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Estrutura Argumental em Morfologia Distribuída

Dra. Ana Paula Scher (DL/FFLCH/USP) (FAPESP)


Dr. Alessandro Boechat de Medeiros (DL/FFLCH/USP) (FAPESP)
Rafael Dias Minussi (DL/FFLCH/USP) (CNPq)

11 Introdução

Este trabalho tem como objetivo amplo discutir em uma Teoria não-lexicalista, como a da
Morfologia Distribuída, a maneira como é decodificada a estrutura argumental de verbos. De modo
mais específico, neste trabalho trataremos de: a) alternância causativo-incoativa, como em ; verbos
inergativos e transitivos sem alternância, como em ; verbos de atividade com complemento e sem
ponto final, como em e verbos de deslocamento com um PP que denota caminho; como em . Esses
exemplos foram escolhidos por trazerem algum tipo de problema para sua explicação em teorias
lexicalistas.

( 11 a. O João ferveu o leite.


b. O leite ferveu.

( 11 a. O João gritou.
b. O João pintou o muro.

( 11 a. O João empurrou o carrinho.

( 11 a. O João andou até a porta.

11 Background teórico: Morfologia Distribuída

A MD é um dos desenvolvimentos recentes da Teoria da Gramática Gerativa; sendo assim,


ela se caracteriza como uma teoria sobre a arquitetura da faculdade da linguagem. Foi proposta no
início da década de 1990, por Morris Halle e Alec Marantz, tendo como principais trabalhos de
origem: Halle; Marantz (1993), Halle (1997) e Marantz (1997).
São três as propriedades que definem a MD:

( 11 a. Inserção tardia (Late Insertion): refere-se à hipótese de que expressões


fonológicas de terminais sintáticos são fornecidas no mapeamento para a Forma
Fonológica (PF). Em outras palavras, categorias sintáticas são puramente abstratas,
não possuindo conteúdo fonológico. Apenas depois da sintaxe, elas recebem traços
fonológicos, por meio de regras que unem “som” a traços de um nó terminal,
chamadas de itens de vocabulário, que caracterizam um processo chamado spell-out.
b. Subespecificação dos itens de vocabulário (Underspecification of vocabulary
items): as expressões fonológicas não precisam ser completamente especificadas para
as posições sintáticas onde elas podem ser inseridas. Apenas os morfemas (nós da
estrutura sintática) são totalmente especificados em relação ao seu conteúdo.
c. Estrutura sintática hierárquica em toda a derivação (Syntactic hierarchic
structure “all the way down”): implica que processos sintáticos e morfológicos
respeitam os mesmos tipos de estruturas de constituintes. A Morfologia Distribuída
está baseada na proposta de que os elementos da sintaxe e da morfologia são
entendidos como discretos em vez de resultados de processos morfo-fonológicos.
Não há a necessidade de derivações ou processos pré-sintáticos.

O léxico se distribui em três listas (Cf. MARANTZ, 1997) acessadas em diferentes pontos
da derivação sintática, como mostra a figura adaptada de (HARLEY; NOYER, 1999):

( 11
A Lista 1 (Lista de traços morfossintáticos) contém as raízes e os morfemas abstratos. Os
morfemas abstratos são terminais sintáticos que possuem apenas traços não fonológicos. Podem ser
considerados como traços universais. Participam dessa lista, os traços de categorias funcionais que,
ao final da computação, podem ser associados ao material fonológico adequado.
Atualmente, existe uma grande discussão sobre a natureza das raízes na MD. Para Embick;
Noyer (2004), as raízes são definidas como complexos de traços fonológicos e, em alguns casos,
traços diacríticos não-fonológicos. Enquanto os traços que criam os morfemas abstratos são
universais, as raízes são combinações específicas de som e de significado. De maneira bastante
ampla, o conceito de raiz pode ser diretamente relacionado ao signo saussureano, no que diz
respeito à indivisibilidade entre significante e significado. As raízes sempre ocorrem numa relação
local com um núcleo funcional definidor de categoria, ou seja, as raízes, por si só, não possuem
categoria gramatical determinada.
A Lista 2 (Vocabulário), segundo Embick; Noyer (2004), contém os itens de vocabulário, ou
seja, a expressão fonológica dos morfemas abstratos e as regras necessárias para combinar o
material fonológico ao resultado da derivação morfossintática.
A Lista 3 (Enciclopédia) é uma lista de informação semântica que deve ser consultada. Por
exemplo, uma propriedade de certa raiz, ou de um objeto construído sintaticamente tal como uma
expressão idiomática, será consultada para, então, ter seu significado definido. Essa lista também
define sentidos especiais para determinadas raízes, dependendo do contexto sintático em que tais
raízes aparecem. Por exemplo, a raiz √gato pode significar: felino peludo, animal que gosta de leite,
animal que caça rato etc., ou pode significar: emaranhado de fios clandestino que pode levar a um
curto-circuito etc. De maneira geral, podemos dizer que a Enciclopédia lista significados especiais
de raízes em contextos sintáticos específicos. Em outras palavras, ela é uma lista de idiomas da
língua.

2.1 A opção pela Morfologia Distribuída

Nesta subseção, traremos algumas razões para escolha de uma modelo não-lexicalista para a
explicação dos fenômenos destacados no início deste trabalho.
A primeira razão diz respeito à dificuldade de definir teoricamente a noção de palavra, fato
esse ressaltado por Marantz (1997). Esse autor rebate a afirmação de que as palavras são o lugar de
variados tipos de idiossincrasia e afirma que os domínios de aplicação de “regras fonológicas
lexicais”, de significados especiais (idiossincráticos) e de correspondências aparentemente especiais
entre estrutura e significado, que deveriam, assumindo a Hipótese Lexicalista, coincidir na palavra,
de fato, não coincidem nela. Tomemos, por exemplo, um nome composto do hebraico: beyt-sefer
(literalmente: casa-livro, significando ‘escola’. Várias noções de palavra podem ser utilizadas para
definir esse composto: (i) palavra prosódica, se levarmos em consideração a perda de acento do
composto; (ii) palavra morfológica ou sintática, se separarmos os compostos formados com uma
raiz dos que são formados por duas raízes e (iii) palavra morfológica, se utilizarmos a noção de
morfologia não concatenativa (aquela em que não há processos de afixação) para explicar a não
ocorrência de compostos formados com verbos no hebraico. Além disso, temos neste composto um
único conceito ‘escola’ formado por dois elementos.
A segunda razão está relacionada ao fato de que, no modelo da MD, há apenas um
componente gerativo de modo que não há necessidade do uso de operações lexicais especiais (do
tipo assemble features, como em Chomsky 1997, por exemplo) diferentes das operações sintáticas
de concatenar e mover (CHOMSKY, 1995); tampouco, são necessários princípios que relacionem
estrutura morfológica e estrutura sintática, como o princípio do espelho (discutido em BAKER,
1985); ou regras de link, que definem como os argumentos dos verbos são projetados na sintaxe
(ver, por exemplo, LEVIN & RAPPAPORT, 1988 e LEVIN, 1999 para um conjunto de propostas
que necessita de tais regras).
A terceira razão está relacionada ao princípio de inserção tardia e ao princípio do
subconjunto. Nesta teoria, podemos explicar de maneira elegante o fato de uma mesma forma poder
aparecer em diversos contextos sintáticos. Por meio da inserção tardia e do princípio do
subconjunto, podemos explicar tanto o fato de uma terminação como –do do “particípio passado”
no português (Cf. MEDEIROS, 2008) aparecer em diversos contextos sintáticos (tempos verbais
compostos, voz passiva, adjetivos, substantivos, etc.), quanto o fato de ocorrerem mudanças em
raízes como, por exemplo, em mouse e mice: mouse utilizada em contexto singular e mice utilizada
em um contexto de plural. No primeiro caso, então, é a possibilidade de inserção tardia do material
fonológico para a forma –do, subespecificada para os contextos sintáticos listados entre parênteses,
que dá conta do fenômeno apontado. O caso de mouse e mice pode ser tratado como uma
combinação do mecanismo de inserção tardia e do princípio do subconjunto. O resultado dessa
combinação é que um determinado conteúdo fonológico será mais apropriado para ser inserido em
uma raiz abstrata, por ser mais específico, satisfazendo, mais adequadamente, as condições
determinadas, por exemplo, por contextos singular ou plural, como nos exemplos acima. Dessa
forma, tal caso não é tratado como supleção, mas como inserção tardia de um conteúdo fonológico a
uma raiz abstrata (sem conteúdo fonológico). Contudo, se a versão empregada do modelo não
assumir raízes abstratas, pode-se falar em um processo fonológico regular na língua inglesa, já que
fenômenos semelhantes se verificam em louse – lice, foot – feet, tooth – teeth e goose – geese.
A quarta razão para utilização da MD está ligada a uma premissa da teoria: as raízes
presentes na Lista 1 não possuem categoria gramatical. Esse fato nos sugere que uma raiz pode ser
um nome, um adjetivo e/ou um verbo. Tal fato está de acordo com a estrutura de algumas línguas
semíticas, entre elas o hebraico. A língua hebraica possui um conjunto de raízes e padrões vocálicos
que as categorizam. Estamos considerando, nesta pesquisa, que os padrões vocálicos devem,
portanto, desempenhar o papel dos núcleos categorizadores: v, n e a. Observemos alguns dados
adaptados de Arad (2004):

( 11 √gdl (Raiz)
Padrão Vocálico Palavra formada
a) CaCaC (v) gadal (crescer)
b) CiCCeC (v) gidel (elevar, criar, cultivar (padrão causativo))
c) hiCCiC (v) higdil (aumentar)
d) CaCoC (a) gadol (grande)
e) CoCeC (n) godel (tamanho)
f) miCCaC (n) migdal (torre)
g) CCuCa (n) gdula (grandiosidade)
h) CCiCa (n) gidla (crescimento)

Percebemos que a raiz √gdl pode entrar em padrões vocálicos verbais, nominais e adjetivais
e que também pode entrar em mais de um padrão de mesma categoria, se, por exemplo,
considerarmos apenas a formação de nomes. Preliminarmente, se nossas observações estão corretas,
o fato de a mesma raiz se enquadrar em mais de um padrão categorial pode sugerir que a raiz é
selecionada pelo padrão e não o contrário. No entanto, qualquer conclusão é prematura.
Este fato está diretamente relacionado com o objetivo amplo desta pesquisa, que é discutir a
estrutura argumental dentro da Morfologia Distribuída. As informações sobre a grade temática e a
estrutura de argumentos, que em uma teoria lexicalista está localizada nas entradas lexicais, devem
estar codificadas em outro lugar, em uma teoria não-lexicalista. Algumas pesquisas, fundamentadas
no modelo da Morfologia Distribuída, discutem os dados da língua hebraica, apresentados em : (i) a
informação sobre a estrutura argumental está localizada nas raízes ou nos núcleos categorizadores?;
(ii) as raízes fazem algum tipo de seleção?; (iii) as raízes possuem algum tipo de grade temática ou
quadro de subcategorização?
Questões semelhantes norteiam esta pesquisa, que analisará os dados do português
brasileiro, como já foi apontado anteriormente.

2.2 Sobre a seleção de argumentos na Morfologia Distribuída

Mencionamos, brevemente, acima, que, no modelo não-lexicalista da Morfologia


Distribuída, As raízes sempre ocorrem numa relação local com um núcleo funcional definidor de
categoria. Em outros termos, pode-se dizer que as raízes, por si só, não se encaixam em qualquer
categoria gramatical determinada. Para que sejam definidas como nomes, verbos, ou adjetivos,
precisam estar em uma relação estrutural com um núcleo capaz de defini-las como tal. Marantz
(1997) ressalta a dificuldade de se estabelecer se, em uma expressão categorizada, são os núcleos
categorizadores que refletem as características das raízes que eles categorizam, ou se tais
características são próprias desses nós categorizadores que serviriam de contextos para a inserção
das raízes. Isto é, são as raízes que selecionam os núcleos categorizadores, definindo para quais
categorias contribuirão, formando uma ou outra palavra, ou é nos núcleos categorizadores, que se
encontra a informação sobre qual raiz poderá ser selecionada?

HIPÓTESE 1: Se são as raízes que selecionam o núcleo categorizador, espera-se que


a informação sobre a estrutura argumental que se encontra na raiz se
mantenha, seja no nome, no adjetivo ou no verbo formados pela
mesma raiz.

Além disso, se for assim, talvez, uma mesma raiz não deva poder selecionar dois núcleos
diferentes para forma elementos de uma mesma categoria. Por exemplo, dois sufixos
nominalizadores diferentes não deveriam poder nominalizar a mesma raiz.

HIPÓTESE 2: Se a informação sobre a seleção de argumentos se encontra no núcleo


categorizador, o número de argumentos poderá variar de acordo com a
categoria do predicado que vai se formar, podendo, portanto, ser
diferente para predicados de categorias diferentes, formados a partir
de uma mesma raiz.

Há ainda uma terceira via de tratamento, que iremos adotar no presente trabalho. Não
falaremos em seleção propriamente dita, seja pelas raízes, ou pelos núcleos funcionais
categorizadores, mas trataremos de licenciamento das raízes em um determinado contexto sintático.
Tal proposta tem sido implementada por autores como Borer (2005). Dessa forma, nos
preservaremos de problemas tais como prever a existência de um quadro de subcategorização nas
raízes ou nos núcleos funcionais. A hipótese 3 pode assim ser resumida.

HIPÓTESE 3: O componente sintático gera as estrutura sintáticas e a Enciclopédia,


ou Lista 3, funciona como um filtro que irá dizer, com base nas
informações contidas nas raízes, se tal derivação é possível ou não em
determinada língua.
Na próxima seção faremos um breve panorama dos vários modos de tratamento da estrutura
argumental por diversos autores e teorias.

11 Um histórico das propostas de estrutura argumental

3.1 A visão tradicional: Teoria GB e Minimalismo lexicalista.

Na visão herdada da teoria GB dos anos oitenta – que se mantém, sem grandes
modificações, no Programa Minimalista dos anos noventa e dois mil –, os itens lexicais trazem, em
sua representação no léxico, grades temáticas. Nelas, todas as informações associadas ao item
lexical, relevantes para a sintaxe, estão explicitadas. Que informações são essas? Grosso modo,
incluem i) sua categoria sintática (se é verbo, nome, adjetivo, preposição, etc.), que dará conta de
sua distribuição; ii) o número de argumentos que seleciona; iii) os tipos de argumentos (se são
sintagmas nominais, sintagmas preposicionais, sentenças etc.) que seleciona; e iv) quais papéis
semânticos/temáticos devem ser atribuídos a estes argumentos. Aspectos do significado que não têm
efeitos na estrutura sintática, como as diferenças entre “cachorro” e “gato”, por exemplo, não se
incluem entre as informações relevantes. Em , a seguir, apresentamos representações de grades
temáticas dos itens lexicais destruir e gato. No caso da palavra gato, não há argumentos a serem
representados, e, portanto, somente sua categoria é especificada na grade.

( 11 destruir: <</destru-/, V>; <NP1 (AGENTE), NP2 (PACIENTE)>>;


gato: </gato/, N>

Uma vez que grupos de verbos se comportam, sintaticamente, de modos muitas


vezes semelhantes, a teoria procurou estabelecer inventários de papéis temáticos, que forneceriam
uma generalização sobre os itens lexicais. Os típicos papéis temáticos que encontramos na literatura
são: AGENTE, BENFICIÁRIO, TEMA, EXPERIENCIADOR, ALVO, PACIENTE etc. Verbos
como destruir, construir, chutar, matar, por exemplo, teriam, nessa visão, grades bastante
semelhantes, pois compartilham a mesma categoria sintática e selecionam dois argumentos
nominais que recebem os mesmos papéis temáticos. É esperado, pois, que as estruturas sintáticas
em que ocorrem sejam as mesmas.
Além dos papéis temáticos, a teoria precisa recorrer a certos princípios que relacionem a
informação contida nos itens com as estruturas sintáticas em que ocorrem. Na teoria GB temos o
Princípio da Projeção, que, numa das formulações que Chomsky dá (CHOMSKY, 1981, p. 29), diz
o seguinte a respeito da relação entre informação lexical e estrutura sintática: “[a]s representações
em cada nível sintático (i. e., LF, e estruturas D e S) são projetadas do léxico, pois observam as
propriedades de subcategorização dos itens lexicais”. Em outras palavras, a informação lexical, em
particular a que está contida na grade temática, tem que estar sintaticamente representada. A teoria
também precisa garantir que, na estrutura sintática associada a determinado verbo, não pode haver
mais ou menos argumentos que os pedidos pelos itens lexicais. O Critério Teta (CHOMSKY, 1981,
p. 36) procura fazer isso, dizendo que: “[c]ada argumento suporta um e só um papel temático, e
cada papel temático é atribuído a um e só um argumento”.
Mas ainda é preciso dar conta de um fato curioso a respeito dos argumentos dos verbos, suas
interpretações e as posições sintáticas que tipicamente ocupam: argumentos agentes, por exemplo,
sempre serão sujeitos, independentemente do verbo que os seleciona; argumentos interpretados
como pacientes serão, tipicamente, objetos; e assim por diante. Para explicar esta regularidade
observada, a teoria lança mão de duas hipóteses: i) a UTAH1 (BAKER, 1988), que propõe que
argumentos que recebem os mesmos papéis temáticos ocuparão as mesmas posições sintáticas no
nível da Estrutura Profunda; e (ii) as hierarquias de papéis temáticos (vários autores), que procuram
estabelecer a posição (em última análise, a função) sintática tipicamente associada a cada papel
temático. As hierarquias de papéis temáticos se propõem a ser universais, ou seja, verificáveis em
todas as línguas. Apresentamos dois exemplos de hierarquias propostas nos anos noventa por
Jackendoff e van Valin, respectivamente. O sinal “maior que” indica que, preferencialmente, o
elemento mais à esquerda ocupará a posição de sujeito da sentença; na sua ausência, o elemento
seguinte (se estiver presente) será o sujeito da sentença:

Ator > Paciente/Beneficiário > Locativo/Fonte/Meta (JACKENDOFF, 1990);


Agente > Effector > Experienciador > Locativo/Recipiente > Tema > Paciente (VAN
VALIN, 1993).

Na visão da teoria GB isso esgota a discussão sobre estrutura argumental e representação


sintática dos argumentos. Entretanto, esse conjunto de propostas traz diversos problemas e deixa
inúmeras perguntas sem resposta, como as que apresentamos a seguir:

a. Quantos são e quais são os papéis temáticos que a teoria assume existirem para
serem atribuídos? Não há consenso sobre nenhum dos dois pontos, e os inventários
propostos deixam inúmeras lacunas. Por exemplo, que papel temático devemos atribui à
ponte em “o engenheiro evitou a ponte” (LEVIN, 1999)? Como fazer generalizações a
respeito dos verbos com tais lacunas na teoria?

1
Universal Theta Assignment Hypothesis (Hipótese da Atribuição Universal de Papéis Temáticos).
b. Numa teoria baseada em grades temáticas, quantas entradas devem existir para o
verbo correr, por exemplo? Aparentemente, três: uma inergativa, em que o sujeito é agente
(João correu na praia ontem); uma inacusativa, em que o sujeito é um tema (A pedra correu
até a porta); e uma transitiva, com um sujeito agente e um objeto direto cujo papel temático
não é fácil de estabelecer considerando os inventários de que dispomos (João correu o
cachorro da cozinha). Essa solução não é obviamente ruim, uma vez que o verbo correr, nas
três situações, tem mais ou menos o mesmo significado?

c. As alternâncias dativa, locativa, de verbos psicológicos, etc., colocam diversos


problemas para a UTAH, pois os mesmos papéis temáticos podem ocorrer em posições
diferentes na estrutura profunda. Alguns autores, para preservar a UTAH nos casos de
alternância, criam novos papéis temáticos (por exemplo, Pesetsky [Cf. PESETSKY, 1995]
para os verbos psicológicos), afirmando que os alternantes não compartilham, de fato, os
mesmos papéis. Mas a questão é: se podemos inventar papéis novos sempre que convém,
como falsear uma explicação baseada neles?

d. As hierarquias temáticas (assim como a UTAH) somente constatam regularidades


entre posições sintáticas e papéis temáticos. Não são explicativas.

e. Teorias lexicalistas, como a teoria GB, baseadas em papéis temáticos/semânticos, são


essencialmente descritivas. Não estudam os significados dos verbos/predicados e as
eventualidades que eles denotam; daí se limitarem a fazer descrições de propriedades
idiossincráticas.

f. Teorias lexicalistas baseadas em papéis temáticos recorrem à UTAH e a hierarquias


temáticas para explicar como os argumentos são projetados na sintaxe e as regularidades
verificadas nas línguas do mundo. Como veremos a seguir, teorias que decompõem
sintaticamente o verbo em estruturas de evento explicam a mesma coisa sem precisar de
semelhantes recursos.

Tendo em vista as limitações apontadas acima, neste trabalho evitaremos visões


projecionistas e baseadas em papéis temáticos. Na seção a seguir, discutiremos algumas abordagens
que são essencialmente sintáticas para a estrutura argumental. De fato, algumas substituem a idéia
de estrutura argumental pela de estrutura de evento, nas quais os argumentos são aspectuais, e não
mais temáticos.
3.2 Visões sintáticas: Hale & Keyser (1993, 2002), Borer (2005), Ramchand (2008)

3.2.1 Hale e Keyser e sua sintaxe lexical


Um rompimento parcial com o quadro acima, ainda na tradição GB, veio com
(LARSON, 1988). Nesse artigo, o autor desenvolve o que ficou conhecido como “concha
larsoniana” (larsonian shell). A proposta procura explicar conhecidas assimetrias entre os
argumentos internos de verbos com dois complementos2 e preservar aquilo que ele chama de
Hipótese do Complemento Único3 em tais situações. Tomemos, por exemplo, o verbo pôr, que
seleciona um sintagma determinante (cujo papel temático associado é o de tema) e um preposicional
(cujo complemento é interpretado como um alvo) como seus argumentos internos. A proposta de
Larson trabalha com núcleos adicionais na estrutura dos VPs associados a tais verbos, como no
esquema a seguir:

( 11 V1P
3
NP V’1
Agente 3
V1 V2P
| 3
e NP V’2
Tema 3
V2 PP
pôr Alvo

Na estrutura , há dois núcleos verbais. Mas, aqui, V1 é uma posição vazia para onde V2 se
move; ele não dá qualquer contribuição semântica ao significado do VP.
Na proposta de Larson, a entrada lexical do verbo pôr têm os papéis temáticos AGENTE,
TEMA e ALVO para atribuir, que serão projetados na sintaxe por meio da estrutura complexa
acima. Os dois V's em estão ali essencialmente para compatibilizar a idéia de que a estrutura
temática está representada no léxico com as mencionadas assimetrias de interpretação entre os dois
complementos e a Hipótese do Complemento Único. O problema é que, além de ser difícil
sustentar, de maneira independente, a proposta de haver um V semanticamente vazio nos verbos de
duplo complemento, o recurso gera conflitos com os fundamentos da própria teoria GB, que o autor
segue: Jackendoff (JACKENDOFF, 1990a), por exemplo, aponta que, para que o especificador do

2
Para explicar co-referências constatadas entre os dois argumentos internos usando os princípios da teoria da Ligação
é preciso assumir que há relações de c-comando assimétrico entre eles. A concha larsoniana cria essas relações
assimétricas, como se verá.
3
Que diz que cada núcleo só pode ter um complemento. Isso força, evidentemente, que as representações em árvore
das estruturas sintáticas só tenham ramificações binárias.
V1P receba o papel temático de AGENTE, é preciso que o V 2, carregando a entrada pôr, se mova
para V1. O autor continua, observando que, se isso é verdade, alguns papéis temáticos são atribuídos
em estrutura profunda (como quer a teoria GB para todo e qualquer papel temático), enquanto
outros, não. Larson reconhece os problemas, mas não os considera suficientemente fortes, tendo em
vista os ganhos que a proposta traz.
Um passo mais decisivo na direção de sintaticizar propriedades até então consideradas
lexicais foi dado em (HALE; KEYSER, 1993). Os autores reconhecem os méritos da concha
larsoniana e aperfeiçoam a idéia assumindo que os itens lexicais trazem estrutura sintática dentro de
si.
Surge, assim, o conceito de sintaxe lexical (ou sintaxe-l), que foi amplamente usado no
estudo de verbos denominais do tipo location/locatum. Ficou evidente que uma simples
representação baseada em grades de argumentos era insuficiente para explicar propriedades
“sintáticas”, plenamente verificáveis, que estes e outros verbos possuíam. Diferentemente do V1 de
Larson, acima, os V's de Hale e Keyser contribuem com significado, introduzindo sub-
eventualidades na sua estrutura. Ademais, para os autores, havendo dois V's na sintaxe-l do verbo,
existe uma relação default de causalidade entre as sub-eventualidades que eles denotam. No caso
abaixo, o sub-evento e1, associado ao V1, implica ou causa o sub-evento e2, associado ao V2: e1 →
e2.

( 111 V1P
3
NP V’1
3
V1 V2P
engarrafar 3
NP V’2
3
V2 PP
t3 3
P NP
t2 t1

Ao contrário de Larson e da visão tradicional da teoria GB, na abordagem de Hale e Keyser


os papéis temáticos não estão codificados nas entradas lexicais em grades temáticas, mas são
epifenômenos, resultado das configurações em que ocorrem os argumentos na estrutura l-sintática
(com sub-eventos representados) do verbo. Com essa visão, hipóteses descritivas como a UTAH e
as hierarquias de papéis temáticos parecem ficar obsoletas.
As vantagens parecem muitas. Entretanto, Hale e Keyser mantêm uma sintaxe
lexical, separada da sintaxe “sentencial”, mas com propriedades muitíssimo semelhantes às dessa
última; e a pergunta que se coloca é: se os itens lexicais têm propriedades sintáticas, por que não
assumir que essas propriedades estão, de fato, na sintaxe, e não numa estranha sintaxe lexical,
dentro do léxico? A questão cria (os próprios autores o admitem em dado momento) um irresistível
desejo de colocar as duas sintaxes num só componente da gramática. Contudo, esse passo (natural,
diga-se) não é dado por Hale e Keyser, mas é dado pela Morfologia Distribuída, da qual alguns
tratamentos para o problema da estrutura argumental dos verbos serão apresentados em outra seção.
As propostas de Hale e Keyser e as da Morfologia Distribuída encabeçaram, nos
anos noventa e posteriormente, as discussões sobre estrutura argumental dentro de uma perspectiva
sintática4. A década seguinte viu o advento de outras abordagens sintáticas para o mesmo conjunto
de problemas. Comentaremos, aqui, duas delas, que dão contribuição importante ao nosso trabalho.
Nessas abordagens, ao contrário do que se vê em Hale e Keyser e nos primeiros tratamentos dentro
do arcabouço teórico da Morfologia Distribuída, os argumentos passaram a estar associados a
papéis aspectuais, não mais temáticos (TENNY, 1992).

3.2.2 Ramchand e a sintaxe de primeira fase.


Nessa proposta (RAMCHAND, 2008), os eventos são decompostos em até três
primitivos aspectuais na sintaxe: iniciação, processo e resultado. Cada um desses primitivos é
sintaticamente representado por um núcleo que projeta uma posição de especificador para seus
argumentos. Mais baixo na estrutura, o núcleo R introduz o componente aspectual resultante (um
estado); o DP em seu especificador atinge tal estado (resultante) como consequência do processo
denotado pelo núcleo imediatamente mais alto, o Vprocesso. O núcleo mais alto, o v em , terá em seu
especificador um sintagma nominal interpretado como iniciador (agente, causa etc.); este núcleo
também introduz um estado, o sub-evento causador do processo denotado pelo V imediatamente
abaixo deste núcleo. Nas propostas de Ramchand, não há diferenças entre os dois estados na
estrutura, a não ser suas posições em relação ao núcleo do evento, o V de processo. O que faz um
ser causador e o outro ser resultado são justamente tais posições relativas. O esquema a seguir
ilustra a proposta, para o caso mais geral.

4
O que não quer dizer que não houve, durante a década, tratamentos lexicalistas da estrutura de argumento com um viés
construcionista, algo bastante distinto da visão tradicional da teoria GB. Para mencionar um exemplo mais conhecido,
os trabalhos de Levin e Rappaport decompunham os predicados em sub-predicados (com a semântica dos operadores
ACT, CAUSE, BECOME, etc.), à maneira de Dowty (Cf. DOWTY, 1979), que tomavam como argumentos os
argumentos dos verbos. Essa decomposição, entretanto, não era sintática; estava codificada, por meio de templatos de
estrutura de evento, numa espécie de interface entre a sintaxe e o léxico. Assim, os argumentos eram projetados na
sintaxe por meio de regras de link que estabeleciam suas funções na sentença de acordo com as predicações associadas
a eles dentro da estrutura de evento. Não trataremos destas propostas aqui.
(111 vP
3
DP v’
3
v VP
Init 3
DP V’
3
V RP
Proc 3
DP R’
3
R XP
Result

Em , o estado introduzido por v causa ou implica o processo associado a V, e o processo V


causa ou implica o estado resultante R. Ou seja, s1 → e2 e e2 → s3. A estrutura, segundo autora,
assemelha-se com a estrutura da sílaba, com um núcleo (o processo), um ataque (o estado iniciador)
e uma coda (um resultado, R).
Importante salientar que nem todos os verbos têm os três componentes aspectuais. Por
exemplo, verbos transitivos que denotam estados, onde o sujeito é o portador do estado (como amar
ou ver), teriam somente a parte mais alta da estrutura, o vP. Os DPs complementos de v seriam parte
da descrição do estado. Eventos sem um estado resultante teriam somente os dois componentes
mais altos. É o caso de verbos como correr ou comer, por exemplo. Os complementos (como a
maratona ou a maçã) destes verbos são irmãos de V, e funcionam como medidas para os eventos
introduzidos pelos V's. Em ambos os casos, de verbos de estado e de verbos de processo iniciado, o
complemento é chamado pela autora de rema. Verbos com os três componentes podem ser
exemplificados pelas versões transitivas de verbos de alternância causativo-incoativa, como
quebrar.
Na proposta de Ramchand não existe um equivalente do Critério Teta de (CHOMSKY,
1981). Assim, um mesmo argumento pode ocupar duas posições de especificador dentro da
estrutura. Por exemplo, na sentença o João corre todos os dias, o DP o João ocupa tanto a posição
de especificador do processo, sendo interpretado, ali, como um UNDERGOER (um papel
aspectual), como a posição de especificador do estado iniciador, sendo interpretado como
INICIADOR (outro papel aspectual). Ou seja, o sujeito da sentença é tanto um iniciador do
processo, quanto alguém submetido a ele. O mesmo vale para a sentença João comeu a maçã, em
que João é tanto UNDERGOER, quanto INICIADOR, enquanto a maçã é um rema, complemento
do V, e medida para o processo denotado por ele. Em sentenças com o verbo quebrar, como, por
exemplo, o João quebrou o vaso, o DP o vaso é tanto RESULTEE (ocupa o especificador de RP)
como UNDERGOER, enquanto o DP o João ocupa o especificador do componente vP, interpretado
como INICIADOR.
Ramchand assume uma posição projecionista em sua teoria, ou seja, nas entradas lexicais
estão especificados os componentes da estrutura de primeira fase que vimos em . A entrada lexical
do verbo ver, por exemplo, traz como único componente a projeção v, enquanto a entrada lexical de
comer traz dois componentes: v e V. Ramchand critica abordagens como as de Marantz e Borer
(2005), nas quais as raízes não trazem informação gramatical (papéis temáticos/aspectuais para
atribuir, categoria sintática, etc.), afirmando que, se não trazem informação gramatical, não são
objetos gramaticais; por esse motivo, segundo a autora, seria difícil explicar que entidades não
gramaticais ocorram em estruturas gramaticais?
A visão projecionista de Ramchand, entretanto, não escapa aos problemas, já apontados
anteriormente, das abordagens projecionistas (e lexicalistas), em geral. Veja-se, por exemplo, o caso
de alguns verbos semelfactivos, que podem, em certas situações, denotar eventos com um estado
atingido. Em João pula corda, não há estado atingido, e, portanto, o verbo pular não deve trazer
uma projeção R em sua entrada; mas em João pulou na piscina há um estado atingido ou resultante,
que é “João na piscina” e, portanto, há um R na sintaxe de primeira fase do verbo. Como “solução”
para o dilema, Ramchand apenas afirma que pular, como muitos outros semelfactivos, é um verbo
ambíguo, mas não explica muito bem o que quer dizer com isso. Provavelmente, o que ela quer
dizer é que há duas entradas homófonas, listadas no léxico, para este verbo – entradas bastante
próximas no seu significado, mas com especificações gramaticais/distribucionais distintas. Ou seja,
deparamo-nos, novamente com o problema crônico da proliferação de entradas lexicais para um
mesmo item do vocabulário.

3.2.3 Borer e a estrutura exo-esquelética


A premissa deste trabalho (BORER, 2005, v. 2) é a seguinte: as estruturas
argumentais são licenciadas por estruturas funcionais sintáticas e, particularmente, por estruturas
funcionais interpretadas como estruturas de eventos: não são licenciadas ou projetadas pelos itens
lexicais. Verbos são livres para ocorrer em uma gama variada de construções e, portanto, de
significados, restringidos somente pela compatibilidade do significado central (mínimo, core) do
verbo com a semântica da construção. Na proposta, como em Ramchand, os papéis temáticos são
substituídos por papéis aspectuais (TENNY, 1992) e o tratamento semântico da relação entre
“argumentos” e seus papéis aspectuais é neo-davidsoniano (PARSONS, 1990).
Os esquemas a seguir exemplificam as estruturas de evento de três tipos de verbos:
inacusativos, inergativos e transitivos. Os verbos télicos trazem um núcleo aspectual anexado entre
o núcleo sintático T, com traços de tempo, e o VP, que define um domínio lexical na sintaxe – tem
como núcleo um item lexical. Itens lexicais, nessa abordagem, como já mencionamos
anteriormente, não trazem qualquer informação gramatical e podem ocorrer em qualquer tipo de
estrutura, desde que seu significado central seja compatível com o significado veiculado pela
construção em que se insere. O núcleo aspectual projeta uma posição de especificador, que deverá
ser ocupada por um DP quantificado. Estabelece-se uma relação de concordância entre o DP
quantificado e o núcleo aspectual, o que faz com que o evento seja interpretado como télico (com
ponto final intrínseco).

(111 a. EP (Inacusativo)
qp
the flowerNOM qp
<e>E Tmax
3
the flowerNOM 3
T AspQmax
qp
the flower2 qp
2
<e ># VP
s-d-q wilt

b. EP (Inergativo)
qp
the manNOM qp
Originador <e>E Tmax
3
the manNOM 3
T VP
run

c. EP (Transitivo)
qp
MaryNOM qp
<e>E Tmax
Originador 3
MaryNOM 3
T AspQmax
qp
the book2 qp
<e2># VP
s-d-q read

Para Borer, atelicidade quer dizer ausência de estrutura. Então, eventualidades sem ponto
final inerente estão associadas a estruturas em que não há um núcleo aspectual mais encaixado, que
relacione complementos quantificados aos verbos. Este tipo de estrutura pode ser vista em b.,
acima. Em a. e c., por outro lado, temos telicidade, criada pela presença do sintagma AspQmax e seu
sujeito quantificado, com o qual concorda.
A teoria de Borer guarda muitas semelhanças com a da Morfologia Distribuída,
principalmente por atribuir à estrutura sintática a função de categorizar os itens lexicais. Nas
estruturas acima, os itens lexicais não projetam, mas, quando anexados a elas, modificam as
estruturas sintáticas em que ocorrem. O mesmo raciocínio, com maior ou menor alcance, vale para
algumas versões da Morfologia Distribuída (ver abaixo). Há, entretanto, diferenças bastante
importantes, principalmente no que diz respeito a como lidar com a morfologia das palavras. A
Morfologia Distribuída, uma teoria do tipo Item & Arranjo, trabalha, como vimos, com as idéias de
itens de vocabulário em competição e de inserção tardia dos mesmos. Os itens de vocabulário
realizam morfemas – feixes de traços morfossintáticos – que são os nós terminais de uma estrutura
sintática. Para essa teoria, pois, o espelhamento que a morfologia faz da estrutura sintática é algo
natural, uma vez que, no caso default, estrutura sintática é estrutura morfológica. Na teoria de
Borer, por outro lado, itens lexicais absorvem, por meio de movimento de núcleo, traços
morfossintáticos da estrutura sintática em que ocorrem e, depois, regras morfo-fonológicas se
aplicam sobre o feixe, criado por movimento, definindo sua forma final. A teoria, portanto, se alinha
com a visão de Anderson (Cf. ANDERSON, 1992), uma teoria do tipo Palavra & Paradigma, em
que regras tomam matrizes de traços morfossintáticos não organizados e os convertem, por meio de
regras, nas formas fonológicas finais das palavras. Esse tipo de abordagem tem a desvantagem de
tratar como acidental o fato de a estrutura morfológica quase sempre espelhar a sintaxe nas línguas
do mundo (Cf. BAKER, 1985). Aqui, o acidental define a regra, enquanto o mais comum fica sem
uma explicação satisfatória.
Por essa razão, a proposta de Borer não será “comprada” no todo. Ainda que aproveitemos
algumas de suas idéias.

3.3 Estrutura argumental em Morfologia Distribuída

Nas primeiras versões da teoria da Morfologia Distribuída, as raízes dos verbos são
licenciadas em determinados contextos sintáticos, envolvendo determinados tipos de argumentos e
núcleos funcionais com atribuições específicas. Um exemplo de tratamento da estrutura argumental
nesses termos é feito por Marantz (Cf. MARANTZ, 1997), onde o autor propõe que raízes sejam
acategoriais, sendo sua categoria estabelecida pelo contexto funcional/sintático em que ela está
inserida5. Marantz também propõe que existam pelo menos dois núcleos funcionais verbalizadores,

5
Seguindo, nas palavras do autor, a visão original de (CHOMSKY, 1970). Trata-se, na verdade, de uma leitura que
Marantz faz do também clássico artigo Remarks on Nominalizations, que teria lançado a hipótese lexicalista (a sintaxe
não tem acesso à estrutura interna das palavras) dentro da teoria linguística posterior. Marantz afirma que a hipótese
lexicalista nasce de uma leitura equivocada do artigo, que, ao contrário, para ele, defende que é a sintaxe que, entre
um transitivo e um incoativo/inacusativo. O primeiro abre uma posição de especificador para o
argumento causador; o segundo não cria esta posição. A raiz do verbo destroy, por exemplo, teria,
na proposta, uma semântica mínima que a licenciaria em um contexto funcional que introduz
argumento externo agente, mas não num contexto funcional que não projeta tal posição. Ou seja, a
semântica da raiz a licenciaria no ambiente do primeiro dos verbalizadores mencionados acima.
Para Marantz, seguindo algumas idéias propostas por Levin e Rappaport (LEVIN; RAPPAPORT,
1995), o que licencia a raiz nesse contexto é o fato de que ela denota uma mudança de estado
externamente causada. Por ser externamente causada, é compatível com uma estrutura transitiva,
em que o complemento sofre uma mudança de estado causada por outra entidade ou evento,
expresso pelo sujeito:

(111 vP
3
DP v’
The army 3
v √DESTROY
3
√DESTROY- the city

Como a raiz é acategorial, pode ocorrer em outro contexto sintático, como o nominal. No
exemplo abaixo, o genitivo expressa a relação temática esperada (de agente ou causador externo),
tendo em vista a semântica associada à raiz.

(111 DP (the army’s destruction of the city)


2
The army D’
3
D √DESTROY
’s 3
√DESTROY- the city

Já uma raiz como a do verbo grow, por denotar uma mudança de estado internamente
causada, pode ocorrer no contexto inacusativo/incoativo em , abaixo, no contexto
transitivo/causativo, semelhante a , assumindo uma interpretação em que alguém cria as condições
para que a mudança de estado interna se dê (uma espécie de causação secundária), mas não em
contextos como , como se vê pela impossibilidade de a seguir.

(111 vP
3
v √GROW
outras coisas, define a categoria gramatical dos itens lexicais.
3
√GROW- tomatoes

(111 *DP (*John’s growth of tomatoes)


2
John D’
3
D √GROW
’s 3
√GROW- tomatoes

A razão para não haver a nominalização John’s growth of tomatoes (e a estrutura acima) é a
seguinte: grow só pode ser interpretado como externamente causado no contexto – sintático – do
verbalizador transitivo. Em , não existe esse contexto, e a construção é bloqueada por uma
incompatibilidade semântica entre a raiz e tal estrutura.
Note-se que em nominalizações com –ing, o verbo grow pode ocorrer com o genitivo
interpretado como agente. A expressão John’s growing of tomatoes é gramatical em inglês. Como
explicar isto? Simples: as nominalizações com a terminação –ing são deverbais, como no esquema
abaixo, enquanto aquelas com –ion ou –th são nominalizações de raiz.

(111 DP (John’s growing of tomatoes)


2
John D’
3
D vP
’s 3
t v’
3
v √GROW
3
√GROW- tomatoes

Observa-se que uma abordagem lexicalista, que assume haver duas entradas no léxico
listadas para as duas versões, transitiva e intransitiva, do verbo grow, precisa explicar por que a
nominalização com a terminação –th só pode se formar a partir de sua versão intransitiva. A
abordagem sintática de Marantz não sofre do mesmo mal.
A Morfologia Distribuída tem, nos últimos anos, voltado ainda mais suas atenções para os
problemas relacionados à estrutura argumental/de eventos associada aos verbos. Na sequência,
discutiremos rapidamente algumas dessas visões para, na seção seguinte, apresentarmos nossas
propostas.

3.3.1 A proposta de Harley


Desde meados dos anos noventa (por exemplo, HARLEY, 1995), Harley tem apresentado
propostas que expandem, em alguns aspectos, as idéias de Marantz apresentadas acima. Para a
autora, o inventário de núcleos verbalizadores disponibilizado pelas línguas envolve não só as
variantes v1 e v2 propostas por Marantz; os verbalizadores de fato trazem a semântica de operadores
aspectuais como BE, DO, CAUSE, BECOME etc. (têm vários “sabores”), e estabelecem frames
sintáticos onde as raízes podem ser inseridas (onde são licenciadas).
Além disso, Harley propõe que as raízes têm propriedades selecionais – ou seja, podem
selecionar argumentos internos, como uma propriedade idiossincrática6. Raízes associadas a verbos
de alternância causativo-incoativa necessariamente selecionam complementos; raízes associadas a
atividades, podem ou não fazê-lo. A seguir, apresentamos alguns exemplos. Raízes de verbos de
alternância são licenciadas tanto nos frames que envolvem operadores CAUSE, como nos que
envolvem operadores BECOME; já raízes de verbos de atividade são tipicamente licenciadas nos
frames que envolvem o verbalizador/operador DO.

(111 vP
3
DP v’
3
vDO √P
3
√empurr- o carrinho

(111 a. VP b. vP
3 3
DP v’ vBECOME √P
3 3
vCAUSE √P a porta √abr-
3
a porta √abr-

Apesar dos ganhos que o conjunto de propostas de Harley traz à discussão, evitaremos
algumas de suas afirmações, como a de que raízes têm propriedades idiossincráticas de seleção de
argumento interno. Essa afirmação cria problemas quando a raiz ocorre em outros contextos em que
complementos são bloqueados. Por exemplo, quando uma suposta nominalização de verbo toma
como referente uma entidade no mundo. Veja-se o caso da raiz drop do inglês: no contexto nominal,
como bem aponta Borer (BORER, 2005), a raiz denota uma entidade no mundo, não um verbo

6
Ver (LEVIN, 1999) para uma proposta semelhante. De fato, Harley trabalha com uma versão dos templatos de estrutura
de evento que fazem, na teoria de Levin e Rappaport (LEVIN; RAPPAPORT, 1995), a interface do léxico com a
sintaxe. Entretanto, como em Harley são vezinhos (entidades sintáticas) que introduzem a estrutura de evento e abrem
posições para argumentos, não há a necessidade de regras de link que estabeleçam as posições que os argumentos dos
templatos ocuparão na sentença.
transitivo ou incoativo. Não há, pois, complemento para o nome drop. Quando no contexto verbal, a
raiz está associada a um verbo de alternância causativo-incoativa, o que, segundo a autora, deveria
significar que a raiz seleciona um argumento interno. Como lidar com esse problema?

3.3.2 A proposta de Pylkkänen


Liina Pylkkänen (PYLKKÄNEN, 2002) trabalha com vários núcleos funcionais que
introduzem argumentos “externos” na estrutura. O núcleo de Voz, por exemplo (KRATZER, 1996),
e os núcleos aplicativos. Uma vez que são núcleos sintáticos que introduzem argumentos, a autora
aposta em uma abordagem neo-davidsoniana: os morfemas estabelecem uma relação temática, não
explicitada na entrada lexical do verbo, entre os argumentos anexados ao vP e a semântica do
sintagma verbal.
A hierarquia dos núcleos que compõem o vP se propõe a ser universal, e é explicada não por
estipulação externa, mas pelos tipos semânticos dos núcleos que compõem sua estrutura. Por
exemplo, o núcleo de Voz, pelo seu tipo semântico <e,<s,t>> (função que associa, atribuindo-lhe
um papel temático, uma entidade, e, a uma função que associa um evento, s, a um valor-verdade, t)
precisa combinar-se, fazendo identificação de evento, com uma função do tipo <s,t> (que associa
um evento, s, a um valor-verdade, t). A função <s,t> é a função estabelecida pelo vP mais
encaixado, e, por isso, necessariamente, na hierarquia, o núcleo Voz tem que ser mais alto que o
núcleo v, por exemplo. Outros núcleos, como os aplicativos altos, que também associam uma
entidade a um evento, também terão que ser de um tipo semântico compatível com o do vP, para
que o cálculo seja possível. O esquema abaixo ilustra um caso simples (João leu o livro):

(111 Voz-P<s,t> = λe.[ler(e) & AG(o-João,e) & TH(o-livro,e)]


qp
o João Voz'<e,<s,t>> = λx.λe.[ler(e) & AG(x,e) & TH(o-livro,e)]
ep
Voz<e,<s,t>> vP<s,t> = λe.[ler(e) & TH(o-livro,e)]
λx.λe.[P(e) & AG(x,e)] 3
ler<e,<s,t>> o livro<e>
λx.λe.[ler(e) & TH(x,e)]

Aqui, o verbo ler, de tipo <e,<s,t>>, combina-se com o complemento o livro, de tipo <e>, o
qual satura a variável x da função introduzida pelo verbo (atribui um valor a ela). O verbo ler tem,
em sua especificação semântica, uma função de papel temático (TH ou tema), que relaciona uma
entidade com um evento, estabelecendo o tipo de participação que aquela entidade tem no evento
em questão. O núcleo de Voz se anexa acima do vP, identificando seu evento com o do vP e
introduzindo uma nova variável que precisa ser saturada por uma entidade (um sintagma
determinante de tipo semântico <e>).
Os verbos causativos (entre outros, os de alternância causativo-incoativa), Pylkkänen os
trata com um núcleo causativo que relaciona eventos. A análise, portanto, é bi-eventiva (ver, entre
outros, PARSONS, 1990), envolvendo um evento causador e um evento incoativo. O exemplo a
seguir ilustra a idéia (João quebrou o vaso):

(111 Voz-P<s,t>= λe.(e')[quebrar(e') & AG(o-João,e) & TH(e',o-vaso) & CAUSE(e,e')]


qp
o João Voz'<e,<s,t>>= λx.λe.(e')[quebrar(e') & AG(x,e) & TH(e',o-vaso) & CAUSE(e,e')]
ep
Voz<e,<s,t>> CAUSE-P<s,t>= λe.(e')[quebrar(e') & TH(e',o-vaso) & CAUSE(e,e')]
λx.λe.[P(e) & AG(x,e)] 3
CAUSE vP = λe.[quebrar(e) & TH(o-vaso,e)]
λf<s,t>.λe.(e')[f(e') & CAUSE(e,e')] 3
quebrar<e,<s,t>> o vaso<e>
λx.λe.[quebrar(e) & TH(x,e)]

Na proposta de Pylkkänen, a estrutura mais geral possível para o sintagma verbal é a


seguinte:

(111
(PASS)

Voz

APPL

(CAUS)

v Raiz-P

Nem todas as línguas têm aplicativos altos, nem todas têm aplicativos baixos, mas as
que têm um ou outro (ou os dois), os terão nessas posições, por razões que já discutimos. Se uma
língua terá aplicativo baixo, alto, ou os dois dependerá das seleções que fará no inventário de traços
morfossintáticos disponibilizados pela GU.
Como vimos, no trabalho de Pylkkänen, os argumentos neo-davidsonianos são
temáticos, como em Parsons (PARSONS, 1990), não aspectuais, como é o caso de Borer (BORER,
2005), discutido algumas seções acima. Pylkkänen trata essa questão de maneira não-controversa,
optando pelos papéis temáticos, como se fossem a única opção disponível. Pelas razões já
discutidas, evitaremos este tipo de tratamento, o que não significa descartar os elementos
fundamentais da proposta da autora.

3.3.3 As propostas de Cuervo e Lin


Nas abordagens bastante próximas de Cuervo e de Lin (Cf. CUERVO, 2003; LIN,
2004), temos três núcleos verbalizadores, com “sabores” distintos. Esses núcleos podem ser
combinados em certos arranjos sintáticos que se propõem a dar conta das estruturas de evento dos
verbos das línguas. Eventos causativos, por exemplo, envolverão os três núcleos verbalizadores
(LIN, 2004), conforme o esquema abaixo. Um introduz um estado atingido pelo argumento interno,
outro introduz um evento incoativo pelo qual o argumento interno passa, e outro introduz um evento
causador, que pede por agente.

(111 Voz-P
2
o João Voz' (João quebrou o vaso)
2
Voz vDOP
3
vDO vδP
3
o vaso v’
3
vδ vBEP
3
vBE √quebr-

Na estrutura acima, os vezinhos introduzem eventualidades na estrutura do sintagma verbal.


O verbalizador (DO) introduz uma eventualidade (uma atividade) que estabelece uma relação de
causação com a eventualidade incoativa introduzida pelo vδ. O verbalizador mais baixo introduz um
estado atingido pela eventualidade incoativa. A proposta preserva a idéia, que surge em Hale &
Keyser (HALE; KEYSER, 2002), de que, havendo mais de um V na estrutura verbal, a relação
semântica default entre eles é de causação ou implicação. A versão incoativa do verbo não envolve
o verbalizador DO nem o núcleo de Voz, que o transitiviza.
Na ontologia proposta por Lin, há dois tipos de raízes: as que são estativas e as que são
dinâmicas. As primeiras ocorrem em contextos como o apresentado acima; as últimas, em contextos
como o que se tem abaixo, em que não há causação envolvida:

(111 Voz-P (João leu o livro)


2
João Voz’
3
Voz vDOP
3
o livro v’
3
vDO √le-

Além disso, em Lin, os verbalizadores são especificados por traços como [±DIN] (dinâmico)
e [±INC] (incoativo). O verbalizador incoativo (vδ) é de tipo [+DIN, +INC]; o estativo (vBE) é [-
DIN]; o verbalizador que introduz atividade, o vDO, é de tipo [+DIN, -INC]. No caso do último,
quando combinado com uma raiz, essa funciona como um modificador adverbial de modo,
definindo, assim, o tipo de atividade de que se fala.
A proposta de Lin para as raízes acrescenta coisas interessantes à discussão até o momento
desenvolvida, mas nos parece insuficiente por várias razões. Em particular, não consegue lidar
satisfatoriamente com os casos de alternância causativo-incoativa em que a eventualidade incoativa
causada não tem estado atingido. Não é possível encaixarmos as raízes dos verbos girar ou rodar,
por exemplo, em uma estrutura como acima, ainda que esta seja a estrutura proposta por Lin para
os verbos de alternância. E não é possível por uma razão muito simples: as raízes compatíveis com
o verbalizador BE têm de ser, na ontologia, as raízes com traço [-DIN] – e esse certamente não é o
caso das raízes mencionadas.

3.3.4 As propostas de Marantz


Marantz (MARANTZ, 2007) propõe algumas mudanças no quadro acima. Para ele,
não há necessidade, em princípio, de um verbalizador incoativo, como os propostos por Lin e
Harley (o verbalizador BECOME). Em sua proposta, os argumentos internos, quando há mudança
de estado implicada, sofrem um type-shifting e se tornam eventualidades incoativas. Marantz
também se utiliza de uma versão da proposta de Hale & Keyser, assumindo que, havendo duas
eventualidades na estrutura (não necessariamente dois Vs), a leitura semântica associada é a de
causação, com uma eventualidade causando a outra. Observemos algumas das estruturas propostas
por Marantz:

(111 vP Atividade – mono-eventiva


2
√danç- vact

Na estrutura em , o argumento externo do verbo é introduzido por um núcleo funcional, o


núcleo Voz, como em Pylkkänen e Kratzer (ver acima). Como em Lin, a raiz funciona como um
modificador adverbial para o verbalizador, um introdutor de eventos na estrutura dos sintagmas
verbais. Uma paráfrase para o significado do vP seria “agir dançantemente”.
Em alguns casos, a estrutura acima aceita um “complemento” – que, de fato, é anexado ao
vP como um adjunto, pois as estruturas em que uma raiz se anexa (e modifica) diretamente a um
verbalizador não “selecionam” complementos. O “complemento” de alguns destes verbos é
interpretado como uma eventualidade incoativa. Vejamos o exemplo abaixo:

(111 vP Atividade – bi-eventiva


3
vP DP
2 |
√pint- vact o muro

Aqui, o complemento, tema incremental, sofre o referido type-shifting e é interpretado como


um evento de mudança de estado, temporalmente homomórfico à eventualidade denotada pelo vP (v
mais a raiz). Por termos duas eventualidades na estrutura, a interpretação default é de que o evento
denotado pelo “verbo” causa o evento de mudança de estado denotado pelo DP neste contexto. O
argumento externo é, como no caso de dançar, em , introduzido no sintagma verbal por um núcleo
funcional, o núcleo Voz.
Para Marantz, nem sempre as raízes são modificadoras de verbalizadores. Como alguns DPs,
no contexto adequado, podem denotar eventos incoativos, então é possível que pelo menos algumas
raízes funcionem como modificadoras adverbiais das eventualidades incoativas denotadas por eles.
É o caso dos verbos de alternância causativo-incoativa. Neles, como nos casos anteriores, temos
causação, uma vez que o verbalizador introduz um evento dinâmico (uma atividade) e o
complemento introduz uma mudança de estado. A diferença desse caso para o anterior está em onde
a raiz se anexa. Enquanto em a raiz funciona como modificador adverbial (de modo) do
verbalizador (que introduz o evento), em , a raiz se anexa ao DP, modificando o evento causado.

(111 Voz-P
3
o João Voz'
2
Voz vP
3
vact √P
2
DP √abr-
a porta

A alternância é explicada pela possibilidade de não se anexar ao vP um núcleo de Voz


introdutor de argumento externo. A exigência de um argumento externo – ou da anexação de um
núcleo de Voz à estrutura – ocorre somente nos casos em que a raiz denota um modo de atividade e
se anexa diretamente ao verbalizador, como em e acima. Como, aqui, a raiz se anexa ao
complemento, e a eventualidade que ela modifica é a causada, o núcleo de Voz é opcionalmente
inserido – não obrigatoriamente.
As estruturas que Marantz apresenta para os verbos com dois argumentos envolvem uma
pequena oração (SC) ou sintagma preposicional bi-relacional (PP), anexados a um vP mono-
eventivo, como os de e . Para um verbo como pôr, por exemplo, Marantz propõe a seguinte
estrutura.

(111 vP (pôr o jarro na mesa)


3
2 PP
√po- vact 2
DP 2
| P DP
O jarro em a mesa

Em , o sintagma preposicional é interpretado como um evento dinâmico de deslocamento


(jarro para a mesa) causado pelo evento denotado pela combinação do verbalizador com a raiz. Há,
portanto, duas eventualidades, e, assim, como nos casos anteriores, uma relação de causação entre
elas. Aqui, como a raiz modifica o verbalizador, introduzindo um modo de agir, exige-se a anexação
de núcleo de Voz, mais alto, introdutor de argumento externo.
As propostas de Marantz envolvem operações de type-shifting cujas motivações
apresentadas em seus artigos ainda são frágeis, e certamente não generalizáveis a todos os casos que
pretendemos estudar aqui.
As propostas apresentadas nas seções anteriores contribuirão para o que virá a seguir. Como
se verá, os pressupostos que assumiremos levam em conta os vários achados que as diferentes
maneiras de pensar sobre o problema da estrutura argumental nos oferecem.

11 Uma nova proposta para estrutura de eventos

4.1 Os Pressupostos

Nesta nova proposta que começaremos a descrever a seguir, vamos assumir o seguinte
conjunto de pressupostos:

A. Os papéis dos argumentos dos verbos são aspectuais (ver, entre outros, RAMCHAND, 2008;
BORER, 2005; ARAD, 1996; TENNY, 1992) e os argumentos são neo-davidsonianos (PARSONS,
1990);

B. A estrutura não é projetada dos itens lexicais – os itens lexicais (raízes acategoriais) é que
são licenciados em determinadas estruturas de evento e negociam seu significado com elas
(HARLEY; NOYER, 1998; MARANTZ, 2001, 2007; BORER, 2005; GOLDBERG, 1995);

C. Como consequência de B., os papéis dos argumentos são definidos por suas posições em
relação aos núcleos funcionais ou à raiz dentro da estrutura sintática do vP (Cf. HALE; KEYSER,
1993 e MARANTZ, 1997);

D. Os verbalizadores (Cf. MARANTZ, 1997) têm, pelo menos, três “sabores” (HARLEY,
1995): estados (BE), processos incoativos (GO) e atividades ou eventos (ver RAMCHAND, 2008;
CUERVO, 2003; LIN, 2004);

E. As derivações se dão por fases, conforme propostas de (MARANTZ, 2001).

Uma vez que assumimos que as raízes são licenciadas em estruturas sintáticas – que não as
projetam – é preciso explicar a distribuição das mesmas nos diversos contextos sintáticos em que
ocorrem. Preliminarmente, proporemos que a presença/ausência de duas propriedades combinadas
tem como efeito a ocorrência ou não de determinada raiz em determinado contexto.
Representaremos isso por meio de uma matriz com os traços [±DIN, ±CAUS]. A propriedade DIN
dirá que uma raiz associa-se tipicamente a uma eventualidade dinâmica (não-estativa); a
propriedade CAUS dirá que a raiz associa-se tipicamente a uma eventualidade causada dentro de
uma estrutura de evento. Uma raiz com esta propriedade também poderá, na nossa proposta,
predicar, ou seja, ocorrerá numa estrutura em que está combinada diretamente a um DP, e será
interpretada como uma predicação para este DP. O sintagma resultante do merge da raiz com o DP é
verbalizado por um vezinho. O vezinho que se acrescenta a tal estrutura introduz uma eventualidade
que será interpretada como causadora da eventualidade mais encaixada (MARANTZ, 2006),
representada pelo sintagma raiz. As raízes sem a propriedade CAUS (raízes [–CAUS]) se
combinarão diretamente ao vezinho, funcionando como modificadores adverbiais (de modo) para
eventualidades dinâmicas ou como nomeadores de estados (quando uma raiz não dinâmica
combina-se com um vezinho estativo e cria um verbo transitivo que denota um estado).
Nas seções abaixo, apresentamos como as idéias acima podem ser aplicadas a um conjunto
de verbos. São estudados os típicos casos de alternância causativo-incoativa, verbos de atividade
(com ou sem complemento), e alguns verbos de alternância inergativo-inacusativa.

4.1.1 Verbos de alternância causativo-incoativa:


Listamos em , a seguir, alguns exemplos de verbos que sofrem a alternância causativo
incoativa:

(222 ferver, abrir, rasgar, afundar, fechar, quebrar, crescer, girar, rodar, rolar,
(escorregar), (correr), (chegar), etc.

Tomando as estruturas propostas por (MARANTZ, 2007), assumiremos que verbos de


alternância causativo-incoativo têm uma estrutura causativa na qual um vezinho introduz uma
eventualidade causadora e o sintagma raiz introduz outra eventualidade, estativa ou dinâmica, que é
causada. A alternância se explica pela possibilidade de se introduzir um argumento originador na
estrutura por meio de um núcleo funcional, Voz (Cf. KRATZER, 1996; CHOMSKY 1995;
PYLKKÄNEN, 2002), anexado acima do vP. A anexação do núcleo cria uma posição
(especificador) para o argumento externo e dispara a operação de identificação de evento (ver
KRATZER, 1996), que identifica o evento introduzido pelo v com o evento introduzido pelo
próprio núcleo de Voz. O exemplo ilustra a estrutura sintática associada ao verbo ferver e esboça o
cálculo semântico correspondente (à maneira neo-davidsoniana de PARSONS, 1990, ainda que os
papéis envolvidos sejam aspectuais, não temáticos), considerando os argumentos envolvidos:

(222 Voz-P = λe.[ORIG(o-guarda, e) & (s)[fervido(s) & TEMA (a-porta, s) & CAUS(e,
s)]]
2
DP Voz' = λx.λe.[ORIG(x, e) & (s)[aberto(s) & TEMA (a-porta, s) & CAUS(e, s)]]
o guarda 2
Voz vP = λe.(s)[aberto(s) & TEMA (a-porta, s) & CAUS(e, s)]
3
v √P = λs.[aberto(s) & TEMA (a-porta, s)]
3
DP √abr-
a porta

A estrutura é bi-eventiva: o vezinho denota um evento causador, não especificado, e o


sintagma raiz denota uma eventualidade causada. A raiz do verbo tem, na nossa proposta, a
propriedade [+CAUS] e combina-se diretamente com o DP em , estabelecendo, assim, uma relação
de predicação. Em alguns casos, a raiz denota um estado: ferver, abrir, rasgar, afundar, fechar,
quebrar etc. Tais raízes servem, tipicamente, à formação de passivas de estado alvo (ver
KRATZER, 2001; EMBICK, 2001), e teriam a matriz de traços [–DIN, +CAUS]. Em outros casos,
a raiz denota um evento dinâmico, temporalmente homomórfico à atividade causadora: girar, rodar
etc. A matriz associada a tais raízes é [+DIN, +CAUS].
Mas o que nos leva a afirmar que temos duas eventualidades nos verbos de alternância? Em
casos como os do verbo abrir, em que o estado atingido (aberto) é claramente reversível, podemos
usar advérbios temporais que modificam diferentes eventualidades dentro da estrutura. Por
exemplo, em o guarda abriu a porta em dois minutos, o advérbio modifica a atividade causadora,
que termina quando o estado “aberto” é atingido. Já em o guarda abriu a porta por alguns minutos,
temos uma situação em que porta se manteve aberta por alguns minutos (o guarda a manteve aberta
por alguns minutos), e o advérbio estabelece uma duração para o estado (aberto) da porta. Observa-
se que o cálculo semântico proposto para contém duas eventualidades representadas pelas variáveis
eventivas s e e. O advérbio em dois minutos toma a eventualidade representada por e, gerando a
seguinte expressão lógica (após a anexação do núcleo flexional de tempo passado, que atribui
quantificação existencial ao evento causador): (e)[ORIG(o-guarda, e) & em-dois-minutos(e) &
(s)[fervido(s) & TEMA (a-porta, s) & CAUS(e, s) & t(e) < t s]]. Por sua vez, o advérbio por alguns
minutos toma a eventualidade representada por s, gerando a seguinte expressão lógica, após a
anexação, na estrutura, de um núcleo introdutor de tempo: (e)[ORIG(o-guarda, e) & (s)
[fervido(s) & TEMA (a-porta, s) & CAUS(e, s) & por-alguns-minutos(s) & t(e) < ts]].
O mesmo raciocínio vale para frases como o João girou a bola atrás da porta. Há uma
interpretação em que a bola estava girando atrás da porta, mas o João não necessariamente
realizava, atrás da porta, a atividade causadora do giro da bola. O inverso também pode ocorrer: o
João fazia algo atrás da porta, que causava o giro da bola, mas não necessariamente a bola girava
atrás da porta. Ou seja, no primeiro caso o advérbio locativo modifica o evento causado; no
segundo, o evento causador. A ambiguidade do uso do advérbio reforça a idéia de que existem duas
eventualidades na presente situação. Teríamos as seguintes expressões lógicas para as duas
interpretações: (e)[ORIG(o-João, e) & (e')[girar(e') & UNDERGOER (a-bola, e') & CAUS(e, e')
& atrás-da-porta(e') & t(e) < ts]] para a primeira leitura e (e)[ORIG(o-João, e) & atrás-da-porta(e)
& (e')[girar(e') & UNDERGOER (a-bola, e') & CAUS(e, e') & t(e) < ts]] para a segunda leitura.
Como já dissemos acima, a variável de evento que sobra em é fechada por uma
quantificação (existencial, universal, genérica etc.) introduzida por um núcleo aspectual ou temporal
mais alto. Tais núcleos também estabelecem relações entre o tempo do evento e outras entidades
temporais, como o tempo da fala, mas não nos preocuparemos com essas questões neste artigo.

4.1.2 Verbos inergativos


Para os verbos inergativos como gritar, propomos que as raízes tenham a seguinte
especificação na matriz sugerida anteriormente: [+DIN, –CAUS]. Uma vez que não traz a
propriedade CAUS, não predica, não é licenciada em um contexto em que está combinada
diretamente com um DP (complemento); denota, pois, um modo, e combina-se diretamente com o
verbalizador, funcionando como um modificador adverbial. Uma vez que a raiz denota um modo de
agir, ela deve ser licenciada sempre em contextos que contenham um núcleo Voz, que projeta uma
posição de sujeito, interpretado como originador. Exemplos de verbos inergativos bastante
conhecidos na literatura (ver, entre outros, HALE; KEYSER, 2002) são: cantar, gritar, pular,
dançar, trabalhar etc. Na estrutura abaixo, apresentamos a posição ocupada pela raiz dentro da
estrutura e o cálculo semântico correspondente. Mais uma vez, a variável de evento aberta por vP é
fechada, com uma quantificação (existencial, universal, genérica etc.), por um núcleo aspectual ou
temporal anexado acima de Voz-P na estrutura sintática.

( 111 Voz-P = λe.[gritar(e) & ORIG(o-João, e)]


3
DP Voz' = λe.λx.[gritar(e) & ORIG(x, e)]
o João 3
Voz vP = λe.[gritar(e)]
3
v √grit-

Observemos que, na nossa abordagem, não são relevantes certas propriedades aspectuais dos
verbos, como o fato de denotarem eventos semelfactivos ou durativos, como pular e dançar,
respectivamente. Essas propriedades não são relevantes para o licenciamento de determinada raiz
em determinada estrutura.

4.1.3 Verbos transitivos sem alternância


Algumas eventualidades/atividades produzem mudança de estado em entidades. Alguns
exemplos de verbos que denotam tais tipos de eventos/atividades são pintar, varrer, etc. Não há,
com esses verbos, expressões como *o muro pintou, *a sala varreu, etc. Seguindo Marantz
(MARANTZ, 2007), proporemos, na estrutura a seguir, que o DP complemento se combina
diretamente com o nó que se compõe da raiz e do vezinho. Assumiremos que as raízes de verbos
como pintar, varrer, etc., são dinâmicas (denotam atividades), mas não causadas – são, de fato,
eventos causadores de mudança de estado (uma outra eventualidade) em indivíduos. Ou seja, dentro
da nossa matriz de traços, trazem a seguinte especificação, que é a mesma especificação dos verbos
inergativos: [+DIN, –CAUS].

(111 Voz-P
3
DP Voz'
o João 3
Voz vP
qp
v DP
3 5
v √pint- o muro

Isso não quer dizer que não haja um estado atingido envolvido na estrutura de evento
associada ao verbo. A questão é que o estado atingido não é denotado pela raiz do verbo. Teríamos o
seguinte cálculo semântico associado à acima:

(111 Voz-P = = λx.λe.[pintar(e) & ORIG(o-João, e) & (s)[TEMA (o-muro, s) & CAUS(e,
s)]]
3
DP Voz' = λx.λe.[pintar(e) & ORIG(x, e) & (s)[TEMA (o-muro, s) & CAUS(e, s)]]
o João 3
Voz vP = λe.[pintar(e) & (s)[TEMA (o-muro, s) & CAUS(e, s)]]
qp
v DP
3 5
v √pint- o muro

Em , o estado atingido não está especificado, mas tem que ser um estado compatível com a
atividade de pintar, algo como “com determinada cor” ou “colorido”, por exemplo. É importante
salientar que não estamos assumindo que na semântica da raiz encontramos todos os componentes
(evento e estado) da expressão acima. Dentro de uma proposta de derivação por fases como a que
encontramos em (MARANTZ, 2001; ARAD, 2003; MARVIN, 2002), a semântica das raízes é
negociada no ambiente sintático criado pelo primeiro categorizador – no caso em questão, o
vezinho; o que quer dizer que os elementos envolvidos neste ambiente, como o DP complemento
interno ao vP, influenciam no significado alcançado pelo vP – ou, melhor, especificam o significado
da raiz. Assumimos, pois, que a presença do DP dentro do vP faz com que o significado da raiz
passe a incluir um estado atingido, do qual a entidade denotada pelo DP é tema.
Podemos observar que, ao assumirmos que a interpretação do vP é bi-eventiva, explicamos o
fato de haver advérbios modificando uma ou outra das eventualidades que compõem a estrutura de
evento do vP. Por exemplo, em João pintou muito bem o muro, o advérbio pode modificar tanto a
atividade como o estado atingido (o resultado ficou bom); em João pintou o muro com pinceladas
largas, o advérbio modifica somente a atividade.
A influência do DP no significado da raiz do verbo é mais visível no caso da sentença João
pintou um quadro, onde o DP complemento denota, ambiguamente, um estado atingido de alguma
coisa (tela, tintas, etc.) e uma entidade (o quadro criado). Nesse caso, o verbo não é somente um
verbo de tema incremental, como era em pintar o muro, mas é também um verbo de criação e isso
tem certas consequências. Por exemplo, em João pintou um quadro bonito, o adjetivo bonito
modifica tanto um estado final de um evento/atividade como uma entidade; já a sentença João
pintou um muro bonito não aceita uma leitura em que um determinado muro ficou bonito como
efeito da pintura7. Observemos, ainda, que em construções com verbo leve dar o nominal derivado
pintada só é aceitável se o objeto pintado pré-existir. Logo, temos que João deu uma pintada no
muro é boa, mas *João deu uma pintada num quadro, não.
Parece claro, pois, que a presença/ausência de um complemento, e o tipo de complemento
que ocorre no vP, têm efeito na interpretação do verbo. Nas situações em que o verbo pintar é usado
intransitivamente (como em João pinta muito bem), o vP será mono-eventivo, com uma estrutura
como a de gritar acima, a locução adverbial muito bem modificando não-ambiguamente a atividade.
Neste caso, por não haver um DP complemento, o significado da raiz não inclui um estado atingido,
limitando-se a especificar determinado tipo de atividade.
Alguns verbos distinguem-se de verbos como pintar ou varrer acima por suas propriedades
aspectuais. Por exemplo, enquanto o verbo pintar com um complemento quantificado denota um
evento télico, verbos como empurrar com complementos também quantificados denotam eventos
atélicos: veja-se que a sentença *João empurrou o carrinho em dois minutos, com a interpretação
relevante, não é aceitável, enquanto João empurrou o carrinho por dois minutos é uma sentença
boa. Proporemos que a questão pode ser explicada do seguinte modo: em alguns verbos, o sub-
evento causado é um estado atingido, que estabelece um ponto final para a atividade associada ao
verbo; em outros, o sub-evento causado é dinâmico, temporalmente homomórfico à atividade
causadora, sem ponto final intrínseco. É o caso do verbo empurrar. Aqui, a raiz, dentro da matriz de
traços proposta acima, é do tipo [+DIN, –CAUS], como as de pintar ou gritar. Entretanto, ao
contrário desses verbos, que, na presença de um complemento, introduzem estados atingidos,
verbos como empurrar introduzem sub-eventos dinâmicos, sem ponto final: o complemento se
desloca no espaço como consequência da atividade denotada pela raiz. Na proposta, temos:

( 111 Voz-P = λe.[empurrar(e) & ORIG(o-João, e)&(e')[DESLOCAR-SE(e')&UNDERGOER (o-carrinho,


e')&CAUS(e, e')]]
3
D Voz' = λe.[empurrar(e) & ORIG(x, e)&(e')[DESLOCAR-SE(e')&UNDERGOER (o-carrinho, e')&CAUS(e, e')]]
o João 3
Voz vP = λe.[empurrar(e)&(e')[DESLOCAR-SE(e')&UNDERGOER (o-carrinho, e')&CAUS(e, e')]]
qp
v DP

7
Há uma leitura em que o João criou um quadro pintando; por exemplo, pintou um muro bonito em quadro com
casarios.
3 5
v √empurr- o carrinho

Há um paralelo interessante entre os pares pintar e abrir, por um lado, e empurrar e girar,
por outro lado. Em pintar e abrir, a eventualidade causadora termina quando determinado estado do
complemento é atingido. No caso do verbo abrir, esse estado é expresso pela raiz; no caso de
pintar, não. Já no par empurrar/girar, a eventualidade causadora e a eventualidade causada são
temporalmente homomórficas, sem um ponto final intrínseco. A diferença entre os membros do par
é que, no caso de empurrar, o sub-evento causado não é denotado pela raiz, enquanto no caso de
girar o sub-evento causado é denotado pela raiz.
Há verbos em que o complemento não sofre mudança de estado nem se desloca no espaço. É
o caso de verbos como ler. Em João leu um livro, o complemento não muda de estado com a
atividade; somente estabelece uma espécie de percurso para a atividade. Propomos que, como nos
casos anteriores, a raiz do verbo é do tipo [+DIN, –CAUS], e, portanto, não introduz uma
eventualidade causada e predica. A diferença entre esse verbo e os anteriores é que, nos outros
casos, a presença do complemento produz, no vP, uma leitura onde há um sub-evento que tem como
argumento o complemento; para o verbo ler não há sub-evento; o complemento introduz uma
função que vamos chamar de CAMINHO, função que relaciona um evento a uma entidade,
estabelecendo um homomorfismo entre a entidade e a atividade (de ler) em questão.

( 111 Voz-P = λe.[ler(e) & CAMINHO(e, o-livro) & ORIG(o-João, e)]


3
D Voz' = λx.λe.[ler(e) & CAMINHO(e, o-livro) & ORIG(x, e)]
o João 3
Voz vP = λe.[ler(e) & CAMINHO(e, o-livro)]
qp
v DP
3 5
v √le- o livro

A mesma função CAMINHO ocorreria em alguns verbos de movimento com complemento,


como na frase o João andou um quilômetro. A raiz também terá a matriz [+DIN, –CAUS], como
nos casos anteriores.

( 111 Voz-P = λe.[andar(e) & CAMINHO(e, um-quilômetro) & ORIG(o-João, e)]


3
DP Voz'= λx.λe.[andar(e) & CAMINHO(e, um-quilômetro) & ORIG(x, e)]
o João 3
Voz vP = λe.[andar(e) & CAMINHO(e, um-quilômetro)]
rp
v DP
3 6
v √and- um quilômetro

Como vemos, a despeito das diferentes interpretações que um verbo transitivo, eventivo e
não-alternante possa ter, assumimos as mesmas estruturas sintáticas para todos, com o complemento
anexado ao v – e não interno ao sintagma raiz, como ocorre nos verbos de alternância causativo-
incoativa discutidos na primeira seção deste capítulo. Portanto, não estamos assumindo que a todo
tipo de interpretação ou estrutura de evento associada a um verbo corresponderá um tipo de
estrutura sintática. Mas isso não que dizer que a estrutura sintática não reflita certas propriedades
das estruturas de evento. Por exemplo, enquanto os verbos desta seção podem envolver uma sub-
eventualidade causada ou não, os verbos alternantes necessariamente envolvem uma sub-
eventualidade causada, que está associada à raiz do verbo. Nossa matriz de traços, com o traço
[+CAUS] procura dar conta dessa característica.
Até aqui, vimos verbos com um comportamento bastante regular, cujas raízes se distribuem
pelas estruturas dos verbos de alternância causativo-incoativa, verbos inergativos e verbos
transitivos sem alternância, de acordo com a matriz proposta na introdução: [±DIN, ±CAUS]. Mas
verbos como correr e chegar (entre outros verbos exclusivamente inacusativos) colocam problemas
para a nossa abordagem. A discussão nas seções a seguir tenta dar conta de tais verbos fazendo
alguns ajustes nas propostas apresentadas ao longo do capítulo.

4.1.4 Verbos de alternância inacusativa-inergativa


O verbo correr pode ter sujeitos não-animados, como em a pedra correu (morro abaixo),
que, de acordo com o que sabemos sobre o mundo, não podem ser iniciadores/originadores de
eventos; o movimento deles é necessariamente causado e é possível causativizar a estrutura.
Vejamos os exemplos abaixo:

i. A equipe correu a bola 122 vezes e lançou 123 passes na pré-temporada.


O total de corridas na pré-temporada é o segundo maior dos Rams desde a mudança para
... www.oquarterback.com/?p=2161

ii. Luigi correu a pedra atrás dela, porque acabava de ver, no cimo de uma
colinazinha que impedia que do lugar onde estava se visse Palestrina, um viajante a
...www.lisandrosellis.kit.net/.../Alexandre_Dumas-o%20conde%20de%20monte-cristo.pdf

Quando o argumento do verbo é um ente animado e há um sintagma preposicional que


indica algum lugar onde o sujeito do verbo está ao final do processo, a estrutura também pode ser
causativizada, como é o caso de o João correu o inquilino do apartamento.
Em algumas línguas com dois auxiliares para tempos perfeitos, como o italiano, o verbo
correr toma o auxiliar de inacusativo (essere) quando o argumento do verbo é um ente animado e há
um PP que indica um ponto final para o movimento. Além disso, neste contexto é possível haver
cliticização com ne-, outro conhecido indicador de inacusatividade segundo a literatura. Isso sugere
que o sintagma preposicional presente na estrutura de alguma forma “atrai” o argumento do verbo
para o interior do sintagma verbal, fazendo o verbo comportar-se como inacusativo.
O verbo correr, portanto, comporta-se como verbo inergativo quando tem um sujeito
animado e não tem um sintagma verbal que estabeleça um ponto final para o trajeto; mas se
comporta como um verbo inacusativo (e de alternância causativo-incoativa) quando o sujeito é não-
animado ou há um sintagma preposicional que estabelece um ponto final para o movimento
denotado pelo verbo, um lugar alcançado. As estruturas a. e b. representam a versão inacusativa do
verbo correr, com sujeito não animado. Uma vez que há alternância causativo-incoativa, as
estruturas serão como a que encontramos em acima.

( 111 a. vP b. Voz-P
3 3
v √P o João Voz'
3 3
DP √corr- Voz vP
a bola 3
v √P
3
DP √corr-
a bola

As estruturas abaixo apresentam a versão inergativa do verbo correr, com sujeitos animados
e complementos que podem estabelecer percursos ou ser eventualidades criadas (como em João
correu uma bela maratona, por exemplo, em que a bela maratona é algo criado). Aqui temos
estruturas como as de e acima.

( 111 a. Voz-P b. Voz-P


3 3
DP Voz' DP Voz'
o João 3 3
Voz vP Voz vP
3 3
v √corr- v DP
3 um quilômetro
v √corr-

As estruturas em , por sua vez, dão conta dos casos em que há um ponto final para o
movimento e o sujeito é animado. Como vemos, somente no caso em que há um sintagma
preposicional na estrutura que indique um lugar atingido, a causativização é permitida. Proporemos
que, nestes casos, a raiz combinada ao sintagma preposicional cria uma estrutura de predicação e,
por conseguinte, uma (outra) versão inacusativa do verbo correr.

(111 a. vP b. Voz-P
3 3
v √P o João Voz'
3 3
DP √' Voz vP
o inquilino 3 3
√corr- PP v √P
5 3
do apto. DP √'
o inquilino 3
√corr- PP
5
do apto.

Como explicar, com a matriz de traços apresentada acima, que a raiz do verbo correr ocorra
em estruturas de evento tão diversas? Não parece que a raiz ora se comporta como se denotasse um
evento dinâmico causado, ora como se denotasse um modo associado ao verbo?
Nossa explicação para o fato é a seguinte: adotando a mesma matriz de traços que vimos
assumindo desde o início, matriz que tenta dar conta do licenciamento de raízes nas estruturas de
evento estudadas, não nos esqueçamos, propomos que a raiz do verbo correr tenha a seguinte
especificação de traços: [+ DIN, α CAUS]. Aqui, α indica que a raiz não é especificada para o traço
de causação; o sinal é especificado pelo contexto em que a raiz ocorre: em e , a raiz tem a
especificação: [+DIN, +CAUS]; nos contextos , a raiz ganha a especificação [+DIN, –CAUS], e
funciona como modificador adverbial do vezinho.
Portanto, certas raízes podem ser subespecificadas quanto a uma ou outra das propriedades
semânticas da matriz, o que explica seu comportamento mais livre entre diversas estruturas.

4.1.5 Verbos inacusativos


Como sabemos, há verbos exclusivamente inacusativos: nascer, morrer, chegar etc. As
propostas até o momento discutidas não conseguem dar conta de verbos inacusativos que não
ocorrem em estruturas de alternância causativo-incoativa. Se assumíssemos que as raízes desses
verbos ocorrem em acima, não explicaríamos seu comportamento; esperaríamos transitivizações
dos mesmos. Então, como explicar seu comportamento? Assumiremos um segundo vezinho, com
um “sabor” distinto do vezinho que usamos até o momento em nossas análises. Esse vezinho é
incoativo, e colocaremos nele, para diferenciá-lo do anterior, o sub-escrito GO, que, se não é
combinado com um vezinho DO, não pode ser causativizado. Com esse novo primitivo, a estrutura
de um verbo como chegar é a seguinte:

(111 vP
3
DP √P
o João 3
vGO √cheg-

Na proposta, a raiz deve ser do tipo [+DIN, –CAUS], e não estabelece uma predicação para
o seu argumento. Ela funciona, dentro da proposta, como modificadora de um vezinho de processo
(incoativo). Como a eventualidade introduzida pelo vezinho é incoativa, ela não pode identificar-se
com a eventualidade introduzida pelo núcleo de Voz – ou seja, a operação de identificação de
evento que possibilita a anexação de um núcleo de Voz à estrutura não é permitida aqui. Isso
explicaria o fato de tais verbos não serem verbos de alternância causativo-incoativa.
Entretanto, algumas coisas ficam por explicar. A matriz, com as distinções propostas, não
explica porque a raiz de um verbo como nascer não ocorre em uma estrutura de evento mono-
eventiva, como a do verbo gritar em . Outra questão que se coloca é a seguinte: por alguma razão, o
verbo chegar pode ser causativizado quando se anexa a ele um PP que indica um movimento com
ponto final: João chegou a cadeira para o lado. Como explicar essas coisas?
Ainda não sabemos como explicar a compatibilidade exclusiva das raízes de nascer e
morrer com o vezinho incoativo. Quanto à possibilidade de transitivização do verbo chegar, talvez,
nestes casos, a raiz funcione como modificadora de um vezinho eventivo, como o dos casos
anteriores; a esse verbo formado, um sintagma preposicional com duas posições (uma estrutura
diádica básica, nos termos de HALE; KEYSER, 2002) é anexado e a posição de especificador desse
sintagma é ocupada pelo “argumento interno” do verbo. O sintagma preposicional seria interpretado
como um evento de deslocamento com um ponto final, causado pelo evento introduzido pela
anexação direta do vezinho à raiz do verbo chegar. Teríamos uma estrutura parecida com a proposta
por (MARANTZ, 2007) para os verbos de duplo objeto, com duas eventualidades e uma relação de
causação entre as duas. A estrutura em ilustra tal fato:

(111 Voz-P
3
D Voz'
o João 3
Voz vP
qp
v PP
3 3
v √cheg- DP P'
a cadeira 3
P DP
para o lado

4.1.6 Verbos de estado


O último grupo de verbos de que trataremos neste breve trabalho é o dos verbos de estado
transitivos. Estes teriam raízes com a matriz [–DIN, –CAUS]. Verbos de estado psicológico do tipo
sujeito-experienciador, verbos de percepção dos sentidos etc., seriam verbos deste grupo.
Em nossa proposta, há um vezinho que introduz estado (BE) e que se combina diretamente
com a raiz, a qual dá nome ao estado que ele introduz. Uma vez que a raiz não estabelece uma
predicação, a única maneira de introduzir um argumento externo é através de um núcleo de Voz, que
introduz um argumento externo interpretado como tema ou portador do estado em questão. O
complemento faz parte da descrição do estado (RAMCHAND, 2008), sendo, aqui, interno ao
sintagma raiz.
As propostas para verbos de estado ainda são incipientes, e, portanto, não nos estenderemos
muito a respeito deles. Em , apresentamos uma proposta para o uma sentença com o verbo amar: o
João ama a Maria.

(222 Voz-P = λs.[amar-a-Maria (s) & TEMA(o-João, s)]


2
DP Voz' = λx.λs.[amar-a-Maria (s) & TEMA(x, s)]
o João 2
Voz vP = λs.[amar-a-Maria (s)]
3
vBE √P
3
√am- DP
a Maria

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