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11 Introdução
Este trabalho tem como objetivo amplo discutir em uma Teoria não-lexicalista, como a da
Morfologia Distribuída, a maneira como é decodificada a estrutura argumental de verbos. De modo
mais específico, neste trabalho trataremos de: a) alternância causativo-incoativa, como em ; verbos
inergativos e transitivos sem alternância, como em ; verbos de atividade com complemento e sem
ponto final, como em e verbos de deslocamento com um PP que denota caminho; como em . Esses
exemplos foram escolhidos por trazerem algum tipo de problema para sua explicação em teorias
lexicalistas.
( 11 a. O João gritou.
b. O João pintou o muro.
O léxico se distribui em três listas (Cf. MARANTZ, 1997) acessadas em diferentes pontos
da derivação sintática, como mostra a figura adaptada de (HARLEY; NOYER, 1999):
( 11
A Lista 1 (Lista de traços morfossintáticos) contém as raízes e os morfemas abstratos. Os
morfemas abstratos são terminais sintáticos que possuem apenas traços não fonológicos. Podem ser
considerados como traços universais. Participam dessa lista, os traços de categorias funcionais que,
ao final da computação, podem ser associados ao material fonológico adequado.
Atualmente, existe uma grande discussão sobre a natureza das raízes na MD. Para Embick;
Noyer (2004), as raízes são definidas como complexos de traços fonológicos e, em alguns casos,
traços diacríticos não-fonológicos. Enquanto os traços que criam os morfemas abstratos são
universais, as raízes são combinações específicas de som e de significado. De maneira bastante
ampla, o conceito de raiz pode ser diretamente relacionado ao signo saussureano, no que diz
respeito à indivisibilidade entre significante e significado. As raízes sempre ocorrem numa relação
local com um núcleo funcional definidor de categoria, ou seja, as raízes, por si só, não possuem
categoria gramatical determinada.
A Lista 2 (Vocabulário), segundo Embick; Noyer (2004), contém os itens de vocabulário, ou
seja, a expressão fonológica dos morfemas abstratos e as regras necessárias para combinar o
material fonológico ao resultado da derivação morfossintática.
A Lista 3 (Enciclopédia) é uma lista de informação semântica que deve ser consultada. Por
exemplo, uma propriedade de certa raiz, ou de um objeto construído sintaticamente tal como uma
expressão idiomática, será consultada para, então, ter seu significado definido. Essa lista também
define sentidos especiais para determinadas raízes, dependendo do contexto sintático em que tais
raízes aparecem. Por exemplo, a raiz √gato pode significar: felino peludo, animal que gosta de leite,
animal que caça rato etc., ou pode significar: emaranhado de fios clandestino que pode levar a um
curto-circuito etc. De maneira geral, podemos dizer que a Enciclopédia lista significados especiais
de raízes em contextos sintáticos específicos. Em outras palavras, ela é uma lista de idiomas da
língua.
Nesta subseção, traremos algumas razões para escolha de uma modelo não-lexicalista para a
explicação dos fenômenos destacados no início deste trabalho.
A primeira razão diz respeito à dificuldade de definir teoricamente a noção de palavra, fato
esse ressaltado por Marantz (1997). Esse autor rebate a afirmação de que as palavras são o lugar de
variados tipos de idiossincrasia e afirma que os domínios de aplicação de “regras fonológicas
lexicais”, de significados especiais (idiossincráticos) e de correspondências aparentemente especiais
entre estrutura e significado, que deveriam, assumindo a Hipótese Lexicalista, coincidir na palavra,
de fato, não coincidem nela. Tomemos, por exemplo, um nome composto do hebraico: beyt-sefer
(literalmente: casa-livro, significando ‘escola’. Várias noções de palavra podem ser utilizadas para
definir esse composto: (i) palavra prosódica, se levarmos em consideração a perda de acento do
composto; (ii) palavra morfológica ou sintática, se separarmos os compostos formados com uma
raiz dos que são formados por duas raízes e (iii) palavra morfológica, se utilizarmos a noção de
morfologia não concatenativa (aquela em que não há processos de afixação) para explicar a não
ocorrência de compostos formados com verbos no hebraico. Além disso, temos neste composto um
único conceito ‘escola’ formado por dois elementos.
A segunda razão está relacionada ao fato de que, no modelo da MD, há apenas um
componente gerativo de modo que não há necessidade do uso de operações lexicais especiais (do
tipo assemble features, como em Chomsky 1997, por exemplo) diferentes das operações sintáticas
de concatenar e mover (CHOMSKY, 1995); tampouco, são necessários princípios que relacionem
estrutura morfológica e estrutura sintática, como o princípio do espelho (discutido em BAKER,
1985); ou regras de link, que definem como os argumentos dos verbos são projetados na sintaxe
(ver, por exemplo, LEVIN & RAPPAPORT, 1988 e LEVIN, 1999 para um conjunto de propostas
que necessita de tais regras).
A terceira razão está relacionada ao princípio de inserção tardia e ao princípio do
subconjunto. Nesta teoria, podemos explicar de maneira elegante o fato de uma mesma forma poder
aparecer em diversos contextos sintáticos. Por meio da inserção tardia e do princípio do
subconjunto, podemos explicar tanto o fato de uma terminação como –do do “particípio passado”
no português (Cf. MEDEIROS, 2008) aparecer em diversos contextos sintáticos (tempos verbais
compostos, voz passiva, adjetivos, substantivos, etc.), quanto o fato de ocorrerem mudanças em
raízes como, por exemplo, em mouse e mice: mouse utilizada em contexto singular e mice utilizada
em um contexto de plural. No primeiro caso, então, é a possibilidade de inserção tardia do material
fonológico para a forma –do, subespecificada para os contextos sintáticos listados entre parênteses,
que dá conta do fenômeno apontado. O caso de mouse e mice pode ser tratado como uma
combinação do mecanismo de inserção tardia e do princípio do subconjunto. O resultado dessa
combinação é que um determinado conteúdo fonológico será mais apropriado para ser inserido em
uma raiz abstrata, por ser mais específico, satisfazendo, mais adequadamente, as condições
determinadas, por exemplo, por contextos singular ou plural, como nos exemplos acima. Dessa
forma, tal caso não é tratado como supleção, mas como inserção tardia de um conteúdo fonológico a
uma raiz abstrata (sem conteúdo fonológico). Contudo, se a versão empregada do modelo não
assumir raízes abstratas, pode-se falar em um processo fonológico regular na língua inglesa, já que
fenômenos semelhantes se verificam em louse – lice, foot – feet, tooth – teeth e goose – geese.
A quarta razão para utilização da MD está ligada a uma premissa da teoria: as raízes
presentes na Lista 1 não possuem categoria gramatical. Esse fato nos sugere que uma raiz pode ser
um nome, um adjetivo e/ou um verbo. Tal fato está de acordo com a estrutura de algumas línguas
semíticas, entre elas o hebraico. A língua hebraica possui um conjunto de raízes e padrões vocálicos
que as categorizam. Estamos considerando, nesta pesquisa, que os padrões vocálicos devem,
portanto, desempenhar o papel dos núcleos categorizadores: v, n e a. Observemos alguns dados
adaptados de Arad (2004):
( 11 √gdl (Raiz)
Padrão Vocálico Palavra formada
a) CaCaC (v) gadal (crescer)
b) CiCCeC (v) gidel (elevar, criar, cultivar (padrão causativo))
c) hiCCiC (v) higdil (aumentar)
d) CaCoC (a) gadol (grande)
e) CoCeC (n) godel (tamanho)
f) miCCaC (n) migdal (torre)
g) CCuCa (n) gdula (grandiosidade)
h) CCiCa (n) gidla (crescimento)
Percebemos que a raiz √gdl pode entrar em padrões vocálicos verbais, nominais e adjetivais
e que também pode entrar em mais de um padrão de mesma categoria, se, por exemplo,
considerarmos apenas a formação de nomes. Preliminarmente, se nossas observações estão corretas,
o fato de a mesma raiz se enquadrar em mais de um padrão categorial pode sugerir que a raiz é
selecionada pelo padrão e não o contrário. No entanto, qualquer conclusão é prematura.
Este fato está diretamente relacionado com o objetivo amplo desta pesquisa, que é discutir a
estrutura argumental dentro da Morfologia Distribuída. As informações sobre a grade temática e a
estrutura de argumentos, que em uma teoria lexicalista está localizada nas entradas lexicais, devem
estar codificadas em outro lugar, em uma teoria não-lexicalista. Algumas pesquisas, fundamentadas
no modelo da Morfologia Distribuída, discutem os dados da língua hebraica, apresentados em : (i) a
informação sobre a estrutura argumental está localizada nas raízes ou nos núcleos categorizadores?;
(ii) as raízes fazem algum tipo de seleção?; (iii) as raízes possuem algum tipo de grade temática ou
quadro de subcategorização?
Questões semelhantes norteiam esta pesquisa, que analisará os dados do português
brasileiro, como já foi apontado anteriormente.
Além disso, se for assim, talvez, uma mesma raiz não deva poder selecionar dois núcleos
diferentes para forma elementos de uma mesma categoria. Por exemplo, dois sufixos
nominalizadores diferentes não deveriam poder nominalizar a mesma raiz.
Há ainda uma terceira via de tratamento, que iremos adotar no presente trabalho. Não
falaremos em seleção propriamente dita, seja pelas raízes, ou pelos núcleos funcionais
categorizadores, mas trataremos de licenciamento das raízes em um determinado contexto sintático.
Tal proposta tem sido implementada por autores como Borer (2005). Dessa forma, nos
preservaremos de problemas tais como prever a existência de um quadro de subcategorização nas
raízes ou nos núcleos funcionais. A hipótese 3 pode assim ser resumida.
Na visão herdada da teoria GB dos anos oitenta – que se mantém, sem grandes
modificações, no Programa Minimalista dos anos noventa e dois mil –, os itens lexicais trazem, em
sua representação no léxico, grades temáticas. Nelas, todas as informações associadas ao item
lexical, relevantes para a sintaxe, estão explicitadas. Que informações são essas? Grosso modo,
incluem i) sua categoria sintática (se é verbo, nome, adjetivo, preposição, etc.), que dará conta de
sua distribuição; ii) o número de argumentos que seleciona; iii) os tipos de argumentos (se são
sintagmas nominais, sintagmas preposicionais, sentenças etc.) que seleciona; e iv) quais papéis
semânticos/temáticos devem ser atribuídos a estes argumentos. Aspectos do significado que não têm
efeitos na estrutura sintática, como as diferenças entre “cachorro” e “gato”, por exemplo, não se
incluem entre as informações relevantes. Em , a seguir, apresentamos representações de grades
temáticas dos itens lexicais destruir e gato. No caso da palavra gato, não há argumentos a serem
representados, e, portanto, somente sua categoria é especificada na grade.
a. Quantos são e quais são os papéis temáticos que a teoria assume existirem para
serem atribuídos? Não há consenso sobre nenhum dos dois pontos, e os inventários
propostos deixam inúmeras lacunas. Por exemplo, que papel temático devemos atribui à
ponte em “o engenheiro evitou a ponte” (LEVIN, 1999)? Como fazer generalizações a
respeito dos verbos com tais lacunas na teoria?
1
Universal Theta Assignment Hypothesis (Hipótese da Atribuição Universal de Papéis Temáticos).
b. Numa teoria baseada em grades temáticas, quantas entradas devem existir para o
verbo correr, por exemplo? Aparentemente, três: uma inergativa, em que o sujeito é agente
(João correu na praia ontem); uma inacusativa, em que o sujeito é um tema (A pedra correu
até a porta); e uma transitiva, com um sujeito agente e um objeto direto cujo papel temático
não é fácil de estabelecer considerando os inventários de que dispomos (João correu o
cachorro da cozinha). Essa solução não é obviamente ruim, uma vez que o verbo correr, nas
três situações, tem mais ou menos o mesmo significado?
( 11 V1P
3
NP V’1
Agente 3
V1 V2P
| 3
e NP V’2
Tema 3
V2 PP
pôr Alvo
Na estrutura , há dois núcleos verbais. Mas, aqui, V1 é uma posição vazia para onde V2 se
move; ele não dá qualquer contribuição semântica ao significado do VP.
Na proposta de Larson, a entrada lexical do verbo pôr têm os papéis temáticos AGENTE,
TEMA e ALVO para atribuir, que serão projetados na sintaxe por meio da estrutura complexa
acima. Os dois V's em estão ali essencialmente para compatibilizar a idéia de que a estrutura
temática está representada no léxico com as mencionadas assimetrias de interpretação entre os dois
complementos e a Hipótese do Complemento Único. O problema é que, além de ser difícil
sustentar, de maneira independente, a proposta de haver um V semanticamente vazio nos verbos de
duplo complemento, o recurso gera conflitos com os fundamentos da própria teoria GB, que o autor
segue: Jackendoff (JACKENDOFF, 1990a), por exemplo, aponta que, para que o especificador do
2
Para explicar co-referências constatadas entre os dois argumentos internos usando os princípios da teoria da Ligação
é preciso assumir que há relações de c-comando assimétrico entre eles. A concha larsoniana cria essas relações
assimétricas, como se verá.
3
Que diz que cada núcleo só pode ter um complemento. Isso força, evidentemente, que as representações em árvore
das estruturas sintáticas só tenham ramificações binárias.
V1P receba o papel temático de AGENTE, é preciso que o V 2, carregando a entrada pôr, se mova
para V1. O autor continua, observando que, se isso é verdade, alguns papéis temáticos são atribuídos
em estrutura profunda (como quer a teoria GB para todo e qualquer papel temático), enquanto
outros, não. Larson reconhece os problemas, mas não os considera suficientemente fortes, tendo em
vista os ganhos que a proposta traz.
Um passo mais decisivo na direção de sintaticizar propriedades até então consideradas
lexicais foi dado em (HALE; KEYSER, 1993). Os autores reconhecem os méritos da concha
larsoniana e aperfeiçoam a idéia assumindo que os itens lexicais trazem estrutura sintática dentro de
si.
Surge, assim, o conceito de sintaxe lexical (ou sintaxe-l), que foi amplamente usado no
estudo de verbos denominais do tipo location/locatum. Ficou evidente que uma simples
representação baseada em grades de argumentos era insuficiente para explicar propriedades
“sintáticas”, plenamente verificáveis, que estes e outros verbos possuíam. Diferentemente do V1 de
Larson, acima, os V's de Hale e Keyser contribuem com significado, introduzindo sub-
eventualidades na sua estrutura. Ademais, para os autores, havendo dois V's na sintaxe-l do verbo,
existe uma relação default de causalidade entre as sub-eventualidades que eles denotam. No caso
abaixo, o sub-evento e1, associado ao V1, implica ou causa o sub-evento e2, associado ao V2: e1 →
e2.
( 111 V1P
3
NP V’1
3
V1 V2P
engarrafar 3
NP V’2
3
V2 PP
t3 3
P NP
t2 t1
4
O que não quer dizer que não houve, durante a década, tratamentos lexicalistas da estrutura de argumento com um viés
construcionista, algo bastante distinto da visão tradicional da teoria GB. Para mencionar um exemplo mais conhecido,
os trabalhos de Levin e Rappaport decompunham os predicados em sub-predicados (com a semântica dos operadores
ACT, CAUSE, BECOME, etc.), à maneira de Dowty (Cf. DOWTY, 1979), que tomavam como argumentos os
argumentos dos verbos. Essa decomposição, entretanto, não era sintática; estava codificada, por meio de templatos de
estrutura de evento, numa espécie de interface entre a sintaxe e o léxico. Assim, os argumentos eram projetados na
sintaxe por meio de regras de link que estabeleciam suas funções na sentença de acordo com as predicações associadas
a eles dentro da estrutura de evento. Não trataremos destas propostas aqui.
(111 vP
3
DP v’
3
v VP
Init 3
DP V’
3
V RP
Proc 3
DP R’
3
R XP
Result
(111 a. EP (Inacusativo)
qp
the flowerNOM qp
<e>E Tmax
3
the flowerNOM 3
T AspQmax
qp
the flower2 qp
2
<e ># VP
s-d-q wilt
b. EP (Inergativo)
qp
the manNOM qp
Originador <e>E Tmax
3
the manNOM 3
T VP
run
c. EP (Transitivo)
qp
MaryNOM qp
<e>E Tmax
Originador 3
MaryNOM 3
T AspQmax
qp
the book2 qp
<e2># VP
s-d-q read
Para Borer, atelicidade quer dizer ausência de estrutura. Então, eventualidades sem ponto
final inerente estão associadas a estruturas em que não há um núcleo aspectual mais encaixado, que
relacione complementos quantificados aos verbos. Este tipo de estrutura pode ser vista em b.,
acima. Em a. e c., por outro lado, temos telicidade, criada pela presença do sintagma AspQmax e seu
sujeito quantificado, com o qual concorda.
A teoria de Borer guarda muitas semelhanças com a da Morfologia Distribuída,
principalmente por atribuir à estrutura sintática a função de categorizar os itens lexicais. Nas
estruturas acima, os itens lexicais não projetam, mas, quando anexados a elas, modificam as
estruturas sintáticas em que ocorrem. O mesmo raciocínio, com maior ou menor alcance, vale para
algumas versões da Morfologia Distribuída (ver abaixo). Há, entretanto, diferenças bastante
importantes, principalmente no que diz respeito a como lidar com a morfologia das palavras. A
Morfologia Distribuída, uma teoria do tipo Item & Arranjo, trabalha, como vimos, com as idéias de
itens de vocabulário em competição e de inserção tardia dos mesmos. Os itens de vocabulário
realizam morfemas – feixes de traços morfossintáticos – que são os nós terminais de uma estrutura
sintática. Para essa teoria, pois, o espelhamento que a morfologia faz da estrutura sintática é algo
natural, uma vez que, no caso default, estrutura sintática é estrutura morfológica. Na teoria de
Borer, por outro lado, itens lexicais absorvem, por meio de movimento de núcleo, traços
morfossintáticos da estrutura sintática em que ocorrem e, depois, regras morfo-fonológicas se
aplicam sobre o feixe, criado por movimento, definindo sua forma final. A teoria, portanto, se alinha
com a visão de Anderson (Cf. ANDERSON, 1992), uma teoria do tipo Palavra & Paradigma, em
que regras tomam matrizes de traços morfossintáticos não organizados e os convertem, por meio de
regras, nas formas fonológicas finais das palavras. Esse tipo de abordagem tem a desvantagem de
tratar como acidental o fato de a estrutura morfológica quase sempre espelhar a sintaxe nas línguas
do mundo (Cf. BAKER, 1985). Aqui, o acidental define a regra, enquanto o mais comum fica sem
uma explicação satisfatória.
Por essa razão, a proposta de Borer não será “comprada” no todo. Ainda que aproveitemos
algumas de suas idéias.
Nas primeiras versões da teoria da Morfologia Distribuída, as raízes dos verbos são
licenciadas em determinados contextos sintáticos, envolvendo determinados tipos de argumentos e
núcleos funcionais com atribuições específicas. Um exemplo de tratamento da estrutura argumental
nesses termos é feito por Marantz (Cf. MARANTZ, 1997), onde o autor propõe que raízes sejam
acategoriais, sendo sua categoria estabelecida pelo contexto funcional/sintático em que ela está
inserida5. Marantz também propõe que existam pelo menos dois núcleos funcionais verbalizadores,
5
Seguindo, nas palavras do autor, a visão original de (CHOMSKY, 1970). Trata-se, na verdade, de uma leitura que
Marantz faz do também clássico artigo Remarks on Nominalizations, que teria lançado a hipótese lexicalista (a sintaxe
não tem acesso à estrutura interna das palavras) dentro da teoria linguística posterior. Marantz afirma que a hipótese
lexicalista nasce de uma leitura equivocada do artigo, que, ao contrário, para ele, defende que é a sintaxe que, entre
um transitivo e um incoativo/inacusativo. O primeiro abre uma posição de especificador para o
argumento causador; o segundo não cria esta posição. A raiz do verbo destroy, por exemplo, teria,
na proposta, uma semântica mínima que a licenciaria em um contexto funcional que introduz
argumento externo agente, mas não num contexto funcional que não projeta tal posição. Ou seja, a
semântica da raiz a licenciaria no ambiente do primeiro dos verbalizadores mencionados acima.
Para Marantz, seguindo algumas idéias propostas por Levin e Rappaport (LEVIN; RAPPAPORT,
1995), o que licencia a raiz nesse contexto é o fato de que ela denota uma mudança de estado
externamente causada. Por ser externamente causada, é compatível com uma estrutura transitiva,
em que o complemento sofre uma mudança de estado causada por outra entidade ou evento,
expresso pelo sujeito:
(111 vP
3
DP v’
The army 3
v √DESTROY
3
√DESTROY- the city
Como a raiz é acategorial, pode ocorrer em outro contexto sintático, como o nominal. No
exemplo abaixo, o genitivo expressa a relação temática esperada (de agente ou causador externo),
tendo em vista a semântica associada à raiz.
Já uma raiz como a do verbo grow, por denotar uma mudança de estado internamente
causada, pode ocorrer no contexto inacusativo/incoativo em , abaixo, no contexto
transitivo/causativo, semelhante a , assumindo uma interpretação em que alguém cria as condições
para que a mudança de estado interna se dê (uma espécie de causação secundária), mas não em
contextos como , como se vê pela impossibilidade de a seguir.
(111 vP
3
v √GROW
outras coisas, define a categoria gramatical dos itens lexicais.
3
√GROW- tomatoes
A razão para não haver a nominalização John’s growth of tomatoes (e a estrutura acima) é a
seguinte: grow só pode ser interpretado como externamente causado no contexto – sintático – do
verbalizador transitivo. Em , não existe esse contexto, e a construção é bloqueada por uma
incompatibilidade semântica entre a raiz e tal estrutura.
Note-se que em nominalizações com –ing, o verbo grow pode ocorrer com o genitivo
interpretado como agente. A expressão John’s growing of tomatoes é gramatical em inglês. Como
explicar isto? Simples: as nominalizações com a terminação –ing são deverbais, como no esquema
abaixo, enquanto aquelas com –ion ou –th são nominalizações de raiz.
Observa-se que uma abordagem lexicalista, que assume haver duas entradas no léxico
listadas para as duas versões, transitiva e intransitiva, do verbo grow, precisa explicar por que a
nominalização com a terminação –th só pode se formar a partir de sua versão intransitiva. A
abordagem sintática de Marantz não sofre do mesmo mal.
A Morfologia Distribuída tem, nos últimos anos, voltado ainda mais suas atenções para os
problemas relacionados à estrutura argumental/de eventos associada aos verbos. Na sequência,
discutiremos rapidamente algumas dessas visões para, na seção seguinte, apresentarmos nossas
propostas.
(111 vP
3
DP v’
3
vDO √P
3
√empurr- o carrinho
(111 a. VP b. vP
3 3
DP v’ vBECOME √P
3 3
vCAUSE √P a porta √abr-
3
a porta √abr-
Apesar dos ganhos que o conjunto de propostas de Harley traz à discussão, evitaremos
algumas de suas afirmações, como a de que raízes têm propriedades idiossincráticas de seleção de
argumento interno. Essa afirmação cria problemas quando a raiz ocorre em outros contextos em que
complementos são bloqueados. Por exemplo, quando uma suposta nominalização de verbo toma
como referente uma entidade no mundo. Veja-se o caso da raiz drop do inglês: no contexto nominal,
como bem aponta Borer (BORER, 2005), a raiz denota uma entidade no mundo, não um verbo
6
Ver (LEVIN, 1999) para uma proposta semelhante. De fato, Harley trabalha com uma versão dos templatos de estrutura
de evento que fazem, na teoria de Levin e Rappaport (LEVIN; RAPPAPORT, 1995), a interface do léxico com a
sintaxe. Entretanto, como em Harley são vezinhos (entidades sintáticas) que introduzem a estrutura de evento e abrem
posições para argumentos, não há a necessidade de regras de link que estabeleçam as posições que os argumentos dos
templatos ocuparão na sentença.
transitivo ou incoativo. Não há, pois, complemento para o nome drop. Quando no contexto verbal, a
raiz está associada a um verbo de alternância causativo-incoativa, o que, segundo a autora, deveria
significar que a raiz seleciona um argumento interno. Como lidar com esse problema?
Aqui, o verbo ler, de tipo <e,<s,t>>, combina-se com o complemento o livro, de tipo <e>, o
qual satura a variável x da função introduzida pelo verbo (atribui um valor a ela). O verbo ler tem,
em sua especificação semântica, uma função de papel temático (TH ou tema), que relaciona uma
entidade com um evento, estabelecendo o tipo de participação que aquela entidade tem no evento
em questão. O núcleo de Voz se anexa acima do vP, identificando seu evento com o do vP e
introduzindo uma nova variável que precisa ser saturada por uma entidade (um sintagma
determinante de tipo semântico <e>).
Os verbos causativos (entre outros, os de alternância causativo-incoativa), Pylkkänen os
trata com um núcleo causativo que relaciona eventos. A análise, portanto, é bi-eventiva (ver, entre
outros, PARSONS, 1990), envolvendo um evento causador e um evento incoativo. O exemplo a
seguir ilustra a idéia (João quebrou o vaso):
(111
(PASS)
Voz
APPL
(CAUS)
v Raiz-P
Nem todas as línguas têm aplicativos altos, nem todas têm aplicativos baixos, mas as
que têm um ou outro (ou os dois), os terão nessas posições, por razões que já discutimos. Se uma
língua terá aplicativo baixo, alto, ou os dois dependerá das seleções que fará no inventário de traços
morfossintáticos disponibilizados pela GU.
Como vimos, no trabalho de Pylkkänen, os argumentos neo-davidsonianos são
temáticos, como em Parsons (PARSONS, 1990), não aspectuais, como é o caso de Borer (BORER,
2005), discutido algumas seções acima. Pylkkänen trata essa questão de maneira não-controversa,
optando pelos papéis temáticos, como se fossem a única opção disponível. Pelas razões já
discutidas, evitaremos este tipo de tratamento, o que não significa descartar os elementos
fundamentais da proposta da autora.
(111 Voz-P
2
o João Voz' (João quebrou o vaso)
2
Voz vDOP
3
vDO vδP
3
o vaso v’
3
vδ vBEP
3
vBE √quebr-
Além disso, em Lin, os verbalizadores são especificados por traços como [±DIN] (dinâmico)
e [±INC] (incoativo). O verbalizador incoativo (vδ) é de tipo [+DIN, +INC]; o estativo (vBE) é [-
DIN]; o verbalizador que introduz atividade, o vDO, é de tipo [+DIN, -INC]. No caso do último,
quando combinado com uma raiz, essa funciona como um modificador adverbial de modo,
definindo, assim, o tipo de atividade de que se fala.
A proposta de Lin para as raízes acrescenta coisas interessantes à discussão até o momento
desenvolvida, mas nos parece insuficiente por várias razões. Em particular, não consegue lidar
satisfatoriamente com os casos de alternância causativo-incoativa em que a eventualidade incoativa
causada não tem estado atingido. Não é possível encaixarmos as raízes dos verbos girar ou rodar,
por exemplo, em uma estrutura como acima, ainda que esta seja a estrutura proposta por Lin para
os verbos de alternância. E não é possível por uma razão muito simples: as raízes compatíveis com
o verbalizador BE têm de ser, na ontologia, as raízes com traço [-DIN] – e esse certamente não é o
caso das raízes mencionadas.
(111 Voz-P
3
o João Voz'
2
Voz vP
3
vact √P
2
DP √abr-
a porta
4.1 Os Pressupostos
Nesta nova proposta que começaremos a descrever a seguir, vamos assumir o seguinte
conjunto de pressupostos:
A. Os papéis dos argumentos dos verbos são aspectuais (ver, entre outros, RAMCHAND, 2008;
BORER, 2005; ARAD, 1996; TENNY, 1992) e os argumentos são neo-davidsonianos (PARSONS,
1990);
B. A estrutura não é projetada dos itens lexicais – os itens lexicais (raízes acategoriais) é que
são licenciados em determinadas estruturas de evento e negociam seu significado com elas
(HARLEY; NOYER, 1998; MARANTZ, 2001, 2007; BORER, 2005; GOLDBERG, 1995);
C. Como consequência de B., os papéis dos argumentos são definidos por suas posições em
relação aos núcleos funcionais ou à raiz dentro da estrutura sintática do vP (Cf. HALE; KEYSER,
1993 e MARANTZ, 1997);
D. Os verbalizadores (Cf. MARANTZ, 1997) têm, pelo menos, três “sabores” (HARLEY,
1995): estados (BE), processos incoativos (GO) e atividades ou eventos (ver RAMCHAND, 2008;
CUERVO, 2003; LIN, 2004);
Uma vez que assumimos que as raízes são licenciadas em estruturas sintáticas – que não as
projetam – é preciso explicar a distribuição das mesmas nos diversos contextos sintáticos em que
ocorrem. Preliminarmente, proporemos que a presença/ausência de duas propriedades combinadas
tem como efeito a ocorrência ou não de determinada raiz em determinado contexto.
Representaremos isso por meio de uma matriz com os traços [±DIN, ±CAUS]. A propriedade DIN
dirá que uma raiz associa-se tipicamente a uma eventualidade dinâmica (não-estativa); a
propriedade CAUS dirá que a raiz associa-se tipicamente a uma eventualidade causada dentro de
uma estrutura de evento. Uma raiz com esta propriedade também poderá, na nossa proposta,
predicar, ou seja, ocorrerá numa estrutura em que está combinada diretamente a um DP, e será
interpretada como uma predicação para este DP. O sintagma resultante do merge da raiz com o DP é
verbalizado por um vezinho. O vezinho que se acrescenta a tal estrutura introduz uma eventualidade
que será interpretada como causadora da eventualidade mais encaixada (MARANTZ, 2006),
representada pelo sintagma raiz. As raízes sem a propriedade CAUS (raízes [–CAUS]) se
combinarão diretamente ao vezinho, funcionando como modificadores adverbiais (de modo) para
eventualidades dinâmicas ou como nomeadores de estados (quando uma raiz não dinâmica
combina-se com um vezinho estativo e cria um verbo transitivo que denota um estado).
Nas seções abaixo, apresentamos como as idéias acima podem ser aplicadas a um conjunto
de verbos. São estudados os típicos casos de alternância causativo-incoativa, verbos de atividade
(com ou sem complemento), e alguns verbos de alternância inergativo-inacusativa.
(222 ferver, abrir, rasgar, afundar, fechar, quebrar, crescer, girar, rodar, rolar,
(escorregar), (correr), (chegar), etc.
(222 Voz-P = λe.[ORIG(o-guarda, e) & (s)[fervido(s) & TEMA (a-porta, s) & CAUS(e,
s)]]
2
DP Voz' = λx.λe.[ORIG(x, e) & (s)[aberto(s) & TEMA (a-porta, s) & CAUS(e, s)]]
o guarda 2
Voz vP = λe.(s)[aberto(s) & TEMA (a-porta, s) & CAUS(e, s)]
3
v √P = λs.[aberto(s) & TEMA (a-porta, s)]
3
DP √abr-
a porta
Observemos que, na nossa abordagem, não são relevantes certas propriedades aspectuais dos
verbos, como o fato de denotarem eventos semelfactivos ou durativos, como pular e dançar,
respectivamente. Essas propriedades não são relevantes para o licenciamento de determinada raiz
em determinada estrutura.
(111 Voz-P
3
DP Voz'
o João 3
Voz vP
qp
v DP
3 5
v √pint- o muro
Isso não quer dizer que não haja um estado atingido envolvido na estrutura de evento
associada ao verbo. A questão é que o estado atingido não é denotado pela raiz do verbo. Teríamos o
seguinte cálculo semântico associado à acima:
(111 Voz-P = = λx.λe.[pintar(e) & ORIG(o-João, e) & (s)[TEMA (o-muro, s) & CAUS(e,
s)]]
3
DP Voz' = λx.λe.[pintar(e) & ORIG(x, e) & (s)[TEMA (o-muro, s) & CAUS(e, s)]]
o João 3
Voz vP = λe.[pintar(e) & (s)[TEMA (o-muro, s) & CAUS(e, s)]]
qp
v DP
3 5
v √pint- o muro
Em , o estado atingido não está especificado, mas tem que ser um estado compatível com a
atividade de pintar, algo como “com determinada cor” ou “colorido”, por exemplo. É importante
salientar que não estamos assumindo que na semântica da raiz encontramos todos os componentes
(evento e estado) da expressão acima. Dentro de uma proposta de derivação por fases como a que
encontramos em (MARANTZ, 2001; ARAD, 2003; MARVIN, 2002), a semântica das raízes é
negociada no ambiente sintático criado pelo primeiro categorizador – no caso em questão, o
vezinho; o que quer dizer que os elementos envolvidos neste ambiente, como o DP complemento
interno ao vP, influenciam no significado alcançado pelo vP – ou, melhor, especificam o significado
da raiz. Assumimos, pois, que a presença do DP dentro do vP faz com que o significado da raiz
passe a incluir um estado atingido, do qual a entidade denotada pelo DP é tema.
Podemos observar que, ao assumirmos que a interpretação do vP é bi-eventiva, explicamos o
fato de haver advérbios modificando uma ou outra das eventualidades que compõem a estrutura de
evento do vP. Por exemplo, em João pintou muito bem o muro, o advérbio pode modificar tanto a
atividade como o estado atingido (o resultado ficou bom); em João pintou o muro com pinceladas
largas, o advérbio modifica somente a atividade.
A influência do DP no significado da raiz do verbo é mais visível no caso da sentença João
pintou um quadro, onde o DP complemento denota, ambiguamente, um estado atingido de alguma
coisa (tela, tintas, etc.) e uma entidade (o quadro criado). Nesse caso, o verbo não é somente um
verbo de tema incremental, como era em pintar o muro, mas é também um verbo de criação e isso
tem certas consequências. Por exemplo, em João pintou um quadro bonito, o adjetivo bonito
modifica tanto um estado final de um evento/atividade como uma entidade; já a sentença João
pintou um muro bonito não aceita uma leitura em que um determinado muro ficou bonito como
efeito da pintura7. Observemos, ainda, que em construções com verbo leve dar o nominal derivado
pintada só é aceitável se o objeto pintado pré-existir. Logo, temos que João deu uma pintada no
muro é boa, mas *João deu uma pintada num quadro, não.
Parece claro, pois, que a presença/ausência de um complemento, e o tipo de complemento
que ocorre no vP, têm efeito na interpretação do verbo. Nas situações em que o verbo pintar é usado
intransitivamente (como em João pinta muito bem), o vP será mono-eventivo, com uma estrutura
como a de gritar acima, a locução adverbial muito bem modificando não-ambiguamente a atividade.
Neste caso, por não haver um DP complemento, o significado da raiz não inclui um estado atingido,
limitando-se a especificar determinado tipo de atividade.
Alguns verbos distinguem-se de verbos como pintar ou varrer acima por suas propriedades
aspectuais. Por exemplo, enquanto o verbo pintar com um complemento quantificado denota um
evento télico, verbos como empurrar com complementos também quantificados denotam eventos
atélicos: veja-se que a sentença *João empurrou o carrinho em dois minutos, com a interpretação
relevante, não é aceitável, enquanto João empurrou o carrinho por dois minutos é uma sentença
boa. Proporemos que a questão pode ser explicada do seguinte modo: em alguns verbos, o sub-
evento causado é um estado atingido, que estabelece um ponto final para a atividade associada ao
verbo; em outros, o sub-evento causado é dinâmico, temporalmente homomórfico à atividade
causadora, sem ponto final intrínseco. É o caso do verbo empurrar. Aqui, a raiz, dentro da matriz de
traços proposta acima, é do tipo [+DIN, –CAUS], como as de pintar ou gritar. Entretanto, ao
contrário desses verbos, que, na presença de um complemento, introduzem estados atingidos,
verbos como empurrar introduzem sub-eventos dinâmicos, sem ponto final: o complemento se
desloca no espaço como consequência da atividade denotada pela raiz. Na proposta, temos:
7
Há uma leitura em que o João criou um quadro pintando; por exemplo, pintou um muro bonito em quadro com
casarios.
3 5
v √empurr- o carrinho
Há um paralelo interessante entre os pares pintar e abrir, por um lado, e empurrar e girar,
por outro lado. Em pintar e abrir, a eventualidade causadora termina quando determinado estado do
complemento é atingido. No caso do verbo abrir, esse estado é expresso pela raiz; no caso de
pintar, não. Já no par empurrar/girar, a eventualidade causadora e a eventualidade causada são
temporalmente homomórficas, sem um ponto final intrínseco. A diferença entre os membros do par
é que, no caso de empurrar, o sub-evento causado não é denotado pela raiz, enquanto no caso de
girar o sub-evento causado é denotado pela raiz.
Há verbos em que o complemento não sofre mudança de estado nem se desloca no espaço. É
o caso de verbos como ler. Em João leu um livro, o complemento não muda de estado com a
atividade; somente estabelece uma espécie de percurso para a atividade. Propomos que, como nos
casos anteriores, a raiz do verbo é do tipo [+DIN, –CAUS], e, portanto, não introduz uma
eventualidade causada e predica. A diferença entre esse verbo e os anteriores é que, nos outros
casos, a presença do complemento produz, no vP, uma leitura onde há um sub-evento que tem como
argumento o complemento; para o verbo ler não há sub-evento; o complemento introduz uma
função que vamos chamar de CAMINHO, função que relaciona um evento a uma entidade,
estabelecendo um homomorfismo entre a entidade e a atividade (de ler) em questão.
Como vemos, a despeito das diferentes interpretações que um verbo transitivo, eventivo e
não-alternante possa ter, assumimos as mesmas estruturas sintáticas para todos, com o complemento
anexado ao v – e não interno ao sintagma raiz, como ocorre nos verbos de alternância causativo-
incoativa discutidos na primeira seção deste capítulo. Portanto, não estamos assumindo que a todo
tipo de interpretação ou estrutura de evento associada a um verbo corresponderá um tipo de
estrutura sintática. Mas isso não que dizer que a estrutura sintática não reflita certas propriedades
das estruturas de evento. Por exemplo, enquanto os verbos desta seção podem envolver uma sub-
eventualidade causada ou não, os verbos alternantes necessariamente envolvem uma sub-
eventualidade causada, que está associada à raiz do verbo. Nossa matriz de traços, com o traço
[+CAUS] procura dar conta dessa característica.
Até aqui, vimos verbos com um comportamento bastante regular, cujas raízes se distribuem
pelas estruturas dos verbos de alternância causativo-incoativa, verbos inergativos e verbos
transitivos sem alternância, de acordo com a matriz proposta na introdução: [±DIN, ±CAUS]. Mas
verbos como correr e chegar (entre outros verbos exclusivamente inacusativos) colocam problemas
para a nossa abordagem. A discussão nas seções a seguir tenta dar conta de tais verbos fazendo
alguns ajustes nas propostas apresentadas ao longo do capítulo.
ii. Luigi correu a pedra atrás dela, porque acabava de ver, no cimo de uma
colinazinha que impedia que do lugar onde estava se visse Palestrina, um viajante a
...www.lisandrosellis.kit.net/.../Alexandre_Dumas-o%20conde%20de%20monte-cristo.pdf
( 111 a. vP b. Voz-P
3 3
v √P o João Voz'
3 3
DP √corr- Voz vP
a bola 3
v √P
3
DP √corr-
a bola
As estruturas abaixo apresentam a versão inergativa do verbo correr, com sujeitos animados
e complementos que podem estabelecer percursos ou ser eventualidades criadas (como em João
correu uma bela maratona, por exemplo, em que a bela maratona é algo criado). Aqui temos
estruturas como as de e acima.
As estruturas em , por sua vez, dão conta dos casos em que há um ponto final para o
movimento e o sujeito é animado. Como vemos, somente no caso em que há um sintagma
preposicional na estrutura que indique um lugar atingido, a causativização é permitida. Proporemos
que, nestes casos, a raiz combinada ao sintagma preposicional cria uma estrutura de predicação e,
por conseguinte, uma (outra) versão inacusativa do verbo correr.
(111 a. vP b. Voz-P
3 3
v √P o João Voz'
3 3
DP √' Voz vP
o inquilino 3 3
√corr- PP v √P
5 3
do apto. DP √'
o inquilino 3
√corr- PP
5
do apto.
Como explicar, com a matriz de traços apresentada acima, que a raiz do verbo correr ocorra
em estruturas de evento tão diversas? Não parece que a raiz ora se comporta como se denotasse um
evento dinâmico causado, ora como se denotasse um modo associado ao verbo?
Nossa explicação para o fato é a seguinte: adotando a mesma matriz de traços que vimos
assumindo desde o início, matriz que tenta dar conta do licenciamento de raízes nas estruturas de
evento estudadas, não nos esqueçamos, propomos que a raiz do verbo correr tenha a seguinte
especificação de traços: [+ DIN, α CAUS]. Aqui, α indica que a raiz não é especificada para o traço
de causação; o sinal é especificado pelo contexto em que a raiz ocorre: em e , a raiz tem a
especificação: [+DIN, +CAUS]; nos contextos , a raiz ganha a especificação [+DIN, –CAUS], e
funciona como modificador adverbial do vezinho.
Portanto, certas raízes podem ser subespecificadas quanto a uma ou outra das propriedades
semânticas da matriz, o que explica seu comportamento mais livre entre diversas estruturas.
(111 vP
3
DP √P
o João 3
vGO √cheg-
Na proposta, a raiz deve ser do tipo [+DIN, –CAUS], e não estabelece uma predicação para
o seu argumento. Ela funciona, dentro da proposta, como modificadora de um vezinho de processo
(incoativo). Como a eventualidade introduzida pelo vezinho é incoativa, ela não pode identificar-se
com a eventualidade introduzida pelo núcleo de Voz – ou seja, a operação de identificação de
evento que possibilita a anexação de um núcleo de Voz à estrutura não é permitida aqui. Isso
explicaria o fato de tais verbos não serem verbos de alternância causativo-incoativa.
Entretanto, algumas coisas ficam por explicar. A matriz, com as distinções propostas, não
explica porque a raiz de um verbo como nascer não ocorre em uma estrutura de evento mono-
eventiva, como a do verbo gritar em . Outra questão que se coloca é a seguinte: por alguma razão, o
verbo chegar pode ser causativizado quando se anexa a ele um PP que indica um movimento com
ponto final: João chegou a cadeira para o lado. Como explicar essas coisas?
Ainda não sabemos como explicar a compatibilidade exclusiva das raízes de nascer e
morrer com o vezinho incoativo. Quanto à possibilidade de transitivização do verbo chegar, talvez,
nestes casos, a raiz funcione como modificadora de um vezinho eventivo, como o dos casos
anteriores; a esse verbo formado, um sintagma preposicional com duas posições (uma estrutura
diádica básica, nos termos de HALE; KEYSER, 2002) é anexado e a posição de especificador desse
sintagma é ocupada pelo “argumento interno” do verbo. O sintagma preposicional seria interpretado
como um evento de deslocamento com um ponto final, causado pelo evento introduzido pela
anexação direta do vezinho à raiz do verbo chegar. Teríamos uma estrutura parecida com a proposta
por (MARANTZ, 2007) para os verbos de duplo objeto, com duas eventualidades e uma relação de
causação entre as duas. A estrutura em ilustra tal fato:
(111 Voz-P
3
D Voz'
o João 3
Voz vP
qp
v PP
3 3
v √cheg- DP P'
a cadeira 3
P DP
para o lado
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