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Tratamos aqui do homem selvagem que, se quer, tinham noção de propriedade privada
nem idéia da coletividade.
São grupos que não passaram ainda pela primeira grande divisão do trabalho,
desconhecem leis, as noções de posses, dinheiro, poder, prestígio, coletividade ou
qualquer forma de união que se baseasse em relações humanas mais complexas.
Não é de se espantar que, para estes seres humanos a mera idéia de um conjunto de
normas, costumes ou preceitos que regulamentassem a convivência, não passasse de
algo inexistente. Ora, de que serviria este conjunto regulamentador de convivências (o
direito) se a própria convivência não havia sido percebida. Consequentemente, o direito
ideal era uma esfera estranha à capacidade intelectual daqueles tempos. Tampouco
imaginemos um direito real esquematizado e fixo porque simplesmente reinava a "lei do
mais forte".
O homem também aprimora suas técnicas de retirar da natureza aquilo que necessita.
Inclusive, seria importante comentar rapidamente sobre a necessidade.
Não é difícil de imaginar que o homem sempre teve fome e frio e aquele que "tendo
cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente
simples para acreditá-lo" 1[1] não estava seguindo senão as próprias necessidades. Como
é bom salientar, a propriedade em si não é uma necessidade humana mas é fruto desta.
Esta afirmação não perderia sua validade pela provável afirmação de que os índios,
como qualquer ser humano, também têm necessidades mas não têm propriedades. E de
fato assim se verifica, mas ele não tem a propriedade particular ao passo que possui a
coletiva. O que não deixa de ser propriedade uma vez que, se caso alguma tribo inimiga
tentasse se apropriar das posses coletivas, a guerra seria inevitável.
Como visto, foi das necessidades humanas mais básicas que o homem, seja sozinho ou
em grupo, começou a apropriar-se de partes daquilo que a natureza oferecia. Mas a
1
forma como isto era administrado é que vai diferenciar gritantemente os modos que os
grupos sociais vão vivenciar os dois âmbitos de atuação do direito.
O ameríndio não tinha "lei nem rei". Os chefes, sustentados pelo prestígio, sugeriam
algumas medidas que poderiam ou não ser acatadas pela comunidade. O direito real
vivido por aquela sociedade era representado pelos hábitos e costumes de sua gente,
mas devemos ter cuidado em utilizar a palavra direito pois seu significado é bem mais
restrito do que a ampla gama hoje utilizada. Entendamos este direito como uma
expectativa criada pela tribo onde todos devem seguir uma conduta padrão. Em outras
palavras, as "leis" seriam subentendidas, algo do tipo : todos devemos nos submeter ao
bem coletivo, todos devemos defender nossas terras, todos devemos obedecer a
separação dos deveres, etc.
Seria difícil a idéia de que estas sociedades possuíssem um corpo estável de leis para
regulamentar relações que ainda desconheciam. Estas relações por sua vez são muito
conhecidas no velho continente, parte da África e Ásia, pois lá havia uma economia não
de subsistência como se verificava aqui, mas sim um comércio com dinheiro ou
permuta, com posses pessoais e toda uma parafernália de atritos que precisavam de ou
alguma ordem ou de um meio de garantir aos que tinham que continuassem tendo.
Logo, pela própria ausência de necessidade, as tribos americanas não tinham Estado
(com as raras exceções já citadas) mas não deixavam de ter um esboço do direito real
(conduta esperada) tampouco um do direito ideal (a melhor conduta possível). Ou seja,
o próprio grupo tinha os seus valores (bem representado pelo prestígio) onde os mais
bravios ou sábios eram tomados como modelo (direito ideal) e eles deveriam ser
aplicados (direito real). Ressalvo uma observação que seria importante : o direito real e
o ideal destas épocas são esferas tangentes no campo de atuação haja vista seus direitos
real e ideal serem meras noções e não frutos de reflexões e estudos.
Ao passar dos tempos, este sistema selvagem de convivência sofreu um duro golpe. Na
Europa, principalmente, onde as extensões territoriais foram ficando pequenas, frente ao
crescimento demográfico, aquilo que a natureza oferecia passou a não ser tão abundante
quanto era no início dos tempos.
"Onde não existisse algo de duradouro e raro, de bastante valor para que se guarde, os homens não estarão
em condições de ampliar as próprias posses de terra mesmo que fosse muito rica, com plena liberdade de
ocupá-la"2 [2] .
Novamente era a necessidade que impulsionava a criação. Mas o próprio comércio se
ampliou , os homens viram-se obrigados a criar um sistema que lhes garantissem as
posses e, praticamente, legitimassem as mesmas. Surge o Estado. As próprias relações
humanas foram ficando mais complexas e homem começa a tomar consciência da
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existência da mesma, neste panorama surge a escrita, a economia, a política, a filosofia,
o direito, enfim o estudo.
Os valores humanos ficam mais aprimorados embora muito longe do ideal hoje
almejado. O direito ideal é enriquecido por teorias originárias destes novos
conhecimentos, os ideais de justiça, a sistematização do direito e outras tantas novidades
vão ampliar a esfera de atuação do direito ideal. Todavia, o homem impulsionado por
suas necessidades, caberia aqui até mesmo o adjetivo "egoístas", também ampliou o
campo das relações de que o direito real deveria se ocupar. Basta-nos recordar das
atrocidades cometidas naquelas épocas (até mesmo em épocas posteriores) para
notarmos que a interseção entre os campos do ideal e do real eram, ainda, muito
pequenos.
Em resumo, uma crítica socialista neste período seria bem recebida, pois as classes,
muito bem estratificadas, apoiavam o seu poder sob a égide do direito. Porém uma
contraposição positivista seria, igualmente, aceita uma vez que foi neste período que
lançamos bases das futuras legislações e ideais que norteariam uma sociedade mais justa
ou ao menos, caminhando rumo a este modelo.
Com o avançar dos anos, o homem aprimora ainda mais o campo econômico,
moderniza suas técnicas de produção, sistematiza seus estudos, descobre novas ciências,
enfim, caminha passo a passo para uma melhor satisfação de suas necessidades.
Contudo vale questionar quem eram os beneficiados destas invenções, ou melhor ainda,
de quem que estava sendo saciada a necessidade. Obviamente de uma minoria que
dispunha da propriedade dos meios de produção, que controlava a política e a
economia, em outras palavras, estava no ápice de uma sociedade estratificada e tinha as
rédeas para guiá-la.
E, para as idéias, estará reservado um século em especial : o século das luzes, que
apesar de ter rendido muitas críticas mostrou-se eficaz pois seus críticos se
manifestaram , paradoxalmente, através de mais idéias ainda.
Foi neste século que muitas das posturas humanas foram analisadas. O campo político
foi extraordinariamente enriquecido, bastando citar Montesquieu com a separação dos
três poderes, Quesnay e Tourgot no campo econômico e seu liberalismo, o próprio
Rousseau e sua defesa à liberdade de opinião, enfim, poder-se-ia citar uma lista de
nomes de ilustres pensadores que engrandeceram o rol do direito ideal.
Reiterando, com tantas novas idéias e ideais, o campo de existência do direito ideal foi
ampliado de modo até então nunca visto. Mas esta conquista mais desanimou que
propriamente engrandeceu as relações humanas: toda aquela beleza da justiça,
igualdade, liberdade e fraternidade ficara restrita às paginas das muitas publicações, sem
nenhuma aplicação consistente no direito real.
Ressalvo que o direito em si não era um meio de domínio de classes, mas assim se
apresentava frente ao seu mau uso. Da mesma forma que não podemos dizer que o fogo
é puramente predador por queimar, pois pode aquecer; o direito, igualmente sendo um
instrumento, não será essencialmente bom ou mau, mas sim, será bem ou mal utilizado.
Aí é que nascerá toda a chave para esta questão do caráter do direito : enquanto
instrumento mal utilizado no campo real, será amplamente revisto nos séculos
posteriores (XIX e XX) para tentar aplicar um pouco mais do plano ideal na esfera do
real. As desigualdades serviriam como espécie de tormenta pela qual a sociedade deve
passar para acordar dos seus próprios males e sentir a necessidade da melhora.
"(...). Devemos construir instituições sociais, asseguradas pelo poder do estado, para proteção dos
economicamente fracos contra os economicamente fortes. (...)"3 [3]
V- Sociedade Contemporânea
3
mesma igualdade que os homens, e entre os próprios homens não haveria igualdade de
condições entre o branco e o mestiço.
Ainda que hoje exista o preconceito social e racial, ele é crime inafiançável, panorama
muito dissonante do percebido no século passado onde um ser humano poderia possuir
legalmente um outro ser humano. Contudo, esta mudança só foi possível por que os
homens repararam que este absurdo contrastava com os ideais da famosa igualdade que
permanecera latente no plano ideal; foi necessária a luta dos abolicionistas e dos
próprios negros para esta modificação. Em resumo, a bela disposição das nossas leis já
provam que o caráter do direito dependerá de sua aplicação. Se quisermos ser déspotas,
basta afastar o campo ideal do real e teremos normas mecânicas e arbitrárias que
instaurarão relativa ordem, até que o próprio homem não consiga viver neste sistema
sufocante e, movido pela necessidade de uma liberdade de escolha, comece a aplicar
mais o direito ideal no campo real.
Imaginar os prognósticos possíveis que o futuro do direito pode assumir é trabalho que
reservo aos adivinhos, pois nunca se sabe quando uma nova idéia pode revolucionar
uma mentalidade, nunca se sabe quando uma mentalidade pode revolucionar um
comportamento e, por fim, nunca se sabe quando um comportamento pode mudar
graças à uma idéia.
Pode ser que nossos avanços morais (ainda que a passos lentos) amplie o plano do ideal
e nos vejamos forçados a lutar para repelir novas dominações. Ou pode ser que
apliquemos ainda mais o ideal em nossa legislação, tornando-a mais coerente com sua
finalidade positivista.
Desde o início deste trabalho, tentei alinhar o que havia de mais importante e necessário
para demonstrar que ambas as correntes foram muito felizes e ponderadas em suas
considerações. Obviamente que temas que aqui foram citados como a economia, o
comércio, o uso do dinheiro, a liberdade, a necessidade, o direito e a própria noção de
homem como ser social e apto a novas descobertas, mereceriam uma atenção que
poderiam render páginas e mais páginas, sem que, contudo, mudasse o objetivo inicial
do trabalho.
Como uma observação final, seria interessante atentar que, depois de tantos milênios
vivendo na Terra, o homem pode demostrar sua vocação ao auto-conhecimento e ao
conhecimento da natureza (o qual se encontra inserido, fazendo parte dela). Demonstra,
igualmente, uma tendência ao aperfeiçoamento não só de sua tecnologia como crêem os
mais pessimistas, mas também tende a melhorar a si mesmo e até a própria sociedade.
Não seria utopia crer que os séculos vindouros serão melhores que os precedentes, pois
como já foi dito, o próprio homem é movimentado pelas suas necessidades, e o homem
tende a melhorar porque ele sente a necessidade de ter o melhor. Não me refiro aqui a
casos isolados, mas na sociedade como um todo. A capacidade de se melhorar
intelectualmente é uma dádiva que nos impulsionará sempre à luta para que vivamos um
direito ideal. Finalizo, então, utilizando as palavras de Engels que muito bem resumem
esta expectativa em torno da humanidade: