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NIETZSCHE, Friedrich, (1873) O nascimento da tragédia e Acerca da verdade e da

mentira, Lisboa, Relógio D'Água, 1997, pp. 213-222.

Acerca da Verdade e da Mentira no sentido extramoral

(versão de 1873)

Num certo canto remoto do universo cintilante vertido em incontáveis sistemas solares
havia uma vez um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento Foi o
minuto mais soberbo e hipócrita da «história mundial», mas foi apenas um minuto.
Depois de a natureza ter respirado umas poucas vezes, o astro enregelou e os animais
inteligentes tiveram de morrer. Assim, alguém poderia inventar uma fábula como esta
e, no entanto, não ficaria suficientemente esclarecido quão lastimável, quão obscuro e
fugidio, quão desprovido de finalidade e arbitrário se apresenta o intelecto humano no
interior da natureza. Eternidades houve em que ele não existia; quando ele tiver de novo
desaparecido, nada se terá alterado. Pois para este intelecto não há outra missão que
transcenda a vida humana. Antes pelo contrário ele é humano, e só o seu dono e
progenitor o encara tão pateticamente como se ele fosse o eixo à volta do qual gira o
mundo. Mas se nós conseguíssemos comunicar com um mosquito, saberíamos que
também ele paira neste ambiente com a mesma presunção e se sente como centro
voador deste mundo. Na natureza não há nada de tão censurável e limitado que não se
inchasse qual tubo insuflável por meio de um pequeno sopro dessa força do
conhecimento; e tal como todo e qualquer carregador ambiciona ter o seu admirador,
assim o homem mais orgulhoso, o filósofo, julga ver de todos os lados os olhares do
universo, quais telescópios dirigidos para o seu agir e pensar.

É estranho que o intelecto seja capaz disso, ele que é acrescentado apenas como auxiliar
aos seres mais infelizes, mais delicados e efémeros para os sustentar durante um minuto
na existência, da qual, sem este contributo, eles teriam toda a razão de fugir como o
filho de Lessing. O orgulho ligado ao conhecer e sentir que põe uma névoa ofuscante
nos olhos e sentidos dos homens engana-os por conseguinte sobre o valor da existência
pelo facto de encerrar em si o apreço mais lisonjeiro acerca do conhecimento. O seu
efeito mais geral é a ilusão, mas também os efeitos mais particulares contêm em si algo
de índole semelhante.

O intelecto, como meio para a conservação do indivíduo, desenvolve as suas forças


dominantes na dissimulação, pois este é o meio graças ao qual os indivíduos mais
fracos, os menos robustos, se conservam e aos quais está vedado lutar pela existência
com o auxílio de chifres ou de dentes afiados das feras. No homem, esta arte da
dissimulação atinge o seu ponto mais alto; nele a ilusão, a lisonja, a mentira e a fraude,
o falar nas costas dos outros, o representar, o viver no brilho emprestado, o usar uma
máscara, a convenção que oculta, o jogo de cena diante dos outros e de si próprio, numa
palavra, o esvoaçar constante em torno dessa chama única, a vaidade, são de tal modo a
regra e a lei que não há quase nada mais inconcebível do que o aparecimento nos
homens de um impulso honesto e puro para a verdade. Estes estão profundamente
submergidos em ilusões e visões oníricas, o seu olhar só desliza pela superfície das
coisas e vê aí «formas», a sua percepção não conduz em parte alguma à verdade mas
satisfaz-se com receber estímulos e, por assim dizer, com um jogo tacteando a custo das
coisas. Além disso, de noite o homem deixa-se, durante uma vida inteira, enganar em
sonhos, sem que o seu sentimento moral jamais procure evitá-lo, ao passo " que parece
haver homens que deixaram de ressonar pela simples força de vontade. Que é que o
homem no fundo sabe acerca de si mesmo? Sim, se ele conseguisse ao menos uma vez
percepcionar-se completamente como se estivesse metido num expositor de | vidro
iluminado! Não é que a natureza lhe oculta a maior parte das coisas, mesmo sobre o seu
corpo, para banir e fixá-lo longe das dobras intestinais, longe do rápido fluir da corrente
sanguínea e dos estremecimentos emaranhados das fibras, numa consciência orgulhosa
e malabarista! A natureza deitou fora a chave e ai da fatídica curiosidade que
conseguisse, através de uma fenda, olhar para fora e para baixo da câmara da
consciência e que agora pressentia que o homem assenta no impiedoso, no sôfrego, no
insaciável, no homicida, na indiferença do seu não saber e como que suspenso em
sonhos preso nas costas de um tigre. De onde, com os diabos, vem nesta constelação o
impulso da verdade?

Na medida em que o indivíduo se quer conservar relativamente aos outros indivíduos,


este, na maior parte das vezes, utiliza o intelecto num estado natural das coisas,
somente para a dissimulação; mas, como o homem quer existir tanto por necessidade
como por tédio, socialmente e em rebanho, precisa de fazer a paz e aspira a que
desapareça do seu mundo pelo menos o mais brutal BELLUM OMNIUM CONTRA
OMNES.

Esta paz traz consigo algo que se parece com o primeiro passo para a obtenção daquele
enigmático impulso para a verdade. Acontece que agora é fixado aquilo que doravante
deve ser a «verdade», ou seja, é inventada uma designação das coisas tão válida como
vinculativa e a legislação da língua produz também as primeiras leis da verdade, pois
aqui surge pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira. O mentiroso utiliza as
designações válidas, as palavras, para fazer com que o irreal pareça real. Ele diz, por
exemplo, «Sou rico», quando a designação correcta para a sua situação seria
precisamente a palavra «pobre». Faz mau uso das convenções estabelecidas através de
trocas arbitrárias ou até inversões dos nomes, feitas a seu bel-prazer. Se ele actuar desta
maneira em proveito próprio e prejuízo dos outros, então a sociedade perderá a
confiança que nele depositava e exclui-lo-á por isso. Os homens neste caso fogem não
tanto de ser enganados, mas mais de ser prejudicados pela fraude: a este nível, no
fundo, eles não odeiam o engano mas sim as consequências más e adversas de
determinadas espécies de engano. É só num idêntico sentido restrito que o homem
deseja a verdade: aspira às agradáveis consequências da verdade que conservam a vida,
é indiferente ao puro conhecimento inconsequente e é até avesso às verdades talvez
prejudiciais e destruidoras. E, para além disto, qual é a situação relativamente às
convenções da língua? Serão elas talvez produtos do conhecimento, do sentido da
verdade? Coincidirão as designações e as coisas? Será a língua a adequada expressão de
todas as realidades?

Só mediante o processo do esquecimento pode o homem alguma vez chegar a presumir


que possui uma verdade no grau que acabámos de assinalar. Se ele não quer satisfazer-
se com a verdade sob a forma de tautologia, isto é, com invólucros vazios, então estará
eternamente a receber ilusões como se fossem verdades. Que é uma palavra? A
representação sonora de um estímulo nervoso.

Porém, deduzir a partir de um estímulo nervoso para uma causa que nos é exterior é já
o resultado de uma incorrecta e indevida aplicação do princípio de razão. Como
poderíamos nós dizer, se na génese da língua a verdade, o ponto de vista da certeza,
tivessem sido os únicos decisivos nas designações, como poderíamos nós então dizer
«A pedra é dura», como se conhecêssemos a palavra «dura» de outro modo que não
apenas como estímulo completamente subjectivo! Dividimos as coisas em géneros:
dizemos que a árvore é feminina e o arbusto é masculino. Que transferências
arbitrárias! Como foram ultrapassados os cânones da certeza! Falamos de «serpente»: a
designação quer apenas dizer serpentear, mas podia também ser aplicada ao verme. Que
delimitações arbitrárias, que preferências parciais, tão depressa desta como daquela
particularidade de uma coisa!

Comparadas entre si as diferentes línguas mostram que nas palavras nunca é a verdade
que importa, nem a expressão adequada: caso contrário, não existiriam tantas línguas. A
«coisa em si» (que seria precisamente a verdade pura sem consequências) é também
para o onomaturgo totalmente inapreensível, e mesmo nada desejável. Ele designa
unicamente as relações das coisas com os homens e socorre-se para a sua expressão das
mais ousadas metáforas. Uma estimulação nervosa traduzida numa imagem! Primeira
metáfora. A imagem de novo transformada num som! Segunda metáfora. E de cada vez
uma transposição completa de uma esfera para outra totalmente diversa e nova. Pode-se
imaginar uma pessoa completamente surda e que nunca tenha tido uma sensação do
som e da música: tal como ele se espanta com as figuras acústicas chladnianas na areia,
encontra as suas causas na vibração das cordas e jurará com base nisso saber agora a
que se chama «som», assim acontece com todos nós a respeito da linguagem. Julgamos
saber algo das próprias coisas quando falamos de árvores, cores, neve e flores e, no
entanto, não dispomos senão de metáforas das coisas que não correspondem de forma
alguma às essencialidades primordiais. Tal como o som enquanto figura de areia, o
enigmático X da coisa em si é tomado uma vez como estimulação nervosa, depois
como imagem, finalmente como som. Em qualquer dos casos não existe lógica no
surgimento da linguagem e a totalidade do material do qual e com o qual
posteriormente o homem da verdade, o investigador, o filósofo trabalha e constrói, se
não se trata de castelos no ar, não provêm tão-pouco da essência das coisas.

Pensemos ainda particularmente na formação dos conceitos?) Cada palavra torna-se de


imediato conceito por precisamente não dever servir para a experiência originária única
e totalmente individualizada, à qual deve a sua emergência, algo como recordação, mas
também para inumeráveis casos mais ou menos semelhantes, isto é, em rigor, nunca
idênticos, portanto, que devem adequar-se a casos sempre diferentes. Todo o conceito
emerge da igualização do não igual. Tão certo como uma folha nunca é completamente
igual a uma outra, assim também o conceito de folha foi formado graças ao abandono
dessas diferenças individuais por um esquecimento do elemento diferenciador e suscita
então a representação, como se existisse na natureza, fora das folhas, algo que fosse «a
folha», algo como uma forma originária, segundo a qual todas as folhas seriam tecidas,
desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas e pintadas mas por mão desajeitada, de tal
maneira que nenhum exemplar tivesse sido executado de modo correcto e fiável como a
cópia fiel da forma originária.

Chamamos honesta a uma pessoa. Perguntamo-nos: «Porque actuou ela hoje de forma
tão honesta?» A nossa resposta costuma ser: «Por causa da sua honestidade.» A
honestidade! Isso significa de novo: a folha é a causa das folhas. Nada sabemos a
respeito de uma qualidade essencial que se chamasse «a honestidade»; mas conhecemos
inúmeras acções individualizadas e desiguais que nós, pelo não considerar o desigual,
igualizamos e que agora designamos como acções honestas; por fim, formulamos a
partir delas uma qualitas occulta com o nome «a honestidade». O descurar do
individual e do real dá-nos o conceito, do mesmo modo que nos dá a forma, enquanto a
natureza não conhece quaisquer formas e conceitos e, portanto, quaisquer géneros, mas
apenas um X para nós inacessível e indefinível. Portanto, também a nossa oposição
entre indivíduo e género é antropomórfica e não provém da essência das coisas, embora
não ousemos dizer que não lhe corresponda: o que seria uma afirmação dogmática e,
como tal, tão indemonstrável como a sua contrária.

Que é então a verdade? Um exército móvel de metáforas, de metonímias, de


antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram poética e
retoricamente intensificadas, transpostas e adornadas e que depois de um longo uso
parecem a um povo fixas, canónicas e vinculativas: as verdades são ilusões que foram
esquecidas enquanto tais, metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu
sentido, moedas que perderam o seu cunho e que agora são consideradas, não já como
moedas, mas como metal.

Continuamos sem saber de onde provém o impulso para a verdade; porque até agora
apenas ouvimos falar da obrigação que a sociedade impõe para existir: ser verdadeiro,
isto é, utilizar as metáforas usuais, portanto, expresso de uma maneira moral, da
obrigação de mentir segundo uma convenção estabelecida, de mentir de um modo
gregário, num estilo vinculativo para todos. Ora, é certo que o homem esquece que é
isso que se passa com ele; ele mente do modo indicado, inconscientemente e segundo
hábitos de séculos — e precisamente através dessa não consciência e através desse
esquecimento ele atinge o sentimento da verdade. Deste sentimento de ser obrigado a
designar uma coisa como «vermelha», uma outra como «fria», uma terceira come
«muda», desperta uma inclinação moral relativa à verdade: a partir da oposição ao
mentiroso em que ninguém confia, que todos excluem, o homem prova a si próprio o
carácter digno, fiável e útil da verdade. Coloca agora o seu agir enquanto ser racional
sob o domínio das abstracções; já não tolera ser arrastado por impressões súbitas, por
intuições, ele generaliza todas essas impressões em conceitos descoloridos e mais frios
de modo a ligar a eles o veículo da sua vida e do seu agir. Tudo o que distingue o
homem do animal depende dessa faculdade de reduzir as metáforas intuitivas a um
esquema e, portanto, de dissolver uma imagem num conceito. No domínio destes
esquemas, é possível algo que nunca poderia ser conseguido sob as primeiras
impressões; construir uma ordem em pirâmide segundo castas e graus, criar um novo
mundo de leis, privilégios, de subordinações, delimitações, que agora se contrapõe ao
mundo intuitivo das primeiras impressões, come sendo o mundo mais estável, mais
geral, mais conhecido, mais humano e, como tal, como o mundo regulador e
imperativo. Enquanto cada metáfora da intuição é individual e ímpar e, assim, sabe
escapai a toda a classificação, o grande edifício dos conceitos mostra a regularidade
estrita de um columbário romano e exala na lógica esse rigor e frieza próprios da
matemática.

Quem for tocado por essa exalação fria mal acreditará que também o conceito,
descarnado e octogonal como um dado e deslocável como este, apesar de tudo, é como
o resíduo de uma metáfora e que a ilusão da transposição artística de uma estimulação
nervosa em imagens é, se não a mãe, pelo menos a avó de todo o conceito. Neste jogo
de dados dos conceitos, - chama-se porém «verdade» o utilizar cada dado tal como é
designado, o contar rigorosamente os seus pontos, formar rubricas correctas e nunca
subverter a ordem das castas e a sequência das classes hierárquicas. Assim como os
Romanos e os Etruscos dividiam o céu através de rígidas linhas matemáticas e num
espaço de tal forma delimitado, como um templo, fixavam um deus, assim também
cada povo tem sobre ele um céu de conceitos semelhantes e matematicamente dividido
e, por exigência da verdade, compreende agora o facto de cada deus conceptual apenas
dever ser procurado na sua esfera. Pode-se admirar aqui o homem como um imenso
génio construtor, o qual consegue, sobre fundações movediças e como sobre água
corrente, a edificação de uma catedral de conceitos infinitamente complicada: na
verdade, para encontrar apoio em tais fundações, é preciso que seja uma construção
como se de uma teia de aranha se tratasse, tão delicada que possa ser levada pelas
ondas, e tão sólida que não possa ser destruída pelo vento. Como génio construtor o
homem eleva-se deste modo muito acima da abelha: esta constrói com cera, que colhe
da natureza, ele com uma bem mais delicada matéria, a dos conceitos que ele deve
fabricar a partir de si mesmo. Há aqui, no homem, muito que admirar, mas não apenas
pelo seu impulso para a verdade, para o puro conhecer das coisas. Se alguém esconde
uma coisa por trás de um arbusto, nesse exacto lugar a procura de novo e a encontra,
nesse procurar e encontrar não há muito que enaltecer: no entanto, é isso que se passa
com o procurar e encontrar da «verdade» no interior da razão. Quando dou a definição
de mamífero e depois declaro, após observação de um camelo, «Eis um mamífero»,
deste modo, de facto, uma verdade é trazida à luz, mas é de valor limitado, quero dizer
que ela é do princípio ao fim antropomórfica e que não contém um único ponto que seja
«verdadeiro em si», real e universalmente válido, a não ser para o homem.

O investigador de tais verdades não procura no fundo senão a metamorfose do mundo


no homem, ele luta por um compreender do mundo como coisa antropomórfica e
consegue, no melhor dos casos, o sentimento de uma assimilação. De modo semelhante
ao astrólogo que observa as estrelas ao serviço do homem e em conexão com a sua
felicidade e sofrimento, um tal investigador considera o mundo inteiro como vinculado
ao homem, como a ressonância infinitamente modulada de um som originário, o do
homem, como a cópia múltiplas vezes reproduzida de uma imagem originária, a do
homem. O seu procedimento é tomar o homem como medida de todas as coisas: desse
modo, no entanto, ele parte do erro de acreditar que tem essas coisas imediatamente
perante si, como puros objectos. Esquece pois as metáforas intuitivas originais
enquanto metáforas e toma-as pelas próprias coisas.

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metáforas, apenas por meio do
endurecimento e da solidificação de um fluido originariamente incandescente, de uma
torrente de imagens emergentes do poder originário da imaginação humana, apenas por
meio da crença inabalável de que este sol, esta janela, esta mesa sejam uma verdade em
si, numa palavra, apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito, e enquanto
sujeito criador e artista, vive ele com algum descanso, segurança e coerência. Se ele
pudesse sair por um instante apenas dos muros da prisão dessa crença desapareceria
imediatamente a sua autoconfiança. Já lhe é penoso reconhecer como o insecto ou o
pássaro percepcionam um mundo completamente diferente daquele que o homem
percepciona, e que a questão quanto a saber qual das duas percepções do mundo é a
mais correcta é uma questão totalmente absurda, pois para ser respondida deveria já ser
medida com o padrão da percepção correcta, isto é, com um padrão que não existe. Em
geral, porém, parece-me que a «percepção correcta» significaria: a expressão adequada
de um objecto no sujeito — um absurdo cheio de contradições; porquanto entre duas
esferas absolutamente distintas, como entre sujeito e objecto, não existe nenhuma
causalidade, nenhuma correcção, nenhuma expressão, mas quando muito uma relação
estética, ou seja, uma transposição aproximada, uma tradução que segue o original de
forma balbuciante para uma língua totalmente desconhecida: para o que, em todo o
caso, é necessária uma esfera intermediária e um poder intermediário livremente
poético e inventivo. A palavra «aparência» é muito sedutora, por isso a evito o mais
possível: é que não é verdade que a essência das coisas apareça no mundo empírico.
Um pintor a quem faltassem as mãos e que quisesse exprimir pelo canto a imagem que
tem na mente, sempre revelaria mais coisas nessa permuta entre esferas do que o
mundo empírico revela da essência das coisas. A própria relação entre um estímulo
nervoso e a imagem produzida não é em si mesma necessária: se, porém, a mesma
imagem for milhões de vezes produzida e legada através de várias gerações e que
aparece ao conjunto da humanidade sempre na sequência do mesmo motivo, acaba por
adquirir para o homem o mesmo significado como se este significado fosse a imagem
única e necessária e como se essa relação entre o estímulo nervoso inicial e a imagem
produzida fosse uma rigorosa relação de causalidade; tal como um sonho que,
eternamente repetido, seria sentido inegavelmente como a realidade em absoluto. Mas o
endurecimento e a solidificação de uma metáfora em nada garantem a necessidade e a
justificação exclusiva dessa metáfora.

Qualquer pessoa versada em tais observações sentiu decerto uma profunda


desconfiança perante todo e qualquer idealismo desse género e, sempre que se
compenetrou com toda a clareza da permanente coerência, da omnipresença e da
infalibilidade das leis da natureza, acabou por concluir o seguinte: aqui, ao penetrarmos
fundo nas alturas do mundo telescópicos e na profundidade do mundo microscópico, é
tudo extremamente seguro, elaborado, infinito e conforme às leis e sem lacunas! A
ciência terá eternamente muito a escavar com êxito nesta mina, e todos os achados
serão consonantes e não se contradirão. Como tudo isto se assemelha pouco a um
produto da imaginação! Porque, se se assemelhasse, teria de deixar adivinhar, onde
quer que fosse, o seu carácter de aparência e de não-realidade. A isto há a contrapor
que, se cada um de nós tivesse ainda percepções sensoriais de tipo diferente, poderia
percepcionar as sensações ora apenas como uma ave, ora como um verme, ora como
uma planta, ou o mesmo estímulo seria visto por um de nós como vermelho e por outro
de nós como azul, um terceiro poderia ouvir esse estímulo como um som, e assim
ninguém falaria de uma tal conformidade às leis da natureza, antes conceberia esta
apenas como uma construção extremamente subjectiva. E que é então para nós afinal
uma lei da natureza? Não a conhecemos em si mas apenas nos seus efeitos, isto é, nas
suas relações com outras leis da natureza, que, por seu turno, só nos são conhecidas
como relações. Todas estas relações, por conseguinte, remetem apenas umas para as
outras, e são para nós totalmente incompreensíveis na sua essência; na verdade,
compreendemos nelas apenas aquilo que lhes atribuímos, o tempo, o espaço, ou seja,
relações de sucessão e números. Tudo o que de maravilhoso, porém, admiramos
precisamente nas leis da natureza, o que exige o nosso esclarecimento e o que nos
poderia levar a desconfiar do idealismo, tudo isso está única e exclusivamente no rigor
matemático e na inviolabilidade das representações de tempo e espaço. Estas
construímo-las nós, todavia, dentro e a partir de nós próprios com a mesma necessidade
com que a aranha faz a teia; se somos obrigados a apreender todas as coisas apenas sob
estas formas, não é já de admirar que apreendamos em todas as coisas de facto apenas
essas formas, porque todas elas têm de conter em si as leis do número, e o número é
exactamente o que há de mais espantoso nas coisas. Toda a conformidade às leis, que
tanto nos impressiona no movimento dos astros e nos processos químicos, coincide no
fundo com aquelas qualidades que nós próprios atribuímos às coisas para nos
impressionarmos a nós próprios. Daí resulta, no entanto, que essa formação artística de
metáforas, com que em nós se inicia qualquer sensação, pressupõe já essas formas,
realiza-se portanto nelas; só a partir da firme permanência destas formas primordiais se
explica a possibilidade de se poder construir mais tarde, de novo a partir das próprias
metáforas, um edifício de conceitos. Este edifício é nomeadamente uma imitação das
relações temporais, espaciais e numéricas que assenta em metáforas.
Conforme vimos é a linguagem que trabalha originariamente na construção dos
conceitos, só mais tarde a ciência. Tal como a abelha trabalha simultaneamente na
construção dos favos e os enche de mel, assim a ciência trabalha incessantemente nesse
grande columbário dos conceitos, na necrópole das intuições, constrói cada vez novos e
mais elevados andares, reforça, limpa e renova os favos antigos e esforça-se acima de
tudo por encher esta armação elevada até o infinito e por arrumar dentro dela a
totalidade do mundo empírico, isto é, o mundo antropomórfico. Se já o homem ao agir
liga a sua vida à razão e aos conceitos desta para não ser arrastado e não se perder a si
próprio, o investigador constrói a sua cabana mesmo ao pé da torre da ciência para
ajudar na sua construção e para encontrar protecção para si debaixo do baluarte, já
existente. E bem precisa de protecção, pois existem forças terríveis que o pressionam
continuamente e que opõem «verdades» completamente diferentes à «verdade»
científica, usando os rótulos mais variados.

Esse impulso para a formação de metáforas, esse impulso básico do homem que não se
pode esquecer nunca porque com isso se abstrairia do próprio homem, não está de
forma alguma dominado e só até certo ponto refreado pelo facto de se construir para ele
um mundo novo, regular e rígido a partir dos seus produtos evanescentes, os conceitos,
como se de uma fortaleza se tratasse. Ele procura uma outra área do seu agir, outro leito
do rio, e encontra-o no mito e principalmente na arte. Não pára de confundir as classes
e células dos conceitos ao propor novas transposições, metáforas e metonímias, ao
mostrar constantemente o desejo de configurar o mundo já existente do homem
desperto de modo tão colorido, desconexo e inconsequente, aliciante e sempre novo, tal
como o é o mundo dos sonhos. No fundo, o homem vígil só tem a certeza de estar
desperto devido à teia dos conceitos sólida e regular, e precisamente por isso cai às
vezes na crença de que está a sonhar quando esta teia de conceitos é ocasionalmente
rasgada pela arte. Pascal tem razão ao afirmar que, se nós tivéssemos todas as noites o
mesmo sonho, nos preocuparíamos tanto com ele como com as coisas que vemos todos
os dias. «Se um artesão tivesse a certeza de sonhar todas as noites durante doze horas
seguidas que era rei, seria», creio bem, diz Pascal, «tão feliz quanto um rei que
sonhasse todas as noites durante doze horas que era artesão.» A vigília diurna de um
povo excitado pelo mito, por exemplo, o dos Gregos antigos devido ao milagre
continuamente em acto tal como o mito o assume, é de facto mais parecida com o
sonho do que com o dia do pensador científico a quem a ciência fez perder as ilusões.
Quando toda e qualquer árvore pode falar uma vez como ninfa ou quando, disfarçado
de toiro, um deus pode raptar donzelas, quando a própria deusa Atena é vista de repente
como passa pêlos mercados de Atenas num belo carro de cavalos, acompanhada por
Pisístrato — e nisso acreditavam os bons atenienses —, então em cada instante tudo é
possível como no sonho, e a natureza inteira enleia o homem, tal como se ela só fosse
um jogo de máscaras dos deuses que, por brincadeira, gozam o homem sob todas as
formas.

Mas até o homem tem uma inclinação invencível para se deixar enganar e fica como
que encantado de felicidade quando o rapsodo lhe conta contos de fadas épicos como se
fossem verdadeiros ou quando, no drama, o actor representa o rei ainda mais
regiamente do que o mostra a realidade. O intelecto, esse mestre da dissimulação,
permanece tanto tempo livre e isento da sua normal servidão quanto pode enganar sem
prejudicar e celebra então as suas Saturnais. Jamais é tão exuberante, tão rico, tão
orgulhoso, tão ágil e audaz; possuído de prazer criativo, mistura as metáforas e remove
os pétreos limites das abstracções, de modo a designar, por exemplo, o rio como a via
móvel que leva o homem ao ponto onde ele normalmente vai a pé. Agora livrou-se da
marca da servidão; noutras ocasiões esforçado com melancólica solicitude em ensinar o
caminho e as ferramentas a um pobre diabo que aspira a existir, e tal como um servo
que, para o seu dono, parte à procura de presa e saque, tornou-se agora dono e pode
afastar a expressão de indigência. Independentemente do que ele fizer agora, em
comparação com o seu agir anterior tudo é impregnado de dissimulação, tal como o
anterior agir o era de distorção. Copia a vida humana, considera-a, no entanto, uma
coisa boa e parece dar-se razoavelmente por satisfeito com ela. Os imensos vigamentos
e andaimes dos conceitos, agarrado aos quais o homem indigente se vai salvando pela
vida fora, são para o intelecto libertado apenas um andaime e um brinquedo para as
suas habilidades mais ousadas. E quando o destrói, mistura, recompõe ironicamente,
juntando o mais estranho e separando o que está mais próximo, então revela que não
precisa de esses recursos da indigência e que agora não é guiado pêlos conceitos, mas
sim pelas intuições. Não há caminho regular que leve destas intuições para a terra dos
esquemas fantásticos, as abstracções; a palavra não é feita para elas, o homem emudece
ao vê-las ou fala em metáforas proibidas e construções de conceitos inauditos para
corresponder pelo menos de modo criativo à impressão da vigorosa intuição presente
pela destruição e pelo troçar dos velhos limites dos conceitos.
Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo estão ao lado um do outro,
um com medo da intuição, o outro com desprezo pela abstracção; este é tão pouco
racional quanto aquele é pouco artístico. Ambos desejam dominar a vida: este na
medida em que sabe responder às principais necessidades com prevenção, prudência,
método, aquele, enquanto

«herói felicíssimo» que não vê as necessidades e apenas considera como real a vida
dissimulada sob uma _ aparência de beleza. Onde alguma vez o homem intuitivo
maneja as armas de forma mais enérgica e vitoriosa que o seu adversário como, por
exemplo, na antiga Grécia, pode, na melhor das hipóteses, formar-se uma civilização e
fundar-se o domínio da arte sobre a vida. Aquela dissimulação, aquela denegação da
indigência, aquele esplendor das intuições metafóricas e, em geral, aquela imediatez da
ilusão acompanha todas as exteriorizações de uma tal vida. Nem a casa, nem o porte,
nem o vestuário, nem o cântaro de barro deixam transparecer que foi a necessidade que
os inventou: como se em todos eles só se devesse manifestar uma felicidade sublime e
uma clareza olímpica e simultaneamente um brincar com as coisas sérias. Enquanto o
homem dirigido por conceitos e por abstracções apenas se defende da infelicidade por
meio deles sem forjar a felicidade a partir das abstracções, aspirando à ausência de dor
tanto quanto for possível, o homem intuitivo, estando no seio de uma civilização, colhe
já das suas intuições, além da defesa contra o mal, uma iluminação, uma alegria e uma
redenção que jorram continuamente. De facto, ele sofre mais intensamente, quando
sofre: sim, é verdade que também sofre mais vezes porque não sabe aprender com a
experiência e cai sempre na mesma armadilha em que já caiu uma vez. Então ele é tão
irracional no sofrimento como na felicidade, grita e nada o consola. Quão diferente é no
mesmo infortúnio o homem estóico, ensinado pela experiência e dominando-se através
dos conceitos. Ele que noutras ocasiões só procura sinceridade, verdade, ausência de
fingimento e protecção contra assaltos traiçoeiros, tira agora da infelicidade a obra-
prima dissimulação, tal como aquele na felicidade; o rosto que apresenta não estremece
nem se move mas como [que apresenta] uma máscara com uma digna ponderação dos
traços, não grita e nem sequer altera o tom da voz: quando uma verdadeira carga de
água desaba sobre ele, cobre-se com a capa e afasta-se dela a passo lento.
(Tradução do Seminário de Tradução Filosófica, coordenado pela

Dr. Helga Hoock Quadrado, Instituto Alemão de Lisboa)

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