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Superação no esporte: limites individuais ou sociais?

M. Lúcia Silva Escola de Educação Física e Esporte


Katia Rubio Universidade de São Paulo, Brasil

RESUMO ABSTRACT
A superação é um termo recorrente na história de vida de atle- Overcoming in Sport: Individual or social limits?
tas brasileiros medalhistas olímpicos. Esses atletas referem em
grande parte de seus discursos a importância de terem persisti- Overcome is a recurrent term in the life history of Brazilian athletes
do, perseverado e buscado caminhos alternativos às dificulda- winners of medals in Olympic Games. In their life history reports’ they
des impostas ao longo da carreira para construir uma trajetória emphasize the importance of having persisted, persevered and discove-
vitoriosa. A esse resultado na solução de problemas é dado o red alternative ways in overcoming the difficulties imposed by their
nome de superação. O que faz um atleta romper barreiras, long sport careers. To this problem solving is given the name overcome.
alcançando o que às vezes parece ser impossível, é um conjunto What makes an athlete overcome obstacles achieving performances that
de fatores técnicos, físicos, materiais e psicológicos que, quan- sometimes seem to be impossible is a set of technical, physical, material
do bem trabalhados, ampliam muito os seus limites. O objetivo and psychological factors that, when well trained, enlarge his limits.
deste trabalho é refletir como a superação de limites indivi- The purpose of this review is to consider how the overcome of indivi-
duais e sociais está presente na vida do atleta de alto nível. dual and social limits is present in the life of high performance athletes.
Quais os motivos que levam um homem ou mulher a se inte- Which motives make a man or woman to fulfil in sport and to become
ressar pelo esporte, chegando a tornar-se atletas de alto rendi- a high performance athlete; which limits are required in their desire to
mento, que limites necessitam ou desejam vencer, como o win, to perform, to dope and cope with defeat so that they follow this
recorde, o doping e a derrota se inserem nesta trajetória de path to overcome obstacles, are matters that will be broached here
superar barreiras, são questões que serão aqui abordadas por through literature review.
meio de uma revisão bibliográfica.
Key Words: sport, overcome, record, doping, defeat.
Palavras-chave: esporte, superação, recorde, doping, derrota.

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INTRODUÇÃO atletas de alto nível. Quais os motivos que levam um


homem ou mulher a se interessar pelo esporte, che-
Os gregos treinavam para se adaptar à sua civilização; gando a torna-se um atleta de rendimento, que limi-
nós treinamo-nos para suportar a nossa. tes necessitam ou desejam vencer, como o recorde, o
Jean Prévost doping e a derrota se inserem nesta trajetória de
superar barreiras são questões aqui abordadas.
Ouve-se com certa freqüência a afirmação “que o Assim como no discurso dos atletas, vários autores
esporte hoje não é mais como era antigamente”. utilizam o termo superação para designar atitudes
Desde o surgimento de atividades físicas com a fina- fora do comum (2, 11, 17, 22). Apesar desse assunto
lidade de competição até aos grandes espetáculos mostrar-se presente no âmbito esportivo, foram pou-
dos dias atuais, o esporte viveu inúmeras transfor- cos os estudiosos que se dedicaram a discuti-lo na
mações. O ideal esportivo do atleta grego antigo não sua especificidade.
é o mesmo do atleta moderno, que não é igual ao do
atleta contemporâneo. Além da mudança de valores, RECORDE
a própria prática da modalidade – técnicas esporti- Os Jogos Helênicos tinham no esporte um meio de
vas, equipamentos, regras – tem sido alterada. O desenvolver o físico e a moral. Os gregos não tinham
esporte acompanha par e passo as transformações como preocupação primeira a superação dos tempos,
que ocorrem na sociedade, refletindo em seu das distâncias, dos pesos ou pontos para se torna-
ambiente os avanços científicos, tecnológicos e os rem campeões. Na Antigüidade, o grego competia,
valores criados e desenvolvidos pelos indivíduos. mas sua busca pela vitória fundamentava-se no
Porém, superação é um termo recorrente quando se superar-se, no romper barreiras individuais, para
trata do universo esportivo seja na Idade Antiga, seja então alcançar o seu máximo na competição em que
nos tempos atuais. Na Carta Olímpica(4) o lema participava e assim aproximar-se de uma condição
Citius, Altius, Fortius (p.18) escrito pelo Barão de divina. A vitória sobre o adversário era uma decor-
Coubertin, inspirado nos valores dos Jogos rência desse processo. Para a sociedade grega helêni-
Olímpicos Helênicos, expressa a mensagem que o ca, os vitoriosos seriam todos aqueles que superas-
Comitê Olímpico Internacional dirige aos atletas de sem seus limites físicos e morais. O recorde (do
todo o mundo, convidando-os a superar-se de acordo inglês record, registro), com a idéia de valorização
com o espírito olímpico. Mesmo diante das muitas social, através dos dados numéricos, nasceu com o
transformações ocorridas ao longo do último século esporte moderno e se fortalece, cada vez mais, no
no ambiente esportivo, o espírito de superação ainda esporte contemporâneo.
perdura como um dos valores morais mais preciosos Mais fortemente, no século XIX, a valorização das
do esporte e segundo Coubertin (14) esta “busca do marcas se fez presente no mundo esportivo e o recor-
perfeccionismo” é essencial. de adquiriu uma importância excepcional. É caracte-
Tratando do esclarecimento quanto à qualidade da rística desta sociedade mensurar a maior parte de
superação, um outro conceito emerge dessa discus- suas atividades, dominadas pela ciência e pela tecno-
são que pode ser denominado como limite. logia, que se reflete em transformar cada ação espor-
Conhecer o limite que se apresenta no momento em tiva em uma medida quantificada. Para Cagigal(2) esta
que ele é vivido, para poder superá-lo adiante, é uma valorização do número salta da ciência em outras ordens da
constante nas narrativas de atletas de alto rendimen- vida, da indústria, do comércio, da propaganda (...) À
to, inclusive dos medalhistas olímpicos brasileiros, medida que o tempo invade a esfera esportiva, ai se impõe a
insinuando que na realização esportiva o máximo marca, o recorde, como elemento essencial da apreciação do
está sempre a ser alcançado. esporte, inclusive em níveis elementares (p. 586).
Sendo muito constante no discurso de atletas o rela- Assim, a prática esportiva, com o objetivo de atingir
to da transposição de obstáculos ao longo da carreira os melhores resultados dentro da competição, conti-
esportiva, esta revisão tem como objetivo refletir o nua a firmar-se como um espaço de realização e de
que representa a superação e como ela é vivida pelos confirmação de competências pessoais e sociais,

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numa sociedade que valoriza o sucesso, a ascensão e recursos materiais que estão ao seu alcance e, excep-
a vitória(1). Além disso, a superação é tida como cionalmente motivado, supera uma marca. Ou seja,
característica inerente do esporte, que se materializa o conjunto de fatores físicos e mentais, aliados à téc-
na forma de recordes. nica e a tecnologia, contribuem indefinidamente para
Hoje, a superação de marcas é um feito grandioso, a construção de uma situação vitoriosa.
merecedor de ampla divulgação pelos meios de No esporte, as vitórias casuais são cada vez mais
comunicação de massa para todo o mundo. Muitos raras. Isso porque, afirma Cagigal (2) elas são resultado
recordes que foram conquistados no início do século de um árduo trabalho realizado por um atleta em meio de
XX e considerados imbatíveis pelos próprios homens um progresso geral (p. 523). Para elevar um centímetro ou
têm sido superados, ao longo do tempo, pelas reduzir centésimos de segundos em qualquer recorde são
mulheres. Estas marcas são quebradas quase todos necessárias investigações científicas, aplicações técnicas e
os meses em alguma prova, e em qualquer modalida- constantes esforços de adaptação pessoal a elas (p. 863).
de esportiva. Uma das grandes motivações de qual- Observando esse processo dinâmico de descoberta
quer atleta que participa hoje de importantes compe- das ciências aplicadas ao esporte para melhorar téc-
tições nacionais ou internacionais está não somente nicas e tecnologias, faz-se necessário refletir sobre
na vitória, mas justamente na luta pela conquista do quais as razões que fazem homens e mulheres sub-
recorde. Segundo Calderon (3) a luta do atleta não é meterem-se e prosseguirem em treinos diários nor-
tanto contra o adversário, “mas contra o cronôme- teados por conhecimentos científicos sem, porém,
tro”. E continua, o pior é que também os cronômetros deixarem de apresentar um alto grau de exigência e
estão melhorando (...) Há relativamente pouco tempo, os dedicação aos praticantes. Tendo notado tão clara-
cronômetros mediam somente os décimos de segundo. Com mente o desenvolvimento tecnológico, Cagigal (2)
a aparição dos cronômetros eletrônicos, se tem incorporado questionou o quanto o progresso não visível, não
os centésimos e milésimos (...) e as marcas atuais são mais tangível ao ser humano, evolui e afirmou: o atleta de
efêmeras que as de antes (p. 61). alguma maneira se tem conquistado a si mesmo, tem desa-
Partícipe desta empreitada, o treinamento exerce fiado e vencido, em parte, suas próprias limitações. Uma
importante papel como meio para este fim. A cada performance esportiva não se conquista sem um complexo
treino, metas vão sendo estabelecidas e, se no futuro desenvolvimento humano (p. 824).
próximo forem alcançadas, passado o amanhã, já É bem verdade que todo este esforço físico e mental
estarão ultrapassadas. Assim, dia após dia, os atletas do atleta para conquistar vitórias e recordes, quando
convivem e têm a possibilidade de descobrir um alcançados, é premiado com um imenso prestígio e
importante valor moral do esporte, o qual Coubertin poder sociais, nacional e até internacionalmente.
referiu-se: o espírito de superação. Some-se a isso a retribuição financeira, em forma de
Esta busca incessante pelo sucesso e pela superação bonificações dos clubes e patrocínios, aumentando a
dos recordes pressupõe, de maneira muito acertiva, sua condição econômica, favorecendo a inserção e
uma evolução material da sociedade e física do atle- manutenção em espaços sociais desejados desde
ta. Como já mencionado, nos treinos diários o atleta muito, o que para alguns atletas se constitui como
busca a perfeição técnica, tendo em seu auxílio os real sentido de vida(1, 9). Eis aí uma das representa-
estudos científicos sobre o movimento humano; já ções do imaginário esportivo atual.
os fabricantes de materiais e equipamentos esporti- Muito além da exigência excessiva imposta implícita
vos cumprem seu papel, lançando no mercado pro- e explicitamente pela sociedade, seja ela na forma de
dutos sempre mais inovadores a intervalos cada vez público que deseja ver o espetáculo, de patrocinado-
menores. O mesmo se pode dizer sobre a evolução res que querem o vínculo de suas logomarcas com
nas técnicas de construção de instalações esportivas. vencedores, do Estado que visa fortalecer a imagem,
Conclui-se então que o recorde é o resultado de a qualidade de sua política como boa, ou pelo povo,
alguns fatores que se combinam num mesmo que projeta, em um único indivíduo ou na equipe
momento: o atleta atinge o melhor de sua técnica, que se fazem seus representantes, os mais diversos
reúne todas as suas virtudes físicas, aproveita-se dos sentimentos pessoais. Há um desejo latente desse

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público ver seus sonhos serem realizados na vitória e nou-se tão anacrônica quanto o calçado esportivo
na conquista e recorde daquele que representa a su- usado por Spyridon Louis, o vencedor da maratona
peração de um limite individual e por vezes social. nos Jogos Olímpicos de 1896.
Raramente um homem ou uma mulher é capaz de Vimos anteriormente, que a “vitória, e somente a
superar marcas no esporte sem antes desenvolver em vitória” mostra ser uma exigência do esporte con-
si este desejo desvinculado de fatores extrínsecos. temporâneo, seguindo a tendência da sociedade
As mudanças produzidas no ambiente esportivo atual, de caráter altamente quantitativo e competiti-
ocorrem paralelas e inter-relacionadas com aquelas vo. Estudos apontam que atletas de alta performance
processadas na estrutura social. Sendo possível afir- têm como perfil procurar tarefas desafiantes (10).
mar que indivíduos e sociedade caminham juntos na Ogilvie & Tutko (15), afirmam que os esportistas pos-
busca de conhecimentos científicos para a melhoria suem também, entre outras características, elevada
da prática esportiva almejando a vitória. Resta então resistência psíquica, autodomínio e controle emocio-
uma pergunta: este progresso na obtenção de marcas nal. Entretanto, afirmações como estas podem ser
representaria a verdadeira evolução humana? questionadas, na medida em que cada indivíduo tem
Baseado em alguns autores (2, 3, 9, 16), a resposta será reações particulares conforme o que percebe de si
negativa se houver a intenção de submissão a quais- mesmo, de suas capacidades e da importância pes-
quer esforços, lícitos ou não, com o intuito de atingir soal dada à situação a enfrentar (8, 19). Questões
apenas e tão somente metas e superar marcas. como essas e afirmações como as de Meynaud (11)
Porém, poderá ser afirmativa se por meio deste exer- “não está provado que a confrontação esportiva discorra
cício de superação de marcas o atleta praticar este ato sempre em uma atmosfera de lealdade”(p. 227), levam as
também na sua vida, fora do ambiente esportivo. discussões sobre o doping a ocupar um espaço privi-
Quanto ao surgimento de novas técnicas e tecnolo- legiado no âmbito do esporte contemporâneo.
gias, estas representarão progresso se auxiliarem, de A origem da utilização do termo doping no esporte é
maneira honesta e pedagógica na conquista do atleta. contada por Cagigal (2) com a seguinte narrativa: o
Essa discussão leva a um questionamento da palavra termo doping (drogado) começou a ser usado nas corridas
recorde que perdeu seu sentido original (registro) para de cavalos, primeiro esporte em que se utilizou fármaco
ser no esporte contemporâneo um resultado complexo clandestinamente para conseguir que um determinado cava-
da superação de limites individuais e sociais. lo corresse mais lento e perdesse. Hoje este termo designa a
ingestão de medicamentos usados por certos atletas para
DOPING conseguir justamente o contrário: tentar ganhar (p. 824).
Na proposta original do Movimento Olímpico, os Espera-se que uma competição seja pautada pela
Jogos Olímpicos da Era Moderna seriam uma gran- igualdade de oportunidades, baseada no desinteresse
diosa festa, momento de confraternização entre os para além da competição em si mesma, onde vence o
povos e de internacionalização do esporte, com o melhor, quem reúne mais competências e quem
objetivo de popularizá-lo. Segundo Proença & mais trabalhou para alcançar o resultado. Nem sem-
Constantino (16) o Movimento Olímpico reformador pre essa expectativa se faz verdadeira no esporte: a
“entendia que o esporte tinha indiscutíveis potencialidades utilização de substâncias dopantes e o seu refina-
educativas e que generalizá-las era contribuir para uma mento, que leva à inviabilização de sua detecção,
sociedade mais saudável, logo mais desenvolvida” (p. 54). desvirtuam o sentido de igualdade que norteia a
Porém, segundo estes mesmos autores, a frase de competição. O fair-play cede espaço ao vale tudo, que
Coubertin “o mais importante nos Jogos Olímpicos não é por sua vez reforça o uso de quaisquer recursos que
ganhar, mas participar, tal como a coisa mais importante viabilizem a obtenção da vitória. Essa é a lógica que
da vida não é o triunfo, mas a luta e, o essencial não é con- tem prevalecido em grande parte nos altos círculos
quistar, mas ter lutado com dignidade” (p. 74) encontra- do esporte de rendimento.
se em desuso na atualidade. Assim, a afirmação “o Existem diferentes motivos competindo pelo compor-
importante não é vencer, é competir”, feita em 1908, tamento do indivíduo, e aquele ao qual for atribuído
momentos antes do início dos Jogos de Londres, tor- maior significado passará a influenciar sua atitude.

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Uma visão que tem prevalecido no esporte é a de que reiras são bastante curtas (7). Esse pode ser um dos
as metas dos atletas se concentram na competição e argumentos utilizados para justificar máximas como
na conquista de marcas sempre superiores. O corpo “ganhar como for” e “a qualquer custo”.
deste indivíduo é considerado somente um instru- Os campeões são vistos como heróis positivos da
mento para conseguir estes fins (20). Isso vem ao sociedade e quando utilizam substâncias ilícitas para
encontro da proposta do esporte atual que privilegia a vencer, teme-se que estejam prejudicando a si mes-
competição. Quando um atleta tem determinação por mos e a própria imagem do esporte. É necessário
vencer a qualquer preço e a instituição e equipe que o refletir se os desvios que se cometem às potenciali-
cercam compartilham desse espírito, alguns excessos dades educacional e cultural do Esporte, proclama-
podem ser cometidos, fazendo com que valores éticos das por Pierre de Coubertin, devem ser imputados
sejam preteridos. Assim, a auto-manipulação hormo- apenas aos praticantes esportivos ou se a todos os
nal mostra-se como um meio eficaz para a superação agentes que intervêm neste fenômeno.
dos obstáculos que se apresentam (12, 13). Há uma
idéia no esporte de alto rendimento a respeito do per- DERROTA
fil do atleta que busca substâncias proibidas: envolvi- O ambiente esportivo altamente competitivo criou
do com o objetivo, o primeiro compromisso desse uma condição absoluta e inquestionável de valoriza-
tipo de atleta é consigo mesmo, depois com os demais ção excessiva da vitória. Diante desta questão,
e por último, com o regulamento (3). Calderon (3) afirma que o motivo da prática do
A razão física para o uso de drogas e, mais recente- doping ter-se generalizado entre os atletas se deve a
mente, para a remodelação genética (13) é melhorar o que no esporte-espetáculo somente há vencedores e vencidos,
desempenho, dando-lhe um maior poder competitivo o que produz uma grande tensão. Ninguém quer pertencer à
(1). A razão psicológica de dopar-se reflete em sua raiz segunda categoria, ninguém quer ser um perdedor, pois a
um alto grau de exigência (intrínseca e extrínseca) e sociedade somente valoriza os ganhadores (p. 86).
de responsabilidade. O atleta que utiliza estimulação É certo que nas competições esportivas só há um pri-
artificial opta por esta conduta porque sente-se inse- meiro lugar e a ele é destinado o título de vencedor.
guro, acreditando não ser capaz de corresponder às Quanto aos demais competidores, sejam eles segun-
suas expectativas e de muitas outras pessoas, ainda do, terceiro, quarto ou último colocado, estes são os
mais quando a sociedade atual tem como parâmetro perdedores, os derrotados. Logo, nas competições
produtivo a realização de resultados - e no esporte esportivas há mais derrotados, do que vitoriosos.
essa lógica é imediata e evidente. Além disso, quando Já afirmamos que o esporte contemporâneo reflete
um atleta faz uso de substâncias dopantes ele busca em seu ambiente características da sociedade, como
não somente a vitória e o prazer que esta lhe propor- a importância da quantificação, do registro dos
ciona, mas o pareamento com retribuição financeira e números e da valorização dos primeiros colocados.
prestígio social, já discutidos anteriormente. Porém, o número que se valoriza é aquele que repre-
Com o fim do amadorismo, o esporte converteu-se senta a vitória, a superação das marcas, o registro do
em um meio de vida, uma atividade profissional: recorde. Assim, Cagigal (2) observa que nas grandes
homens de excepcionais dotes para a luta ou para a competições esportivas, não é freqüente elaborar estatísticas
corrida passam a receber quantias volumosas com- das derrotas famosas, muito menos de derrotas não famo-
prometendo-se a determinadas atuações, e assim, ao sas, lógicas, esperadas. Tal estatística não seria, natural-
longo dos tempos, os campeões do esporte têm sido mente, sensacionalista, propagandística. Segundo os elabo-
transformados em verdadeiros produtos que são radores de números, tais estatísticas não interessariam à
vendidos, negociados (18, 21). Os atletas de alto nível, sociedade (p. 453). Diante dessa afirmação surge
igual aos demais profissionais destacados, permane- outro questionamento: todos esses que não vencem,
cem em uma luta constante por sua posição; o que são na realidade derrotados?
os diferencia, é que os atletas dependem unicamente Para Samulski (19), uma vitória não é idêntica a uma
de seu rendimento, o qual têm de maximizar em experiência de êxito, e uma derrota não é em si, uma expe-
curtos períodos de tempo, pois geralmente, suas car- riência de fracasso. As experiências de êxito aparecem

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quando o rendimento esperado foi alcançado ou superado. importância da autoconfiança na conquista da vitória
As experiências de fracasso se encontram na diferença nega- e afirmam que os atletas confiantes acreditam em si mes-
tiva entre o resultado esperado e o resultado obtido (p. mos. Mais importante, eles acreditam em suas capacidades
145). Diante do resultado obtido e comparando-o de adquirir as habilidades e as competências necessárias,
com o desejado, é aceitável o sentimento de frustra- tanto psicológicas como mentais, para atingir seu potencial.
ção, raiva ou talvez, decepção do atleta quando não A autoconfiança ideal significa estar tão convencido de
consegue atingir seu objetivo. Mas, o que se espera poder alcançar suas metas que você lutará arduamente para
deste mesmo indivíduo é que ele aja para a supera- atingi-las (p. 310).
ção da situação vivida naquele momento. Agir signi- Muitos atletas de alto nível motivam-se em situações
fica, nesse contexto, analisar e solucionar problemas estressantes de competição, mentalizando suas capa-
e conflitos sociais. Portanto, faz-se necessário apren- cidades positivas. Desenvolver um pensamento posi-
der a receber derrotas e a preparar-se para outras tivo é muito importante para a realização de uma
que possivelmente ocorrerão. tarefa com sucesso.
Os atletas de alto rendimento se apresentam com Todos estes recursos utilizados em uma preparação
uma preparação física distinta da média da popula- psicológica fazem diferença no momento da compe-
ção, e têm ainda uma preparação mental igualmente tição, porém, a derrota é o lado oposto da questão
excepcional. Para sagrarem-se campeões nas compe- quando se deseja apenas obter a vitória. Nem toda
tições e vencer também os obstáculos que surgem ao preparação física ou mental, a partir de treinamentos
longo de sua jornada esportiva, alguns deles lançam extenuantes, nem a utilização de conhecimentos
mão de vários artifícios psicológicos. Assim, a moti- científicos, nem de materiais feitos a partir de avan-
vação, o pensamento positivo e a autoconfiança se çada tecnologia, muito menos o uso de substâncias
fazem constantes no desafio de superar. dopantes, dão garantia ao atleta da vitória.
A motivação tem duas fontes: a extrínseca e a Ganhar depois de estar abatido, crer na possibilidade
intrínseca. Pessoas com motivação intrínseca esfor- da vitória novamente, é decisivo para permanecer no
çam-se interiormente para serem competentes e esporte de alto rendimento. Assim, torna-se impor-
auto-determinadas em sua busca de dominar a tare- tante que os atletas de alto rendimento aprendam a
fa em questão (5). O indivíduo pode possuir inúme- não desistir imediatamente ou desanimar diante das
ras competências que o habilitem à realização de dificuldades (8). Por isso, “saber perder” é uma das
tarefas, porém a motivação determinará o grau de características que se atribui ao “estilo esportivo”.
envolvimento e, muitas vezes, a qualidade com que Mais do que uma aceitação, acredita-se que este
a tarefa será cumprida (6). comportamento deve ser incorporado pelos atletas
A autoconfiança em ganhar influencia favoravelmen- que desejam ser denominados campeões, visto que
te no esforço realizado, sendo que o contrário tam- para atingir este posto eles terão que aprender a
bém é verdade, quando a pessoa mantém expectati- competir esportivamente, a assimilar as derrotas,
vas de perder. González (8) acredita que a importância superando-as ao longo da jornada.
de ganhar ou perder, em função de seu esforço na motivação Assim a derrota pode levar o atleta a desenvolver dois
interna, se deve à informação que proporciona sobre a habi- tipos de condutas: ou provoca o abandono da vida
lidade ou competência sobre si mesmo. O êxito aumenta a competitiva ou produz um fortalecimento de atitude.
autoconfiança individual, pode garantir a evolução social Afirma Cagigal (2) que das derrotas, do sentimento de infe-
positiva e produzir um reconhecimento social favorável. Ao rioridade derivado delas, quando não cristalizam em frustra-
contrário, quando um indivíduo perde, seu fracasso indica ção permanente, se produz na reorganização de forças pes-
que não é tão competente e não possui a capacidade requeri- soais; e aí está o princípio da superação. A derrota superada
da (p. 127). Para que a autoconfiança esteja presente significa enriquecimento da pessoa. Em uma personalidade
no atleta, o conhecimento sobre si e seu meio preparada, esta antítese desencadeia novas energias, descobre
ambiente é essencial para a orientação sobre suas inusitadas habilidades, abre horizontes, ordena uma reestru-
possibilidades e limites de uma ação, adaptada à turação de mecanismos, enriquece as diferenciações, de todo o
situação (5). Weinberg & Gould (22) descrevem a qual sai a personalidade fortalecida (p. 844).

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As pessoas que defendem os benefícios do esporte ta, a falta de patrocínio e em outros a glória produzi-
no desenvolvimento do caráter afirmam que os atle- da pela vitória.
tas aprendem a superar obstáculos, a cooperar com A interiorização desse preceito cabe não só aos atle-
os companheiros, a desenvolver autocontrole e per- tas que a qualquer preço procuram atingir o topo,
sistir diante de derrota (16, 22). A prática esportiva mas ao próprio público, aos dirigentes e patrocina-
surge como um espírito de superação de limites, e dores que, pelas suas exigências – implícitas ou não
este estímulo para a superação constante por parte –, contribuem para que o esporte, e não somente o
dos atletas é considerado como um ideal positivo esportista, tenha a sua imagem denegrida. Numa
para a formação das pessoas; daí a importância do época onde a valorização dos resultados sufoca os
esporte como agente socializador. Cagigal (2) nos faz seres humanos, a aceitação de limites individuais é a
refletir mais profundamente na questão, ao afirmar maior prova de superação que um indivíduo pode
que “saber perder” e, como perspectiva educativa, proporcionar a si próprio.
“ensinar a saber perder” não significam necessaria-
mente derrotismo nem fatalismo. Para o autor, os
verdadeiros triunfadores na humanidade não são sempre
vencedores, mas sim os que têm assumido plenamente sua
condição humana (p. 843).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A convivência em sociedade presume a formalização
e desempenho de vários papéis sociais. O que permi-
te a convivência nos grupos é a existência de regras
reconhecidas como justas e passíveis de cumprimen-
to. Aos indivíduos cabe lutar pela sua manutenção
ou transformação quando elas já não mais cumpri-
rem uma função norteadora.
O papel que o atleta desempenha e as expectativas
que a sociedade tem dele estão relacionados com a
conquista de recordes, vitórias, triunfos, sempre com
muita luta e honestidade. Esse rol de conquistas é o
desejo de muitos atletas e da população média. É
possível dizer que a superação se traduz na manu-
tenção do desejo, na esperança de sua realização e na
ação para a sua viabilização, e é esse conjunto de ati-
tudes que levará o atleta a superar-se, cumprindo a
função social de elemento de projeção por parte
daqueles que buscam realizar esse tipo de sonho.
Neste sentido, o atleta seria uma pessoa que é capaz CORRESPONDÊNCIA
de “perder melhor”, visto que o ideal olímpico valo- Katia Rubio
riza mais a participação do que a vitória. Porém, é Núcleo de Estudos em Pesquisa Social
desejável que as derrotas surgidas da confrontação do Movimento Humano
esportiva não sejam irreparáveis, mas superáveis Escola de Educação Física e Esporte
com a mesma vontade e desejo de luta que faz do Universidade de São Paulo
atleta um herói. Avenida Professor Mello de Moraes, 65
Ao atleta é necessário ser capaz de conviver e enten- CEP 05508-900 Cidade Universitária
der que no esporte sempre haverá a dualidade: em São Paulo, SP, Brasil
alguns momentos, o prestígio baixo, a lesão, a derro- katrubio@usp.br

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M. Lúcia Silva, Katia Rubio

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