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No olho da rua

Foto: Gabriel Cabral

Albergues e abrigos procuram oferecer apoio à população sem teto

NATALIA VIANA

Nas grandes cidades brasileiras, o número de pessoas que vivem nas ruas não pára de crescer.
No município de São Paulo, há cerca de 10 mil nessas condições, segundo a Secretaria de
Assistência Social. São chefes de família que perderam o emprego, donas-de-casa abandonadas
pelo marido, migrantes que buscavam oportunidades que não encontraram, etc. Segundo
levantamento feito pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) em 2000, a maioria
(66%) trabalha para sobreviver, e a ocupação mais comum é a de catador de materiais recicláveis,
ou "carrinheiro" (cerca de 35%), com renda média mensal de R$ 295.

São vários os motivos que levam alguém à situação de morador de rua. Para Alderón Pereira da
Costa, da ONG Rede Rua de Comunicação, que trabalha há 12 anos com essa realidade, o
processo de degradação geralmente começa com a falta de trabalho, passa pela perda da casa e
culmina com o rompimento dos laços afetivos. Na rua, uma sociedade à parte se desenvolve, com
leis e rotinas próprias, completamente alheias às do dia-a-dia dos demais habitantes da cidade.
"Não podemos ver essas pessoas pela ótica dos nossos valores. Em vez disso, precisamos
compreender a cultura da rua, que é um outro mundo. Quem está nessa condição também deseja
viver o melhor possível dentro daquelas circunstâncias", diz Alderón.

Nesse mundo, a demarcação de espaço costuma ser bem definida, como explica o baiano Carlos
Alberto Santos, que, após rodar o Brasil com uma banda de forró, veio para São Paulo há dez anos
em busca de oportunidade e hoje, como ele diz, mora com a esposa na "Frei Caneca, 385" – na
verdade o casal dorme na calçada em frente a esse endereço. "Quando chega gente nova,
precisamos saber quem é, se tem algum problema.

Então é estabelecido o local em que cada um vai dormir." Segundo ele, a primeira regra para viver
na rua é andar sozinho ou, no máximo, em dois. "Sempre dá briga, porque um fica de olho gordo
no que é do outro, principalmente se estiverem bêbados." Na hora de dormir, o cuidado deve ser
redobrado, já que é muito comum ocorrerem roubos durante a noite. Qualquer roupa diferente,
sacola nova ou rádio de pilha vira alvo de cobiça. E, não raro, com os ânimos acirrados pelo álcool,
pode se tornar motivo de briga e até de morte. Como as querelas se dão em torno de objetos de
baixíssimo valor, que podem ser rapidamente vendidos ou trocados, não há a quem se queixar.

A ausência total de segurança agrava a violência e, pior, muitas vezes as agressões partem de
policiais. A pesquisa da Fipe mostrou que, dentre os entrevistados em logradouros, 60,2% já
haviam sofrido algum tipo de violência – 30,6% foram agredidos pelos próprios moradores, 22,8%
por transeuntes e 13,3% por policiais. Quanto ao tipo de agressão, 52,2% sofreram espancamento,
29,7% receberam facada, tiro ou pauladas e 26,5% foram vítimas de roubo ou furto. "Os policiais
batem, chegam agressivos quando deveriam conversar. Aí as pessoas se tornam violentas
também, para se defender", diz João Marcos de Souza, de 43 anos, que saiu de casa aos 14. Ele
trabalhou em fazendas de São Paulo e do Mato Grosso, em garimpo no Pará e vendendo feijão em
beiras de estrada em Goiás, até vir morar num albergue na capital paulista há dois anos.

João Marcos acha que a agressividade do morador de rua é reflexo também do preconceito da
sociedade. "Eu senti na pele o que é ser discriminado. É chegar a um lugar e ser olhado de rabo
de olho, é a polícia te parar na rua e dar uma revista geral. É entrar num bar, querer usar o
banheiro e o sujeito não deixar. É não ter voz ativa para nada. Assim, a gente vai se apequenando
diante das coisas."

Por outro lado, há a solidariedade da rua. "Se você conhece alguém do grupo, é muito bem
recebido por todo mundo. Se uma pessoa tem comida e outra, não, elas dividem", conta Alderón.
Na verdade, esse tipo de comportamento é responsável pela recusa de grande parcela da
população em sair da rua e ir para um albergue. Esse é o caso do jovem Gaúcho. Mesmo após ter
sido hospitalizado por atearem fogo em sua perna, ele diz nem pensar em abandonar a rua. "A
melhor coisa é a liberdade, preparar uma comida gostosa com os amigos e depois beber cachaça."
Viajado, ele conheceu boa parte dos países da América Latina fazendo bicos. "Sou trecheiro",
orgulha-se, usando a gíria que define o andarilho moderno.

A vida no albergue

Acostumados ao cotidiano da rua, muitos moradores não se adaptam à disciplina dos albergues da
prefeitura, onde recebem comida, roupas e uma cama para dormir. Ali, são obrigados a seguir
horário fixo, tomar banho, trocar de roupa e não beber. De manhã, devem acordar e voltar para a
rua. "Logo cedinho já vêm os homens cutucando e mandando a gente trabalhar", reclama o baiano
Eginaldo Barreto Cruz, cantor, dançarino e, atualmente, catador de papelão. Ele também alega
falta de higiene em certos albergues: "Sujeira a gente ainda ignora, mas pulga não dá".

Mesmo assim, são poucos os moradores de rua que não recorreram pelo menos uma vez a um
albergue, numa noite fria. Os candidatos ao pernoite têm de amargar uma demorada fila de espera
do lado de fora. E, com essa freqüência esparsa, a tendência é reproduzirem lá dentro alguns
padrões da rua. Como têm de dormir em salões enormes, com até 60 camas, não são raros os
roubos, discussões e brigas. Não há dados oficiais que contabilizem essas ocorrências, mas a
maioria acaba sendo resolvida entre eles mesmos.

Além disso, a falta total de privacidade, tanto no quarto quanto nos chuveiros, geralmente coletivos,
acaba incomodando o albergado, segundo João Marcos, que atualmente mora no Abrigo São
Francisco de Assis, no Carandiru. "Procuro chegar bem tarde, porque às vezes você tem um dia
bom e aquela realidade acaba te entristecendo." Ele reclama, ainda, do fato de nenhum dos
albergues da cidade ter sido projetado para esse fim. "No nosso abrigo, o problema é o banheiro.
Somos cento e poucas pessoas e temos dois chuveiros e quatro sanitários. Imagine a fila..." Essa
falta de estrutura acaba gerando também algumas aberrações, caso dos albergues Reciclázaro
Gasômetro, no Brás, e Projeto Social da Comunidade Metodista do Povo da Rua, na Bela Vista,
construídos sob viadutos, onde carros passam durante toda a noite, comprometendo o sono das
pessoas.

Outra queixa freqüente refere-se a maus-tratos por parte dos funcionários. Um morador do Projeto
Gente, no Canindé, que não quis se identificar, afirma ter visto um funcionário bater em um idoso, e
outro assediar mulheres do alojamento. Porém, segundo João Marcos, não se pode generalizar.
"Existem bons e maus funcionários. Alguns procuram conversar, e outros são autoritários, agem
como se fossem donos do lugar."
Mudanças

Apesar de tantos problemas estruturais, é inegável que está havendo na cidade de São Paulo uma
verdadeira revolução no trato das pessoas de rua. A mudança teve início em 1997, com a
aprovação da lei 12.316, que criou políticas de atenção a essa população, de autoria da então
vereadora Aldaíza Sposati, atual secretária da Assistência Social. A lei só foi regulamentada em
2001, pela prefeita Marta Suplicy, por meio do decreto 40.232. "A lei e o decreto garantem os
direitos da população em situação de rua, e a prefeitura deve zelar pelo seu cumprimento", afirma
Aldaíza.

Desde que a atual administração assumiu, o número de albergues e de abrigos aumentou de 14


para 33, e a quantidade de leitos dobrou – hoje chega a 5 mil. Foram criadas a Casa de Cuidados
Maria Carolina de Jesus, no Canindé, que acolhe moradores de rua convalescentes e em situação
pós-operatória, e a Casa das Mulheres, no mesmo endereço, exclusiva para o sexo feminino,
destinada a abrigadas com ou sem filhos.

Além disso, a secretaria implantou um programa de moradias provisórias, casas ou apartamentos


divididos por até 15 moradores em situação de reinserção social, que hoje conta com 13 unidades.
A maior delas funciona num edifício de seis andares na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. São 24
apartamentos onde cerca de 115 pessoas, todas com renda própria, podem permanecer por no
máximo um ano. Cada habitação aloja até seis pessoas, e a cozinha é compartilhada. "Ao contrário
dos abrigos, aqui a comida, a higiene pessoal e a limpeza ficam por conta dos residentes, mas eles
começam a ter autonomia", explica a coordenadora Ligiane Bezerra Teixeira Lucas. O aluguel é
pago pela prefeitura, e os ocupantes dividem o valor do condomínio – R$ 25 para solteiros e R$ 35
para famílias. A limpeza das áreas comuns fica a cargo dos próprios moradores, que também
participam de grupos com psicólogos, oficinas de culinária e encontros mensais de
acompanhamento individual. Como em todos os projetos da prefeitura, a coordenação é feita por
uma entidade associada, neste caso, a Associação Evangélica Beneficente.

Nos projetos já existentes, porém, afirma Alderón, houve poucas mudanças. "Não há profissionais
capacitados, como educadores que busquem descobrir a história da pessoa, propor uma formação
e criar vínculos." Adelina Barone, coordenadora do programa População de Rua, da Secretaria de
Assistência Social (SAS), admite que ainda há problemas, mas diz que as reclamações em relação
a funcionários têm diminuído. "Promovemos cursos e reuniões para constante reciclagem dos
profissionais, com vistas a uma melhor capacitação. Casos de maus-tratos são esporádicos e
devidamente averiguados e punidos."

Para melhorar o atendimento, a SAS criou em junho de 2003 o Conselho de Monitoramento da


População em Situação de Rua. Ainda em fase de implementação, o órgão tem 19 membros, entre
representantes do fórum de ONGs que trabalham com população de rua, de empresas de
responsabilidade social, das secretarias do Trabalho, da Assistência Social, da Saúde e da
Habitação, além de três usuários dos serviços – João Marcos é um deles. "Para conseguir uma
aproximação com a pessoa de rua, é preciso falar a linguagem dela, e por isso tenho sido muito
procurado pelos albergados. Levamos os problemas para o conselho e buscamos saídas, como foi
o caso do atendimento de saúde. Havia muito preconceito, quando o morador de rua chegava a um
posto de saúde era um problema, o médico parecia ter nojo. Agora não temos mais tantas
reclamações."

Mas a menina-dos-olhos da prefeitura é mesmo o Projeto Oficina Boracea, inaugurado em junho


do ano passado na Barra Funda. Com um orçamento de quase R$ 4 milhões, o local tem 17 mil
metros quadrados e capacidade para abrigar 400 pessoas. Idealizado para carrinheiros, o Boracea
dispõe de estacionamento para carrinhos e canil para cachorros. "É uma maneira de mostrar ao
catador que aqui é um lugar bom para que ele possa reconstruir sua vida, desde a parte de
higienização até a formação cultural", explica a coordenadora, Lindamar Saba Silva. A
megaestrutura conta ainda com um telecentro, onde serão ministrados cursos de inclusão digital,
uma cozinha de uso comunitário, um cinema com programação de filmes nacionais, uma cozinha-
escola, salas de aula, cursos de jardinagem e horta, pequenos reparos, pintura e alfabetização,
além de uma agência bancária. "Na Caixa Econômica Federal, os catadores podem abrir uma
conta isenta de taxa", conta Lindamar, acrescentando que a equipe procura instruí-los a não gastar
todo o dinheiro que ganham. Estão previstas ainda a construção de um centro para venda de
materiais recicláveis e a formação de cooperativas de catadores no local. Tudo isso para promover
a inserção social. "Quem está na rua não é considerado cidadão, porque não tem casa nem
documento, não paga imposto, não vota, não tem conta bancária. Aqui ele é acolhido com
dignidade, respeitado como ser humano, cidadão, e recebe capacitação", explica Lindamar.

Círculo vicioso

Embora seja um grande avanço, o trabalho da SAS esbarra na complexa questão do acelerado
crescimento da pobreza na cidade. O papel do Boracea é questionado pelo fato de dar abrigo
provisório ao catador da região central, que mesmo após o acolhimento não tem outra opção
senão continuar na rua, pois seus rendimentos não cobrem um aluguel na área onde trabalha. "O
albergue é um paliativo. A pessoa fica três meses em um, depois vai para outro, depois para outro
e, assim, cria-se um círculo vicioso", diz Flávio Nicolau Júnior, de 40 anos, que prefere permanecer
na rua. "A gente da rua não quer nada de provisório, quer moradia e trabalho. A Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) não oferece nenhum plano para nós. E não
estamos pedindo esmola, não. Temos dinheiro para pagar."

Aldaíza Sposati admite que parte dos usuários permanece na rede social por um longo tempo.
"Menos de 20% dessa população continua utilizando os serviços de atenção por motivos de saúde,
falta de equilíbrio emocional e pela questão mais importante: não há emprego para todos, muitos
viverão sempre de ‘bicos’." Pelo mesmo motivo, os cursos de capacitação oferecidos pelos
serviços da prefeitura desagradam aos críticos. Em artigo publicado no jornal "O Trecheiro", da
Rede Rua, o albergado Clodoaldo Santos da Silva expõe claramente o problema: "Conheço aqui
mesmo no albergue diversos profissionais que atuaram por anos nas áreas que esses cursos
oferecem e estão desempregados. Imagine se eu me apresentar numa empresa com um
certificado de um curso profissionalizante de quatro meses. Vão rir na minha cara". Para Alderón, a
solução passa pela oferta de emprego, e não só de formação, uma questão que envolve a
necessidade de uma ação intersecretarial na prefeitura. "Uma das reivindicações das entidades é
que em toda obra da prefeitura seja empregada uma porcentagem de pessoas em situação de
rua." Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e
Solidariedade, não há atualmente nenhum projeto específico para moradores de rua.

Assim, após recuperar a auto-estima, os usuários da rede de proteção social têm pouca chance de
melhorar efetivamente de padrão de vida. Sem apoio, o máximo que conseguem é continuar
trabalhando muito e ganhando o mínimo para sobreviver. Muitas vezes, a recuperação dura pouco.

Som e arte de sucata

O bater de latas anuncia o início de mais um ensaio. Um grito: "Unidos da Sucata chegou", e a
cantoria começa na garagem do Serviço de Apoio Socioeducativo de Capacitação e Orientação
Profissional (Sasecop). Coordenado pelo Instituto Lygia Jardim, o grupo utiliza latões de lixo,
cabides, galões de água e canos como instrumentos musicais. Há três anos, dez pessoas em
situação de rua juntaram-se, sob a supervisão da professora Maria Anunciação Silva, para tocar
samba.

Marco Antônio Gomes, um dos fundadores do grupo, atualmente dedica o tempo livre a aprender a
tocar cavaquinho e a compor. "Já fizemos mais de 200 apresentações", diz, orgulhoso. Seguindo
seus passos, outros integrantes acabam descobrindo no bater ritmado das latas um motivo de
alegria. É o caso de Doraci de Lima, que nunca havia tocado até dois anos atrás, quando viu um
ensaio enquanto fazia um curso de cabeleireiro no Sasecop. "O que mais gosto é do fato de que
ninguém dá nada para a sucata, mas ela faz um som legal, é como se fosse mágica." No palco, de
moradores quase invisíveis da cidade, os integrantes transformam-se em atração principal. "A
gente não recebe dinheiro, só aplausos, mas isso é muito bom!", diz Doraci. Para Anunciação, a
"rainha da sucata", a mágica tem nome: auto-estima.

Motivar o morador de rua através da arte também foi a intenção do secretário de Cultura Celso
Frateschi ao convidar o grupo de teatro Cia. São Jorge a "ocupar" o Projeto Oficina Boracea para
lá realizar um trabalho permanente, com ensaios, apresentações, oficinas e espetáculos de
convidados. A idéia apaixonou os integrantes, que, mesmo antes da inauguração do Boracea, se
instalaram no albergue Projeto Gente, no Canindé, em março do ano passado, onde fazem
ensaios abertos e apresentam a montagem "As Bastianas", todo sábado e domingo. "Queríamos
ter contato com as pessoas, então viemos para cá", conta Rogério Tarifa, membro do grupo. "Aqui
temos uma convivência verdadeira, sem máscaras." A relação é tão estreita que os albergados
participam da peça cantando, dançando e, também, dando palpites.

Outras iniciativas procuram incentivar os moradores de rua a fazer arte e deixar de ser apenas
espectadores. O Refeitório Comunitário da Rua Penaforte Mendes, coordenado pela Rede Rua, já
oferece quinzenalmente um ateliê de vídeo, com aulas ministradas por professores de cinema.
"Estamos fazendo um filme", diz, entusiasmado, Carlos Alberto Santos, que freqüenta a oficina
com a esposa. Segundo Lindamar Saba Silva, coordenadora do Projeto Boracea, o local vai
ganhar em breve uma oficina nos mesmos moldes. "Sempre assistimos a filmes sobre a população
de rua, mas feitos por outras pessoas. Aqui, não. Eles é que vão contar a própria história."

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