar o processo de mudança do destino de
nosso planeta.
Há centenas de jornalistas, alguns curiosos e dezenas de manifestantes que se
acotovelam nas proximidades, mantidos a distância, sob um forte esquema policial.
Apenas alguns gritos e palavras de ordem são ouvidos na entrada do prédio onde
vai se realizar a conferência.
Existe grande e indisfarçável expectativa sobre o que sairá do conclave. A pro-
posta revolucionária seria aprovada?
Pouco mais de dois anos antes do evento, grupos de representantes governa-
mentais vinham se reunindo para preparar esse encontro, cujo possível resultado
era visto como utópico e inviável por quase todos os analistas e continuou sendo,
mesmo quando, contra todas as previsões, a ideia foi ganhando importantes ade-
sões. Apenas recentemente, parte da mídia começou a acreditar que havia se criado
uma remota possibilidade de ser implantada. Mas a ideia parece que foi ganhando
adeptos entre pessoas insuspeitas, bem intencionadas, mas também de costumeira-
mente cínicos e descrentes na humanidade.
Uma semana antes, os chineses fizeram uma declaração aparentemente con-
traditória, mas que, interpretada com mais rigor, parecia ter implicado na aceita-
ção da ideia.
Muitos levantaram teses contrárias, imaginando complôs e intenções dissimu-
ladas por parte de seus idealizadores, que estariam agindo à sorrelfa, sob o patrocí-
nio de interesses inconfessáveis.
Outros, mais realistas, apenas achavam cedo demais para que a ideia fosse
implantada. “Quem sabe, daqui a alguns anos?”, diziam…
Nenhum jornalista tem acesso à reunião. Apenas câmeras registram o plená-
rio e o palco de eventos. Além de transmitir para todos os cantos do planeta, um
grande telão, instalado em uma área coberta, mostra as imagens do interior do
prédio onde tudo ocorrerá.
A proposta é tão revolucionária que mesmo os mais crentes estão céticos. No en-
tanto, ela ganhou corpo e veio se consolidando, por razões aparentemente inexplicáveis.

198
O Dogma dos três poderes

— Parece ter havido um milagre — diz um comentarista.


— O milagre do bom-senso e da lucidez — retruca seu interlocutor.
Na hora exata começa o conclave:
Sob os aplausos de quase um minuto, o chefe de estado em exercício da Suíça,
como anfitrião, inicia os trabalhos e é logo aclamado para presidi-los.
Os organizadores do evento preveem todos os detalhes. O “chairman”, impe-
cavelmente vestido, inicia, na hora exata, a leitura de um discurso sucinto, no qual
dá as boas-vindas aos mandatários presentes e externa seu desejo de êxito aos con-
gressistas. O discurso é curto e contundente, ao encorajar os delegados a aceitarem
a proposta que logo será formulada.
Dá a palavra, então, como programado, a Júlia Carvalhal Pontes, uma das mais
ardorosas defensoras da proposta, presidente do Conselho de Estado do Brasil, uma
das formuladoras da ideia.
Julgada inviável pelos realistas, ou improvável pelos otimistas, a sugestão ga-
nhou adeptos e, para espanto e perplexidade de muitos, parece prestes a ser apro-
vada pelas dezenas de países ali representados.
Claro, haverá a necessidade de ratificação posterior por parlamentos e ple-
biscitos, mas o clima de entusiasmo subitamente reinante leva a crer que todos os
obstáculos serão transpostos.
Após saudar os presentes, Júlia Carvalhal Pontes faz um longo silêncio e principia seu
discurso, em inglês fluente, com a voz trêmula e embargada saindo pausadamente:
— Meus caros senhores e senhoras:
— O ser humano sempre teve um grande desafio — diz —, levantando um
pouco sua mão direita e a fechando, lentamente, como se estivesse querendo pegar
alguma coisa no ar.
— Viver em paz.
— E, meus senhores e senhoras, paz não significa apenas a ausência de guerra,
esta violência irracional. Não é apenas a solução da força, o atraso bárbaro do mor-
ticínio de seres humanos para resolver um conflito.
— Paz é um conceito maior.
Nova pausa.
— É o triunfo do amor, da tolerância e, acima de tudo, da opção pelo uso da
racionalidade, na solução de nossas diferenças.
— É também a meta perseguida pela humanidade de irmanar-se contra agres-
sões tão violentas e destruidoras quanto a guerra, a fome de crianças e idosos, a
miséria, a degradação, a ignorância e o analfabetismo que condenam o ser humano
à imobilidade social, à falta de liberdade em todos os seus aspectos e sentidos.

199
P. Garaude

— Paz é a erradicação da tortura, a eliminação da escravidão ostensiva ou


disfarçada, é a proibição legal e efetiva da discriminação, da perseguição a pessoas
ou grupos, em função de sua raça, crença, sexo ou orientação sexual. Paz é a con-
sagração da meta da eliminação total do tráfico de drogas prejudiciais à saúde e à
dignidade das pessoas; é a igualdade total entre os sexos; é a erradicação definitiva
da doença endêmica que poderia ser prevenida e tratada; é a execração efetiva da
exploração de crianças, mulheres e idosos; é a luta consagrada em lei contra todo
tipo de vilania, preconceito e falta de liberdade, que ainda resistem no âmago mais
obscuro de nossa civilização.
— Para obter a paz é preciso haver a compreensão de que o ódio não constrói,
de que as fronteiras que criamos não devem nos dividir, mas apenas servir de limites
demarcatórios entre vizinhos, para apenas definir autonomias administrativas.
— Paz é a eliminação total do terrorismo, a ideia infantil de que alguns pontos
de vista poderão ser implantados com a morte, o medo, o sofrimento, em geral
impostos apenas a pessoas inocentes. A História provou que nada se constrói com
a violência. Ela apenas destrói e, mesmo se fosse empregada a favor de uma boa
causa, sua consequência seria pior do que a razão que pode tê-la motivado.
E após breve pausa:
— Felizmente, estamos cada vez mais misturados e sepultamos, como sórdida,
a ideia de raça superior, diz.
— Cada vez mais, ser negro, branco, amarelo ou mestiço quer dizer menos
e, logo irá dizer absolutamente nada. Nossos países são um cadinho de raças que,
salvo pouquíssimas e tristes exceções, vivem em paz e colaboração.
— Até agora temos brincado de soldadinho de chumbo, cada um com seu
exército particular desafiando o outro para ver quem é o mais forte.
— Brincamos demais com guerras.
— O triste é que suas consequências são a destruição de casas, lares, cidades.
O absurdo delas é que fazem mortos, feridos, destroçam famílias e vidas e isso não é
brincadeira de criança, mas a demonstração suprema da mistura de incompetência
e frieza na solução de nossas diferenças.
— Está na hora da ideia de paz deixar de apenas definir a situação momentâ-
nea de ausência de guerra, um desejo ou uma saudação, para se tornar a realidade
permanente em todo nosso planeta.
— Os conflitos regionais, por fronteiras, por crenças, por diferenças ideológicas
ou religiões, não passarão de reminiscências pueris da história do humana, fase
agora prestes a ser encerrada.

200
O Dogma dos três poderes

— Pagamos caro pelo aprendizado, mas estamos nos diplomando em bom-


senso.
— Estamos dando importante passo adiante, na condição humana.
— Não nos resta alternativa senão a de passarmos à idade da razão, do juízo
e também do amor. Aquela idade em que deixamos a casa de nossos pais para
nos tornarmos adultos e abrimos mão de participar de brigas infantis fundadas em
motivos bisonhos.
— Percorremos um longo caminho, até aqui. Trilhamos, com milhões de bai-
xas, estradas pantanosas para chegar ao limbo da paz.
— Temos hoje menos guerras do que em qualquer outro momento da História,
mas, ainda há muito a avançar.
— A proposta que estamos prestes a viabilizar tem a simplicidade difícil, como
concepção.
— O que estamos sugerindo, em um primeiro momento, é que juntemos os
nossos exércitos para que eles passem a somar um só, uma grande força de paz,
com o objetivo único e fundamental de conquistá-la e preservá-la — diz, agora sob
o aplauso, em pé, de todos os participantes.
Longa pausa…
— Proibiremos, definitivamente, a guerra como solução, e as diferenças, dora-
vante, serão resolvidas em tribunais — disse, sob novos aplausos.
— Lembro, a propósito, que em todos os países do mundo não existem exérci-
tos estaduais, provinciais, distritais ou municipais.
— É que eles deixam de fazer sentido, pois a situação de paz interna estaria
sendo garantida, se violada fosse, pelas forças armadas nacionais.
— Chegaremos, a nível planetário, a essa mesma situação, entre cinco a dez
anos, não mais.
— Vamos encerrar este ciclo e não tardará a sentirmos a idiotice que foi essa
atitude irracional, infantil de nos armarmos a pretexto de nos defender.
— Criamos um círculo vicioso no qual vizinhos se armam para prevenir o ata-
que um do outro. E quanto mais um se arma, mais o outro se acha na obrigação
de também o fazer.
— Vivemos, por séculos, na verdade desde os primórdios da humanidade, a
situação esdrúxula de nos prepararmos, em uma escalada suicida, para o enfren-
tamento de homens contra homens, a solução pela morte de pessoas inocentes e
não responsáveis pela beligerância, como forma de solucionar desavenças entre
poderosos.

201
P. Garaude

— Está na hora do basta. Se prosseguirmos em nossa época com essa estultice


que é a guerra, a decisão deporá, não apenas contra a inteligência, mas contra a
dignidade de nossa espécie.
— Daremos prova cabal de nossa racionalidade.
— Mas há necessidade de sermos realistas.
— Enquanto a paz universal não for estendida a todos os rincões desse nosso
planeta, manteremos, pelo tempo necessário, o poder militar. Sua função, no en-
tanto, será garantir a paz.
— As forças armadas de todos os países que aderirem ao tratado serão unifica-
das e só poderão agir mediante autorização do tribunal de segurança a ser criado,
por decisão tomada por um quórum determinado, para cumprir o objetivo fixado,
sempre almejando a paz, a liberdade, o resguardo dos direitos fundamentais dos
seres humanos e dos estados.
— Sua função será a de garantir a paz interna entre os países federados quando
houver a solicitação de um deles e for aprovado pelo tribunal ou defender um es-
tado federado, se agredido injustamente por qualquer outro, também conforme
decisão qualificada do tribunal de segurança.
— Não haverá mais qualquer razão para um estado manter forças armadas, a
não ser para sua segurança interna, no combate ao terrorismo e ao crime.
— Mas as forças armadas mundiais poderão também intervir, quando um es-
tado democrático for agredido internamente por forças que insistam em manter a
violência, o terrorismo como forma de luta política, agora definitivamente proibida,
em todos os estados federados.
— Portanto, as forças armadas, mediante solicitação do próprio governo do
estado agredido, desde que autorizado pelo Tribunal de Segurança, lutará também
contra o terrorismo, nacional ou internacional, caracterizado como negativa de um
grupo, ou pessoa, de participar pacificamente do jogo democrático válido, visando
ocupar o poder pelas vias legais.
— O terrorismo mostrou-se um instrumento ineficiente e prejudicial àqueles
que o usaram como tentativa de protestar, impor suas convicções ou reivindicações.
O exército mundial não se limitará a combatê-lo, tenazmente, mas a assegurar que
todas as correntes de opinião, políticas, religiosas ou outros valores, desde que em-
basados nos princípios democráticos, sejam respeitados, tenham meios de divulga-
ção e, se vitoriosas suas teses, as vejam implantadas, uma vez que não contrariem
estes mesmos direitos e preceitos que poderão utilizar.
— Os países que aderirem a esta proposta deverão se comprometer a renunciar
a seus exércitos nacionais e a substituí-los por essa força mundial de paz, liderada

202
O Dogma dos três poderes

por uma nova federação mundial, democrática e livre, submetida a um tribunal uni-
versal de segurança e a uma legislação, ou carta de princípios, em que os direitos
dos estados signatários sejam respeitados e garantidos.
Longa pausa… e aplausos.
— A Carta Universal dos Direitos Humanos é o documento maior. A base de
nossa inspiração — diz.
— A ela irá se somar, agora, a não menos importante “Declaração de Direitos
dos Estados”, com os seguintes principais pontos:
— Compromisso de todos os estados signatários, de cumprimento integral
da Declaração dos Direitos Humanos, especialmente com relação à defesa da li-
berdade de pensamento, imprensa, religião e proibição de toda e qualquer forma
de discriminação;
— A eleição do princípio de que o governo é fruto da vontade de seu povo e
será escolhido de forma democrática, periodicamente, com a garantia de represen-
tação a todas as correntes políticas e de opinião;
— Renúncia a qualquer tipo de guerra ou agressão a outro estado, sob qual-
quer pretexto ou motivo, outorgando à força mundial a defesa da garantia de sua
integridade e manutenção da paz, da liberdade e da democracia;
— Acato a todas as decisões tomadas pelos tribunais internacionais, especial-
mente o Tribunal de Segurança Internacional;
— Aceitação das regras de comércio aprovadas pela agência mundial de co-
mércio;
— Respaldo financeiro à Federação Mundial de Estados, concorrendo com as
contribuições que lhe caibam.
E continua a oradora:
— Estamos tomando medidas realistas para que a adesão à federação seja
extremamente conveniente a todos os países que optarem.
— Esse realismo significa não apenas aceitar a decisão voluntária de se juntar a
nós. A opção virá recheada de vantagens e a negativa de grandes problemas.
— Não iremos nos negar a negociar com os países não membros, de imediato.
Mas vários produtos passarão a ter sua comercialização proibida, como armamen-
tos, outros serão sobretaxados na exportação, e barreiras tarifárias altas serão im-
postas a seus produtos e serviços, até a proibição futura e total de negociar entre os
países membros da federação e os não membros.
— Não temos o direito de impor a adesão a quem não queira entrar, mas te-
mos o dever de tratar de forma distinta os estados que não se comprometerem com
a paz e o bem-estar da humanidade.

203
P. Garaude

— Sua opção de não entrar na federação equivale a nosso direito de excluí-los


de todas as vantagens de uma adesão.
— Temos, também, ampla consciência de que, em estados democráticos, não
é um grupo de pessoas que toma as decisões, muito menos os senhores aqui pre-
sentes, exclusivamente. Em muitos de nossos estados, como no meu, haverá neces-
sidade de amplas discussões no seio do governo, ou no Parlamento. Em outros, até
plebiscitos serão necessários.
— Estamos hoje começando a dar o primeiro passo. Tenho certeza de que
será o primeiro de uma estrada que nos levará à aurora de melhores dias para a
humanidade.
— Tenho a satisfação de anunciar que, em linhas gerais, os governos de 79
países já se manifestaram favoravelmente à criação da federação.
— Em nome da comissão que trabalhou, por dez meses, e nesse prazo recorde
aprovou, por unanimidade, o documento que passo a ler, peço a aceitação, com
ou sem emendas, por parte dos estados aqui representados, desses seguintes pon-
tos principais, que serão submetidos, cada um, às comissões que logo mais serão
constituídas para se manifestar sobre eles, isoladamente. Depois, com as emendas
aprovadas, voltarão para a apreciação e votação, em plenário:
1) Criação de uma federação de países, aberta a todos os estados que dese-
jem nela ingressar e aceitem seus princípios básicos;
2) Eliminação ou transferência paulatina para a nova federação, a razão de
vinte por cento ao ano, de todas as forças militares nacionais, exceto as
policiais, tanto em número de homens, como de equipamentos;
3) Criação da “Força Mundial da Paz”, a ser acionada apenas por expressa de-
terminação do Tribunal de Segurança Internacional, a ser constituído, força
esta integrada por todos as nações federadas, formada, preferencialmente,
com o aproveitamento dos quadros eliminados das forças nacionais;
4) Criação dos seguintes tribunais, cujas decisões serão obrigatórias aos países
membros:

•• Tribunal de Segurança Internacional, a quem caberá a decisão sobre o


emprego de força para prevenir ou impedir crimes ou agressões armadas
contra a humanidade, reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, ou contra qualquer estado federado, conforme o disposto na
Declaração Universal dos Direitos dos Estados;
•• Tribunal de Defesa dos Direitos Humanos, para julgamento e aplicação de
penas a pessoas que cometerem crimes contra os direitos universais hu-

204
O Dogma dos três poderes

manos e contra a soberania e a integridade de qualquer estado membro,


servindo de normatização a Carta de Defesa dos Direitos dos Estados;
•• Tribunal de Comércio, para resolver questões comerciais entre os países
federados, regidas pelo tratado geral;
•• Tribunal de Ética, para julgamento de pessoas acusadas de desvio de di-
nheiro público pertencente ou originário da federação.

5) Criação de cinco agências para atuação nos países da federação, com caracterís-
ticas de empresas públicas e ingresso por concurso, em seus quadros a saber:

•• A de Educação, destinada a erradicar o analfabetismo no mundo, melhorar a


educação, a cultura, a formação profissional, além de incentivar o espírito de
solidariedade, a convicção e defesa da democracia, do amor ao próximo, da
paz e, sobretudo, da liberdade indispensáveis à dignidade do ser humano;
•• A de Saúde, com os seguintes objetivos: construção e equipagem de hos-
pitais em países pobres; organização e execução de políticas preventivas
contra moléstias infecciosas e endêmicas, especialmente por meio do de-
senvolvimento de pesquisas, da vacinação e educação sanitária; incentivo
e execução de um programa de planejamento familiar, de adesão volun-
tária das pessoas, visando à redução do número de filhos, cujos pais não
possam lhes prover o sustento, a saúde e a educação; tratamento de do-
enças endêmicas com programas amplos de vacinação, além de estímulo
à prática de atos de higiene e prevenção a doenças;
•• A de Nutrição, com vistas a eliminar a fome em todas as suas variantes,
com o financiamento de infraestrutura para a produção de alimentos nos
países pobres, a compra, o armazenamento e a distribuição de exceden-
tes para os que não conseguirem autossuficiência;
•• A de Meio Ambiente, para preservar a qualidade ambiental do ar, das
águas, do solo e o estímulo à preservação de parques, florestas, mares,
rios e lagos, além de um trabalho corretivo em áreas degradadas. Atuará,
também, em pesquisas científicas ambientais, campanhas educativas e na
apresentação de moções de censura a estados que permitam a devasta-
ção, ou a prática de crimes ambientais;
•• A de Combate ao Crime e à Corrupção, com a finalidade de combater
esses males em todos os países da federação, levando e denunciando os
infratores para o devido julgamento nos tribunais nacionais ou da federa-
ção, conforme a origem crime do dinheiro ou do patrimônio lesado.

205
P. Garaude

6) Colaboração financeira equivalente a três por cento, por dois anos, passando
a quatro por cento, por mais dois, e depois a cinco por cento por mais dois
anos, do produto interno bruto de cada país membro, visando à sustentação
da federação, das forças armadas e à criação de tribunais, agências interna-
cionais ou empresas públicas de prestação de serviços novas, para atuação
nos países membros. Decorridos seis anos da fundação, nova assembleia de-
finirá o valor atualizado de contribuição de cada estado membro;

7) Atualização e nova subscrição à Declaração Universal dos Direitos Humanos,


por todos os países signatários, com a assunção da obrigação de cumpri-la
e fazer cumpri-la, integralmente, em seus respectivos países, tornando esse
compromisso parte do juramento de posse de todos os novos governantes;

8) Elaboração e aprovação, pelos países membros, como item obrigatório aos


que aderirem, da Declaração Universal dos Direitos dos Estados, definindo
princípios como não agressão, respeito à soberania, renúncia programada à
guerra e à existência de forças armadas nacionais, salvo para fins policiais,
assim que a federação tenha condições de garantia de sua integridade,
reconhecida pelo Tribunal de Paz;

9) Eliminação progressiva de barreiras alfandegárias entre os países subscrito-


res e o uso apenas de mecanismos compensatórios definidos pela federação
pela agência internacional de comércio e aceitação das decisões tomadas
pelo Tribunal Internacional de Comércio;
10) Aplicação imediata de uma taxa alfandegária de cinquenta por cento sobre
produtos e serviços provenientes dos países não participantes da federação;
11) Proibição total, pelos países federados, em seis anos, da importação de pro-
dutos e serviços oriundos dos países que não aderirem ao tratado geral;
12) Os tribunais e as organizações serão contemplados com verbas, conforme
critério aprovado pela assembleia da federação;
13) Direito de voto na Assembleia proporcional à contribuição financeira de
cada país, limitado pelos estatutos da federação, que definirá direitos e
deveres de cada estado membro;
14) Nomeação, imediata, de uma comissão para tratar dos estatutos de funda-
ção da federação.

— Senhores:
— Nosso interesse e objetivo são de que, um dia, todos os estados de nosso
planeta venham a participar da federação.

206
O Dogma dos três poderes

— Não lhes vou negar que os objetivos visam tornar extremamente conve-
niente a seus países a adesão à federação ou, se preferirem, altamente inconve-
niente a não participação.
— Não vou lhes negar que a estratégia sugerida na proposta, a curto e médio
prazos, é conseguir, paulatinamente, que os governos recalcitrantes venham a par-
ticipar de nossa organização. É colocá-los na situação em que seu próprio povo os
forçará à adesão, tais as vantagens que terão.
— Estamos sendo realistas quanto a nossos objetivos, pois estaremos come-
çando com a destinação de apenas três por cento do produto interno bruto de cada
um de nossos países, o que me parece bem pouco, mas prudentemente exequível
como fase inicial, tendo em vista que a participação de nossos governos no PIB
mundial é hoje, da ordem de mais de vinte e cinco por cento, em média.
— Ao destinar pouco mais de dez por cento das receitas de nossos governos
à federação, iremos imediatamente economizar com despesas militares, em uma
escala progressiva, pois o objetivo da federação é que as forças armadas nacionais
se tornem desnecessárias vindo a agir apenas internamente na prevenção do terro-
rismo e do crime.
— Não tenho dúvidas de que os céticos vão duvidar de nossos propósitos e achar
que toda a proposta não passa de uma tentativa dos países grandes de assumir a he-
gemonia mundial, criar um comando único globalizado, sob sua influência.
— Mas eu garanto que não é esse nosso propósito. Muito ao contrário. Ne-
nhum outro país estará perdendo mais soberania do que outro. Estaremos, prati-
camente, depondo armas, pacificamente, com vista à criação de um único exército
mundial, do qual todos farão parte, minoritariamente.
— O desafio que enfrentaremos é grande e, por certo, vem em detrimento do
interesse de grupos muito poderosos, especialmente aqueles que vivem da guerra
e de seus preparativos.
— Temos muito trabalho pela frente, começando por nos convencer de que a
ideia é exequível. Eu já tenho certeza de que é.
Júlia Carvalhal Pontes — Fui incumbida pela comissão, da qual sou porta-voz,
de assegurar nosso compromisso irrevogável nesta luta.
— Ela será vitoriosa.
— Conclamo a todos os homens e mulheres de boa vontade, amantes da paz,
no mundo inteiro, que se juntem a nós, nesta maravilhosa jornada que se inicia.

207

You might also like