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Renato Carlos de Menezes Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Assistente de Edição
Felipe Morais de Melo Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Miguel Pereira Neto Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Márcio Adriano Tavares Fernandes Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Renato Marinho Brandão Santos Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Conselho Editorial
Drª. Maria da Conceição Fraga Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Miguel Pereira Neto Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Renato Carlos de Menezes Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Renato Marinho Brandão Santos Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Conselho Consultivo
Drª. Ana Teresa Marques Gonçalves Universidade Federal de Goiás (UFG).
Drª. Anita Waingort Novinsky Universidade de São Paulo (USP).
Dr. Angelo Adriano Faria de Assis Universidade Federal de Viçosa (UFV).
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Drª. Margarida Maria Dias de Oliveira Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Normalização
Miguel Pereira Neto Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Revisão de Texto
Felipe Morais de Melo Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Projeto/Editoração eletrônica
Márcio Adriano Tavares Fernandes Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Figura da Capa
Autor: Barlaeus. In: REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo:
Edusp, 2001. p. 127
APRESENTAÇÃO
A Revista Fazendo História nasceu com o propósito de divulgar e estimular a produção do
conhecimento Histórico, deixando, todavia, as portas abertas para entrada de outras áreas do
conhecimento que queiram se relacionar com a História. E é com alteridade, responsabilidade e,
sobretudo, amor à ciência histórica, que oferecemos a nossa singela contribuição na constante luta
para desenvolvimento da mesma.
Não podemos, entretanto, deixar de lembrar as dificuldades que tivemos para produzir este
caderno e as que temos encontrado para gerir a revista; sem dúvida, não são poucas, mas não cabe
aqui enumerálas. Por isso, desde já, pedimos desculpas pelos erros que possam vir a ser encontrados
nesta edição. Assumimos a culpa por eles.
Antes da exposição dos artigos selecionados, seremos brindados com uma esclarecedora
introdução produzida pelo professor Dr. Angelo Adriano Faria de Assis. A ele, aos demais membros
do conselho consultivo e a todos os colaboradores da Revista Fazendo História fazemos o nosso mais
profundo agradecimento.
Com grande carinho e satisfação, entregamos a vocês este primeiro número da Revista Fazendo
História. Esperamos que seja o primeiro passo de uma caminhada de sucesso e que a revista possa
cumprir com qualidade seu propósito de divulgar e estimular a produção do conhecimento histórico e
de áreas afins.
Boa Leitura!
Equipe Fazendo História
SUMÁRIO
Apresentação 02
Sumário 03
Introdução 04
O novo capitalismo e a percepção da crise de valores
na poesia de Antonio Francisco 06
Retóricas do olhar e tramas da narrativa 23
Considerações acerca de um caráter:
Capistrano de Abreu, Sílvio Romero e a formação do Brasil 47
A integração do território do Rio Grande do Norte
pelos açudes e estradas de ferro (18891935) 61
Espaço e História – reflexões sobre uma relação fundamental 84
Fazendo História e o reinventar da memória
Angelo Adriano Faria de Assis
Doutor em História pela UFF; Professor Adjunto II – UFV.
Fazer História no Brasil, neste início de milênio, vem ganhando matizes diferenciados do
que se viu nas últimas décadas. A influência da Nova História, com a transformação da noção de
fonte documental, a aproximação com outras áreas de conhecimento, o crescimento do número de
cursos de graduação e pósgraduação – tanto stricto quanto lato sensu – em História pelo país têm
permitido uma revolução no modo de enxergar e interagir com esta ciência, ainda vista por muitos,
ainda hoje, como um emaranhado de fatos, datas e nomes – informações desnecessárias, enfim – a
serem decoradas para as provas escolares e apagadas da memória sem maiores danos a partir do
segundo seguinte. Um país sem memória, como diz o velho bordão repetidos aos quatro ventos, sem
refletir numa compreensão do que isso significa ou da necessidade de mudança que seria urgente.
Porém, muito tem mudado nos domínios de Clio. Nas escolas, os programas de História
buscam aproximarse das discussões trazidas à tona pelas novas levas de historiadores, agregando os
recentes avanços e discussões que percorrem os debates na Academia. Os livros didáticos vêm
sofrendo revisão de seus conteúdos – não raro ainda problemáticos , somando as contribuições das
novas correntes e linhas de pesquisa, como os estudos de gênero, da família, da cultura. Cada vez
mais comuns são ainda as versões de livros didáticos para as primeiras séries do ensino fundamental,
fazendo com que a História seja ensinada desde as primeiras letras.
Além da variedade de materiais didáticos e paradidáticos, chama igualmente a atenção o
aumento de publicações de livros acadêmicos, não apenas de livros produzidos pelas escolas francesa,
inglesa, hispânica, italiana ou norteamericana, para ficarmos dentre as mais divulgadas entre nós. Há
um considerável crescimento na produção nacional, boa parte da qual resultado de pesquisas de
mestrado e doutorado defendidas recentemente nas mais diversas instituições do país e mesmo do
exterior.
O interesse pela História permitiu, mais além, a democratização do acesso aos leitores,
mesmo os leigos, ao que de mais novo se faz em pesquisa. Prova disto é o número de revistas
voltadas para o grande público, vendidas em bancas de jornal de Norte a Sul do Brasil: periódicos que
trazem, em linguagem atraente e fácil entendimento, curiosidades, revisões históricas e pesquisas
recentes sobre a nossa História. Também a internet, ícone deste mundo globalizado que se coloca
diante de nossos olhos, é ferramenta fundamental para a divulgação de textos, imagens e documentos
aos curiosos: são várias as opções de revistas eletrônicas que podem ser consultadas, aumentando ao
infinito a variedade de temas e abordagens a que se pode ter acesso sobre praticamente qualquer
assunto– embora seja aqui indispensável o uso de filtros ao leitor ao modo do que ensina Carlo
Ginzburg , que se depara com materiais de qualidade por vezes suspeita ou incongruente. Apesar de
todos estes esforços, o conhecimento histórico carece, e muito, de meios sérios de divulgação, e
qualquer iniciativa no sentido de aumentar esta rede de conhecimento deve ser bem recebida por
quem faz e torce pela História.
Caminho louvável, neste rumo, é aquele que tem sido percorrido pelas revistas de
divulgação científica produzidas nas Universidades. Não apenas aquelas publicações mantidas e
alimentadas oficialmente por programas de graduação e pósgraduação de todo o país, de valor e
papel inquestionáveis. Refirome, mais além e em especial, às revistas que nascem do esforço e
dedicação dos novos amantes que a História conquista a cada dia, de estudantes que a fazem renascer
a cada semestre nas salas de aula de nossas universidades. Revistas produzidas, organizadas e geridas
por alunos de História.
gerida pelos discentes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que tem como objetivo
funcionar como canal de divulgação e discussão de produções recentes desenvolvidas em História e
áreas afins, algumas delas ainda em fase de desenvolvimento. Alunos de programas de graduação e
pósgraduação dos mais diversos cantos do país têm aqui espaço para mostrar suas questões e
convidar à discussão acadêmica, mas sem proibir – pelo contrário a participação de professores e
colaboradores externos. Fazendo História faz cumprir o papel que lhe cabe: incentivar e democratizar
o acesso à pesquisa.
espaços”. Tema amplo, como ampla pretende ser a possibilidade de discussões a que se compromete a
revista. Assim, passeia o leitor pelas discussões acerca do novo capitalismo e a crise de valores na
poesia de Antonio Francisco, tema do artigo de Alessandro Teixeira Nóbrega. Antonio Motta e Julie
Eduardo Ferraz Felippe procura os meandros da noção de caráter nacional nas obras de Capistrano de
Abreu e de Sílvio Romero; Adriano Wagner da Silva e Gabriel Leopoldino Paulo de Medeiros, por
sua vez, lançam um olhar sobre a integração do território potiguar pelos açudes e estradas de ferro
entre fins do século XIX e a década de 1930; Por último, José D’Assunção de Barros mergulha na
reflexão das relações entre Espaço e História. Como se pode ver, um banquete de variados talheres e
para todos os gostos.
Nas próximas edições, esta multiplicidade ganhará novas cores, com a possibilidade da
publicação de dossiês temáticos, embora mantendo o espaço para resenhas e artigos livres, como deve
ser toda a revista, séria e disposta ao diálogo. Evoé que, com este primeiro número, agora em versão
impressa, Fazendo História alcance novos vôos e leitores, levando a História ao seu lugar de direito.
O NOVO CAPITALISMO E A PERCEPÇÃO DA CRISE DE VALORES NA POESIA DE
ANTONIO FRANCISCO
RESUMO
O novo capitalismo advindo da revolução informacional liberou não só forças produtivas
consideráveis, mas também acarretou em mudanças drásticas nas relações sociais. Um capitalismo
que acentua a volatilidade das relações sociais, a efemeridade do que existe, enfatizando valores e
virtudes da instantaneidade e da descartabilidade. Um capitalismo de ritmo aceleradíssimo. O poeta
cordelista Antonio Francisco, reconhecido pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC)
ocupando a cadeira de Patativa do Assoré, desperta em sua produção artística a vida social
contemporânea. Uma sociabilidade onde o progresso traz avanço tecnológico mas em detrimento do
rebaixamento da qualidade de vida humana e da destruição do meio ambiente; de destruição dos
espaços tradicionais, onde o ritmo lento e tranqüilo da vida rural é substituído pela atomização dos
indivíduos, de intensificação psíquica e substituição dos valores e hábitos anteriores pela
individualização e indiferença humanas. Antônio Francisco canta em suas poesias que os recursos
tecnológicos adquiridos com o ritmo acelerado do progresso capitalista conduzem ao artificialismo da
vida humana e a destruição da arte de viver através de um esfriamento nas relações entre os seres
humanos cada vez mais maquinados. Aumentamse os instrumentos tecnológicos, diminui a vida
saudável no planeta.
Palavraschaves: Sociedade e literatura, Antonio Francisco, Progresso e meio ambiente.
RESUMEN
INTRODUÇÃO
Tanto para os autores que afirmam a existência de um novo período societal pósmoderno
quanto para os seus críticos, é unânime a afirmação de que o capitalismo contemporâneo passa por
transformações.
informacional, que está apenas no seu inicio (p.11). Uma revolução informacional que está
consideráveis, a ponto de possibilitar a superação de antigas e históricas contradições do capitalismo.
Uma revolução informacional que está além da revolução da automação porque desloca o trabalho
humano para o “tratamento’ da informação” (LOJKINE, p. 14, 1995)1 – grifo do autor.
Semelhante a Lojkine, Dantas (2003) referese também a uma nova etapa do modo de
produção capitalista contemporâneo. Para ele, a informatização está permitindo a diminuição do
tempo de circulação das mercadorias acarretando em mudanças estruturais no capitalismo (p.08)2.
1
Apesar de que para Lojkine (1995) esse deslocamento do trabalho humano não significa uma substituição da
produção e os serviços pela informação: “[...] A revolução informacional emergente, longe de substituir a produção
pela informação, tece, ao contrário, novos laços entre produção material e serviços, saberes e habilidade [...]” grifos
do autor (LOJKINE, p.23, 1995). Isto é o contrário do que parece pensar Hardt e Negri (2005), para eles o que se
está operando é uma passagem de uma economia fundada na produção material (a indústria) para uma economia
fundada no tratamento da informação ou produção imaterial, esta baseada no conhecimento, informação,
comunicação e afetividade diferentemente da produção industrial baseada no trabalho concreto de produção de
mercadorias. Mesmo referindose todos os autores a “tratamento da informação”, as compreensões são
completamente divergentes. Dantas (2001) afirma que devido à informação adquirir um aspecto “imaterial” alguns
autores definem a etapa atual do capitalismo de “trabalho imaterial”: “[...] Não há nada de ‘imaterial’ na informação,
na medida em que ela emana de fontes materiais e de fenômenos físicoquímicos da natureza, sendo processada
também por algum agente corpóreo [...]” (p.25) – grifos do autor.
2
Pode mudanças na circulação de mercadorias acarretar em mudanças essenciais no capitalismo? Para quem quiser
aprofundar esta questão, é importante ler o texto de Marx (1983) onde a produção, consumo, distribuição e
circulação (ou troca) são processos diferenciados e contraditórios de um único conjunto. Ou seja, instantes
diferenciadas e contraditórias de um mesmo processo de produção de mercadorias. Uma mudança em um dos
Para este autor, seria o caso de um novo capitalismo. Um capitalismo advindo da crise do
modelo taylorfordismo, onde não se precisaria mais de uma imensa burocracia para gerar, processar
e comunicar uma imensa quantidade de informações para a condução dos negócios e a gestão da
produção pois isto seria feito através de máquinas. Como também, não seria mais preciso “concentrar
montagem” pois a produção fragmentarseá socialespacialmente (Dantas, 2001, p.14 e 32). Um
novo capitalismo baseado na produção acelerada da absolescência. É um capitalismo baseado na
lógica capitalinformação (DANTAS, 2001, p.20 e 24 respectivamente).
Para Harvey (1992), essas transformações em ritmo acelerado, acarretam em mudanças
sociais tão drásticas quanto os processos de transformação tecnológica e econômica. Ao lado do ritmo
acelerado das mudanças há uma perda das referencias valorativas tradicionais ou uma crise de
valores. A sociedade parece ser comandada por um nada absoluto, certo, estático ou sólido, assim
perdese a referencia a valores fixos.
De acordo com Harvey (1992), acentuase a volatilidade e efemeridade sociais. São dadas
ênfases aos valores e virtudes da instantaneidade e da descartabilidade. Formouse a dinâmica de uma
sociedade "do descarte".3 Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos – continua o autor;
significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, pessoas e
modos adquiridos de agir e ser. As pessoas foram forçadas a lidar com a descartabilidade, a novidade
e as perspectivas de obsolescência instantânea. Essa efemeridade, cria um sistema de valores públicos
fragmentação – conclui Harvey.
Berman (1992) colabora com esta idéia quando afirma que
...tudo que a sociedade burguesa constrói é construído para ser posto abaixo. ‘Tudo que é
sólido’ [...] é feito para ser desfeito amanhã [...] a fim de que possa ser reciclado ou
substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante [...] sob formas cada
vez mais lucrativas. (p.97).
elementos, acarreta mudanças em todos os outros.
3
Em Dantas (2001): “[...] o trabalhadorconsumidor estará sempre disposto a sustentar um ritmo frenético de
trabalho que lhe permita consumir bugigangas fungíveis, umas atrás das outras [...]” (p.31).
A volatilidade torna extremamente difícil qualquer planejamento de longo prazo. A
primeira estratégia aponta para o planejamento de curto prazo, bem como para o cultivo da arte de
obter ganhos imediatos sempre que possível.
Dominar ou intervir ativamente na produção da volatilidade envolvem, por outro lado, a
manipulação do gosto e da opinião. Isso significa, em ambos os casos, construir novos sistemas de
signos e imagens. A publicidade e as imagens da mídia já não parte da idéia de informar ou promover
no sentido comum, voltandose cada vez mais para a manipulação dos desejos e gostos mediante
imagens que podem ou não ter relação com o produto a ser vendido (EVANGELISTA, 1999).
A volatilidade e a efemeridade também tornam difícil manter qualquer sentido firme de
continuidade. Há a perda de um sentido do futuro. A experiência passada é comprimida em algum
presente avassalador. É a fragmentação do tempo em uma série de presentes perpétuos (JAMESON,
1985).
tendências opostos. A vida metropolitana atual intensifica os estímulos nervosos da psique humana de
modo brusco e ininterrupto (SIMMEL, 1979, p.12). Em resposta a este turbilhão de sentimentos
incompreensíveis, os homens passam a ter necessidade por um local seguro contra a futura
volatilidade, retraindose para instituições básicas como a família, em busca de raízes históricas mais
seguras e valores mais duradouros num mundo cambiante.
O momento atual, então, seria caracterizado pela condição de fragmentação, efemeridade,
descontinuidade e mudança caótica do pensamento.
O objetivo deste artigo não é discutir se as transformações do capitalismo contemporâneo
fundam um novo modo de produção pósmoderno ou seria uma nova etapa do capitalismo. O objetivo
deste artigo é chamar a atenção ao ritmo acelerado das transformações sociais que “desmancha no ar”
os sólidos e fixos valores anteriores apontadas pelos autores como uma crise de valores, e a percepção
desta crise de valores na poesia de Antonio Francisco.
APRESENTANDO ANTONIO FRANCISCO
O poeta Antonio Francisco é artista conhecido na cidade de Mossoró pelos seus versos.
Nas manifestações públicas artísticoculturais, o poeta emociona as pessoas ao declamar suas criações
literárias, sendo bastante aplaudido nos eventos.
Antônio Francisco Teixeira de Melo, poeta e xilógrafo, nasceu em MossoróRN aos 21 de
outubro de 1949. Bacharel em História, pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN), é compositor e trabalha confeccionando placas. Apresenta uma produção de vinte e um
folhetos de cordéis publicados e é autor de dois livros: Dez Cordéis num Cordel Só e Por Motivos de
Versos.
Antonio Francisco foi imortalizado pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel
(ABLC) ocupando a cadeira de número 15, do também imortalizado e cearense Patativa do Assoré.
Para Xavier (2007) “a eleição pela Academia Brasileira de Cordel para a cadeira anteriormente
ocupada por Patativa do Assoré não foi aleatória, e revela a dimensão de sua obra”. E continua o
articulista afirmando que a produção cordelista de Antonio Francisco vem sendo muito elogiada pela
crítica literária atual, a ponto de considerálo “a grande revelação no campo da Literatura de Cordel
do RN nos últimos anos”.
A indicação de Antonio Francisco a ABLC na cadeira de Patativa do Assoré foi noticiado
em vários jornais de circulação local no Estado. O Jornal O Poti anunciou o acontecimento chamando
“o poeta mossoroense Antônio Francisco, um dos mais importantes nomes da Literatura de Cordel do
Brasil”. E concluía:
Antônio Francisco também terá uma de suas obras Dez Cordéis num Cordel Só –
requisitada para o Processo Seletivo Vocacionado (PSV) do próximo ano, da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)[...] (Jornal O Poti, 21 de maio de 2005).
A obra de Antonio Francisco foi selecionada para o vestibular da UERN de 2007 também.
Juntamente com Vinicius de Moraes, está sendo trabalhado no Centro de Educação Integrada (CEI)
em todos os níveis de ensino. A utilização das poesias de Antonio Francisco na educação, é prova da
importância e extensão de sua produção artística, dando demonstração de sua qualidade e riqueza para
a aprendizagem.
Não é por acaso que no sitio Cortina de Vidro, o livro de Antonio Francisco Dez cordéis
num cordel só está a exposição para a venda no mesmo lado das poesias de Drummond, Cecília
Meireles, Castro Alves, Manuel Bandeira, Pablo Neruda e Fernando Pessoa.
O PROGRESSO CONDUZ A RUINA DA GEOGRAFIA DO LUGAR: NATUREZA E
ESPAÇO RURAL EM ANTONIO FRANCISCO
desce montanha abaixo, arrasando tudo, devastando, destruindo tudo que está a sua frente por onde
passa e consegue alcançar. Mas enganase quem achar que a sociedade capitalista, por isso, “está
caindo aos pedaços”. Ao contrário, como diz Berman (1992), é justamente na ininterrupta
perturbação, na interminável incerteza e agitação que o capitalismo se fortalece (p.94) pois são das
crises que mantém o seu dinamismo ao atuarem como inesperadas fontes de força de adaptação (p.
101). Pois aqueles que não têm uma atitude ativa diante das mudanças impostas pelo mercado, serão
passados para trás (p.95).
valorização do capital que as crises do capitalismo são superadas. O capitalismo contemporâneo
expandese por todos os campos sociais e submeteos a sua lógica, a lógica do lucro, campos sociais,
inclusive, nunca antes imagináveis. Os capitais colonizam certas dimensões da cultura e da
subjetividade, que lhe pareciam imunes (EVANGELISTA, 1999)4.
Essa expansão devastadora do capitalismo não passa despercebida nas poesias de Antonio
Francisco. Para o poeta, o progresso que eleva o nível de vida, rebaixa a sua qualidade. O autor
referese ao progresso em geral, mas sabese que se trata do desenvolvimento capitalista no Brasil.
democratização do acesso aos bens materiais como medidas de melhoria pessoal e de progresso
social” (DANTAS, 2001, p. 35) grifo do autor. Para Antonio Francisco o progresso econômico
capitalista que permite o acesso a determinados bens materiais a um número cada vez maiores de
pessoas, degrada a qualidade de vida e conduz a deteriorização da natureza.
4
O autor dar o exemplo da publicidade onde na transformação da realidade em imagens, em certo sentido, faz com que
as próprias imagens se tornem mercadorias.
A poesia de Antonio Francisco canta uma cidade onde seus costumes e a natureza é
destruída pelo progresso. A destruição da natureza pelo progresso está na poesia “O rio de Mossoró e
as lágrimas que eu derramei”, onde ele escreve:
“[...] Este rio no passado
Tinha uma força incomum,
Mas o progresso dos homens
Que vive sempre em jejum
Partiu ele em três pedaços
Pra comer de um em um. [...]”5
E em A lenda da Ilha Amarela, quando canta:
“[...] E assim eles viviam
Naquela ilha amarela:
Tirando o que precisavam,
Vivendo felizes nela
Sem deixar que o progresso
Mordesse um pedaço dela [...]”6
Tanto na primeira poesia quanto na que faz referencia a uma Ilha Amarela, a visão de
Antonio Francisco é que o progresso é algo devorador, que consome as forças e tira “pedaços”. A
natureza é abocanhada pela força do progresso que parece devorar tudo a sua frente vorazmente,
como um ser faminto, durante muito tempo em “jejum”. Na verdade, para Antonio Francisco, o
progresso vive “sempre em jejum”.
O progresso capitalista devasta florestas, polui rios, não há obstáculos a sua frente, em sua
fome de lucros. No entanto, o progresso capitalista vai enfrentando limitações crescentes cada vez
5
MELO, 2003, p.82. Grifos meus.
6
MELO, 2003, p.23. Grifos meus.
(EVANGELISTA, 1999).
deteriorização da qualidade de vida humana. A natureza é degradada, ameaçando a continuidade da
vida humana no planeta7.
A degradação da ecologia vem junto também com a destruição dos espaços tradicionais.
A paisagem se modifica, o progresso modifica a geografia do lugar. Mas também os costumes e
hábitos, valores anteriores são esquecidos ou substituídos por outros mais apropriados com o modo de
vida que se estabelece. É o modo de vida metropolitano, para usar um conceito utilizado por Simmel
(1979). Para Lojkine (p.19, 1995) a crise da sociedade atual é inerente da relação da tecnologia com a
geografia8.
O capitalismo conduz a urbanização cada vez maior da sociedade e os espaços rurais são
cada vez mais raros ou modificados a ponto de se estabelecerem modos de vidas semelhantes à vida
urbana.
Nas estrofes abaixo de O feiticeiro do sal, Antonio Francisco recorda:
“[...] Vejo nosso casarão
Com quatro cilos na sala
Cheios de milho e feijão
E um quarto pegado a casa
Que pai guardava algodão
Tem cenas que eu paro a fita
Deixo a imagem congelada
Como bem a de vovô
Numa noite enluarada
Contando história pra nós
Na subida da calçada [...]”
Nestas estrofes, a imagem de um passado que não volta mais é bastante clara. Os casarões
de algodão não existem mais. Os homens não vislumbram mais as noites de lua por causa dos postes
7
Mais adiante será retomado este aspecto da poesia de Antonio Francisco.
8
Além de Lojkine ver também uma relação destas com a organização política.
de iluminação que, se não impedem a grandeza da luz do luar, em muito ameniza a força do pratear
nos caminhos. E os contos falados, os “causos”, as estórias de lobisomens ou outras, na beira da
calçada contada pelos mais velhos, foram substituídas pelos jovens ou crianças por horas e horas
diante do computador, na internet, no orkut ou simplesmente em jogos de rede.
O ritmo e a multiplicidade da vida metropolitana da cidade
[...] faz um contraste profundo com a vida de cidade pequena e a vida rural no que se
refere aos fundamentos sensoriais da vida psíquica. [...] A metrópole extrai do homem [...]
uma quantidade de consciência diferente da que a vida rural extrai. [...] Oposição à vida de
pequena cidade, que descansa mais sobre relacionamentos profundamente sentidos e
emocionais [...]9.
pessoas. Há uma intensificação psíquica, diferente da vida rural – que é mais calma, tranqüila, de
tempo lento. Na cidade o passo é largo, as pessoas estão com pressa, o relógio define o ritmo da
marcha: constante, em frente e em circulo como que para representar o cotidiano. Pois amanhã farás o
mesmo percurso, as mesmas coisas, as mesmas ocupações, o mesmo ônibus etc, etc, etc... É como se
o processo do trabalho fosse controlado pelo cronômetro da fábrica (LOJKINE, p.28, 1995).
O progresso traz a individualização do homem, que fica em si mesmado, girando em
torno de si mesmo. Uma atomização que esfria as relações sociais ao serem mediatizadas pela frieza
das máquinas. Seja porque as relações entre os homens urbanos ficam cada vez mais superficiais e
parciais, como diz acima Simmel diferentemente da vida rural, ou porque passam a serem
mediatizadas pela frieza das máquinas de computadores. O tipo metropolitano de homem, diz Simmel
não sem antes alertar para a existência de mais de mil variantes individuais, desenvolve este tipo de
atitude como de proteção, para “preservar a vida subjetiva contra o poder avassalador da vida
metropolitana” e completa: “Ele reage com a cabeça, ao invés de com o coração” (SIMMEL, 1979, p.
13).
Antonio Francisco busca da memória os casarões de algodão e as estórias contadas pelos
mais velhos na calçada para contrastar com os hábitos urbanos. É um espaço que se encontra na
9
SIMMEL, 1979, p.12.
memória, na lembrança do passado. Não existe mais. Não volta. Ele é diferente dos hábitos que o
progresso da urbanização trouxe para os moradores. São outros hábitos. Antonio Francisco parece
apelar para a necessidade de se reagir com o coração diante da indiferença social que toma conta das
relações entre os homens.
Em outra poesia o autor estudado canta a cidade antiga, seus costumes e brincadeiras,
suas características perdidas pelo desenvolvimento urbano capitalista:
Quero ser neto de Perto/ Filho de Chico e Pedrinha/ Ser criado por titia/ E Maria prima
minha/ E crescer correndo perto/ Do rancho que a gente tinha./ Quero quebrar minha vela/
Na primeira comunhão/ Pegar balde no Mercado/ Malota na Estação/ E jogar como eu
jogava/ Bola, peteca e pião./ Quero correr com o vento/ Por dentro da capoeira/ De calça
curta e chinela/ Armado de baladeira/ E enganar o sol quente/ De baixo da quixabeira.10
Em conversas com Antonio Francisco, o poeta referese à cidade como um local onde a
cooperação entre os ofícios seria possível. Na cidade os homens encontram uma série de ofícios que
poderia precisar para realizar suas necessidades, ao mesmo tempo em que põe a sua habilidade a
disposição dos outros. Seria uma comunidade cooperativa.
Cooperação que ainda é sentida hoje como uma grande necessidade. Para Lojkine (p.17,
1995) a invenção cientifica moderna “não pode vir à luz e se desenvolver senão por um trabalho de
proprietários privados” – grifos do autor. A invenção cientifica moderna, segue Lojkine, assentase no
trabalho coletivo e “não pode ser conservada e, menos ainda, ser enriquecida se for apropriada
privadamente” (p.17). Caso isso aconteça, de acordo com Lojkine, ocorre a entropia.
liberdades e lazeres, mas também a perda de antigas solidariedades, a atomização das pessoas
(MORIN, 1997, p.138). E Morin completa, a dissolução das solidariedades tradicionais não suscitou a
formação de novas solidariedades. Isto parece ser semelhante a percepção poética de Antonio
Francisco.
10
Discurso de Antonio Francisco na posse da ABLC.
A DEGRADAÇÃO DAS RELAÇOES ENTRE OS HOMENS EM DETRIMENTO DA ARTE
DE VIVER
Para o poeta cordelista Antonio Francisco, o progresso capitalista não apenas degrada a
natureza através da sua expansão sem limites e destrói as espacialidades territoriais anteriores através
do desenvolvimento da urbanização, mas também deteriora as relações entre os homens. O progresso
tecnológico traz uma desarmonia dos homens com o seu meio ambiente, de modo a rebaixar a sua
qualidade de vida.
Em A lenda da Ilha Amarela, temse:
“[...]Os rios eram sagrados,
Claros como a luz do dia;
Uma só mancha de óleo
Na água ninguém não via [...]
Não tinham cartão de credito
E nem cheque prédatado,
O dinheiro ali também
Era um troço do passado
Pois todo macaco tinha
Seu próprio supermercado.
Também já tinham enterrado
A arte de fazer guerra:
O fuzil, a baioneta
Nas profundezas da terra
Com a lata de Baygon
E os dentes do motoserra.
Já tinham ido pra lua,
Marte, Vênus e Plutão,
Mas voltaram para a ilha,
Enterraram a invenção
E ficaram olhando a lua
Do camarote do chão.
Estavam tão avançados
Que nem carro tinham mais,
Televisão, Internet,
Tinham deixado pra trás
Com as taxas de água e luz,
Gasolina, óleo e gás.
A geladeira também
Era um troço ultrapassado,
As frutas eram nas árvores,
Os legumes no roçado,
Os peixes dentro dos rios
E não num freezer fechado[...]”11.
Notase nestas estrofes, que Antonio Francisco referese a instrumentos do comercio atual
como algo desnecessário em um local em que todos “tenham seu próprio supermercado”. Antonio
Francisco parece insinuar em que uma sociedade onde se possa retirar tudo da natureza, tornase
desnecessário o cartão de crédito, o dinheiro e o cheque prédatado. Uma alusão clara ao comunismo
primitivo. Onde as trocas de mercadorias não eram desenvolvidas ou não dominantes, os membros da
sociedade retiravam da natureza o seu sustento; era um supermercado para cada um.
A lenda da Ilha Amarela é uma paródia do descobrimento do Brasil. De modo que os
macacos seriam os índios. A diferença da estória da Ilha Amarela e os índios brasileiros estaria
modernos: televisão, Internet, geladeira, ido a Lua, etc. E agora abandonavam, enterravam nas
“profundezas da terra”, deixavam no passado, no esquecimento, porque tinham ultrapassado esse
modo de vida. Notaram que todo este desenvolvimento tecnológico conduzia a poluição dos rios, o
harmonioso de vida com a natureza.
Para Antonio Francisco o progresso tecnológico conduz a uma relação predatória com a
natureza, rebaixando assim a qualidade de vida humana.
Em outras estrofes:
“[...] Quando os macacos da ilha
Viram na praia acampados
11
MELO, 2003, p.22.
Aqueles ‘macacos brancos’,
Feiosos, desfigurados,
Correram para ajudar
Aqueles pobres coitados.
Quando chegaram que viram
Aquele brasão cravado
Naquela cruz de madeira
Com dois macacos de lado
Armados até os dentes
Viram a cópia do passado
De um passado sem glória,
De guerra e destruição,
Onde o ódio e a ganância
Calavam a voz da razão,
Onde o macaco mais fraco
Era bucha do canhão [...]”12.
Como paródia do descobrimento do Brasil, os macacos brancos que os macacos da Ilha
Amarela vêm é a chamada civilização. Um povo mais desenvolvido, mas que na verdade tinham
instrumentos que os macacos da Ilha Amarela tinham deixado ao chão.
O fuzil e a baioneta, as armas, junto com o inseticida e a serra elétrica levaram os homens
à guerra e a destruição da ecologia. A geladeira acumulounos de conservantes e retirou aos homens o
sabor da comida fresca. A televisão e o carro vieram junto com as taxas de luz e gasolina, além da
poluição. O progresso tem seu preço. Os serviços públicos exigem a divisão de sua manutenção pela
coletividade através de taxas.
Portanto, os macacos da Ilha Amarela foram ajudar aos macacos brancos que ainda não
tinham feito esta experiência. Foramlhes avisar, que as descobertas cientificas os conduziram a uma
tecnológico que traz para a humanidade ódio no coração e ganância em sua ação.Com esta
experiência notaram que ao invés do “progresso”, os avanços e descobertas científicas, era melhor
uma vida modesta em harmonia com a natureza, com a vida.
Os macacos da Ilha Amarela
12
MELO, 2003, p.24.
“[...]Eram macacos comuns
Pequenos, amarelados,
Com pouco pêlo no corpo,
Andavam todos pelados,
Mas na arte de viver
Eram mais que avançados [...]”13.
Os macacos de pouco pelos, na arte de viver, eram avançadíssimos. Esta referencia a
poucos pelos, a macacos que andavam pelados e avançados na arte de viver por causa da harmonia
com a natureza, não é apenas uma referencia de identificação com os índios. Na literatura, o nu tem
um significado muito importante, além desta simples semelhança, aqui no caso, com os índios.
superioridade, arrogância ou volúpia. Para que os homens possam conviver em harmonia com a
natureza, Antonio Francisco parece alertar, é preciso que se dispam de sentimentos de prepotência.
As roupas podem significar na literatura o símbolo do velho e ilusório estilo de vida
anterior. A nudez pode representar a recémdescoberta e efetiva verdade e o ato de estar nu tornase
um ato de libertação espiritual, uma forma de transcender à realidade, uma autodescoberta. A verdade
só pode ser alcançada quando os homens perdem as suas vestes (BERMAN, 1992, p.104).
Vejase mais acima que os macacos brancos possuem todos os sentimentos descritos
anteriormente. Eles estão vestidos para significar sua vaidade. Um mascaramento de seus próprios e
verdadeiros sentimentos.
De acordo com Berman (1992, p.105), podese dizer que os macacos amarelos estão nus
porque são desacomodados e, ao mesmo tempo, é a maneira como desenvolve a sua humanidade
plena uma vez que nus, eles se tornam iguais, reconhecendose uns nos noutros. A nudez dos
sentimentos de volúpia e vaidade humanas aumenta a sensibilidade e a vida interior. Somente nesta
nudez alcançase a realização da plena humanidade, é somente através da realidade nua do homem
desacomodado que se pode construir uma verdadeira comunidade. A nudez é desvelamento.
Estes macacos nus não sentem frio provavelmente, porque estão sob a exposição direta do
calor do sol de uma ilha tropical. Mas principalmente, não sentem frio porque em épocas de frio e
13
MELO, 2003, p.21.
inverno é motivo suficiente para aproximaremse mais ainda e enfrentar coletivamente através do
calor dos corpos nus, o frio que gela os corações.
PARA RESOLVER A CRISE DE VALORES: DESACELERAR O RITMO, VOLTAR AO
PASSADO? – POR UM GOVERNO DA PREGUIÇA E UM MODO DE VIDA POÉTICO
Nas poesias expostas aqui, Antonio Francisco parece afirmar a necessidade de voltar ao
passado, deixar o progresso de lado. Mas não se pode aferrase a tradições milenares, em busca de um
passado histórico que não pode mais voltar (DANTAS, 2001, p. 33). Defender uma organização
familiar da produção, continua Dantas (2001), é remeter a uma utopia “franciscana” de vida quando
se dispõe de uma base técnica que permite libertar o trabalho da sociedade dos estreitos limites da
privatização capitalista da informação (p. 37).
É verdade que é preciso desacelerar, se necessário, para que os homens possam viver.
Sem a pressa da vida ritmada como um relógio de fábrica, aproveitar os instantes com a sua família,
saber quem é o seu vizinho e conversar com ele, cumprimentar o “desconhecido” do caminho do seu
trabalho ou aquela pessoa que você sempre encontra no ponto de ônibus. Se importar com as pessoas,
perguntar como estão, escutálas. Se é preciso desacelerar o ritmo para que se possa melhorar as
relações entre os homens, que assim seja.
As constantes mudanças, a falta de estabilidade dos valores sociais não é de todo ruim.
Esta situação impele os homens a aspirar às mudanças em sua vida pessoal e social, de uma maneira
ativa se deliciar pela mobilidade, buscar a renovação e olhar para o futuro – a burguesia fomentou
uma cultura humanística de ideal desenvolvimentista (BERMAN, 1992, p.94). O problema do
capitalismo, continua Berman (1992, p.95) é que restringe esse desenvolvimento aos limites do
mercado burguês.
intensificação e a formação de uma camada de excluídos da modernização tecnológica (LOJKINE,
1995, p.27). Mas Lojkine reconhece que as mutações tecnológicas desenvolvemse em uma relação
contraditória “entre a lógica da rentabilidade mercantil e a especificidade nãomercantil das relações
violência. As suas possibilidades são paradoxais.
As possibilidades técnicas do capitalismo contemporâneo agudizam “o conflito entre as
formas novas de organização técnica do trabalho e a antiga organização social” (LOJKINE, 1995, p.
42). E segue o autor, “o futuro das atuais mutações sóciotécnicas não aponta para um ‘retorno’ em
direção” a um modo de produção anterior (LOJKINE, 1995, p.12). A possibilidade de “uma nova
produção e da sociedade, com uma existência libertada do trabalho” (DANTAS, 2001, p. 35).
É preciso saber utilizar a tecnologia de modo a diminuir o tempo de trabalho, aumentar o
tempo livre e assim os homens poderem aprimorar o espírito, cultivar a alma. “De ‘máquina’ que
substitui de domina os sujeitos humanos, o computador poderá tornarse ‘instrumento’ que amplia a
inteligência humana. A recusa desta opção, conservando a utilização elitista e tecnocrática a das
Novas Tecnologias da Informação, implica nas crises” (LOJKINE, p.22, 1995).
A tecnologia poderia ser um “dos meios através dos quais a sua condição [do pobre]
poderia ser melhorada” (DANTAS, 2001, p. 31).
É bem verdade, e podese até ter um sentimento pessimista de duvidar do futuro, que
ainda não se construiu um projeto que seja capaz de combinar o estágio atingido pela “nova base
técnica e cultural da atual etapa histórica” e a melhoria “tanto material quanto espiritual das
massas” (DANTAS, 2001, p. 36).
CONCLUSÃO
É caminhando pelas ruas que Antonio Francisco se inspira na elaboração de suas poesias.
Na observação da vida cotidiana, com a sua bicicleta aliada incansável, às vezes toma o caminha mais
longo para que possa, além de apreciar o passeio e não se prender ao ritmo frenético do tempo
relógio, olhar o seu entorno social.
É o homem que passa por ele na ponte sobre o Rio Mossoró e comenta algo que ele
transforma em poesia, é a senhora que passa em frente a sua casa com a mesma sandália, são os
transtornos dos mossoroenses com os taxistas da linha para Natal. Enfim, Antonio Francisco é tomado
pelo flanerie que Benjamim(p.70) referese a Baudelaire na conquista da rua. É o poeta errante a caça
de rimas (p.70). E Antonio Francisco identificase com cada um deles, com suas dores e angústias, e
somente por isso consegue retratálas tão bem em formas de rimas.
Antonio Francisco é sensível ao que ver em seu entorno social e dar forma, com muito
talento, ao que sente. É uma poesia engajada no sentido em que capta os novos problemas sociais de
forma aberta, produzindo simbologias novas para representálo, Antonio Francisco descobre novas
metáforas e contos para narrar às aflições humanas diante dos novos desafios (SARTRE, 1993).
Antonio Francisco trata os novos problemas sociais como solicitação ao ser humano na
expectativa de que lhe ouça em seu íntimo, em seu espírito, reformando suas atitudes perante a
natureza e entre seus semelhantes. como Simmel (1979) Antonio Francisco parece perceber que está
havendo um retrocesso na cultura do indivíduo em relação à espiritualidade, delicadeza e idealismo
(p.23).
O poeta cordelista não só chama a atenção para esta crise de valores como também
convoca a humanidade para combatêla, propondo, ou melhor, fazendo um apelo aos homens através
de sua poesia para a necessidade de mudança de comportamento entre si e com a natureza. Um apelo
que parece mais um grito de socorro, um grito de alguém que se ver sufocado pela areia movediça,
que seja, de uma pósmodernidade.
As poesias de Antonio Francisco apontam para uma visão negativa do progresso como
algo que destrói a natureza. Os recursos tecnológicos adquiridos conduzem ao artificialismo da vida
humana e a destruição da arte de viver – sua qualidade de vida. Há um esfriamento nas relações entre
os seres humanos cada vez mais maquinados. Aumentamse os instrumentos tecnológicos, diminui a
vida saudável no planeta Terra. Esta parece ser a mensagem do poeta.
As interpretações possíveis da poesia de Antonio Francisco não se encerram neste artigo
nem tão pouco todas os sentimentos que possam despertar. Antonio Francisco faz um convite a uma
reflexão sobre o que está se fazendo com a vida humana: quem pode ficar indiferente a este convite?
REFERÊNCIAS
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reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.87125: Marx, modernismo e modernização.
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Revolução Informacional: utopia, realidade ou potencialidade.
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SARTRE, JeanPaul. Que é a literatura? 2.ed. São Paulo: Ática, 1993.
SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O Fenômeno
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SOUZA, Alex. Estante, Bazar. N. 25, v. 1, junho de 2000.
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XAVIER, Nilton. Alma franciscana. www.ceinet.com.br. Acesso dia 28 de outubro de 2007.
RETÓRICAS DO OLHAR E TRAMAS DA NARRATIVA14
Autora: Julie Antoinette Cavignac, professora doutora do DAN/ UFRN.
Autor: Antonio Motta, professor doutor da UFPE/Universidade de SalamancaES
I
Contavase em Papary
A lenda de uma sereia;
Era a história de Jacy
Jovem tapuia da aldeia,
Jacy famosa e catita
Filha do chefe Aribó
II
Era a índia mais bonita,
Jacy famosa e catita
Do vale do Capió
Filha do chefe Aribó
Amava com amor ardente
Guaracy jovem guerreiro
Cujo peito igualmente
Nasceu um afeto primeiro
III
Sozinho na solidão
Guaracy vagava à toa
Ora ao redor da caiçara,
Ora ao redor da lagoa
IV
Certa vez quando (Guaracy) pescava
Tentando esquecer as mágoas
Ouviu que perto cantava
A voz de Jacy nas águas
V
A delirar, Guaracy
14
Uma versão resumida deste artigo foi publicado no livro: O imaginário e o poético nas Ciências Sociais, organizado
por José de Souza Martins, Cornélia Eckert, Sylvia Caiuby Novaes, Bauru, SP, Edusc, 2005: 225254.
Na lagoa mergulhou
Seguiu a voz de Jacy
E a tona não mais voltou
VI
Hoje esta lenda triste
Quem se dispõe a contar
Vê quanto mistério existe
Entre a lagoa e o mar.
Lenda da lagoa de Papary
RESUMO
Na antropologia, temse observado com bastante freqüência a confluência de diferentes perspectivas
teóricometodológicas, como a teoria literária e a história, cujo foco central do debate incide sobre as
etnográfica se constroem, podendo ser lidas como textos. Entretanto, outras questões importantes
somamse a esse tipo de aporte metodológico: como dar conta da multiplicidade de formas
discursivas orais e como resolver os problemas conceituais ligados às investigações que têm como
matéria prima o texto oral e o relato do passado? Com efeito, a título de exemplo, em pesquisas que
presença de narrativas multiformes, difíceis de serem manipuladas pelo antropólogo. A partir dos
resultados das investigações empíricas já realizadas, o trabalho propõe desenvolver uma reflexão
intersubjetivos dos modos de narrar, apreendidos por meio de suas múltiplas formas de oralidade e de
temporalidade.
RETÓRICAS DO OLHAR E TRAMAS DA NARRATIVA
As pesquisas de cunho antropológico, que incluem formas discursivas orais, raramente
dedicamse ao seu estudo detalhado. As falas dos locutores são pouco exploradas pelos estudiosos
que, na maioria das vezes, não sabem o que fazer com elas. Geralmente, servem de ilustração ou de
comprovação dos argumentos apresentados no decorrer de seus estudos monográficos. Fora os
estudos clássicos sobre o mito ou, mais recentemente, os que tratam dos aspectos performáticos das
narrativas, encontramos poucos trabalhos que tentam desvendar as dificuldades ligadas às opções
teóricometodológicas feitas pelos pesquisadores em campo. Quando escolhemos o texto oral e o
relato do passado como ponto de observação da sociedade, vários problemas surgem, a maioria deles
dimensões literárias, históricas e sociais dos textos permitiria abranger a complexidade dos discursos
narrativos coletados. A partir de pesquisas que envolvem o uso da memória e o exercício da
serem manipuladas pelo antropólogo. Com efeito, este trabalho propõe desenvolver uma reflexão
sobre a existência de variabilidades textuais discursivas e as modalidades das percepções do passado,
específico das expressões narrativas coletadas em campo: nelas, desenhase uma representação
normativa do passado e surge uma memória histórica e identitária revestida pela matéria simbólica.
Nossas atenções serão centradas no texto oral, em particular àquele que faz referência a
apresenta uma versão narrativa da história – como as lendas de fundação das cidades. Na ocasião,
refletiremos sobre as correntes teóricas que apontaram pistas para solucionar o problema da
variabilidade textual e, num outro momento, examinaremos a importância da dimensão identitária que
se encontra embutida nos textos e nas falas cotidianas, para poder apontar para as incoerências e as
recorrências encontradas no discurso local sobre o passado.
LITERATURA ORAL: “PARENT PAUVRE” DO MITO
O fenômeno da oralidade agrupa um grande número de expressões culturais que são
geralmente tratadas do mesmo modo, isto é, a literatura oral nas suas diferentes formas: em verso ou
em prosa, cantada, declamada, improvisada, etc. , as genealogias, as formas narrativas presentes nos
rituais – sobretudo as fórmulas mágicas , os costumes, as receitas e as técnicas, transmitidas pelas
gerações passadas.
A hipótese não assumida que sustenta a maior parte dos trabalhos sobre a literatura oral é
a de que o seu estudo possibilitaria voltar até as origens da sociedade estudada, sendo esta
considerada como uma sobrevivência do passado. Nessa perspectiva “folclorizante”, a conservação
presente. Seu estudo permitiria também perceber as mudanças culturais. Em suma, os textos
representariam uma espécie de cimento cultural de um grupo determinado. Além disso, a atualização
das narrativas pela performance oral possibilitaria entender a continuidade das tradições narrativas
(Zumthor 1983: 53). Fora os textos ‘ensinados’ que dão uma explicação da história mitos de
constituem uma herança oral integrada e “retrabalhada” a cada geração.
Sem rejeitar totalmente essas idéias, mas afastandose de um essencialismo perigoso, não
podemos esperar encontrar, nas produções literárias, o reflexo fiel do passado ou do presente da
sociedade estudada nem a marca da sua identidade. Retomando os principais argumentos de Claude
LéviStrauss (1964: 940, 1973, 1974) e aplicandoos ao nosso objeto, podemos esperar iniciar uma
reflexão sobre a variabilidade das formas narrativas para servir de subsidio a uma etnografia dos
símbolos.
Assim, já sabemos que o mito não tem uma função prática evidente apesar de ele se
inscrever numa realidade etnográfica específica e de manter uma certa contigüidade com outras
expressões orais da cultura (contos, lendas, tradições, ritos) (LéviStrauss 1964: 12). Essas
“manifestações da atividade mental ou social” (Ibid) não retratam fielmente o passado das sociedades
sem escrita. Nessa perspectiva, é preciso analisar um discurso formalizado culturalmente, levando em
conta o contexto de enunciação e a liberdade criativa do locutor. Mesmo sendo obras de ficção, as
narrativas aparecem como o produto do “pensamento objetivado”, pois verificamos que apresentam
uma versão normativa dos eventos históricos e levam consigo a lembrança de uma identidade étnica
muitas vezes apagada voluntariamente. O “conto”, termo genérico que no nosso caso designa as
narrativas coletadas em campo, poderia então ser definido como uma categoria do discurso nativo, um
texto com um alto valor etnográfico que permitiria atingir não uma realidade presente ou passada,
mas a sua modelização; a forma (oral) sendo determinante na perpetuação deste discurso formalizado.
DOS FOLCLORISTAS AOS SEMIÓTICOS
Os estudos clássicos sobre a poesia popular do Nordeste brasileiro não conseguiram
antologias do que análises consistentes15. A questão da narrativa foi confiada aos folcloristas e aos
historiadores amadores, sendo possivelmente considerada como objeto indigno de uma investigação
sociológica, com notáveis exceções, como, por exemplo, Florestan Fernandes, sob influência de
Bastide. O estudo foi duplamente dificultado porque ele foi tocado para sempre pelo estigma dos pais
fundadores: Sílvio Romero, Euclídes da Cunha e, mais recentemente, Luís da Câmara Cascudo que
empreendeu um estudo romântico da literatura oral. Neles, o sertão é apresentado como o “lugar” de
uma poesia que glosa eternamente sobre assuntos regionais clássicos: a seca, o fanatismo religioso, o
cangaço, etc. (Cavignac 1997). Por outro lado, e de um modo geral, o conceito de “oralidade” é
utilizado há bastante tempo sem que os pesquisadores se interessem em definir os seus limites e a
natureza dos seus objetos de estudo: inventada pelos folcloristas, a terminologia foi aproveitada e
retomada pelos antropólogos que a utilizam junto ao conceito de tradição. De fato, podemos encontrar
vários tipos poéticos e literários distintos que, na hora da análise, precisam de um tratamento
específico.
misturados: o locutor não distingue os contos maravilhosos das lendas, dos provérbios, das parlendas,
15
Podemos reconhecer Luis da Câmara Cascudo (1952) como figura representativa de uma tal perspectiva.
das cantigas de roda, das canções, dos romances de pura tradição ibérica. As fronteiras entre os
gêneros narrativos tornamse cada vez mais tênues e incentivam a ignorância metodológica da
multiplicidade de gêneros narrativos. Em outras palavras, e para retomar uma discussão clássica, os
limites entre o mito e o conto enfraquecemse nos seus contextos de colheita. Podem ser definidos
como ficções narrativas, o segundo sendo geralmente descrito como uma degenerescência do
primeiro. O conto, então, seria de uma natureza similar, mas não teria o caráter sagrado do mito;
atualizada à cada enunciação, a estória perderia força e serviria para divertir ou fixar a experiência
humana. Porém, todos os estudiosos do assunto concordam em afirmar que essa distinção aparece
pouco explicativa. Os gêneros literários correspondem a categorias próprias da sociedade investigada
ou do pesquisador (Belmont 1986: 56; Boyer 1982: 6; Goody 1979: 210; Propp 1983: 27; Lévi
Strauss 1964: 12 e 1973: 140; Zumthor 1983). O conto popular é o gênero mais estudado de todos
pelos folcloristas, aparecendo como uma obra anônima, porque nasce da memória coletiva e pertence
a todas as camadas sociais. Descrito como singelo e revelador de um estado de inocência, o conto não
parece tão digno de estudo hoje em dia. Porém, deparamonos com uma soma de narrativas que
podem ser classificados como “contos” e oferecem um material rico de pesquisa.
Propp (1984), centrando sua análise nas ações dos personagens, é o primeiro em
visualizar a recorrência formal dos contos de encantamento e em apontar para a possibilidade da
utilização de uma perspectiva comparativa. Em 1928, no seu livro pioneiro Morfologia do Conto
Maravilhoso, como em 1946 no seu livro As raízes históricas do conto maravilhoso, o formalista
russo afirma, com ênfase e com bastante humor, que:
Seria um erro crasso insistir nas posições do empirismo estrito e considerar o conto
como uma espécie de crônica. Cometese o erro desse tipo quando, por exemplo,
procuramse na Préhistória serpentes efetivamente aladas e se afirma que o conto
conservou a lembrança delas. Nunca houve serpentes aladas, nem pequenas isbás sobre
patas de galinha. E entretanto elas são históricas; mas o histórico não são ela, em si
mesma, e sim o seu surgimento no conto; e é este que precisa ser explicado (Propp 1997:
2021).
Nesse sentido, é preciso se deter no contexto de surgimento dos elementos narrativos e
próprio “inventor” da antropologia estrutural demonstrou a possibilidade da sua utilização para outras
narrativas que não sejam os mitos, poucos estudiosos seguiram os seus ensinamentos (Belmont 1970,
“parent pauvre” do mito. Nesse sentido, a perfeição e a amplitude do modelo estrutural inibem
qualquer um. De um modo geral, parece que, pelo menos na antropologia, a análise narrativa foi
universais do pensamento humano, separando assim as sociedades das suas produções literárias.
Durante década, o mito era, dentro das produções orais, o único objeto legítimo de investigação
antropológica, revelando as elaborações simbólicas mais profundas das populações estudadas (Lévi
Strauss 1974: 235265).
Atualmente, com a crítica da pretensão universalista do estruturalismo e com a abertura
da disciplina a outras vias de explicação, tornase possível adotar uma perspectiva pluridisciplinar,
voltada para a sociedade produtora da sua história17 , em tendo a antropologia eliminado as visões
românticas associadas às sociedades primitivas e os estudiosos constatado a presença da história e da
antropologia num mesmo campo da pesquisa – a da memória.
Partindo de uma crítica da perspectiva clássica e criticando em particular a noção, de
selvagem, muito próximo do pensamento mítico, esboçado por Maurice Leenhardt (1971). Não se
trata do pensamento dos selvagens. Calcado na oralidade, designa a atividade espontânea do espírito
humano, um pensamento altamente simbólico que revela a diversidade da cultura humana – arte,
jogos, culinária, hábitos corporais, religiosidade, organização social etc. – ao mesmo tempo em que
entendermos a definição do mito como sendo uma criação narrativa simbólica atemporal e universal,
pois, segundo essa perspectiva, é uma das maiores expressões do espírito humano (LéviStrauss 1989:
152205). Além da perspectiva universalizante adotada pelos estruturalistas, a outra de maior impacto
é a crítica feita pela corrente da antropologia semiótica, na qual C. Geertz (1989: 15) se reconhece,
16
O método de Propp inspirou outros estudos sobre os contos, sobretudo que tratam da literatura oral e da mitologia
africana ( ver os trabalhos de D. Paulme, M. Griaule e G. Dieterlen) e até mesmo estudos sobre o cordel (Slater).
17
História com ”h” designa a disciplina para diferenciar da estória (oralidade).
que é ligada à visão estática da cultura humana. A entrada das questões ligadas à historicidade e às
temporalidades diferenciadas, como o tema da mudança cultural após o contato nas sociedades
perspectiva que lembra o caminho feito pelos historiadores em sentido contrário.
Uma outra via – mais recente de apreensão da literatura oral é pelo estudo da
performance das produções literárias e poéticas, que supõe um estudo preliminar da língua. A etno
linguística, que se propõe a estudar as relações entre uma língua determinada, a cultura e a sociedade
que a ela estão ligadas, é a disciplina que se aproximaria mais do estudo das produções discursivas de
um grupo a partir de um ponto de vista antropológico. Considerando a importância dos modos de
transmissão, os “novos folkorists” americanos elaboram um método de investigação fundado na
performance (Bauman 1975; Tedlock 1971, 1983). Por outro lado, seguindo o caminho aberto por
Claude LéviStrauss, muitos antropólogos recorrem também à semiótica, centrada na análise do
discurso e das operações cognitivas. A investigação das estruturas discursivas profundas permitiria a
aparição de uma significação. Algumas dessas perspectivas, que fornecem um método de
investigação, no entanto, são bastantes técnicas e centradas principalmente na língua e nas técnicas de
transmissão do saber. Mesmo que associando os aspectos sócioculturais das produções lingüísticas,
etnográfico e, sobretudo, não levam em conta a especificidade da análise das produções literárias que
adotam uma forma narrativa. Nesse caso, o termo etnoliteratura seria mais apropriado, mas não foi
erguido em especialidade e, ainda assim, não é suficiente para tratar das especificidades da narrativa –
por exemplo, a utilização de fórmulas, a repetição ou as ligações do oral com o escrito etc.
Concebido como suporte da memória do grupo ou das suas produções simbólicas, o texto
oral vai ganhar novos adeptos com o revival dos anos setenta e a crise de objeto da antropologia. Ao
mesmo tempo em que são redescobertas as tradições das populações camponesas européias, que eram
até então estudadas pelos folcloristas, novos estudos aparecem ao nível das jovens nações, tendo
como enfoque principal as modificações ocorridas durante o processo colonizador. Assim, as
colônias e com o surgimento de uma antropologia nativa e, às vezes, nativista.
Com o retorno dos antropólogos ocidentais ao velho terreno dos folcloristas, a disciplina
teve de elaborar novos instrumentos de investigação para estudar a tradição oral. Uma das vias mais
ricas – que, às vezes, integra o estudo do texto literário resulta da aproximação da antropologia e a
pesquisas sobre a memória que, de “coletiva”, se torna social. Suas reflexões sobre as marcas
memórias ou sobre a importância do esquecimento continuam sendo totalmente atuais, pois: “É que a
história, com efeito, assemelhase a um cemitério onde o espaço é medido e onde é preciso, a cada
instante, achar lugar para novas sepulturas.” (Hallbwachs 1990: 55).
Podemos perceber esse movimento de aproximação entre as disciplinas vizinhas com o
surgimento dos trabalhos da história oral e dos estudos com o objetivo explícito de resgatar a
memória dos excluídos. Nessa farta produção, ainda em plena expansão no Brasil, encontramos
histórias de vida adaptadas pelos pesquisadores que eram apresentadas como autobiográficas,
descrições de modos de vida, de profissões ou de técnicas desaparecidas, análises finas sobre a
percepção nativa da colonização etc18 . Inventado na França, o termo “etnotexto” designa qualquer
produção discursiva – independentemente da sua forma – elaborada pelo grupo e que visa a reforçar a
sua identidade através da rememoração (Bouvier 1992)19 . Assim, não podemos negligenciar a
enfatizar a importância das representações do passado e da consciência histórica contida em formas
narrativas a partir do ponto de vista do nativo. Nelas, aparecem temáticas relacionadas à memória e à
identidade, enriquecendo o diálogo entre a antropologia e a historia. Nesse sentido, podemos ressaltar
a importância das reflexões de M. Pollack (1989), de R. Price (1994, 1998) e de N. Wachtel (1990;
1993; 1996;2001). Sem romper com o estruturalismo, esses trabalhos mostram a existência de uma
história não consciente, subterrânea, invisível e não oficial, que nos levam para a investigação das
representações nativas do tempo e do espaço.
18
Ver uma discussão mais detalhada em Cavignac 1997a: 208213.
19
Cf. a definição de Idelette MuzartFonseca dos Santos in Bernd e Migozzi (1995). No Brasil, poucos antropólogos
seguiram essa pista. Os especialistas da literatura, adotando os métodos e perspectivas teóricas dos antropólogos,
investigam há décadas a tradição oral – sobretudo nordestina. Na sua grande parte discípulos de Paul Zumthor
(1983), eles apontam para a vocalidade das literaturas orais, adotando os métodos e a perspectivas das ciências
humanas (Ferreira 1996; Santos 1997; Santos in Bernd e Migozzi: 1997, 3537). Cf. a definição de Idelette Muzart
Fonseca dos Santos in Bernd e Migozzi (1995)
Porém, a sedução da explicação histórica está presente em todos os momentos das nossas
reflexo fiel da realidade. Cada vez mais encontramos aproximações entre história e antropologia sem
que as fronteiras disciplinares sejam dissolvidas: cada vez mais os historiadores fazem uma etnografia
do passado e os antropólogos têm como fontes os documentos escritos, como, por exemplo, a questão
dos limites territoriais das comunidades quilombolas e indígenas.
Vista dessa perspectiva, problemas são colocados ao antropólogo “em campo”, na hora da
coleta e da análise do material. A indeterminação na terminologia, ligada à natureza do objeto (texto,
discurso, tradição, literatura oral, folclore, etc.) e as dificuldades metodológicas são os primeiros
obstáculos que os pesquisadores devem enfrentar. Fora a via estruturalista, não visualizamos um
método satisfatório.
A VIA DAS NARRATIVAS E DA ANÁLISE SIMBÓLICA A PARTIR DA IDENTIDADE E
DA MEMÓRIA
Propomos uma reflexão que contemple ao mesmo tempo as representações simbólicas –
sobretudo as relativas ao sobrenatural, mas também ao sentimento de pertencimento a uma história
comum e a um grupo, às imagens do passado e do espaço natural – e uma realidade histórica, a das
populações indígenas, ainda pouco investigadas para o período póscolonial. Ao mesmo tempo, e para
levantarmos o véu que encobre as identidades distintas e iniciarmos as investigações, precisamos
começar por uma revisão bibliográfica, sobretudo das produções locais.
A história e a vida cotidiana das populações rurais no Nordeste, revisitadas à luz das
reivindicações identitárias ou da busca de um reconhecimento social, aparecem como relativamente
novas porque os grupos surgiram como atores políticos só nas últimas décadas do século XX,
inseridos em realidades sociais, econômicas ou políticas movediças e, muitas vezes, extremas, porém
corresponderá, antes de tudo, a uma vontade política que nem sempre se expressa no modo
identitário. Além disso, cada vez mais, os membros dessas “comunidades” são profundamente
história pouco gloriosa e, por isso, invisível ou encoberta.
Ao inverso, existem poucos grupos organizados que reivindicam um pertencimento a um
passado indígena ou que afirmam uma identidade contrastiva. Porém, a ausência de reivindicação
étnica no estado não impede que, num futuro mais ou menos próximo, esses grupos passem a
redescobrir sua história e acionem, com toda legitimidade, uma das identidades possíveis, seja ela
indígena ou negra (Cavignac 2003). De fato, quando solicitados, os indivíduos contam suas estórias
historiadores. Adotam, contradizem, atualizam e reinterpretam, geralmente num modo narrativo e
ficcional, o roteiro de uma história escrita pelas elites dirigentes. Sinal de alienação ou forma de
resistência cultural? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? De qualquer modo, esta “solução narrativa”
permite que a memória não se desagregue totalmente, evitando, por serem discursos pouco perigosos,
a censura. Paralelamente, os eventos do passado serão contados várias vezes, sendo recompostos à luz
de interesses do momento – entre outros políticos e de uma situação econômica cada vez mais
precária.
No Rio Grande do Norte, as lutas territoriais não seguiram o caminho da reivindicação
identitária, pelo contrário. Por outro lado, e contradizendo tudo o que já foi dito sobre a emergência
étnica, o extraordinário “despertar indígena” que encontramos em terras potiguares com a leitura do
último censo, parece ser o resultado de um processo individual de tomada de consciência. Longe de
interesse em reconhecer os direitos ancestrais sobre um território, parece que a redescoberta pessoal
de um passado até então abafado inicia uma reflexão introspectiva sobre raízes diferenciais que só
hoje podem ser afirmadas e declaradas a um agente do Estado brasileiro. A afirmação individual de
uma identidade, até então pouco lembrada, pode ser o primeiro passo para o afloramento da
“consciência de uma história coletiva e de uma comunidade de destino” (Wachtel 2001: 29).
Por isso, achamos mais pertinente iniciar a discussão a partir de uma revisão da história
para, num outro momento, abordar a delicada questão étnica que começa a ser colocada pelos
próprios interessados. Mesmo se “a leitura crítica e cuidadosa da documentação administrativa nos
fornece(rá) apenas uma reconstrução dos acontecimentos do ponto de vista do conquistador” ou para
uma época mais recente, dos agentes do Estado Brasileiro (Puntoni 2002: 79), devemos nos ater a ela
e tentar apreender, nas entrelinhas dos raros textos produzidos sobre a questão, o “ponto de vista dos
vencidos” que, afinal de contas, deixam transparecer “fenômenos de resistência autóctone, (...)
continuidades, rupturas, transformações e criações” (Wachtel 2001: 29). Essa perspectiva nos oferece
elementos sobre a história dessas populações engajadas à força no processo de conquista colonial e
explica em parte porque foram desprezados pelos estudiosos.
CORTANDO CAMINHO
A uma perspectiva centrada na definição dos grupos e das suas fronteiras (Barth 1998),
técnicos, preferimos, para a ocasião, uma abordagem mais próxima de uma antropologia dos sistemas
simbólicos, na qual os acontecimentos históricos sirvam para discussão dos elementos salientes da
cultura. Pois, por enquanto, no Rio Grande do Norte, não existe ainda nenhum movimento
significativo de reivindicação étnica, apesar dos múltiplos indicadores da existência de identidades
individual e da diferenciação dos grupos entre si, bem como é procurada a “emergência” dos atores
marginalizados nas formas discursivas. Num outro momento, e na hora da coleta das narrativas,
queremos focalizar o estudo nas representações do passado que nos revelam uma presença intensa do
pedra”, nome genérico para todas as construções coloniais cuja elevação é geralmente atribuída aos
holandeses e que são hoje desabitadas, relegadas ao seu estado primeiro de natureza, pois não
pertencem ao mundo social ou a lugares definidores de identidade local (igrejas, centros de romaria,
cemitérios, túneis, árvores, lagoas ou montanhas encantadas, etc.) se acompanha uma glosa sobre
fenômenos misteriosos: almas, botijas ou animais encantados (Cavignac 2000). Todas essas
referências se constituem em “lugares de memória” e continuam a serem “habitados” pelos espíritos
dos seus antigos donos, sejam eles indígenas, negros ou brancos20 . Na ocasião, podemos propor uma
preciso, então, relativizar a teoria dos limites étnicos e adaptála à realidade vivida por grupos que não
levantam a bandeira da etnicidade nas suas reivindicações políticas ou para indivíduos que não se
reconhecem como um grupo homogêneo – como é o caso dos “índios urbanos do censo” que nem
sequer se conhecem – ou ainda para os descendentes das populações autóctones que não se
reconhecem como índios (Barth 1998). Se as fronteiras étnicas são ao mesmo tempo mantidas e
ultrapassadas, pois se tratam, antes de tudo, de representações simbólicas, as separações entre grupos
permitem estabelecer limites de identificação socialmente significantes, e, ao mesmo tempo em que
separa, a fronteira produz um fluxo contínuo de indivíduos atravessando cotidianamente os limites.
Barth abre a via para uma análise das relações entre grupos, concebidas como sistemas de
forças sociais, políticas e econômicas, mas esquece um pouco a dimensão simbólica que é o fermento
das ações humanas. Fundamentando as identidades coletivas, a memória se transforma em ação, pois
escolhendo num registro memorial e num repertório aberto, quais são as representações, as mito
histórias, as crenças, os ritos e os saberes que lhes são úteis naquele momento. É importante analisar
as narrativas à luz das mudanças históricas inscritas numa sociedade colonial, mas não podemos
esquecer que são produções simbólicas e, pelo tudo que indica, encontramse fortemente marcadas
pelo que poderíamos chamar de uma “concepção ameríndia do mundo”. Inspirandose em estudos
realizados em outras regiões da América, reconhecemos aqui também o poder das “almas” e dos
ancestrais na vida dos humanos e uma intensa comunicação entre as diferentes ordens da natureza
(Castro 2002; Cavignac 1997; Galinier 1997; Reesink 1997). Com isso, queremos esboçar as vias de
explicação do passado e os modelos nativos de apreensão do mundo, comparando as narrativas locais
e as versões mais oficiais da história. Ao se discutir questões relacionadas à etnografia e à história,
abremse novas perspectivas que permitem entender como se elaboram os processos identitários
conjuntamente à reiteração de uma cultura nativa através da tradição oral (Carvalho s.d.; Cunha 1992;
Wachtel 1993; 2001). Podemos aproximar essa perspectiva à de Nathan Wachtel (2001: 32), quando
ele propõe a abordagem da “problemática da construção da identidade nas suas relações com a
memória coletiva”. Para isso, é preciso utilizar os recursos tradicionais da literatura, as formas
discursivas da história e da antropologia, principalmente, no tocante à pesquisa empírica.
Finalmente, uma discussão nesses termos, longe de se opor a outras perspectivas e ir ao
encontro do interesse das chamadas populações tradicionais, reforça a legitimidade das reivindicações
identitárias e territoriais dos grupos historicamente marginalizados (Arruti 1997). São freqüentes as
críticas virulentas acerca dos movimentos políticos que envolvem esses grupos e do engajamento dos
antropólogos. No Rio Grande do Norte, muitos grupos podem, com toda legitimidade, acionar uma ou
outra identidade. Para isso, não é necessário que haja interesses econômicos, nem uma doutrina ou
organização política guiando as ações, pois, como se explicaria, então, a “emergência étnica” dos
índios urbanos e invisíveis do IBGE? A redescoberta de uma história coletiva é antecipada, nesse
caso, por uma tomada de consciência individual. De um modo geral, os “emblemas culturais”
retomados pelos descendentes das populações indígenas nas suas práticas rituais ou nas
‘brincadeiras’, sejam elas ligadas ao Carnaval ou a festas de santos – os mesmos santos padroeiros
das antigas missões , são formas de afirmação de uma identidade diferencial e de uma consciência
histórica que estão visíveis, por enquanto, apenas nas estatísticas. Assim, os dados recentes nos
ensinam que há, como no resto do país, um “despertar étnico” no Rio Grande do Norte e que
precisamos encontrar um meio de interpretálos.
UMA VISÃO NATIVA DA HISTÓRIA: TEXTOS E CONTEXTOS
Tal perspectiva parece servir como uma via fecunda a partir do momento em que,
explicitando as mudanças ao longo do tempo, se recupera a versão da história contada pelos seus
atores e descendentes, deixando um lugar privilegiado para a análise de suas representações, isto é,
registros narrativos de uma memória que foi preservada ao longo dos séculos de dominação.
Geralmente, a origem da cidade é relacionada à estória do santo, no nosso caso, às lendas
em torno de Sant’Ana e São José. Assim, pensamos que é necessário reavaliar as perspectivas
investigadas até então. As pesquisas devem contemplar ao mesmo tempo as referências ao passado, a
importância da narrativa sagrada e as estórias de alma, para refletir, finalmente, sobre a questão da
consciência étnica da população local.
Para isso, é preciso ter uma idéia da representação das figuras esquecidas da história e da
cultura do Rio Grande, pois os “índios” ocupam um lugar interessante nas representações do passado,
no imaginário coletivo, sendo marginalizados do ponto de vista da sua atuação no espaço geográfico e
social. Esses indivíduos, famílias ou comunidades que vivem em ambientes rurais – ou que foram
absorvidas recentemente pelo mundo urbano , sobrevivem realizando atividades geralmente ligadas à
fabricados por eles mesmos nas feiras livres.
Apesar das dificuldades econômicas, tentam conservar a terra em que vivem, sendo
habitado pelos ancestrais e pelos espíritos sobrenaturais. Mesmo quando são reconhecidos pela
população vizinha como “caboclos”, é interessante observar que os integrantes nem sempre se
percebem como são designados. Apareceria aí a marca da sua maior resistência? Assim, queremos
avaliar a visão que essas comunidades têm de si enquanto grupo social, deixando um pouco de lado a
questão da identidade étnica para nos dedicar ao estudo das representações simbólicas.
Ao longo das investigações realizadas no Rio Grande do Norte desde 1990, aparecem
temáticas e representações bastante coerentes (Cavignac 1997). O que tínhamos percebido no sertão
apareceu com mais clareza nos nossos percursos pelo litoral e nas zonas urbanas no que diz respeito
à mobilidade da população, às narrativas escritas e orais e, finalmente, às representações simbólicas,
sobretudo em relação ao passado e ao sagrado (Cavignac 1997, 2000). A história parece se esconder
memória e sinais de resistência de uma história que não foi escrita nem considerada digna de interesse
pelos estudiosos. O universo maravilhoso, descrito nas “estórias de trancoso”, nas estórias de
encantamento, nas lendas de fundação das cidades ou, ainda, nos registros narrativos menores,
cultura, como a atribuição sistemática da autoria de construção dos monumentos históricos aos
Holandeses: a ponte de Igapó, o Forte dos Reis Magos, as "casas de pedras", etc. (Cavignac 2000).
Quando se examinam as representações do passado nas narrativas, exemplificamos os
aspectos etnográficos da criação narrativa, no que diz respeito à criação de uma “nova história local”.
Isso através da leitura de textos formalizados em narrativas, bem como na avaliação de registros
ligados ao tema, espalhados nos discursos das pessoas entrevistadas. Logo, em um momento inicial,
podemos analisar como as narrativas vão se adaptando a uma nova realidade para se constituírem em
tradição: novos personagens e novas situações encontramse revestidos com as velhas estruturas
natureza, etc). Pouco a pouco, foi se constituindo a certeza de que as imagens relativas a um passado
comum aparecem com regularidade e homogeneidade em todo o Estado quadro que poderíamos
avançar até mesmo para o Nordeste. Essas imagens encontramse inscritas, sobretudo, mas não
somente, nas narrativas pertencentes a um corpus importante e pouco investigado pelos antropólogos:
o que Vladimir Propp (1984) chama de “contos maravilhosos”. Algumas lendas de fundação foram
“estórias” das cidades de São José de Mipibu e de Nísia Floresta (Papary) podem servir de ponto de
partida para discutir a questão da identidade e a evocação do passado. Interessante notar que, na lenda
de fundação de Papary, aparece o deslocamento de Sant’Ana para “cidade” de São José; as duas
mantendo uma rixa secular por causa disso. Esse deslocamento apresenta como protagonistas
principais os índios. Nesse caso, que deve ser investigado detalhadamente, a narrativa conserva um
fato acontecido no século XVIII21 !
historiadores, acompanhase geralmente do “deslocamento” de um monumento para uma outra época,
como é o caso das obras deixadas pelos Holandeses. Também encontramos o relato da presença de
monstros subterrâneos (aquáticos ou terrestres) povoando o subsolo das igrejas, das montanhas e das
lagoas. Assim, em Nísia Floresta, onde já fizemos um estudo exploratório, há uma serpente morando
na lagoa principal que regula as águas e que come regularmente uns curumins, como no tempo em
que em Papary “só era mato” e era povoado por índios22. A associação entre o monumento (igreja) ou
21
Podemos resumir a lenda do rio que passa abaixo da igreja contada por Dona Antônia da Silva, 26 anos
(20/06/2003 Entrevistadora: Laysa Jucá): no local da igreja de Nísia Floresta, havia uma lagoa. Nela, os pescadores
encontraram uma imagem de santa dentro de uma folha de árvore que se inclinava formando um “O” e, por esse
motivo, a Santa recebeu o nome de Nossa Senhora do Ó. Como não existia igreja no povoado, a Santa foi levada pelos
pescadores para o município de São José de Mipibú. Porém, misteriosamente, a Santa voltou ao mesmo local onde foi
encontrada. Os pescadores reencontraramna e novamente a levaram para seu então destino. Mais uma vez a Santa
voltou à lagoa e, finalmente, os pescadores resolveram construir uma igreja sobre a lagoa seguindo a vontade da Santa.
Colocando o ouvido no piso da sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Ó, das laterais e do altar, ouvese o barulho de
um rio caudaloso que passa abaixo da igreja.
22
Lenda da lagoa de Bonfim ou das sete pontas (Dona Antônia da Silva, 26 anos; Dona Maria Polina, 60 anos.
Entrevistadora: Laysa Jucá. 20/06/2003): a lagoa de Bonfim antigamente era um “cacimbão” e numa certa manhã
quando uma mulher, acompanhada de seus dois filhos, foi lavar roupas, como era de costume, ela não percebeu que as
uma lagoa, um(a) santo(a) e um animal misterioso (aqui uma cobra gigante) é clássica e se reencontra
em várias localidades do estado, sobretudo nas antigas vilas de Índios ou aldeamentos missionários
(Extremoz, Vila Flor, Canguaretama, Ceará Mirim, etc.). São temas recorrentes e dinâmicos que
formam os elementos díspares de uma visão bastante instigante da história local, mas que tem a marca
práticas rituais e da história local, podemos avançar numa via já clássica, pois reunidos,
(...) Os mitos e os ritos oferecem com valor principal de preservar até a nossa época,
sob uma forma residual, modos de observação e de reflexão que foram e, sem dúvida,
ficam exatamente adaptados a descobertas de um certo tipo: as que autorizavam a
natureza, a partir da organização e da exploração especulativas do mundo sensível em
termos de sensível (LéviStrauss 1989: 2930).
Porém, se a via do estruturalismo continua pertinente, precisamos adaptar o nosso olhar a
um grupo local e acrescentar uma dimensão temporal às nossas investigações:
Sabemos melhor agora que as lógicas que regem as formações sociais, em seus diferentes
recortes, têm uma pertinência poderíamos dizer regional, circunscrita no tempo e no espaço. Elas dão
lugar a configurações diversas, mas comparáveis entre si, cada uma atualizando historicamente um
dos casos de uma serie de possíveis (Wachtel 1990: 21).
aparecem lutando com os santos, numa briga que lembra a verdadeira na qual os índios todos
morreram – pelo menos, segundo a explicação local23 . É como se a busca de uma cosmovisão com
crianças batiam na água com um cabaço. Quanto mais batiam, mais a água aumentava seu volume. Quando perceberam,
estavam quase todos cobertos pela água, tentaram fugir, foram para sete direções distintas, mas de nada adiantou, a água
os encobriu e eles se transformaram em uma imensa serpente encantada, cheia de cores, a qual emerge da lagoa em
noites claras. Uma outra versão descreve duas crianças cantarolando uma música (que elas mesmas criaram) ao redor
desse “cacimbão” e assim ele cresceu, se transformando em lagoa. As crianças, por sua vez, se transformaram em duas
serpentes encantadas.
23
A noção de “encantamento” designa a existência de uma vida misteriosa, do além, geralmente subterrânea, revelada
aos humanos pelo barulho (pedidos, gemidos, música) à noite – aparições humanas , pelo sonho – no caso da botija.
Porém, o “encantamento” não corresponde a nenhum ritual religioso (exceto nas religiões afrobrasileiras), mas é
recorrente nas narrativas. Sobretudo no sertão, encontramos várias referencias a santos ou “corpos santos” (pessoas
que morreram de maneira violenta ou cruel cujo corpo fica intacto e que podem “virar santos”) que obedecem à
mesma lógica: aparição na natureza, revelação pelo cheiro, por um sinal de vitalidade na natureza (Cavignac 1997).
Poderíamos encontrar várias conexões com práticas rituais atuais de populações indígenas no Nordeste que fazem
referencia aos “encantados” (Bandeira 1972; Grunewald 1996).
um substrato autóctone deixasse aparecer forças, espíritos que entram em comunicação com os vivos,
formando um conjunto onde almas, seres vivos e natureza comunicam (Cavignac 1997; Galinier
1997; Viveiros de Castro 2002).
ALMAS, BOTIJAS E BALEIAS
análise das suas produções narrativas. Aqui, a natureza não habitada tornase o "lugar de vida", do
sagrado autóctone e o revelador de um passado longínquo. O subsolo contém também os seres ligados
ao fim do mundo sobretudo serpentes e animais aquáticos como baleias e peixes gigantes, almas ou
seres humanos encantados, no caso das princesas adormecidas. Assim, a descrição minuciosa desse
mundo repleto de monstros, de espíritos e de santos, que surgem como os primeiros colonizadores da
região, é relatado pelos moradores das cidades históricas através dos discursos narrativos: textos
míticos, “histórias de almas”, milagres, romances de cordel, ou estórias de trancoso. Graças a esse
conjunto narrativo, podemos traçar os contornos de uma cosmologia local. Reencontrase, então, uma
representação do mundo em que o espaço sagrado segue de perto os limites do mundo habitado pelos
homens e, de maneira mais elástica, a história. O espaço sobrenatural se iniciaria, desse modo, na
fronteira da cidade, ao entrar no cemitério ou numa casa abandonada. Ao atravessar qualquer zona
deserta, os homens devem protegerse contra as agressões dos agentes do mundo extrahumano ou
ainda, devem procurar ganhar os seus favores, realizando rezas, práticas mágicas, oferendas ou
mesmo súplicas, no caso das aparições de Nossa Senhora.
longínquo, pode ser também vista como o resultado de uma resistência de uma memória oprimida por
vários séculos de dominação de todo tipo. O passado, localizado no subsolo e nas águas, foi
"encoberto", aterrado com os testemunhos da história sangrenta. Temos, então, a convicção de que
colonização. Podemos, então, começar a enxergar a amplitude do fenômeno. Como é demonstrado
para outros países latinoamericanos, sobretudo no México (Galinier 1997; Gruzinski 1988; Wachtel
1991), o invasor conseguiu tomar posse de terras, eliminar fisicamente as populações nativas e impor,
simbolicamente, contando com a ajuda da Igreja, uma legitimidade da ocupação colonial. É possível
aplicar essa análise ao contexto nordestino, tomando como exemplo Mipibu e Papary.
As narrativas ensinamnos também que a elaboração da autoctonia passa necessariamente
por uma reinterpretação singular da história. Versão plausível do passado, mostrando que os homens
continuam tecendo relações complexas e múltiplas junto aos agentes sobrenaturais, sejam eles
considerados autóctones ou estrangeiros. Finalmente, essa análise visa, antes de tudo, a demonstrar
que é necessário reavaliar o estudo da narrativa e que este não deve ser limitado ao estudo formal.
Tentamos, aqui, entender os resultados da análise textual à luz das observações etnográficas e dos
dados históricos, para desenhar os contornos de uma cosmologia local. Produzindo afirmações
historicamente possíveis para o Nordeste, os homens, contando estórias, repetindo anacronismos e
fórmulas feitas, elaboram e reelaboram eventos passados e presentes, propondo uma reinterpretação
local dos fatos reais, inspirandose na “tradição”, já que não seriam tantos os elementos originais da
cultura indígena que são reproduzidos fielmente. Resta saber de qual “cultura indígena” falamos. O
que importa é a “moldura” – na sua acepção material na qual esses elementos são integrados e
ordenados num complexo cultural. No caso chipaya, examinado por N. Wachtel (1990), esse
complexo é regido pela ordem dualista e por um ideal de igualdade, conjunto que é apresentado pelos
configurasse como sendo o espaço onde são formuladas as expressões da identidade indígena.
Assim, a análise das produções simbólicas permite avaliar, em conjunto, o papel da
memória na definição da identidade individual e na diferenciação dos grupos entre si, bem como
auxilia na reflexão sobre a “emergência” de atores marginalizados da história – pelo menos, quando
essa emergência não é efetiva, as identidades contrastivas aparecem de maneira furtiva nas formas
discursivas localizadas. Fundamentando as identidades coletivas, a memória transformase em ação,
pois os indivíduos e os grupos fazem escolhas e colocam em movimento estratégias identitárias,
escolhendo num registro memorial e num repertório aberto, quais são as representações, as mito
histórias, as crenças, os ritos e os saberes que lhes são úteis naquele momento.
Escolhendo privilegiar a via das narrativas – incluindo genealogias, discursos sobre o
passado, crenças, mitos e outros textos da tradição oral parece importante analisar os textos não
somente como proposições míticas e instituições reais reinterpretadas pelos locutores mas também
como marcas memoriais (Monod Becquelin e Molinié 1993:2150; LéviStrauss 1974, 1991). Sem
querer encontrar nas estórias um fato histórico, procuraremos nelas a interpretação autóctone desse
fato ou, quando essa não existir claramente, tentaremos aproximar elementos que são definidores da
identidade local de um contexto colonial. Por exemplo, como em Papary, buscaremos informações
históricas sobre a missão religiosa e os registros de conflitos com os não índios para esclarecer as
lendas de fundação que colocam em cena a volta de um santo para o mesmo lugar. Para isso, importa
observar os textos, levando em conta as mudanças históricas locais. Também, e continuando a nos
situações coloniais onde pelo menos dois sistemas culturais diferentes funcionam em relação aos
compartilhados, como no caso dos fenômenos religiosos (padres que os nativos acham que têm
poderes) (Pompa 2003; Reichler 2002: 44; Viveiros de Castro 2002).
encontrar nessas produções narrativas, uma concepção ameríndia do mundo: se o dualismo não
aparece aqui, outros traços recorrentes persistem, como a intensa comunicação entre as diferentes
ordens (humanos / naturais / sobrenaturais). Pensamos que as vias de explicação do passado e os
modelos de apreensão do mundo inscritos nas narrativas locais devem ser lidas com as versões mais
oficiais da história. Ao se discutir questões relacionadas à etnografia e à história, abremse novas
perspectivas que permitam entender como se elaboram os processos identitários conjuntamente à
reiteração de uma lógica cultural nativa que se expressa através da tradição oral.
Vista dessa perspectiva, é interessante se empreender uma leitura cruzada dos textos orais
e escritos, da realidade cotidiana dos moradores, dos seus discursos e das suas narrativas, sublinhando
a importância do corpus narrativo na elaboração de uma identidade e, através desta, uma apropriação
da história do lugar e do espaço. Seguindo ainda os ensinamentos de Claude LéviStrauss (1974),
devemos analisar as diferentes expressões narrativas, sobretudo, as variantes das estórias, sejam elas
escritas ou orais, eruditas ou populares. A metodologia adotada pode então ser definida como sendo o
24
É o caso do relógio jesuíta e a reação dos hurons citada por R. Reichler (2002: 44).
esforço comparativo das diferentes formas discursivas no sentido de entender a produção e a
transmissão dos textos e, de um modo geral, o que eles nos ensinam sobre as questões relativas ao
sentimento de autoctonia, da identidade e das representações simbólicas, em particular, as noções de
sagrado e de cosmologia. Longe de serem o simples reflexo da realidade social, como pensavam os
funcionalistas, as produções narrativas informam sobre os modos de resolução de problemas lógicos,
contemporânea. A análise das narrativas deve ser feita em conjunto à revisão das fontes documentais
e à observação das práticas cotidianas, investigações empíricas a serem realizadas.
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CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UM CARÁTER: CAPISTRANO DE ABREU, SILVIO
ROMERO E A FORMAÇÃO DO BRASIL
Autor: Eduardo Ferraz Felippe – Mestrando pela PucRio, eferrazfelippe@oi.com.br.
RESUMO
A intenção deste artigo é analisar o debate entre Capistrano de Abreu e Sílvio Romero acerca da
noção de Caráter nacional. Inicialmente, buscase compreender como Capistrano de Abreu tornou a
Natureza elemento de distinção e, de modo diferenciado, Silvio Romero tornou a raça.
Posteriormente, buscase compreender como Capistrano construiu, de maneira singular, a noção de
raça histórica, através do diálogo pouco tematizado com a antropologia do início do século, rompendo
tanto com a idéia de determinismo do meio como com a idéia de determinismo biológico.
Palavraschave: Capistrano de Abreu – História – Natureza
ABSTRACT
The intention of this article is to analyze the debate between Capistrano of Abreu and Sílvio Romero
concerning the notion of national Character. Initially, it is looked for to understand like Capistrano of
Abreu turned the Nature distinction element and, in a differentiated way, Silvio Romero turned the
race. Later, it is looked for to understand like Capistrano built, in a singular way, the notion of
historical race, through the dialogue with the anthropology of the beginning of the century, breaking
up with the idea of determinism.
Keyword: Capistrano de Abreu – History – Nature
CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UM CARÁTER: CAPISTRANO DE ABREU, SILVIO
ROMERO E A FORMAÇÃO DO BRASIL
O convívio e o debate entre intelectuais são fundamentais para o desenvolvimento de
sensibilidades e idéias para aqueles que pertencem a um determinado sistema intelectual. Para
escrever e criar, o intelectual necessita estar inserido em um círculo de sociabilidade que, ao mesmo
tempo, potencia e difunde suas idéias, como também parece nelas incidir e formatálas,
caracterizandoas de maneira peculiar. Por isso, a condição de intelectual está ligada a certo tipo de
estratégia de sociabilidade, pautada em contatos e elogios, assim como as polêmicas literárias podem
ser consideradas elementos fundamentais para o entendimento de determinado vínculo intelectual ou
postura. Além disso, a constituição de uma rede de pesquisa, com objetos e métodos próprios, pode
ser compreendida através do recurso a um momento de embate e de divergência ferina na idéia entre
diferenciados autores. Cabe, neste artigo, analisar caso desta natureza: a polêmica literária entre
Capistrano de Abreu e Sílvio Romero, acontecida ao longo de mais de duas semanas de troca de
artigos, pautada na divergência entre ambos acerca daquilo que caracterizaria o próprio do brasileiro.
Entre tangências e dissonâncias, ambos mobilizaram não somente objetos diferenciados, mas também,
discussões mais amplas, conforme foram mobilizados diferenciados referenciais teóricos para lidar
com a questão.
brasileiro”, publicado originalmente sob a forma de artigo de jornal, Capistrano debateu com Sílvio
Romero acerca do caráter nacional brasileiro. Enquanto este último sustentava que o elemento que
diferenciava o brasileiro do português deveria ser atribuído ao negro, o autor cearense diria que o
fator étnico, unicamente, forneceria uma explicação empírica e ilusória sobre o estado social.25 Para
Capistrano, seria imprescindível compreender a ação da Natureza. Ação que primeiramente seria
passiva, fazendo com que o transplantado colonizador se submetesse ao meio, e depois ativa, com a
necessidade de posterior integração.
Sem dúvida a Natureza, com as suas forças e seus aspectos e a raça,
que admitimola como produto daquela, quer a consideremos como
fator originário e irredutível, são dois fatores que pesam fortemente na
feitura de um caráter nacional e por conseguinte na estrutura da
sociedade. Entretanto, não são os únicos. Se eles agem sobre a
sociedade, a sociedade reage sobre eles; o meio social de efeito passa
a ser causa, de resultante passa a ser componente. No Brasil é
justamente o caso e a influência esquecida é a mais poderosa e ativa.26
A Natureza seria sujeito. Independente da forma como atue, ativa ou passiva, estaria
Capistrano utilizou uma observação do presente para questionar as observações de Romero: afirmou
que se a mistura com o negro fosse a causa do atraso brasileiro, o instante que viviam representaria o
momento de maior degenerescência. “Se o atraso brasileiro provém da massa de africanos que
concorreu para o aviltamento, então, agora que o cruzamento se deu em maior escala, o atraso devia
ser e devia tender a ser maior. É pelo menos contestável.”27
Seria a ação da Natureza, recuperada através da investigação de fontes de cronistas da
época, que dotaria a Colônia da determinação característica, fruto da fraqueza que se apresentava
devido à fragilidade daqueles que aqui residiam. “Por que a Natureza não deixava desenvolveremse
as funções, porque a ataraxia das funções trouxe a atrofia do organismo – é fácil demonstrar. O que é
difícil é explicar estes fatos com o cruzamento com o preto.” 28 Quanto à questão – neste aspecto, para
25
A querela entre os dois autores ainda se estenderia em dois outros artigos intitulados “História Pátria” e “Sobre a
Colônia do Sacramento”. Em ambos, a discussão se pautará pelos mesmos termos, diferenciandose pouco, mas sem
modificação das questões centrais. In: ABREU, João Capistrano de. Ensaios e Estudos, 3° Série. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977.
26
ABREU, João Capistrano de. “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” In: Ensaios e Estudos, 4° série.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 5.
27
Idem. p. 11.
28
Idem. p.12.
Capistrano, menor – da formação étnica, o autor concordava com Romero e com Martius sobre o
caráter eminentemente mestiço da população. Discordava, neste ponto, de Pereira Barreto, quando o
positivista paulista afirmava que por “fatalidade biológica e determinismo sociológico”, temos sido,
somos e seremos portugueses.29
Importante observar que, nas décadas iniciais do século XX, havia um intenso debate
acerca das teorias raciais, que caracterizava grande parte da produção intelectual e que orientou o
tratamento dispensado à questão da raça, levando a discussão do “problema racial” a ser vista sob um
olhar muito particular, que acentuava a mistura de etnias. Tomando o caráter basicamente híbrido de
nossa sociedade como um dado natural, como um elemento do contexto, grande parte da
intelectualidade no período dividiase, a respeito do tema, em duas posições distintas. A primeira
miscigenação, ao propiciar o cruzamento, a relação entre “espécies” de qualidade diversa, levava,
inexoravelmente, à esterilidade cultural, comprometendo a civilização no país.
Essa suposta condenação à barbárie era criticada por uma segunda posição, que entendia a
miscigenação como responsável pela nossa redenção. A possibilidade de percorrer essa trilha somente
ocorreu porque a mestiçagem passou a ser considerada como promotora de um processo de
branqueamento, através do qual seria atingido um gradual predomínio dos caracteres brancos sobre os
negros.30 Ambas as tendências, contudo, aliam de maneira negativa a herança recebida da mistura das
três raças. Em ambos os casos, a supremacia branca dá sentido ao argumento: seja na primeira, que
julga os constrangimentos totalmente insuperáveis, seja na segunda, que aposta na sua futura
superação através de um desejo de ser similar ao Outro, o europeu, o branco, o exemplar.
O embate entre Sílvio Romero e Capistrano se aguçou ao atribuir o primeiro à ausência de
uma etnologia brasileira, voltada para o estudo do negro e do mestiço, à idealização romântica do
indígena e à questão da escravidão. Nos Estudos sobre a poesia popular no Brasil (1888), Romero
denunciou esse descaso intelectual e abordou a influência das raças, inclusive do africano e do afro
29
Idem. Tratase da crítica ao livro Soluções positivas da política brasileira, publicado pelo positivista paulista em
1879.
30
Conforme afirma Lilia Moritz Schwarcz, em fins do século XIX, estabeleciase um paradoxo entre liberalismo e
teorias raciais em que o primeiro fundavase no indivíduo e em sua responsabilidade social e o segundo retratava a
atenção colocada no sujeito enquanto resultado de uma estrutura biológica singular. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz.
O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das
Letras, 1993. pp. 1147.
brasileiro, na poesia popular. O livro se encerra como um apelo sentimental à abolição da escravidão:
A partir da submissão do cultural ao racial, ele desdobra a mestiçagem em dois níveis:
“Deste imenso mestiçamento físico e moral, desta fusão de sangue e de almas é que tem saído
diferenciado o brasileiro de hoje e há de sair cada vez mais nítido o do futuro.”32 Pela mestiçagem
moral, seria possível pensar uma perspectiva crítica e seletiva diante do influxo externo e superar o
mimetismo cultural e a imitação do estrangeiro. A cultura brasileira é definida como mestiça ou
compósita, cujo caráter específico depende da integração entre elementos díspares. Em termos
literários e artísticos, a consciência nacional se criaria pela fusão entre as raças e pela incorporação da
“faculdade de imaginação e sentimento do continente americano e africano” e uma de expressão
“civilizada”.33
A perspectiva antiromântica e próabolicionista de Romero se relaciona ao projeto de
investigação “integral” da contribuição cultural das raças. Para tanto, constrói uma teoria etnográfica
hierarquizada, em que o negro é apresentado como superior ao indígena, e o branco mais evoluído do
que ambos. Estabelece distinções no interior da raça branca, que divide em diversos tipos: enquanto
os germanos, eslavos e saxões caminham para o progresso, outros grupos, como os celtas e latinos
mostram claros sinais de decadência. Os portugueses são vistos como povo inferior, resultante do
cruzamento entre ibéricos e latinos, o que representava a impossibilidade orgânica de produzir por si.
Os colonizadores trouxeram assim os males crônicos das raças atrasadas, desprovidas do impulso
inventivo dos germanos e saxões.
A partir dessa concepção, a dependência cultural é explicada como impulso psicológico
ou tendência de caráter resultante da mistura de três raças inferiores: “O servilismo do negro, a
preguiça do índio e o gênio autoritário e tacanho do português produziram uma nação informe, sem
31
ROMERO, Sílvio apud VENTURA, Roberto Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 46.
32
Idem Ibidem.
33
Idem p.48.
qualidades fecundas e originais.”34 A formação do povo a partir de três raças sem originalidade teria,
como conseqüência, a tendência à imitação do estrangeiro. Em termos de produção intelectual, o
mimetismo traria prejuízos, como a “falta de seriação nas idéias” e a “ausência de uma genética”, que
faria com que os autores não procedessem um dos outros, o que o fez negar, em A filosofia do Brasil,
a existência do pensamento filosófico entre nós.35 Sua teoria da mestiçagem e do branqueamento
evolucionistas (lei da concorrência vital e do predomínio do mais apto).
Seja com relação à noção de raça, seja com relação à noção de Natureza, Sílvio Romero e
Capistrano necessitavam pressupor a existência do seu objeto privilegiado, o fenômeno histórico e
cultural “Brasil”. Apesar dessa pressuposição, a concepção de caráter nacional apresenta certa
diferenciação entre ambos. Visando a perseguir com maior proximidade a questão que estamos
visando a adensar, tentarseá compreender a sua noção de caráter nacional. Podese afirmar que
Romero visa a espelhar o caráter de uma nação, aproximandose do que o antropólogo norte
americano Richard Handler chama de “objetificação cultural”, ou seja, que se observe (e se escreva
sobre) uma cultura como uma “coisa”, um objeto natural ou entidade constituída de objetos e traços.
Assim concebida, “a nação ou grupo étnico é tomado como sendo delimitado, contínuo e
precisamente distinguível de outras entidades análogas.”36 Além disso, nessa perspectiva, o que
distingue cada nação ou grupo étnico é sua cultura, que provê o conteúdo da individualidade do
grupo. Os traços que constituem esse conteúdo passam a estar inseridos em um quadro de eternidade
no qual, ainda que participem dos acontecimentos históricos, o tempo é irrelevante. Nesse sentido,
um estudo que promova a objetificação da cultura não se encontra muito distante do determinismo
que caracteriza as explicações biológicas que recorram à noção de raça. Dante Moreira Leite, em seu
o Caráter Nacional Brasileiro, fez observações que se aproximam dessa perspectiva. Fazendo um
inventário da produção brasileira que se deteve no tema, diz que “os estudos contemporâneos do
caráter nacional revelam, apesar de tudo o que dizem seus autores, um nacionalismo exacerbado,
34
Idem.
35
ROMERO, Sílvio. “A Filosofia no Brasil. Ensaio Crítico” In: Obra Filosófica. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1969.
p. 7. O notório atraso seria a percepção de que não houve nenhum livro de filosofia escrito durante os três séculos
coloniais.
36
HANDLER, Richard. Nationalism and the politics of culture in Quebec. Wisconsin: Wisconsin University Press,.
1988. p. 16.
capaz de substituir ideologicamente o racismo.”37 Capistrano de Abreu termina por ser englobado
pelo mesmo autor nessa categoria.
Esse tema, contudo, levanta uma pista que merece ser seguida. Enquanto Romero
privilegiou o quesito raça, Capistrano privilegiou a Natureza. O privilégio do primeiro faz com que a
influxo externo, como o branqueamento, por exemplo. Já Capistrano de Abreu, através da Natureza,
dota o país de singularidade e aponta modificações para o futuro atreladas a ela. Assim, a solução
para o futuro se remete ao passado, mas um passado que mantém uma influência permanente e
longeva, e que dotará de especificidade aquele que com ele travar contato.
Essa seria a influência ativa a que o autor se remete ao longo de seu artigo “O caráter
nacional e as origens do povo brasileiro”. Uma integração entre homem e Natureza que leva muito
mais tempo:
Se a influência ativa pode – embora sem bases – ser contestada, a
influência passiva é de uma evidência fulminante no Brasil. Que
significam tradições de grandeza entre um povo a quem elas nada
lembravam? Que significam costumes polidos em uma sociedade que
se ia formar? As florestas seculares não determinavam um sistema
novo de agricultura? As verdades das estações não reagiam sob a
cultivação! As distâncias a dificuldades de transporte não reagiam
sobre a indústria? Matas, distâncias e estações, se não me engano, são
parte da natureza e sua influência é patente.38
A ação da Natureza é dupla: “ativa ou passiva manifestase como movimento ou como
civilizado e o meio, o choque instantâneo do deslocamento espacial sofrido pelos portugueses. Já a
influência ativa ocorre ao longo de um determinado período de tempo mais extenso, de maneira mais
Natureza diante dos “fatores exóticos”. A Natureza é, então, uma categoria fundamental para
37
LEITE, Dante Moreira. O caráter Nacional Brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Pioneira, 1976. pp.
124125. Desta forma, o conceito de Nação seria compreendido como narrativa coesa acerca dos caracteres de
determinado grupamento social.
38
ABREU, João Capistrano de. “O Caráter Nacional e as origens do povo brasileiro” In: Ensaios e Estudos, 4° série.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
39
Idem p.17
entender sua escrita da História do Brasil.40
Abreu dialoga com a dissertação de Martius, Como se deve escrever a história do Brasil,
e sua perspectiva de conferir legitimidade nos trópicos ao Império através de uma proposição acerca
de sua identidade específica. O texto do viajante bávaro, segundo esse tema, constitui, sob a forma de
narrativa histórica, uma elaboração acerca do passado nacional que dialoga com os anseios do
presente e aponta um horizonte para o futuro. Os elementoschave da história nacional estariam na
própria Natureza.41 Como Capistrano não deixa de utilizar a categoria raça, observase que ela passa
a possuir um sentido pouco usual, como fica delimitado a partir da contraposição às observações de
Sílvio Romero na polêmica entre ambos. Ela deixa de possuir o estrito vínculo biológico e passa a
fazer com que, apesar de ser ainda uma categoria de que o autor se utiliza, esteja muito mais próxima
da cultura do que do determinismo biológico.
O entendimento do meio físico como modificador do povo vinculase a uma concepção
neolamarckiana de raça, uma definição que, baseandose na ilimitada aptidão dos seres para se adaptar
às mais diversas condições ambientais, enfatiza, acima de tudo, a sua capacidade de incorporar,
transmitir e herdar as características adquiridas na sua interação com o meio físico. “A idéia de raça é
convertida muito mais em um efeito do que em uma causa, mantendose como uma intermediária das
noções de raça e de cultura.”42 Há um compromisso de cunho biologizante, mas que não implica a
composição de um evolucionismo. Apesar do papel privilegiado que o português possui ao longo de todo
o livro Capítulos de História Colonial, não há a composição de uma hierarquia explícita entre as raças,
como se o seu “caráter independente”43, além de ter lhe dotado da propensão a certo tipo de ações,
tivesse propiciado maior miscibilidade ante o contato com as outras raças.
Essa transitividade que o argumento neolamarckiano possibilita conduz a certa confusão
40
Como dirá acerca de sua história íntima: “Uma história íntima – deve mostrar como aos poucos se foi formando a
população, devassando o interior ligando entre si as diferentes partes do território, fundando indústrias, adquirindo
hábitos, adaptandose ao meio e constituindo por fim a nação.” Gazeta de Notícias em 19/10/1880. In: Ensaios e
Estudos, 4ª. Série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 157.
41
Sobre uma reflexão aprofundada acerca da noção de história em Martius: GUIMARAES, Manoel Luiz Salgado.
“História e natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nação”. Hist. cienc. saude
Manguinhos., Rio de Janeiro, v.7, n.2, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em: 06
Maio 2007.
42
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: CasaGrande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos30. Rio
de Janeiro: 34,1994. p. 39.
43
ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. 6° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p.
17.
entre o biológico e o cultural, que acaba por permitir o estudo das sociedades em uma dinâmica muito
próxima à da relação entre história e cultura. “Não existem raças verdadeiras conforme uma explicação
históricocultural da explicação de Capistrano é ressaltado quando, contra o argumento de Romero de
que a Natureza não seria um fator importante para a compreensão do nosso caráter nacional, observa que
“É sem razão que alegam ser o tempo insuficiente para tanto; a deficiência do tempo referese antes à
percepção adequada do que à objetiva.”45. O lapso de tempo passa a ser mais um indício que ressalta o
traço fortemente históricocultural de sua explicação, aproximandoa da noção de raça histórica.
Não só quatro séculos são o suficiente para a elaboração biológica, e,
por conseguinte, sociológica; como a ignorância dos primitivos
colonizadores, sua índole genial, o segregamento a que condenouos a
política da metrópole, oferecendo uma resistência mínima à pressão
mesológica, tendiam a deixar produziremse livremente os seus
efeitos... é evidente quanto isto deve ter concorrido para o suplemento
do tempo.46 [Grifo meu]
O tempo não é algo desconectado da experiência particular ocorrida em cada localidade. A
maior ou menor demora para que ocorra a reverberação de uma modificação na característica de cada
local somente poderá ser compreendida se for observada a completa gama de elementos que nela
interagem. Todos eles irão gerar uma feição particular aos habitantes daquele lugar, sendo transmitido
aos seus descendentes. O argumento lamarckiano possui seu peso no conceito de adaptação – a
capacidade de transmissão de características adquiridas.
Em seu texto “Lamarckianism in American Social Science”, George Stocking demonstra a
presença de argumentos que envolvem a noção de hereditariedade das características adquiridas – às
vezes com referência direta a Lamarck e, em muitas outras, não – nas Ciências Sociais norte
americanas nos últimos vinte anos do século XIX e na primeira década do século XX. Apesar de, nesse
contexto, a referência a Darwin ser intensa, através do que ficou conhecido como “darwinismo
44
STOCKING, George. “Lamarckianism in American Social Science” In: STOCKING, George. Race, Culture and
Evolution. New York: The Free Press, 1968. p.245.
45
ABREU, João Capistrano de. “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” In: Ensaios e Estudos, 4° série.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 17.
46
Idem. p. 17.
social”47, é com o apelo ao argumento lamarckiano que ele se presentificava. O conceito de adaptação
compreendido como “mudanças na estrutura ou no comportamento orgânico que foram causadas por
influências diretas do meio ambiente ou que foram produto das respostas do organismo a tais
argumento.
biológica” e possibilitou “um dos últimos elos teóricos entre a teoria biológica e a social”.49 Dentre
outros aspectos específicos, possibilitou aos cientistas sociais uma elaboração para a formação das
raças e da estrutura mental que não fosse apenas biológica. A concepção segundo a qual os novos
hábitos adquiridos pela adaptação ao meio natural geravam mudanças no organismo dos indivíduos e
essas, por sua vez, eram herdadas pelos descendentes, permitiu que os cientistas sociais, mesmo sem
uma diferenciação clara do biológico e do social, formulassem explicações para as diferenças raciais
que se aproximam das que foram elaboradas posteriormente para explicar o conceito de cultura.
A correspondência de Capistrano dá indicações do possível contato que teria mantido,
mesmo que de forma sutil, com tais formulações intelectuais. Em carta destinada a Paulo Prado, datada
de 1923, Capistrano solicitou patrocínio para a tradução de um texto de Carlos von den Steinen, para a
qual encontrava dificuldades financeiras na edição.
O autor da carta junta, Franz Boas, é universalmente conhecido
como uma das maiores autoridades em questões antropológicas.
Carlos von den Steinen, a que se refere, fez duas expedições à nossa
terra e lançou as bases da etnografia científica do Brasil. Peçolhe se
interesse pela causa, lance uma derrama entre os amigos e mande a
Franz Boas uma ordem prestigiosa para facilitar a impressão da obra
que deve ser genial... Devolvame a carta de Franz Boas para ver se
com ela consigo alguma coisa nestes pagos.50
O contato ainda tornase um pouco mais estreito. Em carta enviada a João Lúcio de
47
A expressão é usada por HOFSTADTER, Richard. Social Darwinism in American Thought. Boston:
Beacon Press, 1955.
48
STOCKING, George. “Lamarckianism in American Social Science” In: STOCKING, George. Race, Culture and
Evolution. New York: The Free Press, 1968. p. 243.
49
Idem. p.245.
50
Carta de Capistrano de Abreu a Paulo Prado 06/02/1923 In: Correspondência de Capistrano de Abreu vol 2. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
Azevedo, datada daquele mesmo ano, Abreu assim se reportava ao texto de Boas:
Não é só V. quem recebe elogios germânicos: Tolle et lege: Wie oft
habe ich Ihrer gedacht als einen der besten und liebenswürdigsten
Meenschen denen ich in der Welt begenet in... Quem escreveu isto?
Carlos von den Steinen, explorador do Xingu. A propósito de que?
Franz Boas, um dos primeiros etnógrafos, escreveume sem me
conhecer, pedindo que arranjasse algumas assinaturas de 50 dólares
para a obra em que Steinen gastou mais de vinte anos e que não
encontrava editor. Arranjei umas oito ou nove: o elogio de arromba é
um agradecimento.51
A investida na direção da tradução do texto de Carlos von den Steinen possibilita supor
uma gama de questões52. Essa proximidade, admiração e troca intelectual, empreendida entre ambos,
coloca no horizonte uma abordagem que, ao propor o tratamento das tribos indígenas, possibilita
maior dinamismo cultural. A evolução ocorre a partir da troca exercida entre as raças e o ambiente,
sendo mais intensa a partir da maior complexidade dos povos.
Tais ilações permitem compreender de outra forma as ponderações de Capistrano no
artigo “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro”. De forma diversa ao seu interlocutor
Silvio Romero, para quem o vínculo ao esteio biológico fez com que o tempo não operasse mudanças
significativas ao dissenso que aportou em terras nacionais, Abreu assumiu que entre a raça e o meio
deveria ocorrer “sinergia concreta”53. A noção de raça ganha maior complexidade, podendo ter seus
longo de variadas gerações, passam a ser incorporadas a elas. As mudanças deixam de ocorrer no
tempo e passam a ocorrer através do tempo. O tempo passa a ser concebido como agente qualitativo
de mudanças, passando a ser considerado tanto como uma modificação do seu passado quanto
51
Carta de Capistrano de Abreu a João Lúcio Azevedo 20/10/1923 In: Correspondência de Capistrano de Abreu vol.2.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
52
Capistrano vinculase a esse horizonte interpretativo, não necessariamente devido ao contato com Carlos von den
Steinen. Interessa observar que, no final da 6° edição dos Capítulos de História Colonial, há uma anotação de
Capistrano de Abreu em que usa o conceito de adaptação de maneira muito explícita e a referência teórica que cita é
um artigo de Franz Boas publicado no The Nation, em 15/02/1919. Acerca disto, ver Capítulos de História Colonial
6° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p.214.
53
ABREU, João Capistrano de. “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” In: Ensaios e Estudos, 4° série.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p.18.
potencialmente modificado pelo seu futuro.54
A superação do inacabamento, que impediria a entrada na marcha do progresso, teria
como premissa a gradual integração com a Natureza; uma integração que ocorreria através do
contato, através de uma lenta interação, cujo resultado seria a feição particular que resultou após três
séculos de trajetória colonial. Ou seja, a feição que era parte intrínseca e inscrita em sua formação.
Devese, então, problematizar o próprio conceito de “formação”. Ele carrega em si uma
relação íntima com a categoria tempo, designando um viraser capaz de organizar os diferenciados
acontecimentos do passado55. Mas esse rearranjo que os eventos terminam por adquirir se direciona a
um determinado horizonte comum, já inscrito na narrativa antecipadamente, pondo em evidência a
temporalidade da constituição de um determinado objeto que, em seu fim, adquire determinada
forma.56 Os elementos que darão significado à idéia de formação e determinarão o seu ritmo são
passíveis de serem visualizados no tempo de vida do autor. Assim, há uma teleologia composta que
esse conceito denota, principalmente conforme utilizado pelos autores citados, que faz com que a
utilização do conceito de formação da nação venha associado à função pedagógica do conceito em
seus textos. Ou seja, formação é um conceito pleno de sentido e pacificado. A nação se insere em
uma narrativa capaz de ser contada, capaz de dotar de sentido o conjunto das ações dos homens a que
se refere.
Ao longo dos Capítulos de História Colonial, o lugar da Natureza, mais que simples
imobilidade, é o lugar do amoldamento. A natureza é influência e obstáculo para a formação da
sociedade brasileira, mesmo em se tratando da sua conversão pela noção de território, a conversão do
espaço que necessita de um ator.57 Assim se compreende o par influência passiva e ativa da natureza
nos argumentos de Capistrano. A influência passiva foi o momento em que a ação dos fatores
54
Essa percepção do tempo estaria vinculada a uma percepção moderna. Ver: GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Cascatas
da Modernização” In: Modernização dos Sentidos. São Paulo: 34, 1998.
55
Sobre o conceito de formação ver: KOSSELECK, Reinhardt “Historia conceptual e historia social” In: Futuro
pasado Para uma semântica de los tiempos históricos Barcelona: 1989.
56
Patrícia Hansen observa essa noção de formação empregada por João Ribeiro em sua análise do texto História do
Brasil. Curso Superior. Ver HANSEN, Patrícia Feições e fisionomias do Brasil. Historia, Cultura e Nação na
História do Brasil Curso Superior de João Ribeiro Rio de Janeiro: Access, 2000.
57
Um geógrafo atual, Claude Raffestin, faz uma distinção importante entre espaço e território. Segundo o autor, “o
território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que
realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (pela
representação) o ator territorializa o espaço” RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática,
1993. p. 143.
externos gerou a regressão no padrão de vida daqueles que aqui aportaram.
A influência passiva da Natureza pode resumirse nessa proposição:
em conseqüência das condições especiais em que se achou a
civilização portuguesa por seu transplantamento para o Brasil, como
distribuição de riqueza, divisão de trabalho; diminuição e dispersão da
população; deslocamento de centros governativos, mentais e
econômicos; nascimento de novas necessidades, ablação de velhos
usos as funções socais não podiam desenvolverse normalmente; em
vez de tenderem a crescer, o seu trabalho tendia a mingua, e como a
mingua de trabalho traz o acanhamento das funções e o acanhamento
das funções traz o depauperamento do organismo, a sociedade
brasileira atrofiouse.58 [Grifo meu]
Ao pensar em passividade e em um de seus efeitos – a atrofia do “organismo” –, Abreu
imprime dinamismo ao que poderia ser relacionado como essência. A nossa experiência histórica
estaria marcada por um momento inicial em que ocorreu uma característica desordem após o
“deslocamento” do organismo.
Há toda uma série de reflexões desde o século XVI, dotando a América, desde a sua
descoberta, de características singulares. Como no caso de Buffon, que enxergava a América como
possuidora de uma Natureza hostil, que submetia o homem ao seu controle, conforme analisado por
Antonello Gerbi em Novo Mundo. História de uma polêmica: “Poucos e débeis, os seres humanos do
Novo Mundo não puderam dominar a natureza hostil, não souberam vencer e submeter as forças
virgens e revertêlas em seu benefício... mantevese como um elemento passivo da natureza, um
animal como os outros”.59 Capistrano alinhase a esta perspectiva: homem e meio são indissociáveis.
Sendo que, apesar de avassaladora, a Natureza, agora convertida em meio físico devido ao
58
ABREU, João Capistrano. “O caráter nacional brasileiro”. In: Ensaios e Estudos, 4° série. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977. p.18.
59
GERBI, Antonello. Novo Mundo. História de uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.20. Para
Gerbi, Buffon marca um momento em que a discussão sobre a originalidade da América toma moldes de discurso
científico, estabelecendo um espaço privilegiado para a disseminação da degradação do ambiente e do homem
americano. Após ele, a discussão se estende e permanecerá presente na reflexão dos maiores autores do final do
século XVIII e XIX, como Goethe, Lineu, Herder, Kant, entre outros, até culminar nas concepções opostas de Hegel
e Humboldt e, mais tarde, sofrer uma desvalorização enquanto questões científicas. No entanto, esses dois
momentos permanecem de certa forma unidos pela geração de expectativas com que várias obras desses autores
lidam e podem ser identificadas como formadoras de uma visão de mundo inicial dos diferentes viajantes que
visitaram o país.
instrumental científico mobilizado pelo historiador, gerou uma desorganização após o Descobrimento,
mas não se impôs enquanto instância determinística às três raças. Assim, a influência do meio passou
a estar de maneira longeva na formação da Nação, sendo esse o argumento que propiciou pensar a
noção de influência passiva. Desse modo, rompeuse a noção de determinação, nos argumentos de
Capistrano de Abreu, possibilitando ao tempo gerar mudanças conforme as ações dos homens no
mundo as fizessem. Apesar de ambos lidarem com a noção de caráter nacional, o olhar de historiador
de Capistrano propicioulhe fugir do caráter dedutivo que a argumentação pautada no determinismo
biológico possuía e possibilitou, de maneira diferenciada, que a solução para os impasses do país
estivessem vinculadas às mudanças geradas pela agência humana em terras do Brasil. Aquilo que
pondera, mas não restringe os atos dos homens.
REFERÊNCIAS
ABREU, João Capistrano de. “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” In: Ensaios e
Estudos, 4° série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
__________________ Correspondência de Capistrano de Abreu vol.2. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976.
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: CasaGrande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos
anos30. Rio de Janeiro: 34,1994.
GERBI, Antonello. Novo Mundo. História de uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Cascatas da Modernização” In: Modernização dos Sentidos. São
Paulo: 34, 1998.
HANDLER, Richard. Nationalism and the politics of culture in Quebec. Wisconsin: Wisconsin
University Press,. 1988.
HANSEN, Patrícia Feições e fisionomias do Brasil. Historia, Cultura e Nação na História do Brasil
Curso Superior de João Ribeiro Rio de Janeiro: Access, 2000.
HOFSTADTER, Richard. Social Darwinism in American Thought. Boston: Beacon Press, 1955.
KOSSELECK, Reinhardt “Historia conceptual e historia social” In: Futuro passado. Para uma
semântica de los tiempos históricos Barcelona: 1989.
LEITE, Dante Moreira. O caráter Nacional Brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo:
Pioneira, 1976.
ROMERO, Sílvio. “A Filosofia no Brasil. Ensaio Crítico” In: Obra Filosófica. Rio de Janeiro: José
Olimpio, 1969.
STOCKING, George. “Lamarckianism in American Social Science” In: STOCKING, George. Race,
Culture and Evolution. New York: The Free Press, 1968.
VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
A INTEGRAÇÃO DO TERRITÓRIO DO RIO GRANDE DO NORTE PELOS AÇUDES E
ESTRADAS DE FERRO (18891935).
Autor: Adriano Wagner da Silva Graduando do curso de História da UFRN, bolsista PIBIC/local
UFRN, adrianows10@yahoo.com.br.
Autor: Gabriel Leopoldino Paulo de Medeiros Graduando do curso de Arquitetura e Urbanismo da
UFRN, bolsista ICCNPq, gabrielleopoldino@yahoo.com.br.
RESUMO
A criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), em 1909, enfatizou a construção de açudes
e vias férreas na busca da solução à falta de integração da região das secas no Nordeste. O objetivo
deste trabalho é compreender o papel das ações na indução do planejamento do território do RN,
adotando como abordagem mais específica a construção das estradas de ferro (fluxos) e dos açudes
(fixos). As fontes utilizadas foram os relatórios do Ministério da Viação e Obras Públicas, artigos da
Coleção Mossoroense e documentos da época.
Palavraschaves: Seca; Açude; Estrada de Ferro
ABSTRACT
The “Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS)”´s creation, in 1909, emphasized the dam´s and
railroad´s constructions in search of lack dry region´s integration in Northeast. The paper´s objective
is comprehend the actions in the induction of territory’s planning of RN, and adopting as focus the
railroad´s (flow) and dam´s (fixture) constructions. The fonts used were the Ministry of Transport and
Public Works’ repports, issues of the “Coleção Mossoroense” and primary documents.
Key words: Drought; Dams; Railroads
INTRODUÇÃO
A transição do século XIX para o XX foi marcada por uma efetiva mudança no
planejamento urbano e territorial no Brasil. A ascensão de uma nova ciência, a engenharia,
possibilitou uma abordagem inovadora acerca da construção da cidade moderna no país. Os
engenheiros, além de intervirem decisivamente no novo modo de pensar as cidades, também se
constituíram personagens fundamentais na construção do território, ao intervirem em regiões diversas
que abrangiam desde a escala rural à urbana. A partir da preocupação em se planejar as relações entre
cidade e região, os interesses técnicos foram voltados aos estados do Nordeste onde se deu início a
um processo de intervenção, sistematizado no início do século XX, com a finalidade de combater os
efeitos das secas.
A região das secas abrange grande parte dos sertões do semiárido do Nordeste brasileiro,
uma área de aproximadamente 600.000 km². A principal causa da estiagem não é propriamente a
escassez de chuvas, mas a grande irregularidade existente nelas. A partir das últimas décadas do
século XIX, especialmente em decorrência da grande seca de 187779, as discussões acerca das
causas do fenômeno e das soluções a serem adotadas passaram a ser cada vez mais constantes, tendo
como foco irradiador desse processo a participação das comissões e organizações de engenharia. A
partir da evolução técnica e tecnológica, a antiga imagem de problema insolúvel começou a ser
combatida por um pensamento positivista, onde se era possível, sim, intervir com eficiência a partir
da melhoria da infraestrutura e de políticas menos assistencialistas e remediadoras e mais
planejadoras e duradouras. Como manifestação desse saber, já diria em 1889 o engenheiro Newton
Bulamarqui em uma das sessões do Clube de Engenharia60:
Com effeito, o homem não tem o poder de crear serras e rios, de dirigir a corrente
dos ventos e dizer ás nuvens que parem e se resolvam em chuvas n’uma dada região:
jámais podersehá conseguir que chova á nossa vontade. Mas a verdade é que a sciencia
humana ainda não disse a última palavra em assumpto nem um; tudo caminha e não será
impossivel que alguma cousa se consiga n’esse sentido com a applicação scientifica dos
meios que a propria natureza nos está ensinando (REVISTA DO CLUB DE
ENGENHARIA, 1889, p. 19).
60
A ortografia e pontuação das citações deste trabalho foram mantidas de acordo com os documentos originais,
inclusive os eventuais erros tipográficos e de redação desde que esses não comprometam o entendimento do texto.
Dessa forma, as ações mais pontuais foram dando margem a intervenções sistemáticas e
de planejamento prévio, culminando na institucionalização dessas medidas. Logo, no ano de 1909 é
fundada a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), primeiro órgão destinado à articulação de
obras e políticas de combate ao flagelo. A premissa inicial dos trabalhos da Inspetoria foi a de realizar
pesquisas e estudos acerca da própria região do sertão nordestino, que constituía uma área cujas
características ainda eram pouco conhecidas. As ações da Inspetoria, segundo podemse subentender
a partir da descrição de documentos da época, tinham o objetivo de possibilitar a permanência da
população na própria região – empregandoa nas obras de combate à seca – a partir da melhoria da
infraestrutura de transportes (rodovias e linhas ferroviárias), de construção de açudes e de irrigação,
tendo como principal ênfase as duas primeiras.
OS AÇUDES E A INTEGRAÇÃO DO TERRITÓRIO DO RN
O inicio da República no Rio Grande do Norte também foi marcado, de forma semelhante
ao que acontecia com a então região Norte61 do país, pela implantação de açudes públicos de grande,
médio e pequeno porte, que tinham como objetivo amenizar os males proporcionados pelas secas.
Essas ações agiam de acordo com dois vieses principais: gerar as condições necessárias para a
secas) e, consequentemente, contribuir de forma imediata com a fixação do sertanejo em sua própria
terra, diminuindo as migrações do meio rural para o espaço urbano. O próprio emprego da mãode
obra sertaneja nessas construções também constituiu uma forma de fixar as levas de retirantes,
evitando o intenso êxodo em especial para as cidades litorâneas do estado do Rio Grande do Norte em
princípios do século XX.
A construção de açudes a cada seca que surgia (principalmente após a ocorrida em 1877),
cada vez mais era requisitada nos discursos de políticos (sobretudo pertencentes ao Norte do país),
tanto na Câmara e Senado Federal como em periódicos nacionais e locais, por intelectuais, médicos,
escritores, engenheiros politécnicos, entre outros indivíduos da referida época. Em caso especifico,
um periódico potiguar da esfera governista declarava:
61
Em 1941, o CNG (Conselho Nacional de Geografia), por intermédio do geógrafo Fabio de Macedo, realizou a
divisão regional do Brasil, buscando definir cada grande região brasileira através de suas características físicas, com
o objetivo de organizar o conhecimento sobre o país. É desse trabalho que surgiria a primeira denominação oficial
de Nordeste. Porém, essa denominação não fora totalmente aceita, não sendo utilizada pelos órgãos oficiais da
época. Somente em 1968 é que o IBGE, ao fazer uma nova divisão do país em grandes regiões geográficas,
considerou como nordestinos os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe, Bahia, e o território Federal de Fernando de Noronha.
Angicos, 9 de outubro de 1889
A aridez e a deficiência das aguadas naquela vila (...) tornavam urgente que ali se
construísse um reservatório ou açude, que proporcionasse à população um elemento tão
indispensável à vida como a água. (A Republica, 9 de outubro de 1889 apud. SILVA,
1978, p.95).
Na defesa pela implantação dos açudes públicos, o Senador Tomaz P. Sobrinho, um dos
principais estudiosos de tal problemática do Nordeste do país (mesmo que dando ênfase ao caso
ocorrido no Ceará), afirmava que dentre as ações cuja viabilidade e utilidade eram discutidas e aceitas
pelo Governo Federal, a dos açudes:
Tratavase de uma orientação vencedora em toda linha não obstante a discrepância de uma
ou outra pessoa que, aliás, não oferecia argumentos ponderáveis para amparar as suas
opiniões. Nestas condições era natural que o Governo Geral a adotasse, como de fato
adotou sem tangiversações. Entre as diferentes providências apontadas, umas de modo
absoluto e outras, apenas, como elementos subsidiários dos açudes, poucas conseguiram
relativa consistência; foram, como era de esperar, brevemente esquecidas, ficando somente
como elemento de salvação do Ceará, ou melhor, do Nordeste, os açudes grandes
excepcionalmente também pequenos ou médios. Falavase com certa insistência em
reflorestamento, poços profundos, ou artesianos, cisternas e várias outras providências,
algumas das quais dignas de apreço, porém muitas de uma ingenuidade estarrecedora.
Salvo a açudagem e conseqüente irrigação, as demais soluções propostas flutuavam sem
firmeza, assentes num terreno inconsistente, malgrado os esforços de alguns de seus
propugnadores. (SOBRINHO, 1982, p.81).
Nas letras de Sobrinho, pode se perceber o quanto ganhava força o ideal de estruturação
do território sertanejo por meio da ênfase na construção dessas barragens entre os principais meios de
discussão da época. Discurso que era idealizado, sobretudo, por engenheiros politécnicos, que dentre
outros aspectos, defendiam essa inovação técnica como solução visando a garantir a água que faltava
ao sertão para resistência dos longos períodos secos.
É bom lembrar que a prioridade dada a tal medida pelo Governo Federal (e sua fácil
adesão pela opinião pública) se dava em virtude de haver, em princípios do século XX, a crença de
que seria a falta d’àgua nos sertões o principal problema existente no mundo sertanejo. Dessa forma,
percebese que, com a ocorrência periódica das secas, as construções de açudes públicos eram de
certa maneira uma medida natural e conveniente para solucionar esse problema de forma imediata.
Tal fator acaba por evidenciar também o porquê de cada vez mais tal ação ter alcançado forte apoio
frente à opinião pública e oficial.
Os engenheiros politécnicos acreditavam que as implantações dessas obras propiciariam
aos poucos a água necessária às populações sertanejas para uso doméstico, para o gado (leiteiro e de
corte) e para os serviços da lavoura mesmo em períodos de estiagens promovendo uma produção
regular da lavoura com o auxilio da irrigação. Esse evento favoreceria a manutenção de uma
produção, circulação e comercialização regular tanto de produtos de subsistência, quanto a outros de
importância econômica maior para o desenvolvimento do sertão potiguar, caso do algodão seridoense.
Essas medidas, segundo alguns desses técnicos, iriam criar na região seca e árida do
sertão uma espécie de microclima, em uma tentativa de amenizar de forma significativa as
intempéries climáticas sofridas na mesma. Outros chegaram a declarar que havia a possibilidade de,
por meio da evaporação das águas desses açudes, se produzirem nessas zonas algumas precipitações.
Foi então a partir desses ideais dos engenheiros politécnicos e do requerimento popular
por medidas urgentes e mais precisas contra os males das secas que, a partir de princípios do século
XX, se intensificou a construção desses açudes por Comissões de Açudagem e Irrigação. Nos estados
do Ceará e Rio Grande do Norte (principais regiões afetadas pelas secas), essas ações também foram
aos poucos se constituindo como uma das soluções centrais propostas para estruturar esses territórios
para resistirem de forma eficaz aos períodos secos. Segundo Sobrinho:
A ênfase em tais ações se dava basicamente pelo fato de que, com as secas ocorridas entre
os anos de 1877, 1891, 1898, 1900, 1903, 1904, intensas migrações de sertanejos se projetavam em
direção (principalmente) ao meio urbano natalense. Essas, por sua vez, acabaram deixando em
suspenso o vigente processo de modernização urbana tão almejado pelas elites que ali viviam e que
viram esses sertanejos como sendo algo que “enfeava” a estética moderna da cidade idealizada. Com
esses reservatórios, afirmavam os engenheiros, que mesmo em períodos secos, haveria a água para o
gado (o qual permanecendo “gordo”, teria seu preço normal garantido no mercado) e para uso
necessidade e, sobretudo, do algodão, principal fonte econômica existente na região do Seridó no
sertão Norteriograndense.
Outro aspecto importante quanto à implantação dessas obras hidráulicas na busca pela
estruturação desse território, é o fato de esses engenheiros buscarem a fixação desses sertanejos (em
seu local de origem) com o objetivo de resolver o problema da falta de integração nacional existente
no país. Requisito fundamental para que o Brasil viesse a se tornar uma nação moderna dentro dos
padrões ocidentais. O referido processo viase prejudicado, dentre outros fatores, pela migração em
decorrência do fenômeno das secas nos sertões brasileiros, as quais provocavam nessas regiões o
fenômeno de desterritorialização62. Esse desarticulava o espaço geográfico através do despovoamento
das áreas de cultura. Uma vez que essas regiões não desempenhavam bem o seu papel na hierarquia
de produção econômica do país, ficava prejudicada a existência de uma articulação racional do
território brasileiro, no qual todas as regiões deveriam cumprir bem sua função econômica, política e
comércio ditados pelos estados do sul do país. Realidade essencial que ocorria em outros países da
Europa ocidental.
A construção de açudes nos sertões do Ceará e Rio Grande do Norte acabava por manter
em atividade essas zonas de cultura (de forma restrita), mesmo durante as estiagens.
Idealizavam, os engenheiros, que a segurança hídrica garantida pelas barragens a essas
atividades agrícolas, aos poucos promoveria o desenvolvimento sócio econômico dessas regiões. Para
tal, esses técnicos requisitavam que essas medidas saíssem de uma esfera emergencial e
assistencialista. É caso do ilustre engenheiro Aarão Reis, que afirmava a necessidade da construção
desse território “como um meio que fosse transformado e integrado por ações e obras sistemáticas,
planejadas e conduzidas, sobretudo pelos engenheiros.” (AARÃO REIS, 1920).
O açude teria, então, a função de elemento organizador do espaço nordestino na medida
em que não permitia a desocupação do mesmo, contribuindo assim para a formação de uma nação
moderna.
62
Desterritorialização aqui entendida em uma perspectiva geográfica significa a deslocalização das relações sociais de
determinado espaço físico.
Os discursos acabaram por desembocar na institucionalização do processo de intervenção
na região sertaneja por meio da técnica e da ciência (influencia das idéias positivistas da época) com a
criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) em 1909.
Era o início de uma mudança na forma de pensar e agir sobre a problemática das secas.
Tal fato evidenciava um dos pontos da ideologia do planejamento tecnicista e progressista (idéia de
progresso nacional) apregoada pelo governo republicano e absorvida pelas oligarquias nordestinas.
Estas afirmavam a necessidade desses investimentos federais na região norte, para que se cumprisse o
desenvolvimento do país de forma completa, atendendo às necessidades sociais e econômicas de
grande parte da região sul e do norte brasileiras.
Nesse ponto, o objetivo idealizado também pelos engenheiros seria o de, por meio de
inovações técnicas sistemáticas e continuadas, integrarem o território das secas ao centro de
desenvolvimento econômico e social mais dinâmico do país. O sul desenvolvido e em vias de
industrialização. Afirmavam, as elites políticas e econômicas do Norte, ser esse um fator fundamental
para a aceleração do desenvolvimento, sobretudo, econômico da região sul do país. Mais um motivo
para o rápido investimento na construção de açudes públicos no norte do país.
As ações da IOCS, que a posteriori tornarase IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra
as Secas), em 1919, continuariam no decorrer do século XX (mesmo que com obras sistemáticas e de
certa forma continuadas), com um caráter emergencial. Ao findar os períodos de estiagens, as
atividades paravam, sendo retomadas somente com a eclosão de outras secas.
Mesmo assim, a ênfase na construção de açudes, visando a favorecer essa integração do
território das secas, continuava. Continuava também a reivindicação de intelectuais, engenheiros e
ilustres políticos do Norte, como a do Deputado Eloy de Souza, para que a união fornecesse verbas e
tecnologias para a produção de uma infraestrutura básica da região sertaneja:
Criando um patriotismo novo, o de amor à terra, onde cada um de nós nasceu ou elegeu
para a sua, a federação vai assegurando, com a prosperidade de cada um do Estados, a
prosperidade da própria nação, transmudando assim por breve tempo uma desarmonia
aparente na mais perfeita unidade. Não sou dos que pensam que preferências geográficas
tenham deixado os Estados do Norte na situação de inferioridade em que muitos ou quase
todos se encontram, em confronto com seus irmãos do Sul, alguns do quais justamente o
nosso orgulho (...). (ANAIS DA CÂMARA FEDERAL, 28 nov.1906 apud. SILVA, 1978,
p.97).
O discurso de Eloy de Souza busca negar a suposta “inferioridade geográfica de alguns
estados” e justifica a ajuda econômica à região norte, fato que segundo Janice T. da Silva:
(...) Nessa linha de argumentação, o desenvolvimento econômico do Nordeste não é mais
importante em si mesmo, mais por que suas conseqüências reverterão em beneficio da
Federação, tratase, agora de uma transação, de um contrato, que deve responder aos
interesses das duas partes contratantes: a União e ao Nordeste. (SILVA, 1978, p.96).
O referido fato evidencia o porquê de, aos poucos, o ideal dos engenheiros politécnicos de
Governo Republicano.
A integração do território das secas, dentre outras ações, pelas estradas de ferro e pelos
açudes, favoreceria a aceleração do progresso econômico brasileiro que defendiam esses técnicos. A
implantação dos açudes garantiria água para a lavoura, consequentemente promoveria uma migração
ordenada de mãodeobra para os trabalhos nas fazendas do sul, sobretudo cafeeiras, indústrias e
construções públicas dessa região, aspecto necessário ao desenvolvimento da economia. No Oeste
Paulista, as estradas de ferro facilitariam a circulação de bens e pessoas, além do escoamento de
riquezas produzidas na região das secas, facilitando a exportação de produtos que dinamizavam a
economia também da região Nordeste.
Em caso especifico, no sertão do Rio Grande do Norte, engenheiros da IOCS passaram a
estudar, projetar e construir açudes de grande, médio e pequeno porte no período compreendido entre
1909 a 1930, sobretudo nas regiões do Seridó e Oeste Potiguar, regiões que, em princípios do século
XX, apresentavam um significativo crescimento demográfico. Segundo o Governador José Augusto
B. de Medeiros, os dados apresentados pelos recenseamentos realizados de 1900 a 1920 apresentavam
os seguintes números:
Tabela 01 – População do Rio Grande do Norte (1900 a 1920)
Ano População
1900 41.800
1920 85.840
Fonte: AUGUSTO, José. Seridó, 1980.
Esses dados, mesmo que aproximativos, mostram o quanto a população crescia
vertiginosamente, fator que indicava a necessidade urgente de medidas que melhor estruturassem
esses espaços, evitando as fortes migrações em períodos de estiagens. A edificação de açudes se
constituiu como fator fundamental para o cumprimento desse propósito inicial, dado o seu caráter de
elemento “fixo” em meio à produção espacial do território das secas no RN.
Em seu livro “Espaço e Método” (1985), o geógrafo Milton Santos afirma que os avanços
técnicos e produtivos são responsáveis pela dinamização dos elementos “fixos” e “fluxos”, no qual os
primeiros correspondem à fixação do capital sob a forma do desenvolvimento urbano e os segundos à
circulação de bens, pessoas e mercadorias. Esses elementos também constituem estratégias de
função de fixação de potencial humano e, consequentemente a tal ação, a de promover a fixação do
capital (com a garantia da água para uma produção agrícola regular e conseqüente escoamento e
consolidação de uma rede urbana do sertão norteriograndense. Este, uma vez integrado às principais
regiões de produção potiguar, por meio de outras inovações técnicas que garantiriam o escoamento da
riqueza (caso das estradas de ferro), aos poucos teria um desenvolvimento econômico social. José
Augusto B. de Medeiros apresenta de forma sintética os açudes públicos que foram construídos na
região do Seridó na primeira metade do século XX:
Na zona do Seridó, o sertanejo previdente, segundo leio em “O problema da água no
Nordeste”, de Garibaldi Dantas, tinha iniciativa própria e já em 1915 havia construído 710
açudes assim distribuídos:
Município de Currais novos, 52 açudes, fertilizando 500.000 braças
Município de Acari, 82 açudes, fertilizando 781.000 braças
Município de Jardim, 106 açudes, fertilizando 1.000.000 braças
Município de Caicó, 400 açudes, fertilizando 400.000 braças
Município de Serra Negra, 35 açudes, fertilizando 400.000 braças
Total: 710 açudes, fertilizando 7.084.000 braças quadradas. (AUGUSTO, 1980, p.42).
desenvolvimento sócio econômico e urbano dos municípios atendidos por esses reservatórios.
Em dias atuais sabese que a garantia permanente de água por parte desses açudes é
restritiva para outros usos, visto que a irrigação de suas águas não abrange todas as áreas que sofrem
com as secas. Tendo, portanto, alcance restrito às populações residentes em áreas próximas a essas
obras, o favorecimento de grandes proprietários de terras acabava acontecendo. Essa realidade não
permitia um avanço sócioeconômico mais amplo.
Logo, a água como fator de desenvolvimento econômico social para a maioria da
população pobre que vivia da pequena lavoura no campo, como idealizavam os engenheiros
politécnicos da IOCS aqui no RN, não foi possível.
Porém, o crescimento e desenvolvimento da economia seridoense e Oeste Potiguar fora
possível em núcleos urbanos, dentre outros aspectos, pela implantação dessas obras que garantiam a
segurança hídrica a Vilas e pequenas cidades nessas regiões, possibilitando inclusive que algumas
dessas vilas viessem a assumir o posto de cidades, como é o caso da Vila do Príncipe (atual Caicó).
Ora, na ótica do engenheiro, para que tal região se desenvolvesse e se integrasse ao processo de
produção e comercialização regional, era necessário ali o surgimento de uma rede urbana, a qual
implicaria na facilitação da produção, circulação e comercialização de mercadorias dessa área para
outras do país (principalmente da região Sul). Em especial do algodão Mocó, o qual era exportado
para a Europa e concorria no mercado internacional com o algodão egípcio (o Sakelarides), um dos
melhores do mundo na época.
Os açudes então delegavam a água necessária para a produção do algodão, o qual, por sua
vez, tendo garantida a sua produção regular (mesmo em períodos de secas), atendia a demanda
existente no mercado local, regional, nacional e até internacional Sobre tais barragens na região do
Seridó, afirmava José Augusto (...) “e eles, os açudes, prestaram e estão prestando àquelas paragens
imensos benefícios proporcionandolhes consideráveis vantagens econômicas.” (AUGUSTO, 1980, p.
43).
engenheiros, como o engenheiro civil Dr. Flávio Torres de Castro e Guilherme Schnaider, entre
outros, para a realização do exame, elaboração de projeto, descriminação de orçamento e despesas (as
quais apresentavam grande desproporção entre o custo da obra e o orçamento organizado pela
Inspetoria) e execução das mesmas com vistas à reconstrução do açude 25 de Março (no município de
Pau dos Ferros) e também dos açudes Arapuá (Luis Gomes), Pêssoa (São Miguel) e Sacco (Mossoró)
na região do Oeste Potiguar. A população sertaneja e o gado se beneficiavam com abastecimento de
água potável para o consumo diário, pois favorecia a plantação abundante de cana doce, a acumulação
de peixes (os quais abundavam nas enchentes do rio Apody). Sobre a ação da IOCS quanto à
construção de açudes como parte central na política de salvação no Seridó, afirmava José Augusto.:
(...) limitandome ao exame do que ocorre no Seridó, devo declarar que o Departamento de
Obras Contra as Secas examinou ponto por ponto da região, os rios, os seus boqueirões e
fixouse na indicação de vários açudes de tipo médio ou grande que deviam ser
construídos diretamente pelo Governo Federal: o Gargalheira, o Boqueirão, do Seridó, o
Pedra Lavrada, o Zangarelha, o Cruzeta, o Barra do Mainosa, o Itans, o Mundo Novo, o
Sabugi, o Totoró, o Dinamarca etc. Destes já estão construídos e prestam serviços muito
grandes o Mundo Novo, e o Itans, no município de Caicó, o Cruzeta em Acari, e o Totoró
e o Cerro Corá em em Currais Novos, dos quais os de maior vulto são o cruzeta,
construído em 1929, com um volume d’àgua de 29.753.000m³ e o Itans em 1936, com
81.000.000m³. Os outros dois têm represa bem menor o Totoró com 3.941.000m³, o Cerro
Corá, com 1.000.000. Todos, porém, benéficos às regiões. (AUGUSTO, 1980, p.43).
Anteriormente, sem a existência desses açudes, públicos e privados (construídos pela
Comissão de Açudes e Irrigação e pela iniciativa privada no inicio do século XX), os moradores se
retiravam em grandes levas, levando todo o gado para os raros lugares onde existia água, como a
região do alto Amazonas, o Cariry, no Estado do Ceará, para os brejos no estado da Paraíba e para a
capital do estado do Rio Grande do Norte.
A edificação dessas obras hidráulicas junto a pequenas cidades e vilas, do Seridó e Oeste
potiguar, aos poucos permitiu uma produção regular do algodão, açúcar, cera de carnaúba, mandioca,
milho, feijão, sisal, fibras, entre outros produtos que apresentavam significativa importância para a
economia local. Tal inovação técnica permitia a irrigação de áreas de alto potencial produtivo – caso
do açude Gargalheira, em Acari, que irrigava cerca de mil hectares de terras, o Itans, em (Caicó), com
cerca de 2.500 há, e do Santo Antonio de Carnaubal (carnaúbas), na região do Alto Oeste, com 350
ha. Essas ações possibilitavam que essas áreas fossem valorizadas, atraindo investimentos quanto ao
cultivo de fibras, algodão, entre outros produtos, fato que, somado à construção de estradas de ferro
pela IOCS, possibilitou a dinamização da economia local, por meio de um intenso escoamento de
riquezas nessas regiões.
O escoamento da produção favorecido pela ferrovia era possível mesmo em períodos de
estiagem, devido à implantação de açudes públicos nessas áreas. Essas obras, ao permitirem uma
comercializações e consumo de produtos essenciais à sobrevivência e consolidação da economia
local, a qual tinha seu mercado voltado para a exportação (caso da fibra e do comércio do algodão em
especial para a Inglaterra).
comunidades como Acari e Vila do Príncipe63, nas respectivas cidades de Acari e Caicó, em
princípios do século XX.
Logo, os açudes (aliados a sistemas de irrigação) e estradas de ferro nos sertões do RN
possibilitaram condições politicoadministrativas e econômicas para que vilas assumissem a condição
de cidades.
Essa situação favoreceu a consolidação de novas cidades à posição de sedes do poder
administrativo, cerne da vida política e social e de centros irradiadores de produção e comércio dos
socioeconômico nesses novos núcleos urbanos, promovidos pela produção agrícola e abastecimento
do gado leiteiro e de corte, e o respectivo comércio desses. Isso davase mesmo em períodos de
estiagem, garantidos pela segurança hídrica trazida pelos açudes públicos, fato que também
corroborou para a formação de uma rede urbana nas regiões do Seridó e Alto Oeste no estado do Rio
Grande do Norte.
Em linhas gerais, os açudes constituíram elementos de grande importância no escopo das
políticas de planejamento territorial e na visão técnica dos engenheiros. Aos poucos, o ideal desses
técnicos foi em parte sendo realizada no sertão potiguar, visto que com a implantação desses açudes
houve uma fixação significativa do homem sertanejo em sua região e o desenvolvimento das áreas
urbanas atendidas. A contribuição desses açudes culminava com o escoamento da produção permitida
pelas estradas de ferro.
regiões produtivas, como o vale do CearáMirim, o Seridó, a cidade de Macau, expoente salineiro e
63
Em 1845, a divisão políticoadministrativa do território potiguar em 1845 denominava as mesmas como vilas, ainda
não possuindo um status de cidade.
porto de escoamento, e a capital Natal.
A segurança hídrica que esses reservatórios possibilitavam às vilas, como a do Príncipe
(atual Caicó), dentre outras cidades do Oeste potiguar, acabou por colaborar para o desenvolvimento
urbano e econômico dessas regiões pela produção e exportação por meio das ferrovias do algodão e
do gado.
Essas obras de caráter hidráulico acabaram gerando, em linhas gerais, uma melhora
significativa quanto ao bem estar social das populações, tanto do campo, quanto dessas vilas e cidades
do sertão potiguar, promovendo para as últimas um dos elementos fundamentais na existência e
desenvolvimento desse meio urbano, a água.
A construção de açudes no Nordeste pela IOCS, em especifico na região do Seridó
potiguar na busca da formação de um território integrado na região, permitiu a valorização dessas
áreas. Por sua vez, a valorização das áreas favorecidas atraiu investimentos, dinamizando a economia
Observouse, dessa forma, que as medidas da inspetoria deram condições políticoadministrativas e
econômicas para que vilas alçassem a condição de cidades, corroborado, dessa forma, para formação
de uma rede urbana que aos poucos se integrava a esses espaços da economia regional. Os
especifico, foram, dessa forma, de fundamental importância para a construção do território nordestino
no início do século XX.
AS ESTRADAS DE FERRO: A QUESTÃO ECONÔMICA, A INTERLIGAÇÃO DE
ZONAS PRODUTIVAS E A FORMAÇÃO DE UMA REDE URBANA
A ferrovia se caracterizou como elemento de fascínio entre as nações latinoamericanas em
finais do século XIX. No Brasil, havia o interesse econômico e a crença em profundas transformações
produtivas causadas pela sua implantação. Esse imaginário da linha férrea como elemento
transformador, capaz de dinamizar a produção de uma região e mudar hábitos e costumes foi refletido
também no Rio Grande do Norte, impulsionando a construção das primeiras vias no estado a partir do
entusiasmo das elites ligadas à produção açucareira.
Havia de fato uma fé inabalável nas estradas de ferro por parte das administrações no Rio
Grande do Norte. Atribuíase às ferrovias não somente a capacidade de melhorar o
escoamento da produção. Elas também desenvolveriam a produção agrícola, trariam
indústrias, engrandeceriam cidades e até mesmo fariam surgir um espírito empreendedor
nos habitantes das áreas cortadas pelos trilhos (RODRIGUES, 2006, p.92).
A construção da estrada entre Natal e Nova Cruz, depois arrendada pela companhia The
progressista, além de “fortalecer o comércio da capital, ao centralizar em Natal o escoamento da
produção do sul da província” (RODRIGUES, 2006, p. 93). Essa lógica de centralização não
respondia apenas a um anseio das elites locais, mas representava todo um plano nacional de
fortalecimento das capitais, que visava promover o desenvolvimento econômico das mesmas a partir
da otimização de lucros. Apesar do surgimento de novas políticas de planejamento durante a transição
entre os séculos XIX e XX, como redes urbanas mais modernas e menos encefálicas, a tendência
ferroviário (RODRIGUES, 2006).
Partindo desse viés, podese dizer que os planejamentos intraurbano e territorial seguiam
dispositivo de alto impacto territorial, deixaram intervenções no espaço intraurbano.
De acordo com a primeira parte do trabalho (Referenciais teóricos e conceitos básicos), a
análise da mútua influência existente entre rede urbana e rede ferroviária será empreendida de acordo
com a metodologia de Francisco Zorzo (2003), em que dois aspectos primordiais são evidenciados: o
fator comercial e o fator humano. O primeiro referese ao desenvolvimento em termos de infra
estrutura urbana e vidas culturais, ocasionados pela penetração mercantil advinda da expansão
ferroviária e fruto do escoamento da produção das regiões abrangidas e do transporte de mercadorias.
O segundo faz referência ao crescimento populacional da região servida, além do surgimento de
novas centralidades e emancipação. São abrangidos por esse aspecto o movimento de passageiros e de
informação, além da contribuição dada pela construção da EFCRN ao combate dos efeitos das secas
no sertão potiguar.
O FATOR COMERCIAL
Como visto anteriormente, a instalação e expansão da Estrada de Ferro Central do Rio
Grande do Norte obedeceram a uma proposta de favorecimento da capital do Estado, tanto no âmbito
de melhoramentos estéticos e funcionais na estrutura urbana de Natal como, principalmente, para o
âmbito econômico. O traçado estabelecido pelos estudos da “Comissão de Obras Contra as Secas”
tinha o objetivo de interligar diversas regiões produtivas do estado à cidade do Natal, que funcionaria
como porto de escoamento dessa produção. O anseio das elites no sentido de sobrepujar as
dificuldades geográficas impostas e o papel de Natal apenas como centro administrativo são evidentes
nos discursos do início do século XX:
De fato, isolada entre as dunas e o mar, Natal, na opinião de seus intelectuais, precisava de
uma intervenção sobre a natureza, uma intervenção técnica destinada a – para nos
determos na enumeração de duas das mais mencionadas causas da obstrução do seu
progresso – reequipar seu porto, incluindo aí a fixação das dunas próximas, retirando
obstáculos naturais que bloqueavam a entrada de embarcações de maior calado, e ligar por
vias férreas ou estradas carroçáveis a capital aos sertões. (ARRAIS, 2005, p.29).
interiorização no âmbito comercial do Rio Grande do Norte. Essa interiorização se refletiu no
crescente volume de mercadorias transportadas pela linha e na intensificação dos trabalhos de
expansão da mesma. Já no ano de 1908, pouco tempo após o início dos trabalhos de prolongamento
da estrada visando a cidade de Caicó, a linha transportava cerca de 3 mil toneladas de mercadorias de
importação e mais de 2 mil toneladas de exportação. O serviço de informação também foi dinamizado
pela Central, que no mesmo ano foi responsável pelo movimento de mais de 1400 telegramas para as
áreas abrangidas (VIAÇÃO E OBRAS..., 1909).
No ano de 1911, a linha férrea havia se expandido consideravelmente. Contando com
cerca de 56 quilômetros antes dos trabalhos de expansão em 1908, em 1911 a estrada já possuía 100
quilômetros de extensão em tráfego e 99 quilômetros em trabalho de construção. Outras localidades
passaram a ser abrangidas pela rede viária, entre elas Baixa Verde e Cardoso, que nesse ano consistia
o ponto terminal da mesma. Após problemas na execução das obras, que permaneceram paralisadas
durante quatro meses, a concessão da estrada passa para a “Companhia de Viação e Construções”,
que as reinicia até o quilômetro 200 em Angicos, cujo leito encontravase quase totalmente pronto ao
final de 1911.
Para ilustrar o crescimento e o impacto comercial da linha, devese observar que em
1911, depois da expansão física empreendida, foram transportadas mais de 17 mil toneladas de
mercadorias e precisamente 1540 telegramas (VIAÇÃO E OBRAS..., 1911), fato que dinamizou a
especialmente nas estruturas de apoio em detrimento da extensão da linha, que pouco cresceu. É
iniciada a construção de uma série de equipamentos, entre eles o armazém de Baixa Verde e três
galpões na esplanada da capital, bem como a instalação da “Comissão de Melhoramentos de Natal”
na praça Silva Jardim e as obras da estação central, oficinas e almoxarifado na capital.
A ocorrência de mais uma seca é responsável por mais uma interrupção nas obras da
Central, devido à falta de mãodeobra ocasionada pelo êxodo para o Amazonas. Apesar disso, os
estudos de planejamento do traçado LajesCaicó, do ramal LajesMacau e do prolongamento Caicó
Milagres são continuados. É válido salientar que o plano de construção de um ramal interligando o
eixo central da estrada à cidade de Macau é de grande importância econômica para a rede férrea e de
cidades, uma vez que, além de porto de escoamento, a cidade era uma importante produtora de sal
marinho.
No ano de 1915, várias obras do parque ferroviário na esplanada Silva Jardim já haviam
sido concluídas, como as oficinas, a rotunda para máquinas, a ponte de atracação, o almoxarifado, o
avanço, como as obras de construção da ponte sobre o Rio Potengi e outras instalações da praça Silva
Jardim (VIAÇÃO E OBRAS..., 1915). A extensão da linha chegava até a cidade de Lajes, nova
estação terminal, um trecho de aproximadamente cento e vinte quilômetros. As obras de expansão
continuavam por diversas ligações, como Pedra PretaLajes, LajesCaicó e o ramal de Macau.
Nesse ano, há também a mudança do traçado anteriormente proposto, o que ocasionou o
abandono de quarenta e seis quilômetros em adiantada construção em direção a Angicos, que faria a
ultrapassadas, uma vez que a escavação teria de ser feita na rocha. No entanto, podese formular a
hipótese de influência política na alteração do traçado, uma vez que o trecho abandonado encontrava
se em vias de conclusão.
dormentes, deixando cerca de 12 quilômetros com serviço incompleto, e as dificuldades no transporte
de água para os funcionários, provinda da lagoa de Extremoz, tendo que percorrer uma distância de
cento e noventa quilômetros. Apesar dos problemas encontrados, a estrada continuava com um fluxo
intenso de mercadorias e passageiros, apresentando um crescente aumento de receita e tarifas 40%
mais baratas em comparação com as da companhia Great Western, que administrava a linha entre
Natal e Nova Cruz (ver figura 05).
Em virtude dos maus serviços prestados pela “Companhia de Viação e Construções”, em
julho de 1920 o contrato é rescindido e a estrada passa para a administração direta do Governo
Federal, através do decreto n. 14.136 (VIAÇÃO E OBRAS..., 1920). A linha é recebida em estado
pouco satisfatório e a rescisão do contrato ocasionou uma série de indenizações que causaram um
considerável aumento das despesas e conseqüentemente do déficit naquele ano. Em 1921, a extensão
em tráfego não cresceu, apresentando os mesmos 147 quilômetros registrados em 1919. Ainda como
conseqüência das despesas do ano anterior, o déficit mantevese estável. Apesar disso, a Estrada de
Ferro Central do Rio Grande do Norte representava um importante dispositivo de circulação para o
estado e especialmente para as cidades interligadas e suas economias. Como exemplo disso, basta
toneladas, sendo os dois produtos mais transportados o algodão, com seis mil e trezentas toneladas,
investimentos na estrutura física continuaram sendo substituídos por mais de vinte mil dormentes e
estabelecido em 1905 pela comissão chefiada pelo engenheiro Sampaio Correia, que visava o
contorno da Serra da Borborema, acompanhando o Rio PiranhasAssú. As obras do ramal de Macau
continuam paralisadas nesse ano.
A extensão em tráfego de 1923 passa a ser de 176 quilômetros, uma vez que o trecho de
27 quilômetros já construídos do ramal de Macau começa a funcionar, passando pela estação Epitácio
Pessoa até o povoado de Carapebas (VIAÇÃO E OBRAS..., 1923). Um fato importante é de que,
tanto em 1923 como em 1924, a Central apresentou saldo positivo entre sua receita e seus gastos,
diferentemente dos anos anteriores. No ano de 1925, apesar dos resultados financeiros dos anos que o
precederam, os investimentos na linha se tornam consideravelmente difíceis, uma vez que apenas
26% dos dormentes encontravamse em bom estado, sendo necessária a substituição de mais de cem
mil, o que só seria possível através de verbas extraordinárias. Além disso, a construção de estradas de
Novos, CaicóJardim, Currais NovosAcari e JardinsParelhas (VIAÇÃO E OBRAS..., 1925).
O FATOR HUMANO
Podese citar como hipótese o crescimento populacional da região servida, além da
emancipação de várias localidades a partir da inserção da EFCRN. Apesar do aumento da população
dos núcleos interligados permanecer no campo da hipótese, uma vez que não foram encontrados
dados empíricos em relação a essa questão, podese afirmar, com base em informações coletadas nos
RMVOP, que os impactos causados no âmbito comercial, explicitados no item “Fator Comercial”,
tiveram como conseqüência a dinamização do fator humano. Esse fator corresponde ao transporte de
passageiros, informação e mercadorias, que cresceu proporcionalmente à expansão da linha, gerando
melhora na infraestrutura básica das cidades abrangidas. Para se ter uma idéia do crescimento, basta
dizer que em 1909 a linha transportou cerca de 13 mil passageiros e, em 1914, cerca de 34 mil. O
crescimento físico também foi evidente, visto que em 1915 a estrada já havia superado o dobro da
quilometragem de 1908.
Para melhor ilustração da dinâmica empreendida pela linha férrea, elaboramos um quadro
em que é discriminado o número de passageiros transportados no período abordado pelo recorte do
trabalho. Esse quadro foi construído a partir de dados colhidos nos Relatórios do Ministério de Viação
e Obras Públicas.
Quadro 01 – Número de passageiros e mercadorias transportados pela EFCRN entre 1908 e 1922.
Ano Passageiros Mercadorias (tons.)
1908 12.214 6.636,771
1909 13.624 7.818,835
1910 17.804 11.096,764
1911 26.585 17.453,270
1913 30.934 6.647,000
1914 34.871 6.639,000
1921 51.834 25.686,930
1922 59.329 39.136,183
Fonte: Relatórios do Ministério de Viação e Obras Púbicas Observação: Elaborado pelo autor.
Destarte, os aspectos evidenciados encontramse em concordância com Zorzo (2003), a
partir da análise de mútua influência existente entre rede urbana e rede ferroviária, uma vez que
houve uma alteração nas dinâmicas do aspecto humano, com o aumento do número de passageiros
conseqüentemente da infraestrutura urbana.
Um fator que reforça ainda mais a importância da Estrada de Ferro Central como
elemento de integração e conseqüentemente de formação de uma rede urbana, é que mesmo com um
déficit crescente, as obras e a circulação continuaram em expansão nos anos seguintes. Como
ilustração desse crescente déficit entre receita e despesas, que só não aconteceu nos anos de 1923 e
1924, podemos citar, com base em dados presentes nos RMVOP, que em 1910 o seu valor era de
109:575$112 (Cento e nove contos, quinhentos e setenta e cinco mil e cento e doze réis), chegando a
atingir picos de 297:539$182 (Duzentos e noventa e sete contos, quinhentos e trinta e nove mil e
cento e oitenta e dois réis) em 1920.
Como no estudo de Francisco A. Zorzo, no Rio Grande do Norte a implantação de vias
férreas também obedeceu a uma conformação territorial construída historicamente. Essa estrutura é
dependente de uma série de dispositivos de poder do território. No estudo da ferrovia como elemento
conectivo e determinante na formação de uma rede urbana, as vias terrestres constituem o principal
dispositivo histórico de poder. Através delas é que são impostas diferentes funcionalidades, gerando a
diferenciação e conseqüentemente a hierarquia urbana.
A rede ferroviária, assim como a rede formada pelas antigas vias carroçáveis, exerce o
mesmo papel de divisão fundiária, circulação de riquezas e escoamento da produção, sobretudo
agrícola. A sua diferença reside no fato de que ela originou uma nova dinâmica desse processo, tanto
em relação ao volume, como em eficiência e rapidez. No Rio Grande do Norte, a Estrada de Ferro
Central exerceu significativamente esse papel. A sua ação foi incisiva na formação de uma complexa
rede urbana a partir da ligação de diferentes potencialidades, tais como a região do vale do Ceará
Mirim, com a produção de canadeaçúcar, a região do Seridó, com sua produção algodoeira e de
cereais, a cidade de Macau, expoente salineiro e porto de escoamento, e a cidade de Natal, centro
administrativo, comercial e portuário.
implantação da Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte. O aspecto econômico, ligado ao
estrutura urbana, uma vez que era responsável pela circulação de bens, capitais e informação,
condicionantes de uma dinamização comercial nas regiões abrangidas, além de garantir a cristalização
de uma malha urbana conectada pela ferrovia.
O aspecto humano também foi alvo de intervenções graças à implantação da via férrea.
como por exemplo, Taipu, que, apesar de se constituir município ainda no século XIX, apenas veio a
se sobressair através do dinamismo imposto pela Central. Dois fatores relevantes e que merecem ser
expansão física da estrada, gerando assim a disponibilidade de potencial humano, especialmente no
tocante à mãodeobra e às ações contra a seca, a partir do emprego de mãodeobra flagelada em seu
prolongamento e através do transporte de víveres e material para as obras contra o flagelo.
formação de uma rede urbana, podemos afirmar que a Estrada de Ferro Central do Rio Grande do
Norte gerou uma melhora significativa no grau de desenvolvimento urbano das cidades abrangidas
por ela.
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ESPAÇO E HISTÓRIA – REFLEXÕES SOBRE UMA RELAÇÃO FUNDAMENTAL
Autor: José D’Assunção Barros Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense,
jose.assun@globo.com, Professor da Universidade Severino Sombra.
RESUMO
Este artigo busca esclarecer e discutir as relações entre “espaço”, “tempo” e
História. A ênfase é dirigida para as várias modalidades historiográficas para as
quais adquirem uma significativa centralidade conceitos como o de espaço,
região e território. A História Regional, A GeoHistória, e as relações
interdisciplinares entre História e Geografia são especialmente enfatizadas.
Palavraschave: Espaço, Região; GeoHistória.
ABSTRACT
This article attempts to clarify and discuss the relations between space, time
and History. The emphasis is in the various historiographic modalities of
History for which ones the concepts of space, region, and territoriality have a
significant centrality. The Regional History, the GeoHistory, and the
interdisciplinary relations between History and Geography are specially
emphasized.
Key Words: Space, Region; GeoHistory.
ESPAÇO E HISTÓRIA – REFLEXÕES SOBRE UMA RELAÇÃO FUNDAMENTAL
Espaço e História, nos dias de hoje já é quase um lugarcomum afirmar, entretecem uma
relação tão importante como Tempo e História. Se não existe História que não esteja firmemente
ancorada em um conceito bem estabelecido de temporalidade, em certa forma de perceber e dar a
perceber o tempo e a sua concretização na vida social e nos processos históricos através dos quais o
mundo se transforma constantemente, também a noção de Espaço é já dimensão inseparável dos
modos de compreensão do historiador acerca das sociedades que examina. Pode mesmo se dar, como
veremos adiante, que esse Espaço não seja necessariamente geográfico, físico, material – embora isso
freqüentemente ocorra – mas uma modalidade de espaço, ainda que seja um espaço social,
imaginário, ou mesmo literário ou virtual, é naturalmente uma dimensão inseparável do compreender
e do fazer histórico.
É verdade que definir a História através de sua relação com o Tempo foi uma
preocupação anterior dos historiadores, e nesse sentido podese lembrar que já se disse que “a
História é o estudo do homem no Tempo”. A definição foi proposta por Marc Bloch por volta de
meados do século XX64, mas hoje parece tão óbvia que já deve ter sido mencionada inúmeras vezes
em obras de historiografia e certamente na maioria dos manuais de História. No entanto, quando Marc
Bloch a propôs, estava confrontando essa definição a uma outra que também parecera perfeitamente
óbvia aos historiadores do século XIX: “a História é o estudo do Passado Humano”.
64
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.55.
sintomática, e assinala um momento no século XIX em que a história passa a ser considerada uma
Ciência – uma ciência interpretativa, com seus métodos próprios e abordagens teóricas, e que deve se
processar sob o métier de um novo tipo de estudioso e especialista que é o Historiador (no sentido
acadêmico). O Historiador – no sentido moderno, e não no antigo – era esta figura de conhecimento
que, no século XVIII, estivera ainda inserida embrionariamente dentro da polivalência do Filósofo de
tipo iluminista como uma de suas inúmeras facetas (Voltaire, David Hume, Montesquieu e muitos
outros filósofos escreveram eventualmente obras de História, ao mesmo tempo em que elaboravam
ensaios voltados para a reflexão metafísica, para a estética, para a política ou para a epistemologia).
Antes de se tornar “estudo”, a História fora muitas coisas, inclusive algo que – de maneira
igualmente óbvia para os homens de outro tempo – definirase como o “registro do Passado
Humano”. A passagem do mero “registro” ao “estudo” é , como se disse, particularmente sintomática;
mas por hora retornemos ao que há de propriamente distintivo em definir a História como “estudo do
Passado Humano” ou como “Estudo do Homem no Tempo”.
Quando se diz que “a História é o estudo do homem no tempo”, rompese com a idéia de
que a História deve examinar apenas e necessariamente o Passado. O que ela estuda na verdade são as
ações e transformações humanas (ou permanências) que se desenvolvem ou se estabelecem em um
determinado período de tempo, mais longo ou mais curto. Temse aqui o estudo de certos processos
que se referem à vida humana numa diacronia – isto é, no decurso de uma passagem pelo tempo – ou
que se relacionam de outras maneiras, mas sempre muito intensamente, com uma idéia de
‘temporalidade’ que se torna central nesse tipo de estudo. Vista dessa maneira a partir da terceira
década do século XX, a História expandiase extraordinariamente no campo das Ciências Humanas.
Com essa nova redefinição – constantemente confirmada por uma considerável e progressiva
variedade de novos objetos e subespecialidades – a História assenhoravase, por exemplo, do mais
recente de seus domínios: o Tempo Presente. Estudar o momento presente, com vistas a perceber
como esse momento presente é afetado por certos processos que se desenvolvem na passagem do
tempo, ou como a temporalidade afeta de diversos modos a vida presente – incluindo aí as
temporalidades imaginárias da Memória ou da Ficção – passava a ser também uma das tarefas do
Historiador.
irredutível, deve incluir ainda uma outra coordenada para além do “homem” e do “tempo”. Na
verdade, a História é mais precisamente o estudo do Homem no Tempo e no Espaço e é sobre esta
última relação, na verdade igualmente primordial, que iremos refletir a seguir. De fato, as ações e
transformações que afetam aquela vida humana que pode ser historicamente considerada dãose em
um espaço que muitas vezes é um espaço geográfico ou político, e que, sobretudo, sempre e
necessariamente constituirseá em espaço social. Mas com as expansões dos domínios históricos que
começaram a se verificar no último século, esse Espaço também pode ser perfeitamente um “espaço
momento que não deve estar muito distante os historiadores estarão também estudando o “espaço
virtual”, produzido através da comunicação virtual ou da tecnologia artificial. Pode se dar que, em um
futuro próximo, ouçamos falar em uma modalidade de História Virtual na qual poderão ser
examinadas as relações que se estabelecem nos espaços sociais artificialmente criados nos chats da
espaço de comunicação quase instantânea dos correios eletrônicos – essas são futuras fontes históricas
com as quais também terão de lidar os historiadores do futuro. Mas, por hora, consideraremos apenas
o Espaço nos seus sentidos tradicionais: como lugar que se estabelece na materialidade física, como
campo que é gerado através das relações sociais ou como realidade que se vê estabelecida
imaginariamente em resposta aos dois fatores anteriores.
Tão logo se deu conta da importância de entender o seu ofício como a Ciência que estuda
o homem no tempo e no espaço – e essa percepção também se dá de maneira cada vez mais clara e
articulada em meio às revoluções historiográficas do século XX – os historiadores perceberam a
necessidade de intensificar sua interdisciplinaridade com outros campos do conhecimento. Emergiu
estuda o espaço físico – e, se considerarmos outras formas de espaço como o “espaço imaginário” e o
Crítica Literária, com a Semiótica e com tantas outras disciplinas que ofereceram novas
possibilidades de métodos e técnicas aos historiadores. Na verdade, a noção de espacialidade foi se
alargando com o desenvolvimento da historiografia do século XX: do espaço físico ao espaço social,
político e imaginário e daí até a noção do espaço como “campo de forças” que pode inclusive reger a
compreensão das práticas discursivas. Neste momento, contudo, iremos nos concentrar nas noções de
espaço que surgem a partir da interdisciplinaridade com a Geografia.
aspectos, através de conceitos como “espaço”, “território”, “região” e é sobre eles que passaremos a
refletir nas próximas linhas. Em uma de suas instâncias mais primárias, o espaço pode ser abordado
como uma área indeterminada que existe previamente na materialidade física (e, neste caso, ainda não
estaremos considerando as noções de “espaço social”, de “espaço imaginário” e de “espaço literário”
que já foram mencionadas). Foi a partir dessa noção fundadora que, na Geografia tradicional,
começaram a emergir outras categorias como a de “paisagem”, de “território” e de “Região” – noções
de que logo os historiadores começariam a se apropriar para seus próprios fins.
Grosso modo, uma região é uma unidade definível no espaço, que se caracteriza por uma
relativa homogeneidade interna com relação a certos critérios. Os elementos internos que dão uma
identidade à região (e que só se tornam perceptíveis quando estabelecemos critérios que favoreçam a
sua percepção) não são necessariamente estáticos. Daí que a região também pode ter sua identidade
delimitada e definida com base no fato de que nela pode ser percebido certo padrão de interrelações
entre elementos dentro dos seus limites. Vale dizer, a região também pode ser compreendida como
um sistema de movimento interno. Por outro lado, além de ser uma porção do espaço organizada de
acordo com um determinado sistema ou identificada através de um padrão, a região quase sempre se
insere ou pode se ver inserida em um conjunto mais vasto.
Essa noção mais ampla de região – como unidade que apresenta uma lógica interna ou um
padrão que a singulariza e que, ao mesmo tempo, pode ser vista como unidade a ser inserida ou
Conforme os critérios que estejam sustentando nosso esforço de aproximação da realidade, vão
regiões mais definidas. Posso estabelecer critérios econômicos – relativos à produção, circulação ou
consumo – para definir uma região ou dividir uma espacialidade mais vasta em diversas regiões.
Posso preferir critérios culturais – considerar uma região lingüística ou um território sobre o qual são
perceptíveis certas práticas culturais que o singularizam, certos modos de vida e padrões de
comportamento nas pessoas que o habitam. Posso me orientar por critérios geológicos – e estabelecer
em um espaço mais vasto as divisões que se referem aos tipos de minerais e solos que predominam
em uma área ou outra – ou posso ainda considerar zonas climáticas. A Geografia, como é de se
esperar, privilegia certos critérios: muito habitualmente lança luz sobre certos aspectos que se
relacionam com a materialidade física, e pode ou não relacionar estes aspectos a outros de ordem
cultural (como é o caso, de modo geral, da Geografia Humana).
Uma noção importante a ser considerada aqui, antes de examinarmos como a História
pode se beneficiar da abordagem geográfica, é a de “paisagem”. Para a Geografia, uma paisagem é
uma associação típica de características geográficas concretas que se dão numa região – ou numa
extensão específica do espaço físico – e constitui um determinado padrão visual que se forma a partir
dessas características que a singularizam (pensemos na paisagem de um Deserto, de uma Floresta, ou
de uma Cidade). Podemos falar de uma “paisagem natural”, mas também de uma “paisagem cultural”
– essa última dando a perceber as interferências do homem que acabam por imprimirse na fisionomia
de um determinado espaço, conferindolhe uma nova singularidade.
Uma paisagem geográfica, dessa maneira, surge em decorrência da repetição – em uma
determinada superfície ou espaço – de certos elementos produzidos por combinações de formas e que,
conforme já foi dito, tanto podem ser físiconaturais como humanos. A paisagem pode coincidir com
uma “região natural” – conceito que definiremos a seguir – ou pode ser derivada de um padrão cuja
singularidade associase a um tipo de ocupação agrícola ou organização humana do espaço. Para
esses últimos casos, um campo de trigo ou uma cidade de alta densidade demográfica podem ser
apontados como exemplos de paisagens que têm elaboradas culturalmente as suas materialidades
físicas; e a multidiversificada vegetação que recobre uma floresta virgem ou a vasta extensão de areia
que constitui um deserto inóspito podem ser indicados como exemplos de paisagens que coincidem
com “regiões naturais”.
A paisagem, esse padrão de visualidade que se mostra ao homem no seu estado de
percepção mais espontânea, foi, por motivos óbvios, o primeiro grande aspecto a ser considerado pelo
conhecimento geográfico no seu esforço de compreensão do mundo. Aliada ou não à percepção mais
imediata de uma determinada paisagem, a noção de “região natural” cedo se constituiu em outra das
mais primordiais noções geográficas e baseiase francamente no papel desempenhado por certos
elementos físicos na organização do espaço. Podese considerar, nesse caso, uma bacia hidrográfica,
um conjunto afetado por um tipo de clima, ou uma montanha – e, a partir deste ou daquele fato
natural que assume uma centralidade na percepção ou análise, é estabelecida em seguida uma rede de
naturais” são as vastas e impenetráveis florestas que ainda resistem em muitas partes do globo às
ações depredatórias do homem, ou a inóspita caatinga da qual a vida humana ocupa apenas os
interstícios.
Esses e alguns outros são os espaços gerados pela materialidade física do mundo e pela
Natureza, com nenhuma ou pouca participação do homem. A Montanha ou os rios impõem os seus
limites e caminhos, uma zona climática dita suas regras. Por outro lado, ocorre também que a Política
– aqui referida à vasta complexidade de estruturas de poder que estabelecem limites e centros de
organização que terminam por reordenar o espaço e a materialidade de múltiplas maneiras – também
produz a sua própria espacialidade. Na superfície do globo terrestre, formamse nações e dentro delas
estados, províncias, unidades administrativas, comarcas, cidades. Todas essas divisões foram criadas
pelo homem e acabam por se superporem de um modo ou de outro às divisões impostas naturalmente
ou também por interagir com as paisagens que podem ser percebidas de diversas maneiras. Dessa
maneira, os aspectos físicos e os aspectos políticos geralmente combinados de alguma forma –
terminam por serem aqueles que vêm à tona mais espontaneamente quando se pensa em considerar a
espacialidade. Mas, como sempre frisamos, esses aspectos podem não ser os mais importantes em
função de uma determinada análise da realidade a ser empreendida, seja esta uma análise histórica,
geográfica, sociológica ou antropológica. Voltaremos a essa questão oportunamente.
objetos históricos a serem examinados – colocar em um mesmo nível as noções de tempo e espaço,
logo começaram a dialogar com conceitos mais tradicionais da Geografia, como aqueles que atrás
explicitamos. Uma das primeiras escolas geográficas a terem merecido a atenção dos historiadores de
novo tipo e, mais particularmente, da historiografia original e derivada da Escola dos Annales, foi a
historiadores desde 190565. É a contribuição desse geógrafo com relação às noções de “espaço” e de
65
Vidal de la Blache contribuiu para a História da França de Ernest Lavisse com um primeiro volume intitulado
Tableau de la geographie de la France (Paris: Éditions de la Table Ronde, 1903).
“região” que veremos em diversas obras de Lucien Febvre e, mais tarde, no Mediterrâneo de
Fernando Braudel. É também um modelo derivado de Vidal La Blache que veremos nas várias
monografias de “história local”, que começam a ser produzidas em quantidade nos anos 1950.
geográfica alemã que se constituía em torno de Ratzel. Enquanto este era francamente determinista,
atribuindo uma influência quase linear do meio sobre o destino humano, Vidal de La Blache
trabalhava mais propriamente com a idéia de um “possibilismo geográfico”. Isso significa que, ainda
que colocando o meio geográfico no centro da análise da vida humana, Vidal de La Blache buscava
enfatizar as diversas possibilidades de respostas que podiam ser colocadas pelos seres humanos diante
dos desafios do meio. Para além disso, tinhase aqui uma geografia cujas noções essenciais eram
constituídas a partir dos conceitos da Biologia. A moldura na qual se enquadrava a vida humana não
era tanto a Terra como teatro de operações no qual intervinham os diversos fatores físicos, como o
clima e a base geológica, mas a Terra enquanto matéria viva, coberta de vegetação e variedade
animal, formadora de ambientes ecológicos e de possibilidades vitais.
As primeiras aplicações das concepções espaciais derivadas da escola geográfica de Vidal
de La Blache apareceriam nas novas obras historiográficas que enfrentaram o desafio de estudar as
macroespacialidades. Lucien Febvre já havia se valido francamente da concepção espacial de La
Blache para começar a pensar as relações entre o meio físico e a sociedade. O resultado dessa reflexão
primeiro a aplicar essas noções a um objeto historiográfico mais específico e de maior magnitude. O
Mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Felipe II (1945) – obra que se celebrizou por
entremear para um mesmo objeto o exame de três temporalidades distintas (a longa, a média e a curta
duração), cada qual com seu ritmo próprio – traz precisamente no primeiro volume, dedicado ao
estudo de uma longa duração em que tudo se transforma muito lentamente, um paradigma que
marcaria toda uma geração de historiadores: a idéia de estabelecer como ponto de partida da análise
historiográfica o espaço geográfico.
Nessa obra de Braudel, como em Vidal de La Blache, o “meio” e o “espaço” são noções
perfeitamente equivalentes. Oscilando entre a idéia de que o meio determina o homem, e a de que os
66
FEBVRE, Lucien. La terre et la evolution humaine. Paris: Albin Michel, 1922.
homens instalamse no meio natural transformandoo de modo a convertêlo na principal base de sua
vida social, Braudel termina por associar intimamente a “civilização” e a “macroespacialidade”. Em
Mediterrâneo ele afirma que, “uma civilização é, na base, um espaço trabalhado, organizado pelos
homens e pela história” e, em A Civilização Material do Capitalismo (1960), ele reitera essa relação
sob a forma de uma indagação: “o que é uma civilização senão a antiga instalação de uma certa
humanidade em um certo espaço?”.67 Essa relação íntima entre a sociedade e o meio geográfico (no
historiográfica: a GeoHistória.
A GeoHistória introduz a geografia como grade de leitura para a história68 e, ao trazer o
espaço para primeiro plano e não mais tratálo como mero teatro de operações – e sim como o próprio
sujeito da História –, possibilita o exame da longa duração, essa história quase imóvel que se
desenrola sobre uma estrutura onde os elementos climáticos, geológicos, vegetais e animais
encontramse em um ambiente de equilíbrio dentro do qual se instala o homem. Rigorosamente
Mediterrâneo e sim com a idéia de um “possibilismo” inspirado precisamente na geografia de Vidal
de La Blache. Afora isso, o empreendimento a que o historiador francês se propõe nessa obra
paradigmática é o de realizar uma “espacialização da temporalidade” e, mais tarde, ele aprimorará
também uma “espacialização da economia”, chegando ao conceito de “economiasmundo” que já se
encontra perfeitamente elaborado e sustentado em exemplos históricos com A Civilização Material
do Capitalismo.
O objeto do primeiro volume de O Mediterrâneo – que representa a grande originalidade
dessa obra dividida em três partes que se referem a cada uma das três temporalidades que marcam os
ritmos da história – é a relação entre o Homem e o Espaço. É essa relação que ele pretende recuperar
através de “uma história quase imóvel ... uma história lenta a desenvolverse e a transformarse, feita
muito freqüentemente de retornos insistentes, de ciclos sem fim recomeçados”69. A interação entre o
Homem e o Espaço, as suas simbioses e estranhamentos, as limitações de um diante do outro, tudo
67
(1) BRAUDEL, Fernando. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris : 1966, p.107
(original : 1949). (2) BRAUDEL, Fernando. Civilisation matérielle et capitalisme. Paris : 1967, p.95.
68
DOSSE, François. A História em Migalhas. São Paulo: Editora Ensaio, 1994, p.136.
69
BRAUDEL, Fernando. Écrits sur l’Histoire. Paris: Flammarion, 1969, p.11.
isso não constitui propriamente a moldura do quadro que Braudel pretende examinar, mas o próprio
quadro em si mesmo. Eis aqui o primeiro ato desse monumental ensaio historiográfico e é sobre esta
história quaseimóvel de longa duração – a temporalidade espacializada em que o tempo infiltrase no
solo a ponto de quase desaparecer – que se erguerá o segundo ato, a “média duração” que rege os
abrange desde os sistemas econômicos até as hegemonias políticas, os estados e sociedades. Tratase
de uma história de ritmos seculares, não mais milenares e, depois dela, surgirá o último andar – a
espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas”.70
É fácil perceber como o sujeito da história, nas duas obras monumentais de Braudel,
transferese do homem propriamente dito para realidades que lhe são muito superiores: o “Espaço”,
no Mediterrâneo; e a “Vida Material”, na Civilização Material do Capitalismo. São esses grandes
sujeitos históricos que abrem o campo de possibilismos para as subseqüentes histórias dos
“movimentos coletivos” e dos “indivíduos”. Tal como observa Peter Burke em uma sintética mas
lúcida análise de O Mediterrâneo, um dos objetivos centrais de Braudel nessa obra é mostrar que
tanto a história dos acontecimentos como a história das tendências gerais não podem ser
compreendidas sem as características geográficas que as informam e que, de resto, têm a sua própria
história longa:
O capítulo sobre as montanhas, por exemplo, discute a cultura e a sociedade
das regiões montanhosas, o conservadorismo dos montanheses, as barreiras
socioculturais que separam os homens da montanha dos homens da planície, e
a necessidade de muitos jovens montanheses emigrarem, tornandose
mercenários.71
O Mediterrâneo e Felipe II, enfim, é a insuperável obra prima em que Braudel pretendeu
demonstrar que o tempo avança com diferenças velocidades, em uma espécie de polifonia na qual a
parte mais grave coincide com a história quase imóvel do Espaço e onde temporalidade e
70
BRAUDEL, Fernando. On History. Chicago: University of Chicago Press, 1980, p.21.
71
BURKE, Peter. A Escola dos Annales. São Paulo: UNESP, 1991, p.50.
espacialidade praticamente se convertem uma à outra. Paradoxalmente, apesar de ter sido o primeiro a
propor uma “história quase imóvel” como um dos níveis de análise, outra grande contribuição de O
Mediterrâneo foi a de mostrar que tudo está sujeito a mudanças, ainda que lentas, o que inclui o
grande Mar era muito maior no século XVI do que nos dias de hoje, pelo simples fato de que o
transporte e a comunicação eram muito mais demorados naquele período72. Com isso, percebese que
a espacialidade dilatase ou comprimese no tempo conforme consideremos um período ou outro nos
quais se contraponham diferentes possibilidades dos homens movimentaremse no espaço. Mais uma
vez, homem, espaço e tempo aparecem como três fatores indissociáveis.
Se o Espaço está sujeito aos ditames do Tempo, por outro lado a Temporalidade também
está sujeita aos ditames do Espaço e do meio geográfico. Apenas para dar um exemplo assinalado por
François Dosse, o mesmo Mediterrâneo de Braudel também mostranos um mundo dicotomicamente
dividido em estações: enquanto o verão autoriza o tempo da guerra, o inverno anuncia a estação da
trégua – uma vez que “o mar revolto não permite mais aos grandes comboios militares se
insensatos, mas também o tempo das negociações e das resoluções pacíficas”73. Dessa maneira o
Clima (um aspecto físico do meio geográfico) reconfigura o Espaço e este redefine o ritmo de tempos
em que se desenrolam as ações humanas. Espaço, Tempo e Homem.
A obra de Fernando Braudel também nos permite iniciar outra reflexão que retomaremos
mais adiante e que se refere à consideração de uma diferença fundamental entre “duração” e “recorte
de tempo”. Braudel ousou estudar o “grande espaço” no “tempo longo”. Quando falamos em “tempo
longo”, referimonos a uma “duração” – ou antes: a um determinado “ritmo de duração”. O tempo
longo é o tempo que se alonga, o tempo que parece passar mais lentamente. Não devemos confundir
recorte deste trecho da História de que ele se vale para orquestrar polifonicamente as três durações
distintas – é o reinado de Felipe II. Braudel não estudou nessa obra um “recorte temporal estendido”.
72
Conforme ressalta Braudel, “cruzar o Mediterrâneo de norte a sul levava de uma a duas semanas”, enquanto
atravessálo de leste a oeste podia consumir “dois ou três meses” (BRAUDEL, Fernando. La Méditerranée ...,
op.cit., p.363).
73
DOSSE, François. A História em Migalhas. op.cit., p.140.
Ele estudou um recorte tradicional, que cabe em uma ou duas gerações e que coincide com a duração
de um reinado, mas examinando através desse recorte a passagem do tempo em três ritmos diferentes.
extenso ou estendido. Dito de outra forma, o ritmo de tempo que o historiador sintoniza em sua
análise de uma determinada realidade históricosocial nada tem a ver com o “recorte temporal
historiográfico” escolhido pelo historiador.
Com relação ao seu recorte espacial, Fernando Braudel havia considerado que o
Mediterrâneo possuía, sob certos aspectos, uma unidade que transcendia as unidades nacionais que se
agrupavam em torno do grande “mar interior” e que ultrapassava a polarização política entre os dois
grandes impérios da época: o Espanhol e o Turco. Por outro lado, o historiador francês precisou lidar
com a “unidade na diversidade” e descreve dezenas de regiões autônomas cujos ritmos convergem
para um ritmo supralocal. O mundo mediterrânico que ele descreve é constituído por um grande
complexo de ambientes – mares, ilhas, montanhas, planície e desertos – e que se vê partilhado em
uma pluralidade de regiões a terem sua heterogeneidade decifrada antes de ser possível propor a
homogeneidade maior ditada pelo tipo de vida sugerido pelo grande Mar. Esse foi o desafio
enfrentado por Braudel.
historiadores trouxeram também a possibilidade de uma nova tendência que abordaria o “pequeno
“História Local”. Também aqui a contribuição da Geografia derivada de Vidal de La Blache destaca
sentidos dotados de uma homogeneidade bem maior do que os macroespaços que haviam sido
localizadas, fragmentos de uma comunidade nacional mais ampla. A História Local nascia, aliás,
como possibilidade de confirmar ou corrigir as grandes formulações que haviam sido propostas ao
nível das histórias nacionais. A História Local – ou História Regional, como passaria a ser chamada
com um sentido um pouco mais específico – surgia precisamente como a possibilidade de oferecer
uma iluminação em detalhe de grandes questões econômicas, políticas, sociais e culturais que até
então haviam sido examinadas no âmbito das dimensões nacionais.
O modelo de compreensão do Espaço proposto pela escola de Vidal La Blache funcionou
adequadamente para diversos estudos associados a essa historiografia européia dos anos 1950 que
lidava com aquilo que Pierre Goubert – um dos grandes nomes da “História Local” – chamava de
“unidade provincial comum” e que ele associava a unidades “tal como um country inglês, um
espaço escolhido pelo historiador coincidia de modo geral com uma unidade administrativa e muitas
práticas agrícolas. Também se tratava habitualmente de zonas mais ou menos estáveis – bem ao
contrário do que ocorria em países como os da América Latina durante o período colonial, onde
tipicamente européia em certos recortes temporais – que não coincide com a de outras áreas do
planeta e para todos os períodos históricos – permitiu que fosse aproveitado por aqueles historiadores
que começavam a desenvolver estudos regionais, cobrindo todo o Antigo Regime, um modelo em que
o espaço podia ser investigado e apresentado previamente pelo historiador, como uma espécie de
moldura onde os acontecimentos, práticas e processos sociais se desenrolavam. Freqüentemente, e até
os anos 1960, as monografias derivadas da chamada Escola dos Annales apresentavam previamente a
possibilidade de esse modelo funcionar, naturalmente, dependia muito do objeto que se tinha em
vista, para além dos padrões da espacialidade européia nos períodos considerados.
A crítica que depois se fez a esse modelo onde o espaço era como que dado previamente
– tal como aparecia nas propostas derivadas da escola de Vidal de La Blache – é que na verdade
previamente, como que estabelecidas de uma vez por todas, e bastava o historiador ou o geógrafo
escolher a sua para depois trabalhar nela com suas problematizações específicas. Freqüentemente –
alterações desde a época estudada até o tempo presente – isso representava certa comodidade para o
74
GOUBERT, Pierre. “História Local” in História & Perspectivas. Uberlândia, 64547, Jan/Jun 1992, p.45.
historiador, que podia buscar as suas fontes exclusivamente em arquivos concentrados nas regiões
assim definidas.
Em seu célebre artigo sobre “A História Local”, Pierre Goubert chama atenção para o fato
de que a emergência da história local dos anos 1950 havia sido motivada precisamente por uma
combinação entre o interesse em estudar uma maior amplitude social (e não mais apenas os
indivíduos ilustres, como nas crônicas regionais do século XIX) e alguns métodos que permitiriam
esse estudo para regiões mais localizadas – mais particularmente as abordagens seriais e estatísticas,
capazes de trabalhar com dados referentes a toda uma população de maneira massiva. Ao trabalhar
em suas pequenas localidades, os historiadores poderiam, dessa maneira, fixar sua atenção “em uma
região geográfica particular, cujos registros estivessem bem reunidos e pudessem ser analisados por
tradicional como a paróquia rural ou o pequeno município, podemos acrescentar, permitia por vezes
que o historiador resolvesse todas as suas carências de fontes em um único arquivo, ali mesmo
encontrando e constituindo a série a partir da qual poderia extrair os dados sobre a população e a
comunidade examinada.
Com o progressivo surgimento dos novos problemas e objetos que a expansão dos
domínios historiográficos passou a oferecer cada vez mais no decurso do século XX, o modelo de
região derivado da escola geográfica de La Blache começou a ser questionado precisamente porque
deixava encoberta a questão essencial de que qualquer delimitação espacial é sempre uma delimitação
tornando inúteis (ou nãooperacionais) delimitações regionais que poderiam funcionar para um
período mas não para outro. Uma paisagem rural facilmente pode se modificar a partir da ação do
homem, o que mostra a inoperância de considerar regiões geográficas fixas – e isto se mostra
especialmente relevante para os estudos da América Latina no período colonial, mais ainda do que
para os estudos relativos à Europa do mesmo período76. De igual maneira, um território (voltaremos a
75
GOUBERT, Pierre. “História Local”. op.cit., p.49.
76
Mesmo para períodos posteriores, deve ser observada uma distinção na espacialidade de certos países que
adquiriram centralidade em termos de domínio econômico e os chamados países subdesenvolvidos. Milton Santos
observa que “descontínuo, instável, o espaço dos países subdesenvolvidos é igualmente multipolarizado, ou seja, é
submetido e pressionado por múltiplas influências e polarizações oriundas de diferentes tipos de
decisão” (SANTOS, Milton. O Espaço Dividido. São Paulo: EDUSP, 2004, p.21).
esse conceito) não existe senão com relação ao âmbito de análises que se tem em vista, aos aspectos
da vida humana que estão sendo examinados (se do âmbito econômico, político, cultural ou mental,
por exemplo).
Atrelar o espaço ou o território historiográfico que o historiador constitui a uma pré
estabelecida região administrativa, geográfica (no sentido proposto por La Blache) ou de qualquer
outro tipo, implicava deixar escapar uma série de objetos historiográficos que não se ajustam a esses
limites. A mesma comodidade arquivística que pode favorecer ou viabilizar um trabalho mais
artesanal do historiador – capacitandoo para dar conta sozinho de seu objeto sem abandonar o seu
pequeno recinto documental – também pode limitar e empobrecer as escolhas historiográficas. Uma
determinada prática cultural, conforme veremos oportunamente, pode gerar um território específico
que nada tenha a ver com o recorte administrativo de uma paróquia ou município, misturando pedaços
de unidades paroquiais distintas ou vazando municípios. Do mesmo modo, uma realidade econômica
ou de qualquer outro tipo não coincide necessariamente com a região geográfica no sentido
tradicional.
A crítica aos modelos de recorte regionaladministrativo ou de recortes geográficos à
velha maneira de Vidal La Blache não surgiu apenas das novas buscas historiográficas, mas também
de desenvolvimentos que se deram no próprio seio da Geografia Humana. Tal ressalta Ciro Flamarion
Cardoso em um ensaio bastante importante sobre a História Agrária. À altura dos anos 1970, o
conceito de “região” derivado da escola de Vidal de la Blache começou a ser radicalmente criticado
por autores como Yves Lacoste77 – que sustentavam que a realidade impõe o reconhecimento de
“especialidades diferenciais, de dimensões e significados variados, cujos limites se recortam e se
superpõem, de tal maneira que, estando num ponto qualquer, não estaremos dentro de um, e sim de
diversos conjuntos espaciais definidos de diferentes maneiras”.78
A idéia de tratar sob o ponto de vista das “espacialidades superpostas” a materialidade
física sobre a qual se movimenta o homem em sociedade, incluindo sistemas diversificados que vão
da rede de transportes à rede de conexões comerciais ou ao estabelecimento de padrões culturais,
aproximase muito mais da realidade vivida do que o encerramento do espaço em regiões definidas de
uma vez para sempre e associadas apenas aos recortes administrativos e geográficos que
77
LACOSTE, Yves. La geographie, ça sert d’abord à faire la guerra. Paris : Maspéro, 1976.
78
CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Editora Vozes, 1979.
habitualmente aparecem nos mapas. A realidade, em qualquer época, é necessariamente complexa,
mesmo que essa complexidade não possa ser integralmente captada por nenhuma das ciências
humanas, por mais que estas desenvolvam novos métodos para tentar apreender a realidade a partir de
perspectivas cada vez mais enriquecidas. Voltaremos oportunamente a esse aspecto, quando
discutirmos os recortes a que o historiador é obrigado a se render na operação historiográfica através
da qual busca apreender a vida humana.
Outro geógrafo importante para a discussão do espaço, embora ainda pouco utilizado
pelos historiadores, é Claude Raffestin, que faz uma distinção bastante interessante entre o “espaço” e
o “território”. Segundo Raffestin, “o território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação
conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se
necessariamente ligada à materialidade física, deixa de fora as possibilidades de se falar em outras
modalidades de espaço – como o “espaço social”, o “espaço imaginário”, o “espaço virtual” – que se
constituem no próprio momento da ação humana. De qualquer modo, o sistema conceitual proposto
por Raffestin é importante porque chama atenção para o fato de que a territorialização do espaço
ocorre não apenas com as práticas que se estabelecem na realidade vivida, como também com as
ações que são empreendidas pelo sujeito de conhecimento:
‘Local’ de possibilidades, [o espaço] é a realidade material preexistente a
qualquer conhecimento e a qualquer prática dos quais será o objeto a partir do
momento em que um ator manifeste a intenção de dele se apoderar.
Evidentemente, o território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma
produção, a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações
que envolve, se inscreve num campo de poder. Produzir uma representação
do espaço já é uma apropriação, uma empresa, um controle, portanto, mesmo
se isso permanece nos limites de um conhecimento80.
Vale ainda lembrar que a consciência de uma territorialidade que é transferida ao espaço
pode transcender o mundo humano. Também os animais de várias espécies, que não apenas o homem,
79
RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993, p.143.
80
RAFFESTIN, Claude. op.cit., p.144.
costumam territorializar o espaço com as suas ações e com gestos que passam a delinear uma nova
representação do espaço. O lobo que “marca o seu território” cria para si (e pretende impor a outros
controle. Demarcar o território é demarcar um espaço de poder. No âmbito da MacroPolítica, não é
senão isso o que fazem os EstadosNações ao constituir e estabelecer um rigoroso controle sobre suas
fronteiras81.
Mas a noção de território pode ser levada adiante. A combinação das já discutidas
proposições de Yves Lacoste com os conceitos de “espaço” e “território” propostos por Claude
Raffestin também permitiriam falar mais propriamente de “territorialidades superpostas”. Em sua
realidade vivida, os seres humanos – e de formas extremamente complexas – estão constantemente se
apropriando do espaço sobre o qual vivem e estabelecem suas diversificadas atividades e relações
produzindo territórios que apresentam maior ou menor durabilidade. Ao se apropriar de determinado
espaço e transformálo em sua propriedade – seja através de um gesto de posse ou de um ato de
compra em um sistema onde as propriedades já estão constituídas – um sujeito humano define ou
redefine um território. Ao se estabelecer um determinado sistema de plantio sobre uma superfície
natural, ocorre aí uma nova territorialização do espaço, claramente caracterizada por uma nova
“paisagem” produzida culturalmente e por uma produção que implicará em controle e conferirá poder.
política estável para considerar um nível mais amplo – pode existir em uma duração bastante longa
antes de ser tragado por um novo processo de reterritorialização. Contudo, se um homem exerce a
profissão de professor ou a função de político no momento de exercício dessas funções, ele poderá
estar territorializando uma sala de aula ou um palanque por ocasião de um comício político, por
exemplo, constituindose estes em territórios de curtíssima duração. A vida humana é eterno devir de
territórios de longa e curta duração, que se superpõem e se entretecem ao sabor das relações sociais,
das práticas e representações. E, sob certo ângulo, a História Política é o estudo desse infindável devir
de territorialidades, que se constitui a partir dos espaços físicos, mas também dos espaços sociais,
81
“Por território entendese a extensão apropriada e usada. Mas o sentido da palavra territorialidade como sinônimo
de pertencer àquilo que nos pertence ... esse sentido de exclusividade e limite ultrapassa a raça humana” (SANTOS,
Milton e SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil – território e sociedade no início do século XX. Rio de Janeiro: Record,
2003, p.19.
culturais e imaginários.
Os caminhos mais recentes da Geografia Humana também convergiram para considerar o
espaço como “campo de forças”. É de um “espaço social” que Milton Santos está falando quando
propõe associar a noção de campo a uma Geografia Nova82. Abordando a questão do ponto de vista
do materialismo dialético, ele chama atenção para o fato de que o espaço humano é, em qualquer
período histórico, resultado de uma produção. “O ato de produzir é igualmente o ato de produzir
espaço”. O homem que, devido à sua própria materialidade física, é ele mesmo espaço preenchido
com o próprio corpo, além de ser espaço também está no espaço e produz espaço.
Mas poderíamos mais uma vez unir essas pontas e dizer que “o ato de produzir é
igualmente o ato de produzir territórios”. Cultivar a terra é dominar a terra, é imporlhe novos
sentidos, é apartála do espaço indeterminado, inclusive frente a outros homens, é exercer um poder e
obrigarse a um controle. Fabricar mercadorias (ou controlar a produção de mercadorias) é invadir um
espaço, é adentrar esse complexo campo de forças formado pela produção, circulação e consumo, e
tudo isso passa também por exercer um controle sobre o espaço vital dos trabalhadores, sobre o seu
tempo. Produzir idéias é se assenhorear de espaços imaginários e, de algum modo, exercer, através
desses espaços, diversificadas formas de poder. A produção de discursos, por fim, implica adequarse
a uma espécie de territorialização da fala, na qual devem ser reconhecidas aquelas regras, limites e
interdições que foram tão bem estudadas por Michel Foucault83. Em todos esses casos, enfim, a
produção estabelece territórios, redefine espaços. E de todos esses tipos de espaços deve se apropriar
o historiador no exercício de seu ofício.
82
SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. Rio de Janeiro: 1974, p.174.
83
“Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e distribuída
por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade” (FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo:
Edições Loyola, 1996, p.89).
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SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. Rio de Janeiro: 1974.