You are on page 1of 124

Editor

 
Renato Carlos de Menezes ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
 
Assistente de Edição
 
Felipe Morais de Melo ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Miguel Pereira Neto ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Márcio Adriano Tavares Fernandes ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Renato Marinho Brandão Santos ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
 
Conselho Editorial
 
Drª. Maria da Conceição Fraga ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Miguel Pereira Neto ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Renato Carlos de Menezes ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Renato Marinho Brandão Santos ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
 
Conselho Consultivo
 
Drª. Ana Teresa Marques Gonçalves ­ Universidade Federal de Goiás (UFG).
Drª. Anita Waingort Novinsky ­ Universidade de São Paulo (USP).
Dr. Angelo Adriano Faria de Assis ­ Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Drª. Anne­Marie Pessis ­ Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Drª. Julie Antoinette Cavignac ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Drª. Maria Dulce Barcellos Gaspar de Oliveira ­ Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Drª. Maria Emília Monteiro Porto ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Drª. Margarida Maria Dias de Oliveira ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
 
Normalização
 
Miguel Pereira Neto ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
 
Revisão de Texto
 
Felipe Morais de Melo ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
 
 
Projeto/Editoração eletrônica
 
Márcio Adriano Tavares Fernandes ­ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
 
Figura da Capa
Autor: Barlaeus. In: REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: 
Edusp, 2001. p. 127

APRESENTAÇÃO
 

A Revista Fazendo História  nasceu com o propósito de divulgar e estimular a produção do 

conhecimento   Histórico,   deixando,   todavia, as   portas   abertas   para   entrada   de   outras   áreas   do 

conhecimento que queiram se relacionar com a História. E é com alteridade, responsabilidade e, 

sobretudo, amor à ciência histórica, que oferecemos a nossa singela contribuição na constante luta 

para desenvolvimento da mesma.

Não podemos, entretanto, deixar de lembrar as dificuldades que tivemos para produzir este 

caderno e as que temos encontrado para gerir a revista; sem dúvida, não são poucas, mas não cabe 

aqui enumerá­las. Por isso, desde já, pedimos desculpas pelos erros que possam vir a ser encontrados 

nesta edição. Assumimos a culpa por eles.

Antes   da   exposição   dos   artigos   selecionados,   seremos   brindados   com   uma   esclarecedora 

introdução produzida pelo professor Dr. Angelo Adriano Faria de Assis. A ele, aos demais membros 

do conselho consultivo e a todos os colaboradores da Revista Fazendo História fazemos o nosso mais 

profundo agradecimento.

Com grande carinho e satisfação, entregamos a vocês este primeiro número da Revista Fazendo 

História. Esperamos que seja o primeiro passo de uma caminhada de sucesso e que a revista possa 

cumprir com qualidade seu propósito de divulgar e estimular a produção do conhecimento histórico e 

de áreas afins.

                                                                                                    Boa Leitura!

                                                                                      Equipe Fazendo História
 
 

SUMÁRIO
 
Apresentação 02

Sumário 03

Introdução  04

O novo capitalismo e a percepção da crise de valores
 na poesia de Antonio Francisco  06

Retóricas do olhar e tramas da narrativa 23 

Considerações acerca de um caráter:
Capistrano de Abreu, Sílvio Romero e a formação do Brasil  47
A integração do território do Rio Grande do Norte 
pelos açudes e estradas de ferro (1889­1935)  61

Espaço e História – reflexões sobre uma relação fundamental  84
 

 Fazendo História  e o reinventar da memória
   
 
Angelo Adriano Faria de Assis
Doutor em História pela UFF; Professor Adjunto II – UFV.
 
  Fazer História no Brasil, neste início de milênio, vem ganhando matizes diferenciados do 
que se viu nas últimas décadas. A influência da Nova História, com a transformação da noção de 
fonte documental, a aproximação com outras áreas de conhecimento, o crescimento do número de 
cursos de graduação e pós­graduação – tanto stricto quanto lato sensu – em História pelo país têm 
permitido uma revolução no modo de enxergar e interagir com esta ciência, ainda vista por muitos, 
ainda hoje, como um emaranhado de fatos, datas e nomes – informações desnecessárias, enfim – a 
serem decoradas para as provas escolares e apagadas da memória sem maiores danos a partir do 
segundo seguinte. Um país sem memória, como diz o velho bordão repetidos aos quatro ventos, sem 
refletir numa compreensão do que isso significa ou da necessidade de mudança que seria urgente.
Porém, muito tem mudado nos domínios de Clio. Nas escolas, os programas de História 

buscam aproximar­se das discussões trazidas à tona pelas novas levas de historiadores, agregando os 

recentes   avanços   e   discussões   que   percorrem   os   debates   na   Academia.   Os   livros   didáticos   vêm 

sofrendo revisão de seus conteúdos – não raro ainda problemáticos ­, somando as contribuições das 

novas correntes e linhas de pesquisa, como os estudos de gênero, da família, da cultura. Cada vez 

mais comuns são ainda as versões de livros didáticos para as primeiras séries do ensino fundamental, 

fazendo com que a História seja ensinada desde as primeiras letras.

Além da variedade de materiais didáticos e paradidáticos, chama igualmente a atenção o 

aumento de publicações de livros acadêmicos, não apenas de livros produzidos pelas escolas francesa, 

inglesa, hispânica, italiana ou norte­americana, para ficarmos dentre as mais divulgadas entre nós. Há 

um  considerável crescimento na produção nacional, boa parte da qual resultado de pesquisas de 

mestrado e doutorado defendidas recentemente nas mais diversas instituições do país e mesmo do 

exterior.

O interesse pela História permitiu, mais além, a democratização do acesso aos leitores, 

mesmo os leigos, ao que de mais novo se faz em pesquisa. Prova disto é o número de revistas 

voltadas para o grande público, vendidas em bancas de jornal de Norte a Sul do Brasil: periódicos que 

trazem, em linguagem atraente e fácil entendimento, curiosidades, revisões históricas e pesquisas 

recentes sobre a nossa História. Também a internet, ícone deste mundo globalizado que se coloca 

diante de nossos olhos, é ferramenta fundamental para a divulgação de textos, imagens e documentos 

aos curiosos: são várias as opções de revistas eletrônicas que podem ser consultadas, aumentando ao 

infinito a variedade de temas e abordagens a que se pode ter acesso sobre praticamente qualquer 

assunto– embora seja aqui indispensável o uso de filtros ao leitor ­ ao modo do que ensina Carlo 

Ginzburg ­, que se depara com materiais de qualidade por vezes suspeita ou incongruente. Apesar de 

todos estes esforços, o conhecimento histórico carece, e muito, de meios sérios de divulgação, e 

qualquer iniciativa no sentido de aumentar esta rede de conhecimento deve ser bem recebida por 

quem faz e torce pela História.

Caminho   louvável,   neste   rumo,   é   aquele   que   tem   sido   percorrido   pelas   revistas   de 

divulgação   científica   produzidas   nas   Universidades.   Não   apenas   aquelas   publicações   mantidas   e 
alimentadas oficialmente por programas de graduação e pós­graduação de todo o país, de valor e 

papel inquestionáveis. Refiro­me, mais além e em especial, às revistas que nascem do esforço e 

dedicação dos novos amantes que a História conquista a cada dia, de estudantes que a fazem renascer 

a cada semestre nas salas de aula de nossas universidades. Revistas produzidas, organizadas e geridas 

por alunos de História.

É neste modelo que a  Fazendo História  aparece. Uma revista de publicação semestral, 

gerida pelos discentes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que tem como objetivo 

funcionar como canal de divulgação e discussão de produções recentes desenvolvidas em História e 

áreas afins, algumas delas ainda em fase de desenvolvimento. Alunos de programas de graduação e 

pós­graduação   dos   mais   diversos   cantos   do   país   têm   aqui   espaço   para   mostrar   suas   questões   e 

convidar à discussão acadêmica, mas sem proibir – pelo contrário ­ a participação de professores e 

colaboradores externos. Fazendo História faz cumprir o papel que lhe cabe: incentivar e democratizar 

o acesso à pesquisa.

Neste   primeiro   número,   buscou­se   refletir   sobre   o   tema   “História,   historiografia   e 

espaços”. Tema amplo, como ampla pretende ser a possibilidade de discussões a que se compromete a 

revista. Assim, passeia o leitor pelas discussões acerca do novo capitalismo e a crise de valores na 

poesia de Antonio Francisco, tema do artigo de Alessandro Teixeira Nóbrega. Antonio Motta e Julie 

Antoinette   Cavignac   analisam   as   retóricas   do   olhar   e   tramas   da   narratividade   na   Antropologia; 

Eduardo Ferraz Felippe procura os meandros da noção de caráter nacional nas obras de Capistrano de 

Abreu e de Sílvio Romero; Adriano Wagner da Silva e Gabriel Leopoldino Paulo de Medeiros, por 

sua vez, lançam um olhar sobre a integração do território potiguar pelos açudes e estradas de ferro 

entre fins do século XIX e a década de 1930; Por último, José D’Assunção de Barros mergulha na 

reflexão das relações entre Espaço e História. Como se pode ver, um banquete de variados talheres e 

para todos os gostos.

Nas   próximas   edições,   esta   multiplicidade   ganhará   novas   cores,   com   a   possibilidade   da 

publicação de dossiês temáticos, embora mantendo o espaço para resenhas e artigos livres, como deve 

ser toda a revista, séria e disposta ao diálogo. Evoé que, com este primeiro número, agora em versão 

impressa, Fazendo História alcance novos vôos e leitores, levando a História ao seu lugar de direito.

 
O NOVO CAPITALISMO E A PERCEPÇÃO DA CRISE DE VALORES NA POESIA DE 
ANTONIO FRANCISCO

Autor:  Alessandro   Teixeira   Nóbrega   –   Mestre   em   História   pela   UFRN, 


alessandronobrega@uern.br, estudante do Programa de Pós­graduação em Ciências 
Sociais da UFRN.

RESUMO

O novo capitalismo advindo da revolução informacional liberou não só forças produtivas 
consideráveis, mas também acarretou em mudanças drásticas nas relações sociais. Um capitalismo 
que acentua a volatilidade das relações sociais, a efemeridade do que existe, enfatizando valores e 
virtudes da instantaneidade e da descartabilidade. Um capitalismo de ritmo aceleradíssimo. O poeta 
cordelista Antonio Francisco, reconhecido pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) 
ocupando   a   cadeira   de   Patativa   do   Assoré,   desperta   em   sua   produção   artística   a   vida   social 
contemporânea. Uma sociabilidade onde o progresso traz avanço tecnológico mas em detrimento do 
rebaixamento da qualidade de vida humana e da destruição do meio ambiente; de destruição dos 
espaços tradicionais, onde o ritmo lento e tranqüilo da vida rural é substituído pela atomização dos 
indivíduos,   de   intensificação   psíquica   e   substituição   dos   valores   e   hábitos   anteriores   pela 
individualização e indiferença humanas. Antônio Francisco canta em suas poesias que os recursos 
tecnológicos adquiridos com o ritmo acelerado do progresso capitalista conduzem ao artificialismo da 
vida humana e a destruição da arte de viver através de um esfriamento nas relações entre os seres 
humanos cada vez mais maquinados. Aumentam­se os instrumentos tecnológicos, diminui a vida 
saudável no planeta.

Palavras­chaves: Sociedade e literatura, Antonio Francisco, Progresso e meio ambiente.

RESUMEN

El   nuevo   capitalismo   advenido   de   la   revolución   informacional   liberó   no   solamente 


fuerzas productivas importantes, como también cambios importantes en las relaciones sociales. Un 
capitalismo  que acentúa la volatilidad de las  relaciones sociales, la efimeridad de lo que existe, 
enfatizando valores y virtudes de la instantaneidad y de la descartabilidad. Un capitalismo de ritmo 
muy acelerado. El poeta Antonio Francisco, reconocido por la ‘Academia Brasileira de Literatura de 
Cordel (ABLC)’, ocupa la silla de ‘Patativa do Assaré’ y despierta en su producción artística la vida 
social   contemporánea.   Una   sociabilidad  en   la   cual   el   progreso   trae  avanzo   tecnológico,   pero   en 
detrimiento del rebajamento de la calidad de vida humana y de la destruicción del medio ambiente; de 
destruicción   de   espacios   tradicionales,   donde   el   ritmo   pausado   y   tranquilo   de   la   vida   rural   es 
sustituído   por   la   atomización   de   inidividuos,   de   intensificación   psíquica   y   cambio   de   valores   y 
costumbres pasados por la individualización y indiferencia humanas. Antonio Francisco canta en sus 
poesias   que   los   recursos   tecnológicos   adquiridos   con   el   ritmo   acelerado   del   progreso   capitalista 
conducen al artificialismo de la vida humana y a la destruicción del arte de vivir a través de un 
enfriamiento de las relaciones entre los seres humanos cada vez más maquinados. Los instrumientos 
tecnológicos crecen, diminue la vida saludable en el planeta.

INTRODUÇÃO

Tanto para os autores que afirmam a existência de um novo período societal pós­moderno 

quanto para os seus críticos, é unânime a afirmação de que o capitalismo contemporâneo passa por 

transformações.

Para   Lojkine   (1995),   o   capitalismo   contemporâneo   passa   por   uma   revolução 

informacional,   que   está   apenas   no   seu   inicio   (p.11).   Uma   revolução   informacional   que   está 

remodelando   a   base   material   da   sociedade   em   ritmo   acelerado,   liberando   forças   produtivas 

consideráveis, a ponto de possibilitar a superação de antigas e históricas contradições do capitalismo. 

Uma revolução informacional que está além da revolução da automação  porque desloca o trabalho 

humano para o “tratamento’ da informação” (LOJKINE, p. 14, 1995)1 – grifo do autor.

Semelhante a Lojkine, Dantas (2003) refere­se também a uma nova etapa do modo de 

produção   capitalista  contemporâneo.   Para   ele,   a  informatização   está   permitindo  a  diminuição   do 

tempo de circulação das mercadorias acarretando em mudanças estruturais no capitalismo (p.08)2. 

1
  Apesar  de que para  Lojkine (1995) esse deslocamento do trabalho humano não significa uma substituição da 
produção e os serviços pela informação: “[...] A revolução informacional emergente, longe de substituir a produção 
pela informação, tece, ao contrário, novos laços entre produção material e serviços, saberes e habilidade [...]” grifos 
do autor (LOJKINE, p.23, 1995). Isto é o contrário do que parece pensar Hardt e Negri (2005), para eles o que se 
está operando é uma passagem de uma economia fundada na produção material (a indústria) para uma economia 
fundada   no   tratamento   da   informação   ou   produção   imaterial,  esta   baseada   no   conhecimento,   informação, 
comunicação  e afetividade diferentemente da produção  industrial baseada no trabalho concreto de produção  de 
mercadorias.   Mesmo   referindo­se   todos   os   autores   a   “tratamento   da   informação”,   as   compreensões   são 
completamente divergentes. Dantas (2001) afirma que devido à informação adquirir um aspecto “imaterial” alguns 
autores definem a etapa atual do capitalismo de “trabalho imaterial”: “[...] Não há nada de ‘imaterial’ na informação, 
na medida em que ela emana de fontes materiais e de fenômenos físico­químicos da natureza, sendo processada 
também por algum agente corpóreo [...]” (p.25) – grifos do autor.
2
 Pode mudanças na circulação de mercadorias acarretar em mudanças essenciais no capitalismo? Para quem quiser 
aprofundar   esta   questão,   é   importante   ler   o   texto   de   Marx   (1983)   onde   a   produção,   consumo,   distribuição   e 
circulação   (ou   troca)   são   processos   diferenciados   e   contraditórios   de   um   único   conjunto.   Ou   seja,   instantes 
diferenciadas   e contraditórias  de um mesmo processo de produção  de mercadorias.  Uma mudança  em  um  dos 
Para este autor, seria o caso de um novo capitalismo. Um capitalismo advindo da crise do 

modelo taylor­fordismo, onde não se precisaria mais de uma imensa burocracia para gerar, processar 

e comunicar uma imensa quantidade de informações para a condução dos negócios e a gestão da 

produção pois isto seria feito através de máquinas. Como também, não seria mais preciso “concentrar 

em   um   mesmo   espaço   o   maior   conjunto   possível   de   atividades   industriais   de   transformação   e 

montagem” pois a produção fragmentar­se­á social­espacialmente (Dantas, 2001, p.14 e 32). Um 

novo capitalismo baseado na produção acelerada da absolescência. É um capitalismo baseado na 

lógica capital­informação (DANTAS, 2001, p.20 e 24 respectivamente).

Para Harvey (1992), essas transformações em ritmo acelerado, acarretam em mudanças 

sociais tão drásticas quanto os processos de transformação tecnológica e econômica. Ao lado do ritmo 

acelerado   das   mudanças   há   uma   perda   das   referencias   valorativas   tradicionais   ou   uma   crise   de 

valores. A sociedade parece ser comandada por um nada absoluto, certo, estático ou sólido, assim 

perde­se a referencia a valores fixos. 

De acordo com Harvey (1992), acentua­se a volatilidade e efemeridade sociais. São dadas 

ênfases aos valores e virtudes da instantaneidade e da descartabilidade. Formou­se a dinâmica de uma 

sociedade "do descarte".3  Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos – continua o autor; 

significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, pessoas e 

modos adquiridos de agir e ser. As pessoas foram forçadas a lidar com a descartabilidade, a novidade 

e as perspectivas de obsolescência instantânea. Essa efemeridade, cria um sistema de valores públicos 

e   pessoais   de   pequena   temporariedade,   instáveis,   no   contexto   de   uma   sociedade   em   vias   de 

fragmentação – conclui Harvey.

Berman (1992) colabora com esta idéia quando afirma que 

...tudo que a sociedade burguesa constrói é construído para ser posto abaixo. ‘Tudo que é 
sólido’ [...] é feito para ser  desfeito amanhã [...]  a fim  de que possa ser reciclado  ou 
substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante [...] sob formas cada 
vez mais lucrativas. (p.97).

elementos, acarreta mudanças em todos os outros. 
3
 Em Dantas (2001): “[...] o trabalhador­consumidor estará sempre disposto a sustentar um ritmo frenético de 
trabalho que lhe permita consumir bugigangas fungíveis, umas atrás das outras [...]” (p.31).
A   volatilidade   torna   extremamente   difícil   qualquer   planejamento   de   longo   prazo.   A 

primeira estratégia aponta para o planejamento de curto prazo, bem como para o cultivo da arte de 

obter ganhos imediatos sempre que possível.

Dominar ou intervir ativamente na produção da volatilidade envolvem, por outro lado, a 

manipulação do gosto e da opinião. Isso significa, em ambos os casos, construir novos sistemas de 

signos e imagens. A publicidade e as imagens da mídia já não parte da idéia de informar ou promover 

no sentido comum, voltando­se cada vez mais para a manipulação dos desejos e gostos mediante 

imagens que podem ou não ter relação com o produto a ser vendido (EVANGELISTA, 1999).

A volatilidade e a efemeridade também tornam difícil manter qualquer sentido firme de 

continuidade. Há a perda de um sentido do futuro. A experiência passada é comprimida em algum 

presente avassalador. É a fragmentação do tempo em uma série de presentes perpétuos (JAMESON, 

1985).

O   mergulho   no   turbilhão   da   efemeridade   provocou   uma   explosão   de   sentimentos   e 

tendências opostos. A vida metropolitana atual intensifica os estímulos nervosos da psique humana de 

modo brusco e ininterrupto (SIMMEL, 1979, p.12). Em resposta a este turbilhão de sentimentos 

incompreensíveis,   os   homens   passam   a   ter   necessidade   por   um   local   seguro   contra   a   futura 

volatilidade, retraindo­se para instituições básicas como a família, em busca de raízes históricas mais 

seguras e valores mais duradouros num mundo cambiante.

O momento atual, então, seria caracterizado pela condição de fragmentação, efemeridade, 

descontinuidade e mudança caótica do pensamento.

O objetivo deste artigo não é discutir se as transformações do capitalismo contemporâneo 

fundam um novo modo de produção pós­moderno ou seria uma nova etapa do capitalismo. O objetivo 

deste artigo é chamar a atenção ao ritmo acelerado das transformações sociais que “desmancha no ar” 

os sólidos e fixos valores anteriores apontadas pelos autores como uma crise de valores, e a percepção 

desta crise de valores na poesia de Antonio Francisco.

APRESENTANDO ANTONIO FRANCISCO

O poeta Antonio Francisco é artista conhecido na cidade de Mossoró pelos seus versos. 
Nas manifestações públicas artístico­culturais, o poeta emociona as pessoas ao declamar suas criações 

literárias, sendo bastante aplaudido nos eventos.

Antônio Francisco Teixeira de Melo, poeta e xilógrafo, nasceu em Mossoró­RN aos 21 de 

outubro   de   1949.   Bacharel   em   História,   pela   Universidade   do   Estado   do   Rio   Grande   do   Norte 

(UERN), é compositor e trabalha confeccionando placas. Apresenta uma produção de vinte e um 

folhetos de cordéis publicados e é autor de dois livros: Dez Cordéis num Cordel Só e Por Motivos de  

Versos.

Antonio Francisco foi imortalizado pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel 

(ABLC) ocupando a cadeira de número 15, do também imortalizado e cearense Patativa do Assoré. 

Para   Xavier   (2007)  “a  eleição  pela  Academia  Brasileira  de  Cordel   para   a  cadeira   anteriormente 

ocupada por Patativa do Assoré não foi aleatória, e revela a dimensão de sua obra”. E continua o 

articulista afirmando que a produção cordelista de Antonio Francisco vem sendo muito elogiada pela 

crítica literária atual, a ponto de considerá­lo “a grande revelação no campo da Literatura de Cordel 

do RN nos últimos anos”.

A indicação de Antonio Francisco a ABLC na cadeira de Patativa do Assoré foi noticiado 

em vários jornais de circulação local no Estado. O Jornal O Poti anunciou o acontecimento chamando 

“o poeta mossoroense Antônio Francisco, um dos mais importantes nomes da Literatura de Cordel do 

Brasil”. E concluía:

  Antônio  Francisco  também  terá  uma   de  suas  obras   ­  Dez  Cordéis  num  Cordel   Só  – 
requisitada para o Processo Seletivo Vocacionado (PSV) do próximo ano, da Universidade 
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)[...] (Jornal O Poti, 21 de maio de 2005).

A obra de Antonio Francisco foi selecionada para o vestibular da UERN de 2007 também. 

Juntamente com Vinicius de Moraes, está sendo trabalhado no Centro de Educação Integrada (CEI) 

em todos os níveis de ensino. A utilização das poesias de Antonio Francisco na educação, é prova da 

importância e extensão de sua produção artística, dando demonstração de sua qualidade e riqueza para 

a aprendizagem.  

Não é por acaso que no sitio Cortina de Vidro, o livro de Antonio Francisco Dez cordéis  

num cordel só  está a exposição para a venda no mesmo lado das poesias de Drummond, Cecília 
Meireles, Castro Alves, Manuel Bandeira, Pablo Neruda e Fernando Pessoa.

O PROGRESSO CONDUZ A RUINA DA GEOGRAFIA DO LUGAR: NATUREZA E 
ESPAÇO RURAL EM ANTONIO FRANCISCO

O  ritmo  acelerado   do  capitalismo  contemporâneo   assemelha­se  a  uma  avalanche  que 

desce montanha abaixo, arrasando tudo, devastando, destruindo tudo que está a sua frente por onde 

passa e consegue alcançar. Mas engana­se quem achar que a sociedade capitalista, por isso, “está 

caindo   aos   pedaços”.   Ao   contrário,   como   diz   Berman   (1992),   é   justamente   na   ininterrupta 

perturbação, na interminável incerteza e agitação que o capitalismo se fortalece (p.94) pois são das 

crises que mantém o seu dinamismo ao atuarem como inesperadas fontes de força de adaptação (p.

101). Pois aqueles que não têm uma atitude ativa diante das mudanças impostas pelo mercado, serão 

passados para trás (p.95). 

É   através   da   incorporação   de   novos   espaços   e   novas   esferas   às   necessidades   de 

valorização  do capital que as crises do capitalismo são superadas. O capitalismo contemporâneo 

expande­se por todos os campos sociais e submete­os a sua lógica, a lógica do lucro, campos sociais, 

inclusive,   nunca   antes   imagináveis.   Os   capitais   colonizam   certas   dimensões   da   cultura   e   da 

subjetividade, que lhe pareciam imunes (EVANGELISTA, 1999)4.

Essa expansão devastadora do capitalismo não passa despercebida nas poesias de Antonio 

Francisco. Para o poeta, o progresso que eleva o nível de vida, rebaixa a sua qualidade.  O autor 

refere­se ao progresso em geral, mas sabe­se que se trata do desenvolvimento capitalista no Brasil. 

Um   modelo   de   capitalismo   semelhante   ao   estadunidense   que   valoriza   “o  individualismo  e   a 

democratização do acesso aos bens materiais    como medidas de melhoria pessoal e de progresso 

social”   (DANTAS,   2001,  p.   35)  grifo  do   autor.   Para   Antonio   Francisco  o   progresso   econômico 

capitalista que permite o acesso a determinados bens materiais a um número cada vez maiores de 

pessoas, degrada a qualidade de vida e conduz a deteriorização da natureza.

4
 O autor dar o exemplo da publicidade onde na transformação da realidade em imagens, em certo sentido, faz com que 
as próprias imagens se tornem mercadorias.
A poesia de Antonio Francisco canta uma cidade onde seus costumes e a natureza é 

destruída pelo progresso. A destruição da natureza pelo progresso está na poesia “O rio de Mossoró e  

as lágrimas que eu derramei”, onde ele escreve:

“[...] Este rio no passado
Tinha uma força incomum,
Mas o progresso dos homens
Que vive sempre em jejum
Partiu ele em três pedaços
Pra comer de um em um. [...]”5

E em A lenda da Ilha Amarela, quando canta:

“[...] E assim eles viviam
Naquela ilha amarela:
Tirando o que precisavam,
Vivendo felizes nela
Sem deixar que o progresso
Mordesse um pedaço dela  [...]”6

Tanto na primeira poesia quanto na que faz referencia a uma Ilha Amarela, a visão de 

Antonio Francisco é que o progresso é algo devorador, que consome as forças e tira “pedaços”. A 

natureza é abocanhada pela força do progresso que parece devorar tudo a sua frente vorazmente, 

como um ser faminto, durante muito tempo em “jejum”. Na verdade, para Antonio Francisco, o 

progresso vive “sempre em jejum”.

O progresso capitalista devasta florestas, polui rios, não há obstáculos a sua frente, em sua 

fome de lucros. No entanto, o progresso capitalista vai enfrentando limitações crescentes cada vez 

maiores   devido  ao caráter   limitado e  inelástico do espaço  geográfico disponível   a  sua  expansão 

5
 MELO, 2003, p.82. Grifos meus.
6
 MELO, 2003, p.23. Grifos meus.
(EVANGELISTA, 1999).

E   para   Antonio   Francisco   a   degradação   da   ecologia   é   realizada   juntamente   com   a 

deteriorização da qualidade de vida humana. A natureza é degradada, ameaçando a continuidade da 

vida humana no planeta7.

A degradação da ecologia vem junto também com a destruição dos espaços tradicionais. 

A paisagem se modifica, o progresso modifica a geografia do lugar. Mas também os costumes e 

hábitos, valores anteriores são esquecidos ou substituídos por outros mais apropriados com o modo de 

vida que se estabelece. É o modo de vida metropolitano, para usar um conceito utilizado por Simmel 

(1979). Para Lojkine (p.19, 1995) a crise da sociedade atual é inerente da relação da tecnologia com a 

geografia8.

O capitalismo conduz a urbanização cada vez maior da sociedade e os espaços rurais são 

cada vez mais raros ou modificados a ponto de se estabelecerem modos de vidas semelhantes à vida 

urbana.

Nas estrofes abaixo de O feiticeiro do sal, Antonio Francisco recorda:

“[...] Vejo nosso casarão
Com quatro cilos na sala
Cheios de milho e feijão
E um quarto pegado a casa
Que pai guardava algodão

Tem cenas que eu paro a fita
Deixo a imagem congelada
Como bem a de vovô
Numa noite enluarada
Contando história pra nós
Na subida da calçada [...]”

Nestas estrofes, a imagem de um passado que não volta mais é bastante clara. Os casarões 

de algodão não existem mais. Os homens não vislumbram mais as noites de lua por causa dos postes 

7
 Mais adiante será retomado este aspecto da poesia de Antonio Francisco.
8
 Além de Lojkine ver também uma relação destas com a organização política.
de iluminação que, se não impedem a grandeza da luz do luar, em muito ameniza a força do pratear 

nos caminhos. E os contos falados, os “causos”, as estórias de lobisomens ou outras, na beira da 

calçada contada pelos mais velhos, foram substituídas pelos jovens ou crianças por horas e horas 

diante do computador, na internet, no orkut ou simplesmente em jogos de rede.

O ritmo e a multiplicidade da vida metropolitana da cidade

[...] faz um contraste profundo com a vida de cidade pequena e a vida rural no que se 
refere aos fundamentos sensoriais da vida psíquica. [...] A metrópole extrai do homem [...] 
uma quantidade de consciência diferente da que a vida rural extrai. [...] Oposição à vida de 
pequena   cidade,   que   descansa   mais   sobre   relacionamentos   profundamente   sentidos   e 
emocionais [...]9.

O   progresso   da   urbanização   traz   junto   uma   multiplicidade   de   possibilidades   para   as 

pessoas. Há uma intensificação psíquica, diferente da vida rural – que é mais calma, tranqüila, de 

tempo lento. Na cidade o passo é largo, as pessoas estão com pressa, o relógio define o ritmo da 

marcha: constante, em frente e em circulo como que para representar o cotidiano. Pois amanhã farás o 

mesmo percurso, as mesmas coisas, as mesmas ocupações, o mesmo ônibus etc, etc, etc... É como se 

o processo do trabalho fosse controlado pelo cronômetro da fábrica (LOJKINE, p.28, 1995).

O progresso traz a individualização do homem, que fica em si mesmado, girando em 

torno de si mesmo. Uma atomização que esfria as relações sociais ao serem mediatizadas pela frieza 

das máquinas. Seja porque as relações entre os homens urbanos ficam cada vez mais superficiais e 

parciais,   como   diz   acima   Simmel   diferentemente   da   vida   rural,   ou   porque   passam   a   serem 

mediatizadas pela frieza das máquinas de computadores. O tipo metropolitano de homem, diz Simmel 

não sem antes alertar para a existência de mais de mil variantes individuais, desenvolve este tipo de 

atitude   como   de   proteção,   para   “preservar   a   vida   subjetiva   contra   o   poder   avassalador   da   vida 

metropolitana” e completa: “Ele reage com a cabeça, ao invés de com o coração” (SIMMEL, 1979, p.

13).

Antonio Francisco busca da memória os casarões de algodão e as estórias contadas pelos 

mais velhos na calçada para contrastar com os hábitos urbanos. É um espaço que se encontra na 

9
 SIMMEL, 1979, p.12.
memória, na lembrança do passado. Não existe mais. Não volta. Ele é diferente dos hábitos que o 

progresso da urbanização trouxe para os moradores. São outros hábitos. Antonio Francisco parece 

apelar para a necessidade de se reagir com o coração diante da indiferença social que toma conta das 

relações entre os homens.

Em outra poesia o autor estudado canta a cidade antiga, seus costumes e brincadeiras, 

suas características perdidas pelo desenvolvimento urbano capitalista:

Quero ser neto de Perto/ Filho de Chico e Pedrinha/ Ser criado por titia/ E Maria prima 
minha/ E crescer correndo perto/ Do rancho que a gente tinha./ Quero quebrar minha vela/ 
Na primeira comunhão/ Pegar balde no Mercado/ Malota na Estação/ E jogar como eu 
jogava/ Bola, peteca e pião./ Quero correr com o vento/ Por dentro da capoeira/ De calça 
curta e chinela/ Armado de baladeira/ E enganar o sol quente/ De baixo da quixabeira.10

Em conversas com Antonio Francisco, o poeta refere­se à cidade como um local onde a 

cooperação entre os ofícios seria possível. Na cidade os homens encontram uma série de ofícios que 

poderia precisar para realizar suas necessidades, ao mesmo tempo em que põe a sua habilidade a 

disposição dos outros. Seria uma comunidade cooperativa.

Cooperação que ainda é sentida hoje como uma grande necessidade. Para Lojkine (p.17, 

1995) a invenção cientifica moderna “não pode vir à luz e se desenvolver senão por um trabalho de 

equipe e mediante formas de  cooperação  que nada têm a ver com a  troca  de mercadorias entre 

proprietários privados” – grifos do autor. A invenção cientifica moderna, segue Lojkine, assenta­se no 

trabalho   coletivo  e  “não  pode   ser  conservada   e,  menos  ainda,   ser  enriquecida  se  for  apropriada 

privadamente” (p.17). Caso isso aconteça, de acordo com Lojkine, ocorre a entropia.

Entretanto,   o   desenvolvimento   urbano   não   trouxe   unicamente   afirmações   individuais, 

liberdades   e   lazeres,   mas   também   a   perda   de   antigas   solidariedades,   a   atomização   das   pessoas 

(MORIN, 1997, p.138). E Morin completa, a dissolução das solidariedades tradicionais não suscitou a 

formação   de   novas   solidariedades.   Isto   parece   ser   semelhante   a   percepção   poética   de   Antonio 

Francisco.

10
 Discurso de Antonio Francisco na posse da ABLC.
A DEGRADAÇÃO DAS RELAÇOES ENTRE OS HOMENS EM DETRIMENTO DA ARTE 
DE VIVER

Para o poeta cordelista Antonio Francisco, o progresso capitalista não apenas degrada a 

natureza através da sua expansão sem limites e destrói as espacialidades territoriais anteriores através 

do desenvolvimento da urbanização, mas também deteriora as relações entre os homens. O progresso 

tecnológico traz uma desarmonia dos homens com o seu meio ambiente, de modo a rebaixar a sua 

qualidade de vida.

Em A lenda da Ilha Amarela, tem­se:

“[...]Os rios eram sagrados,
Claros como a luz do dia;
Uma só mancha de óleo
Na água ninguém não via [...]

Não tinham cartão de credito
E nem cheque pré­datado,
O dinheiro ali também
Era um troço do passado
Pois todo macaco tinha
Seu próprio supermercado.

Também já tinham enterrado
A arte de fazer guerra:
O fuzil, a baioneta
Nas profundezas da terra
Com a lata de Baygon
E os dentes do moto­serra.

Já tinham ido pra lua,
Marte, Vênus e Plutão,
Mas voltaram para a ilha,
Enterraram a invenção
E ficaram olhando a lua
Do camarote do chão.

Estavam tão avançados
Que nem carro tinham mais,
Televisão, Internet,
Tinham deixado pra trás
Com as taxas de água e luz,
Gasolina, óleo e gás.

A geladeira também
Era um troço ultrapassado,
As frutas eram nas árvores,
Os legumes no roçado,
Os peixes dentro dos rios
E não num freezer fechado[...]”11.

Nota­se nestas estrofes, que Antonio Francisco refere­se a instrumentos do comercio atual 

como algo desnecessário em um local em que todos “tenham seu próprio supermercado”. Antonio 

Francisco parece insinuar em que uma sociedade onde se possa retirar tudo da natureza, torna­se 

desnecessário o cartão de crédito, o dinheiro e o cheque pré­datado. Uma alusão clara ao comunismo 

primitivo. Onde as trocas de mercadorias não eram desenvolvidas ou não dominantes, os membros da 

sociedade retiravam da natureza o seu sustento; era um supermercado para cada um.

A lenda da Ilha Amarela  é uma paródia do descobrimento do Brasil. De modo que os 

macacos seriam os índios. A diferença da estória da Ilha Amarela e os índios brasileiros estaria 

justamente,   em   que   os   macacos   da   Ilha   Amarela   já   haviam   experimentado   todos   os   recursos 

modernos:   televisão,   Internet,   geladeira,   ido   a   Lua,   etc.   E   agora   abandonavam,   enterravam   nas 

“profundezas da terra”, deixavam no passado, no esquecimento, porque tinham ultrapassado esse 

modo de vida. Notaram que todo este desenvolvimento tecnológico conduzia a poluição dos rios, o 

desmatamento   de   florestas,   as   guerras.   Trocaram   estas   descobertas   cientificas   por   um   modo 

harmonioso de vida com a natureza.

Para Antonio Francisco o progresso tecnológico conduz a uma relação predatória com a 

natureza, rebaixando assim a qualidade de vida humana. 

Em outras estrofes:

“[...] Quando os macacos da ilha
Viram na praia acampados
11
 MELO, 2003, p.22.
Aqueles ‘macacos brancos’,
Feiosos, desfigurados,
Correram para ajudar
Aqueles pobres coitados.

Quando chegaram que viram
Aquele brasão cravado
Naquela cruz de madeira
Com dois macacos de lado
Armados até os dentes
Viram a cópia do passado

De um passado sem glória,
De guerra e destruição,
Onde o ódio e a ganância
Calavam a voz da razão,
Onde o macaco mais fraco
Era bucha do canhão [...]”12.

Como paródia do descobrimento do Brasil, os macacos brancos que os macacos da Ilha 

Amarela vêm é a chamada civilização. Um povo mais desenvolvido, mas que na verdade tinham 

instrumentos que os macacos da Ilha Amarela tinham deixado ao chão.

O fuzil e a baioneta, as armas, junto com o inseticida e a serra elétrica levaram os homens 

à guerra e a destruição da ecologia. A geladeira acumulou­nos de conservantes e retirou aos homens o 

sabor da comida fresca. A televisão e o carro vieram junto com as taxas de luz e gasolina, além da 

poluição. O progresso tem seu preço. Os serviços públicos exigem a divisão de sua manutenção pela 

coletividade através de taxas. 

Portanto, os macacos da Ilha Amarela foram ajudar aos macacos brancos que ainda não 

tinham feito esta experiência. Foram­lhes avisar, que as descobertas cientificas os conduziram a uma 

situação   de   violência   e   depredação   do   meio   ambiente.   Não   há   glória   em   um   desenvolvimento 

tecnológico   que   traz   para   a   humanidade   ódio   no   coração   e   ganância   em   sua   ação.Com   esta 

experiência notaram que ao invés do “progresso”, os avanços e descobertas científicas, era melhor 

uma vida modesta em harmonia com a natureza, com a vida.

Os macacos da Ilha Amarela 
12
 MELO, 2003, p.24.
“[...]Eram macacos comuns
Pequenos, amarelados,
Com pouco pêlo no corpo,
Andavam todos pelados,
Mas na arte de viver
Eram mais que avançados [...]”13.

Os macacos de pouco pelos, na arte de viver, eram avançadíssimos. Esta referencia a 

poucos pelos, a macacos que andavam pelados e avançados na arte de viver por causa da harmonia 

com a natureza, não é apenas uma referencia de identificação com os índios. Na literatura, o nu tem 

um significado muito importante, além desta simples semelhança, aqui no caso, com os índios.

Os   macacos   estavam   nus   porque   estavam   despidos   de   qualquer   sentimento   de 

superioridade,  arrogância ou volúpia. Para que os homens possam conviver em harmonia com  a 

natureza, Antonio Francisco parece alertar, é preciso que se dispam de sentimentos de prepotência.

As roupas podem significar na literatura o símbolo do velho e ilusório estilo de vida 

anterior. A nudez pode representar a recém­descoberta e efetiva verdade e o ato de estar nu torna­se 

um ato de libertação espiritual, uma forma de transcender à realidade, uma autodescoberta. A verdade 

só pode ser alcançada quando os homens perdem as suas vestes (BERMAN, 1992, p.104).

Veja­se mais acima que os macacos brancos possuem todos os sentimentos descritos 

anteriormente. Eles estão vestidos para significar sua vaidade. Um mascaramento de seus próprios e 

verdadeiros sentimentos.

De acordo com Berman (1992, p.105), pode­se dizer que os macacos amarelos estão nus 

porque são desacomodados e, ao mesmo tempo, é a maneira como desenvolve a sua humanidade 

plena   uma   vez   que   nus,   eles   se   tornam   iguais,   reconhecendo­se   uns   nos   noutros.   A   nudez   dos 

sentimentos de volúpia e vaidade humanas aumenta a sensibilidade e a vida interior. Somente nesta 

nudez alcança­se a realização da plena humanidade, é somente através da realidade nua do homem 

desacomodado que se pode construir uma verdadeira comunidade. A nudez é desvelamento.

Estes macacos nus não sentem frio provavelmente, porque estão sob a exposição direta do 

calor do sol de uma ilha tropical. Mas principalmente, não sentem frio porque em épocas de frio e 
13
 MELO, 2003, p.21.
inverno é motivo suficiente para aproximarem­se mais ainda e enfrentar coletivamente através do 

calor dos corpos nus, o frio que gela os corações.

PARA RESOLVER A CRISE DE VALORES: DESACELERAR O RITMO, VOLTAR AO 
PASSADO? – POR UM GOVERNO DA PREGUIÇA E UM MODO DE VIDA POÉTICO

Nas poesias expostas aqui, Antonio Francisco parece afirmar a necessidade de voltar ao 

passado, deixar o progresso de lado. Mas não se pode aferra­se a tradições milenares, em busca de um 

passado histórico que não pode mais voltar (DANTAS, 2001, p. 33). Defender uma organização 

familiar da produção, continua Dantas (2001), é remeter a uma utopia “franciscana” de vida quando 

se dispõe de uma base técnica que permite libertar o trabalho da sociedade dos estreitos limites da 

privatização capitalista da informação (p. 37).

É verdade que é preciso desacelerar, se necessário, para que os homens possam viver. 

Sem a pressa da vida ritmada como um relógio de fábrica, aproveitar os instantes com a sua família, 

saber quem é o seu vizinho e conversar com ele, cumprimentar o “desconhecido” do caminho do seu 

trabalho ou aquela pessoa que você sempre encontra no ponto de ônibus. Se importar com as pessoas, 

perguntar como estão, escutá­las. Se é preciso desacelerar o ritmo para que se possa melhorar as 

relações entre os homens, que assim seja.

As constantes mudanças, a falta de estabilidade dos valores sociais não é de todo ruim. 

Esta situação impele os homens a aspirar às mudanças em sua vida pessoal e social, de uma maneira 

ativa se deliciar pela mobilidade, buscar a renovação e olhar para o futuro – a burguesia fomentou 

uma   cultura   humanística   de   ideal   desenvolvimentista   (BERMAN,   1992,   p.94).   O   problema   do 

capitalismo,   continua   Berman   (1992,   p.95)   é   que   restringe   esse   desenvolvimento   aos   limites   do 

mercado burguês.

Alguns   atribuem   as   mutações   tecnológicas   o   sentido   do   trabalho   precário,   a   sua 

intensificação e a formação de uma camada de excluídos da modernização tecnológica (LOJKINE, 

1995, p.27). Mas Lojkine reconhece que as mutações tecnológicas desenvolvem­se em uma relação 

contraditória “entre a lógica da rentabilidade mercantil e a especificidade não­mercantil das relações 

fundadas   na   comunicação”   (p.30).   O   progresso   tecnológico   não   incumbe   apenas   destruição   e 

violência. As suas possibilidades são paradoxais. 
As possibilidades técnicas do capitalismo contemporâneo agudizam “o conflito entre as 

formas novas de organização técnica do trabalho e a antiga organização social” (LOJKINE, 1995, p.

42). E segue o autor, “o futuro das atuais mutações sócio­técnicas não aponta para um ‘retorno’ em 

direção” a um modo de produção anterior (LOJKINE, 1995, p.12). A possibilidade de “uma nova 

etapa  histórica que nos  permita  associar  uma organização  solidária  e  democraticamente culta  da 

produção e da sociedade, com uma existência libertada do trabalho” (DANTAS, 2001, p. 35).

É preciso saber utilizar a tecnologia de modo a diminuir o tempo de trabalho, aumentar o 

tempo livre e assim os homens poderem aprimorar o espírito, cultivar a alma. “De ‘máquina’ que 

substitui de domina os sujeitos humanos, o computador poderá tornar­se ‘instrumento’ que amplia a 

inteligência humana. A recusa desta opção, conservando a utilização elitista e tecnocrática a das 

Novas Tecnologias da Informação, implica nas crises” (LOJKINE, p.22, 1995). 

  A tecnologia poderia ser um “dos meios através dos quais a sua condição [do pobre] 

poderia ser melhorada” (DANTAS, 2001, p. 31).

É bem verdade, e pode­se até ter um sentimento pessimista de duvidar do futuro, que 

ainda não se construiu um projeto que seja capaz de combinar o estágio atingido pela “nova base 

técnica   e   cultural   da   atual   etapa   histórica”   e   a   melhoria   “tanto   material   quanto   espiritual   das 

massas” (DANTAS, 2001, p. 36).

CONCLUSÃO

É caminhando pelas ruas que Antonio Francisco se inspira na elaboração de suas poesias. 

Na observação da vida cotidiana, com a sua bicicleta aliada incansável, às vezes toma o caminha mais 

longo para que possa, além de apreciar o passeio e não se prender ao ritmo frenético do tempo 

relógio, olhar o seu entorno social. 

É o homem que passa por ele na ponte sobre o Rio Mossoró e comenta algo que ele 

transforma em poesia, é a senhora que passa em frente a sua casa com a mesma sandália, são os 

transtornos dos mossoroenses com os taxistas da linha para Natal. Enfim, Antonio Francisco é tomado 

pelo flanerie que Benjamim(p.70) refere­se a Baudelaire na conquista da rua. É o poeta errante a caça 

de rimas (p.70). E Antonio Francisco identifica­se com cada um deles, com suas dores e angústias, e 
somente por isso consegue retratá­las tão bem em formas de rimas.

Antonio Francisco é sensível ao que ver em seu entorno social e dar forma, com muito 

talento, ao que sente. É uma poesia engajada no sentido em que capta os novos problemas sociais de 

forma aberta, produzindo simbologias novas para representá­lo, Antonio Francisco descobre novas 

metáforas e contos para narrar às aflições humanas diante dos novos desafios (SARTRE, 1993).

Antonio Francisco trata os novos problemas sociais como solicitação ao ser humano na 

expectativa de que lhe ouça em seu íntimo, em seu espírito, reformando suas atitudes perante a 

natureza e entre seus semelhantes. como Simmel (1979) Antonio Francisco parece perceber que está 

havendo um retrocesso na cultura do indivíduo em relação à espiritualidade, delicadeza e idealismo 

(p.23).

O  poeta cordelista não só chama a atenção para esta crise de valores como também 

convoca a humanidade para combatê­la, propondo, ou melhor, fazendo um apelo aos homens através 

de sua poesia para a necessidade de mudança de comportamento entre si e com a natureza. Um apelo 

que parece mais um grito de socorro, um grito de alguém que se ver sufocado pela areia movediça, 

que seja, de uma pós­modernidade.

As poesias de Antonio Francisco apontam para uma visão negativa do progresso como 

algo que destrói a natureza. Os recursos tecnológicos adquiridos conduzem ao artificialismo da vida 

humana e a destruição da arte de viver – sua qualidade de vida. Há um esfriamento nas relações entre 

os seres humanos cada vez mais maquinados. Aumentam­se os instrumentos tecnológicos, diminui a 

vida saudável no planeta Terra. Esta parece ser a mensagem do poeta.

As interpretações possíveis da poesia de Antonio Francisco não se encerram neste artigo 

nem tão pouco todas os sentimentos que possam despertar. Antonio Francisco faz um convite a uma 

reflexão sobre o que está se fazendo com a vida humana: quem pode ficar indiferente a este convite?

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. A Modernidade (Paris do Segundo Império). In BENJAMIN, Walter. Charles  
Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989 (Obras Escolhidas, v. III).

BERMAN,   Marshall.  Tudo   Que   É   Sólido   Desmancha   No   Ar:  a   aventura   da   modernidade.   9ª 
reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.87­125: Marx, modernismo e modernização.
DANTAS, Marcos. Informação e trabalho no capitalismo contemporâneo. Lua Nova. São Paul, 2003, 
nº  60, p. 05­44.

EVANGELISTA, João Emanuel. “Ascensão” e “Queda” da Modernidade? (mimeo). Natal, 1999.

HARDT,   Michael;   NEGRI,   Antonio.  Multidão:  guerra   e   democracia   na   era   do   império.  


Rio de Janeiro: Record, 2005. p.137­290: Multidão.

HARVEY, David.  A Condição Pós­Moderna:  uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 


São Paulo: Loyola, 1992.

JAMESON, Fredric. Pós­modernidade e Sociedade de Consumo. In: Novos Estudos CEBRAP. n. 12, 
São Paulo, junho de 1985.

LOJKINE,   Jean.  A   Revolução   Informacional.   São   Paulo:   Cortez,   1995.   p.11­47:   Introdução   e 
Revolução Informacional: utopia, realidade ou potencialidade.

JORNAL O Poti, Antonio Francisco, sessão notícias diversas, 21 de maio de 2005.

MEIRELES, Carlos. Poeta Antônio Francisco: O Patativa de Mossoró, Jornal O Mossoroense, sessão 
Autores e Obras, 27 de julho de 2003.

MARX,   Karl.  Contribuição  a  critica  da  economia  política.  2.ed.   São   Paulo:   Martins   Fontes.   p. 
199­232: Introdução a critica da economia política.

MELO, Antonio Francisco Teixeira de.  Por motivos de versos.  5.ed. Mossoró­RN: Queima­bucha, 


2003.

___________________________.  Dez cordéis num cordel só.  7.ed. Mossoró­RN: Queima­bucha, 


2006.

MORIN, E.  Uma política de civilização.  Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p.11­41 e p.115­169: Em 


busca dos fundamentos perdidos e mundialização: última oportunidade ou desgraça ultima para a 
humanidade?

____________. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.19­108: Saber ver.

SARTRE, Jean­Paul. Que é a literatura? 2.ed. São Paulo: Ática, 1993.

SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O Fenômeno 
Urbano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p.11­25.
SOUZA, Alex. Estante, Bazar. N. 25, v. 1, junho de 2000.

www.cortinadevidro.com.br.  Acesso 26 de outubro de 2007.

XAVIER, Nilton. Alma franciscana. www.ceinet.com.br. Acesso dia 28 de outubro de 2007.
RETÓRICAS DO OLHAR E TRAMAS DA NARRATIVA14

Autora: Julie Antoinette Cavignac, professora doutora do DAN/ UFRN.

Autor: Antonio Motta, professor doutor da UFPE/Universidade de Salamanca­ES

I
Contava­se em Papary
A lenda de uma sereia;
Era a história de Jacy
Jovem tapuia da aldeia,
Jacy famosa e catita
Filha do chefe Aribó

II
Era a índia mais bonita,
Jacy famosa e catita
Do vale do Capió
Filha do chefe Aribó
Amava com amor ardente
Guaracy jovem guerreiro
Cujo peito igualmente
Nasceu um afeto primeiro

III
Sozinho na solidão
Guaracy vagava à toa
Ora ao redor da caiçara,
Ora ao redor da lagoa

IV
Certa vez quando (Guaracy) pescava
Tentando esquecer as mágoas
Ouviu que perto cantava
A voz de Jacy nas águas

V
A delirar, Guaracy

14
 Uma versão resumida deste artigo foi publicado no livro: O imaginário e o poético nas Ciências Sociais, organizado 
por José de Souza Martins, Cornélia Eckert, Sylvia Caiuby Novaes, Bauru, SP, Edusc, 2005: 225­254.
Na lagoa mergulhou
Seguiu a voz de Jacy
E a tona não mais voltou

VI
Hoje esta lenda triste
Quem se dispõe a contar
Vê quanto mistério existe
Entre a lagoa e o mar.

Lenda da lagoa de Papary

RESUMO

Na antropologia, tem­se observado com bastante freqüência a confluência de diferentes perspectivas 

teórico­metodológicas, como a teoria literária e a história, cujo foco central do debate incide sobre as 

modalizações   da   narratividade,   notadamente   sobre   o   modo   pelo   qual   a   descrição   e   a   narração 

etnográfica se constroem, podendo ser lidas como textos. Entretanto, outras questões importantes 

somam­se   a   esse   tipo   de   aporte   metodológico:   como   dar   conta   da   multiplicidade   de   formas 

discursivas orais e como resolver os problemas conceituais ligados às investigações que têm como 

matéria prima o texto oral e o relato do passado? Com efeito, a título de exemplo, em pesquisas que 

envolvem   o   uso   da   memória   e   o   exercício   da   rememoração   dos   interlocutores,   identificamos   a 

presença de narrativas multiformes, difíceis de serem manipuladas pelo antropólogo. A partir dos 

resultados das investigações empíricas já realizadas, o trabalho propõe desenvolver uma reflexão 

sobre   a   existência   de  variabilidades   textuais   discursivas,   de   atos   performativos,   interpretativos   e 

intersubjetivos dos modos de narrar, apreendidos por meio de suas múltiplas formas de oralidade e de 

temporalidade.
RETÓRICAS DO OLHAR E TRAMAS DA NARRATIVA

As pesquisas de cunho antropológico, que incluem formas discursivas orais, raramente 

dedicam­se ao seu estudo detalhado. As falas dos locutores são pouco exploradas pelos estudiosos 

que, na maioria das vezes, não sabem o que fazer com elas. Geralmente, servem de ilustração ou de 

comprovação   dos   argumentos   apresentados   no   decorrer   de   seus   estudos   monográficos.   Fora   os 

estudos clássicos sobre o mito ou, mais recentemente, os que tratam dos aspectos performáticos das 

narrativas, encontramos poucos trabalhos que tentam desvendar as dificuldades ligadas às opções 

teórico­metodológicas feitas pelos pesquisadores em campo. Quando escolhemos o texto oral e o 

relato do passado como ponto de observação da sociedade, vários problemas surgem, a maioria deles 

ligados   à   multi­pluridisciplinaridade   intríseca   ao   objeto.   Só   uma   perspectiva   que   englobe   as 

dimensões literárias, históricas e sociais dos textos permitiria abranger a complexidade dos discursos 

narrativos   coletados.   A   partir   de   pesquisas   que   envolvem   o   uso   da   memória   e   o   exercício   da 

rememoração   dos   interlocutores,   identificamos   a   presença   de   narrativas   multiformes,   difíceis   de 

serem manipuladas pelo antropólogo. Com efeito, este trabalho propõe desenvolver uma reflexão 

sobre a existência de variabilidades textuais discursivas e as modalidades das percepções do passado, 

num   sistema   de   oralidade   mista.   Assim,   deparamo­nos   com   a   necessidade   de   um   tratamento 

específico   das   expressões   narrativas   coletadas   em   campo:   nelas,   desenha­se   uma   representação 

normativa do passado e surge uma memória histórica e identitária revestida pela matéria simbólica. 

Nossas atenções serão centradas no texto oral, em particular àquele que faz referência a 

um   passado   longínquo,   integrando   figuras   fantásticas   e   aparições   sobrenaturais   ou   àquele   que 

apresenta uma versão narrativa da história – como as lendas de fundação das cidades. Na ocasião, 

refletiremos   sobre   as   correntes   teóricas   que   apontaram   pistas   para   solucionar   o   problema   da 

variabilidade textual e, num outro momento, examinaremos a importância da dimensão identitária que 

se encontra embutida nos textos e nas falas cotidianas, para poder apontar para as incoerências e as 
recorrências encontradas no discurso local sobre o passado.

LITERATURA ORAL: “PARENT PAUVRE” DO MITO

O  fenômeno da oralidade agrupa um grande número de expressões culturais que são 

geralmente tratadas do mesmo modo, isto é, a literatura oral nas suas diferentes formas: em verso ou 

em prosa, cantada, declamada, improvisada, etc. ­, as genealogias, as formas narrativas presentes nos 

rituais – sobretudo as fórmulas mágicas ­, os costumes, as receitas e as técnicas, transmitidas pelas 

gerações passadas. 

A hipótese não assumida que sustenta a maior parte dos trabalhos sobre a literatura oral é 

a   de   que   o   seu   estudo   possibilitaria   voltar   até   as   origens   da   sociedade   estudada,   sendo   esta 

considerada como uma sobrevivência do passado. Nessa perspectiva “folclorizante”, a conservação 

das  narrativas orais ajudaria a manter a memória coletiva e eles ofereceriam uma explicação   do 

presente.   Seu   estudo   permitiria   também   perceber   as   mudanças   culturais.   Em   suma,   os   textos 

representariam uma espécie de cimento cultural de um grupo determinado. Além disso, a atualização 

das narrativas pela performance oral possibilitaria entender a continuidade das tradições narrativas 

(Zumthor   1983:   53).   Fora   os   textos   ‘ensinados’   que   dão  uma  explicação   da  história  ­   mitos   de 

fundação,   lendas históricas  ou crônicas   –, os mitos  e os  contos, juntos  aos  ritos e os  costumes, 

constituem uma herança oral integrada e “retrabalhada” a cada geração. 

Sem rejeitar totalmente essas idéias, mas afastando­se de um essencialismo perigoso, não 

podemos esperar encontrar, nas produções literárias, o reflexo fiel do passado ou do presente da 

sociedade estudada nem a marca da sua identidade. Retomando os principais argumentos de Claude 

Lévi­Strauss (1964: 9­40, 1973, 1974) e aplicando­os ao nosso objeto, podemos esperar iniciar uma 

reflexão sobre a variabilidade das formas narrativas para servir de subsidio a uma etnografia dos 

símbolos. 

Assim, já sabemos que o mito não tem uma função prática evidente apesar de ele se 

inscrever   numa  realidade  etnográfica   específica  e  de  manter  uma  certa   contigüidade   com  outras 

expressões   orais   da   cultura   (contos,   lendas,   tradições,   ritos)   (Lévi­Strauss   1964:   12).   Essas 

“manifestações da atividade mental ou social” (Ibid) não retratam fielmente o passado das sociedades 
sem escrita. Nessa perspectiva, é preciso analisar um discurso formalizado culturalmente, levando em 

conta o contexto de enunciação e a liberdade criativa do locutor. Mesmo sendo obras de ficção, as 

narrativas aparecem como o produto do “pensamento objetivado”, pois verificamos que apresentam 

uma versão normativa dos eventos históricos e levam consigo a lembrança de uma identidade étnica 

muitas vezes apagada voluntariamente. O “conto”, termo genérico que no nosso caso designa as 

narrativas coletadas em campo, poderia então ser definido como uma categoria do discurso nativo, um 

texto com um alto valor etnográfico que permitiria atingir não uma realidade presente ou passada, 

mas a sua modelização; a forma (oral) sendo determinante na perpetuação deste discurso formalizado. 

DOS FOLCLORISTAS AOS SEMIÓTICOS

Os   estudos   clássicos   sobre   a  poesia  popular   do  Nordeste  brasileiro   não  conseguiram 

aprisionar   a  riqueza  do  material  encontrado  numa perspectiva  teórica,  deixando mais   registros   e 

antologias do que análises consistentes15. A questão da narrativa foi confiada aos folcloristas e aos 

historiadores amadores, sendo possivelmente considerada como objeto indigno de uma investigação 

sociológica,   com   notáveis   exceções,   como,   por   exemplo,   Florestan  Fernandes,   sob   influência   de 

Bastide. O estudo foi duplamente dificultado porque ele foi tocado para sempre pelo estigma dos pais 

fundadores: Sílvio Romero, Euclídes da Cunha e, mais recentemente, Luís da Câmara Cascudo que 

empreendeu um estudo romântico da literatura oral. Neles, o sertão é apresentado como o “lugar” de 

uma poesia que glosa eternamente sobre assuntos regionais clássicos: a seca, o fanatismo religioso, o 

cangaço, etc. (Cavignac 1997). Por outro lado, e de um modo geral, o conceito de “oralidade” é 

utilizado há bastante tempo sem que os pesquisadores se interessem em definir os seus limites e a 

natureza dos seus objetos de estudo: inventada pelos folcloristas, a terminologia foi aproveitada e 

retomada pelos antropólogos que a utilizam junto ao conceito de tradição. De fato, podemos encontrar 

vários   tipos   poéticos   e   literários   distintos   que,   na   hora   da   análise,   precisam   de   um   tratamento 

específico.

Em   campo,   o   pesquisador   interessado   na   coleta   da   tradição   oral   encontra   os   textos 

misturados: o locutor não distingue os contos maravilhosos das lendas, dos provérbios, das parlendas, 
15
 Podemos reconhecer Luis da Câmara Cascudo (1952) como figura representativa de uma tal perspectiva. 
das cantigas de roda, das canções, dos romances de pura tradição ibérica. As fronteiras entre os 

gêneros   narrativos   tornam­se   cada   vez   mais   tênues   e   incentivam   a   ignorância   metodológica   da 

multiplicidade de gêneros narrativos. Em outras palavras, e para retomar uma discussão clássica, os 

limites entre o mito e o conto enfraquecem­se nos seus contextos de colheita. Podem ser definidos 

como   ficções   narrativas,   o   segundo   sendo   geralmente   descrito   como   uma   degenerescência   do 

primeiro. O conto, então, seria de uma natureza similar, mas não teria o caráter sagrado do mito; 

atualizada à cada enunciação, a estória perderia força e serviria para divertir ou fixar a experiência 

humana. Porém, todos os estudiosos do assunto concordam em afirmar que essa distinção aparece 

pouco explicativa. Os gêneros literários correspondem a categorias próprias da sociedade investigada 

ou do pesquisador (Belmont 1986: 56; Boyer 1982: 6; Goody 1979: 210; Propp 1983: 27; Lévi­

Strauss 1964: 12 e 1973: 140; Zumthor 1983).  O conto popular é o gênero mais estudado de todos 

pelos folcloristas, aparecendo como uma obra anônima, porque nasce da memória coletiva e pertence 

a todas as camadas sociais. Descrito como singelo e revelador de um estado de inocência, o conto não 

parece tão digno de estudo hoje em dia. Porém, deparamo­nos com uma soma de narrativas que 

podem ser classificados como “contos” e oferecem um material rico de pesquisa. 

Propp   (1984),   centrando   sua   análise   nas   ações   dos   personagens,   é   o   primeiro   em 

visualizar a recorrência formal dos contos de encantamento e em apontar para a possibilidade da 

utilização de uma perspectiva comparativa. Em 1928, no seu livro pioneiro Morfologia do Conto 

Maravilhoso, como em 1946 no seu livro As raízes históricas do conto maravilhoso, o formalista 

russo afirma, com ênfase e com bastante humor, que:

Seria um erro crasso insistir nas posições do empirismo estrito e considerar o conto 
como   uma   espécie   de   crônica.   Comete­se   o   erro   desse   tipo   quando,   por   exemplo, 
procuram­se   na   Pré­história   serpentes   efetivamente   aladas   e   se   afirma   que   o   conto 
conservou a lembrança delas. Nunca houve serpentes aladas, nem pequenas isbás sobre 
patas   de   galinha.   E   entretanto   elas   são  históricas;   mas   o  histórico   não   são   ela,   em   si 
mesma, e sim o seu surgimento no conto; e é este que precisa ser explicado (Propp 1997: 
20­21).

Nesse sentido, é preciso se deter no contexto de surgimento dos elementos narrativos e 

analisar   os   motivos   à   luz   da   realidade   histórica   e   etnográfica.   Os   trabalhos   pioneiros   de   Propp 


inspiraram diretamente Lévi­Strauss (1974: 235­265) na elaboração do seu método16  . Porém, se o 

próprio “inventor” da antropologia estrutural demonstrou a possibilidade da sua utilização para outras 

narrativas que não sejam os mitos, poucos estudiosos seguiram os seus ensinamentos (Belmont 1970, 

1986).  Parece  que a literatura oral foi apagada pela análise estruturalista, por considerá­la como 

“parent   pauvre”   do  mito. Nesse  sentido, a  perfeição  e  a amplitude do modelo  estrutural  inibem 

qualquer um. De um modo geral, parece que, pelo menos na antropologia, a análise narrativa foi 

‘esmagada’   pela   explicação   estruturalista   preocupada   em   primeiro   lugar   em   procurar   esquemas 

universais   do   pensamento  humano,  separando  assim  as   sociedades   das   suas   produções   literárias. 

Durante década, o mito era, dentro das produções orais, o único objeto legítimo de investigação 

antropológica, revelando as elaborações simbólicas mais profundas das populações estudadas (Lévi­

Strauss 1974: 235­265). 

Atualmente, com a crítica da pretensão universalista do estruturalismo e com a abertura 

da disciplina a outras vias de explicação, torna­se possível adotar uma perspectiva pluridisciplinar, 

voltada para a sociedade produtora da sua história17  , em tendo a antropologia eliminado as visões 

românticas associadas às sociedades primitivas e os estudiosos constatado a presença da história e da 

antropologia num mesmo campo da pesquisa – a da memória. 

Partindo de uma crítica da perspectiva clássica e criticando em particular a noção, de 

Lévy­Bruhl,   de   mentalidade   primitiva,   Lévi­Strauss   (1989)   matizou   o   conceito   de   pensamento 

selvagem, muito próximo do pensamento mítico, esboçado por Maurice Leenhardt (1971). Não se 

trata do pensamento dos selvagens. Calcado na oralidade, designa a atividade espontânea do espírito 

humano, um pensamento altamente simbólico que revela a diversidade da cultura humana – arte, 

jogos, culinária, hábitos corporais, religiosidade, organização social etc. – ao mesmo tempo em que 

aponta   para   existência   de   universais,   regularidades   no   funcionamento   do   espírito   humano.   Daí 

entendermos a definição do mito como sendo uma criação narrativa simbólica atemporal e universal, 

pois, segundo essa perspectiva, é uma das maiores expressões do espírito humano (Lévi­Strauss 1989: 

152­205). Além da perspectiva universalizante adotada pelos estruturalistas, a outra de maior impacto 

é a crítica feita pela corrente da antropologia semiótica, na qual C. Geertz (1989: 15) se reconhece, 

16
 O método de Propp inspirou outros estudos sobre os contos, sobretudo que tratam da literatura oral e da mitologia 
africana ( ver os trabalhos de D. Paulme, M. Griaule e G. Dieterlen) e até mesmo estudos sobre o cordel (Slater).
17
 História com ”h” designa a disciplina para diferenciar da estória (oralidade).
que é ligada à visão estática da cultura humana. A entrada das questões ligadas à historicidade e às 

temporalidades   diferenciadas,   como   o   tema   da   mudança   cultural   após   o   contato   nas   sociedades 

colonizadas,   acompanha­se   de   uma   multiplicidade   de   estudos   integrando   a   dimensão   diacrônica, 

perspectiva que lembra o caminho feito pelos historiadores em sentido contrário.  

Uma   outra   via   –   mais   recente   ­   de   apreensão   da   literatura   oral   é   pelo   estudo   da 

performance das produções literárias e poéticas, que supõe um estudo preliminar da língua. A etno­

linguística, que se propõe a estudar as relações entre uma língua determinada, a cultura e a sociedade 

que a ela estão ligadas, é a disciplina que se aproximaria mais do estudo das produções discursivas de 

um grupo a partir de um ponto de vista antropológico. Considerando a importância dos modos de 

transmissão,   os   “novos   folkorists”   americanos  elaboram   um  método   de  investigação   fundado   na 

performance (Bauman 1975; Tedlock 1971, 1983). Por outro lado, seguindo o caminho aberto por 

Claude   Lévi­Strauss,   muitos   antropólogos   recorrem   também   à   semiótica,   centrada   na   análise   do 

discurso e das operações cognitivas. A investigação das estruturas discursivas profundas permitiria a 

aparição   de   uma   significação.   Algumas   dessas   perspectivas,   que   fornecem   um   método   de 

investigação, no entanto, são bastantes técnicas e centradas principalmente na língua e nas técnicas de 

transmissão do saber. Mesmo que associando os aspectos sócio­culturais das produções lingüísticas, 

elas   não   conseguem fazer  uma  boa  integração do estudo dos sistemas  de signos  ao  do material 

etnográfico e, sobretudo, não levam em conta a especificidade da análise das produções literárias que 

adotam uma forma narrativa. Nesse caso, o termo etno­literatura seria mais apropriado, mas não foi 

erguido em especialidade e, ainda assim, não é suficiente para tratar das especificidades da narrativa – 

por exemplo, a utilização de fórmulas, a repetição ou as ligações do oral com o escrito etc. 

Concebido como suporte da memória do grupo ou das suas produções simbólicas, o texto 

oral vai ganhar novos adeptos com o revival dos anos setenta e a crise de objeto da antropologia. Ao 

mesmo tempo em que são redescobertas as tradições das populações camponesas européias, que eram 

até então estudadas pelos folcloristas, novos estudos aparecem ao nível das jovens nações, tendo 

como   enfoque   principal   as   modificações   ocorridas   durante   o   processo   colonizador.   Assim,   as 

sociedades  exóticas tornam­se os campos de investigação “natural”  dos antropólogos europeus  e 

americanos,   principalmente   a   partir   da   generalização   dos   movimentos   de   libertação   das   antigas 

colônias e com o surgimento de uma antropologia nativa e, às vezes, nativista. 
Com o retorno dos antropólogos ocidentais ao velho terreno dos folcloristas, a disciplina 

teve de elaborar novos instrumentos de investigação para estudar a tradição oral. Uma das vias mais 

ricas – que, às vezes, integra o estudo do texto literário ­ resulta da aproximação da antropologia e a 

história  (Le Goff 1996). O trabalho pioneiro e inventivo de Maurice Hallbwachs  abre a via  das 

pesquisas   sobre   a   memória   que,   de   “coletiva”,   se   torna   social.   Suas   reflexões   sobre   as   marcas 

memórias ou sobre a importância do esquecimento continuam sendo totalmente atuais, pois: “É que a 

história, com efeito, assemelha­se a um cemitério onde o espaço é medido e onde é preciso, a cada 

instante, achar lugar para novas sepulturas.” (Hallbwachs 1990: 55).

Podemos perceber esse movimento de aproximação entre as disciplinas vizinhas com o 

surgimento   dos   trabalhos   da   história   oral   e   dos   estudos   com   o   objetivo   explícito   de   resgatar   a 

memória  dos   excluídos.  Nessa  farta  produção,  ainda  em  plena   expansão  no  Brasil,  encontramos 

histórias   de   vida   adaptadas   pelos   pesquisadores   que   eram   apresentadas   como   autobiográficas, 

descrições   de  modos  de  vida,  de  profissões  ou de técnicas  desaparecidas,  análises  finas  sobre  a 

percepção nativa da colonização etc18 . Inventado na França, o termo “etno­texto” designa qualquer 

produção discursiva – independentemente da sua forma – elaborada pelo grupo e que visa a reforçar a 

sua   identidade   através   da   rememoração   (Bouvier   1992)19  .   Assim,   não   podemos   negligenciar   a 

importância  dos  trabalhos dos historiadores  que seguem de perto os  dos  antropólogos, buscando 

enfatizar a importância das representações do passado e da consciência histórica contida em formas 

narrativas a partir do ponto de vista do nativo. Nelas, aparecem temáticas relacionadas à memória e à 

identidade, enriquecendo o diálogo entre a antropologia e a historia. Nesse sentido, podemos ressaltar 

a importância das reflexões de M. Pollack (1989), de R. Price (1994, 1998) e de N. Wachtel (1990; 

1993; 1996;2001). Sem romper com o estruturalismo, esses trabalhos mostram a existência de uma 

história não consciente, subterrânea, invisível e não oficial, que nos levam para a investigação das 

representações nativas do tempo e do espaço.

18
 Ver uma discussão mais detalhada em Cavignac 1997a: 208­213.
19
 Cf. a definição de Idelette Muzart­Fonseca dos Santos in Bernd e Migozzi (1995). No Brasil, poucos antropólogos 
seguiram essa pista. Os especialistas da literatura, adotando os métodos e perspectivas teóricas dos antropólogos, 
investigam há décadas a tradição oral – sobretudo nordestina. Na sua grande parte discípulos de Paul Zumthor 
(1983), eles apontam para a vocalidade das literaturas orais, adotando os métodos e a perspectivas das ciências 
humanas (Ferreira 1996; Santos 1997; Santos in Bernd e Migozzi: 1997, 35­37).  Cf. a definição de Idelette Muzart­
Fonseca dos Santos in Bernd e Migozzi (1995)
Porém, a sedução da explicação histórica está presente em todos os momentos das nossas 

pesquisas.  Esse perigo é de mesma natureza de que a tentativa de encontrar, nas narrativas,  um 

reflexo fiel da realidade. Cada vez mais encontramos aproximações entre história e antropologia sem 

que as fronteiras disciplinares sejam dissolvidas: cada vez mais os historiadores fazem uma etnografia 

do passado e os antropólogos têm como fontes os documentos escritos, como, por exemplo, a questão 

dos limites territoriais das comunidades quilombolas e indígenas.

Vista dessa perspectiva, problemas são colocados ao antropólogo “em campo”, na hora da 

coleta e da análise do material. A indeterminação na terminologia, ligada à natureza do objeto (texto, 

discurso, tradição, literatura oral, folclore, etc.) e as dificuldades metodológicas são os primeiros 

obstáculos  que os pesquisadores devem enfrentar. Fora a via estruturalista, não visualizamos um 

método satisfatório.

A VIA DAS NARRATIVAS E DA ANÁLISE SIMBÓLICA A PARTIR DA IDENTIDADE E 

DA MEMÓRIA

Propomos uma reflexão que contemple ao mesmo tempo as representações simbólicas – 

sobretudo as relativas ao sobrenatural, mas também ao sentimento de pertencimento a uma história 

comum e a um grupo, às imagens do passado e do espaço natural – e uma realidade histórica, a das 

populações indígenas, ainda pouco investigadas para o período pós­colonial. Ao mesmo tempo, e para 

levantarmos o véu que encobre as identidades distintas e iniciarmos as investigações, precisamos 

começar por uma revisão bibliográfica, sobretudo das produções locais.

A história e a vida cotidiana das populações rurais no Nordeste, revisitadas à luz das 

reivindicações identitárias ou da busca de um reconhecimento social, aparecem como relativamente 

novas   porque   os   grupos   surgiram   como   atores   políticos   só   nas   últimas   décadas   do   século   XX, 

inseridos em realidades sociais, econômicas ou políticas movediças e, muitas vezes, extremas, porém 

análogas   a   outras   do   continente   sul­americano   .   A   “afirmação   étnica”   se   for   contextualizada, 

corresponderá,   antes   de   tudo,   a   uma   vontade   política   que   nem   sempre   se   expressa   no   modo 

identitário.   Além   disso,   cada   vez   mais,   os   membros   dessas   “comunidades”   são   profundamente 

integrados   à   sociedade   envolvente.   Devido   à   alta   mobilidade   das   populações   nordestinas, 


encontramos, no Rio Grande do Norte, vários registros de uma memória diluída, marcos de uma 

história pouco gloriosa e, por isso, invisível ou encoberta. 

Ao inverso, existem poucos grupos organizados que reivindicam um pertencimento a um 

passado indígena ou que afirmam uma identidade contrastiva. Porém, a ausência de reivindicação 

étnica   no   estado   não   impede   que,   num   futuro   mais   ou   menos   próximo,   esses   grupos   passem   a 

redescobrir sua história e acionem, com toda legitimidade, uma das identidades possíveis, seja ela 

indígena ou negra (Cavignac 2003). De fato, quando solicitados, os indivíduos contam suas estórias 

familiares,   revelando uma rica tradição oral e um “passado mestiço”, geralmente ignorado  pelos 

historiadores. Adotam, contradizem, atualizam e reinterpretam, geralmente num modo narrativo e 

ficcional, o roteiro de uma história escrita pelas elites dirigentes. Sinal de alienação ou forma de 

resistência cultural? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? De qualquer modo, esta “solução narrativa” 

permite que a memória não se desagregue totalmente, evitando, por serem discursos pouco perigosos, 

a censura. Paralelamente, os eventos do passado serão contados várias vezes, sendo recompostos à luz 

de interesses do momento – entre outros políticos ­ e de uma situação econômica cada vez mais 

precária.

No Rio Grande do Norte, as lutas territoriais não seguiram o caminho da reivindicação 

identitária, pelo contrário. Por outro lado, e contradizendo tudo o que já foi dito sobre a emergência 

étnica, o extraordinário “despertar indígena” que encontramos em terras potiguares com a leitura do 

último censo, parece ser o resultado de um processo individual de tomada de consciência. Longe de 

ser a  reivindicação de uma identidade coletiva ou a reflexão de uma ação política fundada  num 

interesse em reconhecer os direitos ancestrais sobre um território, parece que a redescoberta pessoal 

de um passado até então abafado inicia uma reflexão introspectiva sobre raízes diferenciais que só 

hoje podem ser afirmadas e declaradas a um agente do Estado brasileiro. A afirmação individual de 

uma   identidade,   até   então   pouco   lembrada,   pode   ser   o   primeiro   passo   para   o   afloramento   da 

“consciência de uma história coletiva e de uma comunidade de destino” (Wachtel 2001: 29). 

Por isso, achamos mais pertinente iniciar a discussão a partir de uma revisão da história 

para,   num   outro   momento,   abordar   a   delicada   questão   étnica   que   começa   a   ser   colocada   pelos 

próprios interessados. Mesmo se “a leitura crítica e cuidadosa da documentação administrativa nos 

fornece(rá) apenas uma reconstrução dos acontecimentos do ponto de vista do conquistador” ou para 
uma época mais recente, dos agentes do Estado Brasileiro (Puntoni 2002: 79), devemos nos ater a ela 

e tentar apreender, nas entrelinhas dos raros textos produzidos sobre a questão, o “ponto de vista dos 

vencidos”   que,   afinal   de   contas,   deixam   transparecer   “fenômenos   de   resistência   autóctone,   (...) 

continuidades, rupturas, transformações e criações” (Wachtel 2001: 29). Essa perspectiva nos oferece 

elementos sobre a história dessas populações engajadas à força no processo de conquista colonial e 

explica em parte porque foram desprezados pelos estudiosos. 

CORTANDO CAMINHO

A uma perspectiva centrada na definição dos grupos e das suas fronteiras (Barth 1998), 

adequada   quando   da   aplicação   de   um   conhecimento   antropológico   para   elaboração   de   laudos 

técnicos, preferimos, para a ocasião, uma abordagem mais próxima de uma antropologia dos sistemas 

simbólicos, na qual os acontecimentos históricos sirvam para discussão dos elementos salientes da 

cultura.   Pois,   por   enquanto,   no   Rio   Grande   do   Norte,   não   existe   ainda   nenhum   movimento 

significativo de reivindicação étnica, apesar dos múltiplos indicadores da existência de identidades 

diferenciadas.   Aqui,   é   avaliado,   em   conjunto,   o   papel   da   memória   na   definição   da   identidade 

individual e da diferenciação dos grupos entre si, bem como é procurada a “emergência” dos atores 

marginalizados nas formas discursivas. Num outro momento, e na hora da coleta das narrativas, 

queremos focalizar o estudo nas representações do passado que nos revelam uma presença intensa do 

sobrenatural na paisagem natural. À referência  a monumentos históricos – as famosas “casas  de 

pedra”, nome genérico para todas as construções coloniais cuja elevação é geralmente atribuída aos 

holandeses   e   que   são   hoje   desabitadas,   relegadas   ao   seu   estado   primeiro   de   natureza,   pois   não 

pertencem ao mundo social ­ ou a lugares definidores de identidade local (igrejas, centros de romaria, 

cemitérios, túneis, árvores, lagoas ou montanhas encantadas, etc.) se acompanha uma glosa sobre 

fenômenos   misteriosos:   almas,   botijas   ou   animais   encantados   (Cavignac   2000).   Todas   essas 

referências se constituem em “lugares de memória” e continuam a serem “habitados” pelos espíritos 

dos seus antigos donos, sejam eles indígenas, negros ou brancos20 . Na ocasião, podemos propor uma 

reflexão   sobre os mecanismos de rememoração,  pois  o monumento ou o objeto fixa e reativa  a 


20
 Já Koster (1978: 105), em 1810 faz referência a assombrações e conta um episódio de uma casa mal assombrada na 
qual ele obrigou seus guias indígenas a passar a noite.
memória – produtora de “identidade” –, seja ela individual, familiar ou do grupo (Pollack 1989). É 

preciso, então, relativizar a teoria dos limites étnicos e adaptá­la à realidade vivida por grupos que não 

levantam a bandeira da etnicidade nas suas reivindicações políticas ou para indivíduos que não se 

reconhecem como um grupo homogêneo – como é o caso dos “índios urbanos do censo” que nem 

sequer   se   conhecem   –   ou   ainda   para   os   descendentes   das   populações   autóctones   que   não   se 

reconhecem como índios (Barth 1998). Se as fronteiras étnicas são ao mesmo tempo mantidas e 

ultrapassadas, pois se tratam, antes de tudo, de representações simbólicas, as separações entre grupos 

permitem estabelecer limites de identificação socialmente significantes, e, ao mesmo tempo em que 

separa, a fronteira produz um fluxo contínuo de indivíduos atravessando cotidianamente os limites. 

Barth abre a via para uma análise das relações entre grupos, concebidas como sistemas de 

forças sociais, políticas e econômicas, mas esquece um pouco a dimensão simbólica que é o fermento 

das ações humanas. Fundamentando as identidades coletivas, a memória se transforma em ação, pois 

os   indivíduos   e   os   grupos   fazem   escolhas   e   colocam   em   movimento   estratégias   identitárias, 

escolhendo num registro memorial e num repertório aberto, quais são as representações, as mito­

histórias, as crenças, os ritos e os saberes que lhes são úteis naquele momento. É importante analisar 

as narrativas à luz das mudanças históricas inscritas numa sociedade colonial, mas não podemos 

esquecer que são produções simbólicas e, pelo tudo que indica, encontram­se fortemente marcadas 

pelo que poderíamos chamar de uma “concepção ameríndia do mundo”. Inspirando­se em estudos 

realizados em outras regiões da América, reconhecemos aqui também o poder das “almas” e dos 

ancestrais na vida dos humanos e uma intensa comunicação entre as diferentes ordens da natureza 

(Castro 2002; Cavignac 1997; Galinier 1997; Reesink 1997). Com isso, queremos esboçar as vias de 

explicação do passado e os modelos nativos de apreensão do mundo, comparando as narrativas locais 

e as versões mais oficiais da história. Ao se discutir questões relacionadas à etnografia e à história, 

abrem­se  novas   perspectivas   que  permitem  entender   como  se  elaboram  os   processos   identitários 

conjuntamente à reiteração de uma cultura nativa através da tradição oral (Carvalho s.d.; Cunha 1992; 

Wachtel 1993; 2001). Podemos aproximar essa perspectiva à de Nathan Wachtel (2001: 32), quando 

ele  propõe   a  abordagem  da “problemática  da  construção  da identidade  nas  suas  relações   com  a 

memória   coletiva”.   Para   isso,   é   preciso   utilizar   os   recursos   tradicionais   da   literatura,   as   formas 

discursivas da história e da antropologia, principalmente, no tocante à pesquisa empírica. 
Finalmente, uma discussão nesses termos, longe de se opor a outras perspectivas e ir ao 

encontro do interesse das chamadas populações tradicionais, reforça a legitimidade das reivindicações 

identitárias e territoriais dos grupos historicamente marginalizados (Arruti 1997). São freqüentes as 

críticas virulentas acerca dos movimentos políticos que envolvem esses grupos e do engajamento dos 

antropólogos. No Rio Grande do Norte, muitos grupos podem, com toda legitimidade, acionar uma ou 

outra identidade. Para isso, não é necessário que haja interesses econômicos, nem uma doutrina ou 

organização política guiando as ações, pois, como se explicaria, então, a “emergência étnica” dos 

índios urbanos e invisíveis do IBGE? A redescoberta de uma história coletiva é antecipada, nesse 

caso,   por   uma   tomada   de   consciência   individual.   De   um   modo   geral,   os   “emblemas   culturais” 

retomados   pelos   descendentes   das   populações   indígenas   nas   suas   práticas   rituais   ou   nas 

‘brincadeiras’, sejam elas ligadas ao Carnaval ou a festas de santos – os mesmos santos padroeiros 

das antigas missões ­, são formas de afirmação de uma identidade diferencial e de uma consciência 

histórica  que   estão visíveis,  por  enquanto,  apenas   nas   estatísticas.  Assim,  os   dados   recentes   nos 

ensinam  que  há,   como  no resto  do  país,  um  “despertar  étnico”   no  Rio  Grande  do  Norte   e  que 

precisamos encontrar um meio de interpretá­los. 

UMA VISÃO NATIVA DA HISTÓRIA: TEXTOS E CONTEXTOS

Tal   perspectiva   parece   servir   como   uma   via   fecunda   a   partir   do   momento   em   que, 

explicitando as mudanças ao longo do tempo, se recupera a versão da história contada pelos seus 

atores e descendentes, deixando um lugar privilegiado para a análise de suas representações, isto é, 

registros narrativos de uma memória que foi preservada ao longo dos séculos de dominação. 

Geralmente, a origem da cidade é relacionada à estória do santo, no nosso caso, às lendas 

em   torno   de   Sant’Ana   e   São   José.   Assim,   pensamos   que   é   necessário   reavaliar   as   perspectivas 

investigadas até então. As pesquisas devem contemplar ao mesmo tempo as referências ao passado, a 

importância da narrativa sagrada e as estórias de alma, para refletir, finalmente, sobre a questão da 

consciência étnica da população local. 

Para isso, é preciso ter uma idéia da representação das figuras esquecidas da história e da 

cultura do Rio Grande, pois os “índios” ocupam um lugar interessante nas representações do passado, 
no imaginário coletivo, sendo marginalizados do ponto de vista da sua atuação no espaço geográfico e 

social. Esses indivíduos, famílias ou comunidades que vivem em ambientes rurais – ou que foram 

absorvidas recentemente pelo mundo urbano ­, sobrevivem realizando atividades geralmente ligadas à 

agricultura   e   à   criação   de   animais,   inseridas   na   economia   da   região,   comercializando   produtos 

fabricados por eles mesmos nas feiras livres. 

Apesar   das   dificuldades   econômicas,   tentam   conservar   a   terra   em   que   vivem,   sendo 

muitas vezes  o único bem que possuem, o lugar onde está “enterrado”  o passado: espaço  ainda 

habitado   pelos   ancestrais   e   pelos   espíritos   sobrenaturais.   Mesmo   quando   são   reconhecidos   pela 

população   vizinha   como   “caboclos”,   é   interessante   observar   que   os   integrantes   nem   sempre   se 

percebem como são designados. Apareceria aí a marca da sua maior resistência? Assim, queremos 

avaliar a visão que essas comunidades têm de si enquanto grupo social, deixando um pouco de lado a 

questão da identidade étnica para nos dedicar ao estudo das representações simbólicas. 

Ao longo das investigações realizadas no Rio Grande do Norte desde 1990, aparecem 

temáticas e representações bastante coerentes (Cavignac 1997). O que tínhamos percebido no sertão 

apareceu com mais clareza nos nossos percursos pelo litoral e nas zonas urbanas ­ no que diz respeito 

à mobilidade da população, às narrativas escritas e orais e, finalmente, às representações simbólicas, 

sobretudo em relação ao passado e ao sagrado (Cavignac 1997, 2000). A história parece se esconder 

nas  entranhas  da terra ou nas águas subterrâneas  ­ lagoas, poços, túneis, fontes, etc.: marcos  da 

memória e sinais de resistência de uma história que não foi escrita nem considerada digna de interesse 

pelos   estudiosos.   O   universo   maravilhoso,   descrito   nas   “estórias   de   trancoso”,   nas   estórias   de 

encantamento,   nas   lendas   de   fundação   das   cidades   ou,   ainda,   nos   registros   narrativos   menores, 

informam   sobre  as   representações   nativas   do   passado   colonial   e   as   configurações   simbólicas   da 

cultura,   como   a   atribuição   sistemática   da   autoria   de   construção   dos   monumentos   históricos   aos 

Holandeses: a ponte de Igapó, o Forte dos Reis Magos, as "casas de pedras", etc. (Cavignac 2000).

Quando se examinam as representações do passado nas narrativas, exemplificamos os 

aspectos etnográficos da criação narrativa, no que diz respeito à criação de uma “nova história local”. 

Isso através da leitura de textos formalizados em narrativas, bem como na avaliação de registros 

ligados ao tema, espalhados nos discursos das pessoas entrevistadas. Logo, em um momento inicial, 

podemos analisar como as narrativas vão se adaptando a uma nova realidade para se constituírem em 
tradição:   novos   personagens   e  novas   situações   encontram­se  revestidos   com  as   velhas   estruturas 

narrativas,   retomando   temáticas   conhecidas   (encantamento,   mistério,   subterrâneo,   a   escuridão,   a 

natureza, etc). Pouco a pouco, foi se constituindo a certeza de que as imagens relativas a um passado 

comum aparecem com regularidade e homogeneidade em todo o Estado ­ quadro que poderíamos 

avançar   até   mesmo   para   o   Nordeste.   Essas   imagens   encontram­se   inscritas,   sobretudo,   mas   não 

somente, nas narrativas pertencentes a um corpus importante e pouco investigado pelos antropólogos: 

o que Vladimir Propp (1984) chama de “contos maravilhosos”. Algumas lendas de fundação foram 

anotadas  por  historiadores  amadores, cuja proposta era  resgatar a cultura e a história locais.   As 

“estórias” das cidades de São José de Mipibu e de Nísia Floresta (Papary) podem servir de ponto de 

partida para discutir a questão da identidade e a evocação do passado. Interessante notar que, na lenda 

de fundação de Papary, aparece o deslocamento de Sant’Ana para “cidade” de São José; as duas 

mantendo   uma   rixa   secular   por   causa   disso.   Esse   deslocamento   apresenta   como   protagonistas 

principais os índios. Nesse caso, que deve ser investigado detalhadamente, a narrativa conserva um 

fato acontecido no século XVIII21 !

A   referência   a   um   acontecimento   histórico,   que   geralmente   difere   da   versão   dos 

historiadores, acompanha­se geralmente do “deslocamento” de um monumento para uma outra época, 

como é o caso das obras deixadas pelos Holandeses. Também encontramos o relato da presença de 

monstros subterrâneos (aquáticos ou terrestres) povoando o subsolo das igrejas, das montanhas e das 

lagoas. Assim, em Nísia Floresta, onde já fizemos um estudo exploratório, há uma serpente morando 

na lagoa principal que regula as águas e que come regularmente uns curumins, como no tempo em 

que em Papary “só era mato” e era povoado por índios22. A associação entre o monumento (igreja) ou 

21
  Podemos   resumir   a   lenda   do   rio   que   passa   abaixo   da   igreja   contada   por  Dona   Antônia   da   Silva,   26   anos 
(20/06/2003­ Entrevistadora: Laysa Jucá): no local da igreja de Nísia Floresta, havia uma lagoa. Nela, os pescadores 
encontraram  uma imagem de santa dentro de uma folha de árvore que se inclinava formando um “O” e, por esse 
motivo, a Santa recebeu o nome de Nossa Senhora do Ó. Como não existia igreja no povoado, a Santa foi levada pelos 
pescadores para o município de São José de Mipibú. Porém, misteriosamente, a Santa voltou ao mesmo local onde foi 
encontrada. Os pescadores reencontraram­na e novamente a levaram para seu então destino. Mais uma vez a Santa 
voltou à lagoa e, finalmente, os pescadores resolveram construir uma igreja sobre a lagoa seguindo a vontade da Santa. 
Colocando o ouvido no piso da sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Ó, das laterais e do altar, ouve­se o barulho de 
um rio caudaloso que passa abaixo da igreja.

22
  Lenda da lagoa de Bonfim ou das  sete pontas (Dona Antônia da Silva, 26 anos; Dona Maria Polina, 60 anos. 
Entrevistadora:  Laysa Jucá. 20/06/2003):  a lagoa de Bonfim antigamente era  um “cacimbão”  e numa certa  manhã 
quando uma mulher, acompanhada de seus dois filhos, foi lavar roupas, como era de costume, ela não percebeu que as 
uma lagoa, um(a) santo(a) e um animal misterioso (aqui uma cobra gigante) é clássica e se reencontra 

em várias localidades do estado, sobretudo nas antigas vilas de Índios ou aldeamentos missionários 

(Extremoz, Vila Flor, Canguaretama, Ceará Mirim, etc.). São temas recorrentes e dinâmicos que 

formam os elementos díspares de uma visão bastante instigante da história local, mas que tem a marca 

de uma  presença missionária que pretendemos investigar. Se analisarmos as narrativas  à luz  das 

práticas rituais e da história local, podemos avançar numa via já clássica, pois reunidos, 

(...) Os mitos e os ritos oferecem com valor principal de preservar até a nossa época, 
sob uma forma residual, modos de observação e de reflexão que foram e, sem dúvida, 
ficam   exatamente   adaptados   a   descobertas   de   um   certo   tipo:   as   que   autorizavam   a 
natureza, a partir da organização e da exploração especulativas  do mundo sensível em 
termos de sensível (Lévi­Strauss 1989: 29­30).

Porém, se a via do estruturalismo continua pertinente, precisamos adaptar o nosso olhar a 

um grupo local e acrescentar uma dimensão temporal às nossas investigações: 

Sabemos melhor agora que as lógicas que regem as formações sociais, em seus diferentes 
recortes, têm uma pertinência poderíamos dizer regional, circunscrita no tempo e no espaço. Elas dão 
lugar a configurações diversas, mas comparáveis entre si, cada uma atualizando historicamente um 
dos casos de uma serie de possíveis (Wachtel 1990: 21).

Assim,   nessa   primeira   reflexão,   percebemos   já   que   animais   ou   seres   “encantados” 

aparecem   lutando   com   os   santos,   numa   briga   que   lembra   a   verdadeira   na   qual   os   índios   todos 

morreram – pelo menos, segundo a explicação local23 . É como se a busca de uma cosmovisão com 

crianças batiam na água com um cabaço. Quanto mais batiam, mais a água aumentava seu volume. Quando perceberam, 
estavam quase todos cobertos pela água, tentaram fugir, foram para sete direções distintas, mas de nada adiantou, a água 
os encobriu e eles se transformaram em uma imensa serpente encantada, cheia de cores, a qual emerge da lagoa em 
noites claras. Uma outra versão descreve duas crianças cantarolando uma música (que elas mesmas criaram) ao redor 
desse “cacimbão” e assim ele cresceu, se transformando em lagoa. As crianças, por sua vez, se transformaram em duas 
serpentes encantadas.

23
 A noção de “encantamento” designa a existência de uma vida misteriosa, do além, geralmente subterrânea, revelada 
aos humanos pelo barulho (pedidos, gemidos, música) à noite – aparições humanas ­, pelo sonho – no caso da botija. 
Porém, o “encantamento” não corresponde a nenhum ritual religioso (exceto nas religiões afro­brasileiras), mas é 
recorrente nas narrativas. Sobretudo no sertão, encontramos várias referencias a santos ou “corpos santos” (pessoas 
que morreram de maneira violenta ou cruel cujo corpo fica intacto e que podem “virar santos”) que obedecem à 
mesma lógica: aparição na natureza, revelação pelo cheiro, por um sinal de vitalidade na natureza (Cavignac 1997). 
Poderíamos encontrar várias conexões com práticas rituais atuais de populações indígenas no Nordeste que fazem 
referencia aos “encantados” (Bandeira 1972; Grunewald 1996). 
um substrato autóctone deixasse aparecer forças, espíritos que entram em comunicação com os vivos, 

formando  um conjunto onde almas, seres vivos e natureza comunicam (Cavignac 1997; Galinier 

1997; Viveiros de Castro 2002). 

ALMAS, BOTIJAS E BALEIAS

Parece,   então,   possível   reconstruir   os   elementos   de   apreensão   do   mundo   através   da 

análise das suas produções narrativas. Aqui, a natureza não habitada torna­se o "lugar de vida", do 

sagrado autóctone e o revelador de um passado longínquo. O subsolo contém também os seres ligados 

ao fim do mundo ­ sobretudo serpentes e animais aquáticos como baleias e peixes gigantes, almas ou 

seres humanos encantados, no caso das princesas adormecidas. Assim, a descrição minuciosa desse 

mundo repleto de monstros, de espíritos e de santos, que surgem como os primeiros colonizadores da 

região, é  relatado pelos moradores das cidades históricas através dos discursos narrativos: textos 

míticos, “histórias de almas”, milagres, romances de cordel, ou estórias de trancoso. Graças a esse 

conjunto narrativo, podemos traçar os contornos de uma cosmologia local. Reencontra­se, então, uma 

representação do mundo em que o espaço sagrado segue de perto os limites do mundo habitado pelos 

homens e, de maneira mais elástica, a história. O espaço sobrenatural se iniciaria, desse modo, na 

fronteira da cidade, ao entrar no cemitério ou numa casa abandonada. Ao atravessar qualquer zona 

deserta, os homens devem proteger­se contra as agressões dos agentes do mundo extra­humano ou 

ainda,   devem   procurar   ganhar   os   seus   favores,   realizando   rezas,   práticas   mágicas,   oferendas   ou 

mesmo súplicas, no caso das aparições de Nossa Senhora. 

Essa   representação   da   natureza   como   lugar   do   sagrado,   associada   a   um   passado 

longínquo, pode ser também vista como o resultado de uma resistência de uma memória oprimida por 

vários   séculos   de   dominação   de   todo   tipo.   O   passado,   localizado   no   subsolo   e   nas   águas,   foi 

"encoberto", aterrado com os testemunhos da história sangrenta. Temos, então, a convicção de que 

essa   representação   do   mundo   natural­sagrado   se   apresenta,   de   um   modo   metafórico,   como   a 

colonização. Podemos, então, começar a enxergar a amplitude do fenômeno. Como é demonstrado 

para outros países latino­americanos, sobretudo no México (Galinier 1997; Gruzinski 1988; Wachtel 
1991), o invasor conseguiu tomar posse de terras, eliminar fisicamente as populações nativas e impor, 

simbolicamente, contando com a ajuda da Igreja, uma legitimidade da ocupação colonial. É possível 

aplicar essa análise ao contexto nordestino, tomando como exemplo Mipibu e Papary. 

As narrativas ensinam­nos também que a elaboração da autoctonia passa necessariamente 

por uma reinterpretação singular da história. Versão plausível do passado, mostrando que os homens 

continuam   tecendo   relações   complexas   e   múltiplas   junto   aos   agentes   sobrenaturais,   sejam   eles 

considerados autóctones ou estrangeiros. Finalmente, essa análise visa, antes de tudo, a demonstrar 

que é necessário reavaliar o estudo da narrativa e que este não deve ser limitado ao estudo formal. 

Tentamos, aqui, entender os resultados da análise textual à luz das observações etnográficas e dos 

dados   históricos,   para   desenhar   os   contornos   de   uma   cosmologia   local.   Produzindo   afirmações 

historicamente possíveis para o Nordeste, os homens, contando estórias, repetindo anacronismos e 

fórmulas feitas, elaboram e reelaboram eventos passados e presentes, propondo uma reinterpretação 

local dos fatos reais, inspirando­se na “tradição”, já que não seriam tantos os elementos originais da 

cultura indígena que são reproduzidos fielmente. Resta saber de qual “cultura indígena” falamos. O 

que importa é a “moldura” – na sua acepção material ­ na qual esses elementos são integrados e 

ordenados   num   complexo   cultural.   No   caso   chipaya,   examinado   por   N.   Wachtel   (1990),   esse 

complexo é regido pela ordem dualista e por um ideal de igualdade, conjunto que é apresentado pelos 

seus   utilizadores   no   final   do   processo,   como   autóctone,   verdadeiro   e   tradicional.   É   como   se   a 

memória,   na  sua acepção ampla, por reunir gestos, práticas e discursos presentes e passados,  se 

configurasse como sendo o espaço onde são formuladas as expressões da identidade indígena. 

Assim,   a  análise  das   produções   simbólicas   permite   avaliar,   em  conjunto,   o  papel   da 

memória na definição da identidade individual e na diferenciação dos grupos entre si, bem como 

auxilia na reflexão sobre a “emergência” de atores marginalizados da história – pelo menos, quando 

essa emergência não é efetiva, as identidades contrastivas aparecem de maneira furtiva nas formas 

discursivas localizadas. Fundamentando as identidades coletivas, a memória transforma­se em ação, 

pois os indivíduos e os grupos fazem escolhas e colocam em movimento estratégias identitárias, 

escolhendo num registro memorial e num repertório aberto, quais são as representações, as mito­

histórias, as crenças, os ritos e os saberes que lhes são úteis naquele momento. 

Escolhendo privilegiar a via das narrativas – incluindo genealogias, discursos sobre o 
passado, crenças, mitos e outros textos da tradição oral ­ parece importante analisar os textos não 

somente como proposições míticas e instituições reais reinterpretadas pelos locutores mas também 

como marcas memoriais (Monod Becquelin e Molinié 1993:21­50; Lévi­Strauss 1974, 1991). Sem 

querer encontrar nas estórias um fato histórico, procuraremos nelas a interpretação autóctone desse 

fato ou, quando essa não existir claramente, tentaremos aproximar elementos que são definidores da 

identidade local de um contexto colonial. Por exemplo, como em Papary, buscaremos informações 

históricas sobre a missão religiosa e os registros de conflitos com os não índios para esclarecer as 

lendas de fundação que colocam em cena a volta de um santo para o mesmo lugar. Para isso, importa 

observar os textos, levando em conta as mudanças históricas locais. Também, e continuando a nos 

inspirar   no   estruturalismo,   é   preciso   levar   em   conta   os   “encaixamentos”   que   se   produziram   em 

situações coloniais onde pelo menos dois sistemas culturais diferentes funcionam em relação aos 

mesmos   objetos   sem   se   confundirem   totalmente24  ou,   ao   contrario,   a   existência   de   espaços 

compartilhados, como no caso  dos   fenômenos  religiosos  (padres   que os  nativos  acham  que  têm 

poderes) (Pompa 2003; Reichler 2002: 44; Viveiros de Castro 2002). 

Finalmente,   relembrando   ainda   os   resultados   da   analise   estruturalista,   poderíamos 

encontrar   nessas   produções   narrativas,   uma   concepção   ameríndia   do   mundo:   se   o   dualismo   não 

aparece aqui, outros traços recorrentes persistem, como a intensa comunicação entre as diferentes 

ordens (humanos / naturais / sobrenaturais). Pensamos que as vias de explicação do passado e os 

modelos de apreensão do mundo inscritos nas narrativas locais devem ser lidas com as versões mais 

oficiais da história. Ao se discutir questões relacionadas à etnografia e à história, abrem­se novas 

perspectivas que permitam entender como se elaboram os processos identitários conjuntamente à 

reiteração de uma lógica cultural nativa que se expressa através da tradição oral.

Vista dessa perspectiva, é interessante se empreender uma leitura cruzada dos textos orais 

e escritos, da realidade cotidiana dos moradores, dos seus discursos e das suas narrativas, sublinhando 

a importância do corpus narrativo na elaboração de uma identidade e, através desta, uma apropriação 

da história do lugar e do espaço. Seguindo ainda os ensinamentos de Claude Lévi­Strauss (1974), 

devemos analisar as diferentes expressões narrativas, sobretudo, as variantes das estórias, sejam elas 

escritas ou orais, eruditas ou populares. A metodologia adotada pode então ser definida como sendo o 

24
 É o caso do relógio jesuíta e a reação dos hurons citada por R. Reichler (2002: 44).
esforço   comparativo   das   diferentes   formas   discursivas   no   sentido   de   entender   a   produção   e   a 

transmissão dos textos e, de um modo geral, o que eles nos ensinam sobre as questões relativas ao 

sentimento de autoctonia, da identidade e das representações simbólicas, em particular, as noções de 

sagrado e de cosmologia. Longe de serem o simples reflexo da realidade social, como pensavam os 

funcionalistas, as produções narrativas informam sobre os modos de resolução de problemas lógicos, 

existenciais   e   até   filosóficos,   questionamentos   universais   estudados   pela   antropologia   clássica   e 

contemporânea. A análise das narrativas deve ser feita em conjunto à revisão das fontes documentais 

e à observação das práticas cotidianas, investigações empíricas a serem realizadas.  

 
REFERÊNCIAS 

ARRUTI, José Maurício Andion. 1997.  A emergência dos "remanescentes": notas para o diálogo 

entre indígenas e quilombolas. Mana. [online]. out., vol.3, no.2 [citado 25 Julho 2003]: 7­38. <http://

www.scielo.br/scielo>. ISSN 0104­9313.

BARTH, Frederick. 1998.  Grupos étnicos e suas fronteiras.  In: POUTIGNAT, Philippe (org.), S. 

Paulo, Unesp: 185­228.

BAUMAN,   R.   (ed.)   1992.  Folklore,   Cultural   Performances   and   Popular   Entertainments,   A 

communications­centered Handbook. Oxford Univ. Press.

_________. 1975. Verbal art as a performance. American Anthropologist 77 : 290­311.

MONOD BECQUELIN, Aurore; MOLINIÉ, Antoinette (org.). 1992. Mémoire de la tradition, Paris. 

Société d’ethnologie.
BELMONT, Nicole. 1986.  Paroles païennes. Mythe et folklore.  Des frères Grimm à Pierre Saint 

Yves. Paris, Imago. 

BERNAND,   Carmen;   DIGARD,   Jean­Pierre.  1986.   De   Téhéran   à   Tehuantepec.   L’ethnologie   au 

crible des aires culturelle, L’Homme, 97­98: 54­71.

BERND,   Zilá;   MIGOZZI,   Jacques   (Org.).   1995.  Frontières   du   littéraire,   Littératures   orale   et 

populaire Brésil/France, Limoges, éditions de l´Université. 

BOUVIER, Jean Claude. 1992. La notion d’ethno­texte, Pelen, J. N. Martel C. (Org.), Les voies de la 

parole, Aix­en­Provence, Université de Provence: 12­21.

BOYER, Pascal. 1982. Récit épique et tradition, L Homme XXII (2): 5­34. 

CARVALHO, Maria Rosário G. de. s.d.  “De índios ‘misturados’ a índios ‘regimados’”. In: M. 

Rosário   de  Carvalho   &  E.  B.   Reesink  (orgs.):  Negros   no   mundo  dos   índios:  imagens,  reflexos, 

alteridade: 82­99 (no prelo).

._________  2002.  Os Kanamari da Amazônia ociendtal: história, mitologia, ritual e xamanismo, 

Salvador, FCJA.

CASCUDO, Luís da Câmara. 1952. Literatura oral. Rio, José Olympio. 

CAVIGNAC, Julie. 1997. La littérature de colportage au nord­est du Brésil. Du récit oral à l’histoire 

écrite, Paris, CNRS.

_________. 1999. Vozes da tradição: reflexões preliminares sobre o tratamento do texto narrativo em 

antropologia, Horizontes antropológicos, 12: 245­265 {Mneme – Revista de Humanidades [On­line]. 

Disponível em URL: http://www.seol.com.br/mneme.}
_________. 2003. A etnicidade encoberta: ‘Índios’ e ‘Negros’ no Rio Grande do Norte. Mneme, vol. 

5, n. 8 (maio/julho) http://seol.bcom.br/mneme .

DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José A. L. e CARVALHO, Maria R. G. 1998 (1992). Os povos  

indígenas no Nordeste brasileiro:  um espaço histórico, In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org). 

história dos índios no Brasil, São Paulo, FAPESP/ SMC/ Companhia das Letras: 431­456.

FERREIRA, Jerusa Pires. 1979. Cavalaria em cordel, o passo das aguas mortas, São Paulo, Hucitec.

FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). 1996. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, ed. da 

FGV.

GALINIER, Jacques. 1997.  La moitié du monde. Le corps et le cosmos dans le rituel des indiens 

otomi, Paris, Puf.

GEERTZ,   Clifford.   1989.  Uma  descrição   densa:   por   uma   teoria   interpretativa   das   culturas,   In: 

Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Guanabara : 13­44.

GOODY, Jack. 1979.  La raison graphique. La domestication de la pensée sauvage. Paris, ed. de 

Minuit, traduction de Jean Bazin. 

_________. 1986. La logique de l'écriture. Aux origines des sociétés humaine. Paris, Armand Colin.

GRUZINSKI, Serge. 1988.  La colonisation de l'imaginaire. Sociétés indigènes et occidentalisation 

dans le Mexique espagnol XVI°­XVIIIe siècle. Paris, Gallimard.

GRUZINSKI,   Serge;   BERNAND,   Carmen.   1992.  La   redécouverte   de   l’Amérique,   L’Homme, 

122­123: 7­38. 
_________. 1990, 1993. L’histoire du Nouveau Monde. Paris, Fayard (vol I e II).

HALLBWACHS,   Maurice.   1990.  A   memória   coletiva.   São   Paulo,   Editora   Vértice,   Revista   dos 

Tribunais, tradução de Laurent Leon Schaffter.

JOFFILY, Geraldo Irineu. 1977.  Notas sobre a Parahyba. Seleção das crônicas de Irineu Joffily 

(1892­1901), Brasília, Thesaurus, 2a. ed.

KOSTER, Henry. 1978.  Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife, Secretaria de Educação e cultura, 

governo de Pernambuco, trad. Luis da C. Cascudo.

LAET, Jean de. 1640. L’histoire du Nouveau Monde ou description des Indes occidentales, Leyde, 

chez A. et B. Elseviers, imprimeurs ordinairez de l’Université.

LE GOFF, Jacques. 1996. História e memória. Campinas, UNICAMP, 4. ed.

LEENHARDT, Maurice. 1971. [1947] Do Kamo, la personne et le mythe dans le monde mélanésien. 

Paris, Gallimard.

LÉVI­STRAUSS, Claude. 1964. Le cru et le cuit. Mythologiques, Paris, Plon.

_________. 1973. Anthropologie structurale deux. Paris, Plon.

_________. 1974. Anthropologie structurale. Paris, Plon (réed.).

_________. 1989. O Pensamento selvagem. São Paulo, Papirus.

LOPES, Fatima Martins. 1999. Missões religiosas. Índios, colonos e missionários na colonização do  
RN. Recife, UFPE ­ Mestrado em Historia.

LOSONCZY,   Anne­Marie.   2002.  Marrons,   colons,   contrebandiers,   reseaux   transversaux   et  

configuration   métisse   sur   la   côte   caraïbe   colombienne   (Dibulla).  Journal   de   la   société   des 

Américanistes, 88: 179­201. 

MATTOSO, Kátia de Queirós; SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos; ROLLAND, Denis (eds), 

1999. Matériaux pour une histoire culturelle du Brésil. Objets, voix et mémoires. Paris, L'Harmattan.

O’DWYER, Eliane Cantarino (Org.). 2002. Quilombos, identidade étnica e territorialidade. Rio, ed. 

da Fundação Getúlio Vargas, Associação Brasileira de antropologia.  

OLIVEIRA,   João  Pacheco   de.   1998.  Uma  etnologia  dos   ‘Índios   misturados’?  Situação  colonial, 

territorialização e fluxos culturais, Mana, 4/1, Rio de Janeiro: 47­77.

_________ (org.). 1999. Ensaios em antropologia histórica. Rio de Janeiro, ed. UFRJ.

POLLAK, Michael. 1989. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos 3, Memória, Rio de 

Janeiro, 2, 3: 3­15 ( http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/43.pdf).

POMPA, Cristina. 2003.  Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial, 

Bauru, SP, Edusc.

PRICE, R. 1994. Les premiers temps. Paris, Seuil (1983. First Time: the Historical Vision of an Afro­

American People, The John Hopkins University Press).

_________. 1998. The convict and the colonel, Boston, Beacon Press.

Propp,   Vladímir.   1997.   As   raízes   históricas   do   conto   maravilhoso,   tradução:   Rosemary   Costhek 

Abílio , Paulo Bezerra, São Paulo, Martins Fontes.
PUNTONI, Pedro. 2002. A guerra dos bárbaros. S. Paulo, Edusp, Hucitec.

Imaculada Conceição.

SAHLINS, Marshall, 1987. Ilhas de história. Rio de Janeiro, Zahar.

SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. 1997. La littérature de cordel au Brésil. Mémoire des voix, 

grenier d'histoires, Paris, L'Harmattan. 

SUASSUNA, Ariano.  1971 Romance d’A Pedra d oReino e o Príncipe do Sangue do Vai­e­Volta 

(romance armorial­popular brasileiro). Rio de Janeiro, José Olympio.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1999. Etnologia brasileira, In: MICELI, S. (org.), O que ler na  

Ciência Social brasileira (1970­1995), vol. 1, antropologia, São Paulo, Anpocs, Sumaré: 109­223.

_________. 2002. A inconstância da alma selvagem. S. Paulo, Cosac e Naify.

WACHTEL, Nathan. 1990.  Le retour des ancêtres: les indiens Urus de Bolivie, XXe­XVIe siècle. 

Essai d’histoire regressive, Paris, Gallimard. 

_________. 1993. Leçon inaugurale. Paris, Collège de France.

_________. 1996. Deuses e Vampiros. De volta a Chipaya. São Paulo, Edusp. 

_________. 2001. La foi du souvenir. Labyrinthes marranes. Paris, Seuil.

ZUMTHOR, Paul. 1982. De l'oralité à la littérature de colportage. Paris, Ed. de Minuit, in: "L'écrit 

du temps", 1: 129­140.
_________. 1983. Introduction à la poésie orale. Paris, Seuil. 

_________.1980. L'écriture et la voix. Littératures populaires, du dit à l'écrit, Critique 394: 228­239.
CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UM CARÁTER: CAPISTRANO DE ABREU, SILVIO 
ROMERO E A FORMAÇÃO DO BRASIL

Autor: Eduardo Ferraz Felippe – Mestrando pela Puc­Rio, eferrazfelippe@oi.com.br.

RESUMO

A intenção deste artigo é analisar o debate entre Capistrano de Abreu e Sílvio Romero acerca da 
noção de Caráter nacional. Inicialmente, busca­se compreender como Capistrano de Abreu tornou a 
Natureza   elemento   de   distinção   e,   de   modo   diferenciado,   Silvio   Romero   tornou   a   raça. 
Posteriormente, busca­se compreender como Capistrano construiu, de maneira singular, a noção de 
raça histórica, através do diálogo pouco tematizado com a antropologia do início do século, rompendo 
tanto com a idéia de determinismo do meio como com a idéia de determinismo biológico. 

Palavras­chave: Capistrano de Abreu – História – Natureza

ABSTRACT

The intention of this article is to analyze the debate between Capistrano of Abreu and Sílvio Romero 
concerning the notion of national Character. Initially, it is looked for to understand like Capistrano of 
Abreu turned the Nature distinction element and, in a differentiated way, Silvio Romero turned the 
race.  Later, it is looked for to understand like Capistrano built, in a singular way, the notion of 
historical race, through the dialogue with the anthropology of the beginning of the century, breaking 
up with the idea of determinism. 

Keyword: Capistrano de Abreu – History – Nature 
CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UM CARÁTER: CAPISTRANO DE ABREU, SILVIO 
ROMERO E A FORMAÇÃO DO BRASIL

O convívio e o debate entre intelectuais são fundamentais para o desenvolvimento de 

sensibilidades  e   idéias   para   aqueles   que   pertencem   a   um   determinado   sistema   intelectual.   Para 

escrever e criar, o intelectual necessita estar inserido em um círculo de sociabilidade que, ao mesmo 

tempo,   potencia   e   difunde   suas   idéias,   como   também   parece   nelas   incidir   e   formatá­las, 

caracterizando­as de maneira peculiar. Por isso, a condição de intelectual está ligada a certo tipo de 

estratégia de sociabilidade, pautada em contatos e elogios, assim como as polêmicas literárias podem 

ser consideradas elementos fundamentais para o entendimento de determinado vínculo intelectual ou 

postura. Além disso, a constituição de uma rede de pesquisa, com objetos e métodos próprios, pode 

ser compreendida através do recurso a um momento de embate e de divergência ferina na idéia entre 

diferenciados   autores.  Cabe,   neste  artigo,  analisar  caso  desta  natureza:   a polêmica  literária   entre 

Capistrano de Abreu e Sílvio Romero, acontecida ao longo de mais de duas semanas de troca de 

artigos, pautada na divergência entre ambos acerca daquilo que caracterizaria o próprio do brasileiro. 

Entre tangências e dissonâncias, ambos mobilizaram não somente objetos diferenciados, mas também, 

utilizaram de maneira diferenciada a própria noção de  caráter  de um povo, abrindo brechas para 

discussões mais amplas, conforme foram mobilizados diferenciados referenciais teóricos para lidar 

com a questão.  

Em   um   artigo   de   juventude,   denominado   “O   caráter   nacional   e   as   origens   do   povo 

brasileiro”, publicado originalmente sob a forma de artigo de jornal, Capistrano debateu com Sílvio 

Romero acerca do caráter nacional brasileiro. Enquanto este último sustentava que o elemento que 
diferenciava o brasileiro do português deveria ser atribuído ao negro, o autor cearense diria que o 

fator étnico, unicamente, forneceria uma explicação empírica e ilusória sobre o estado social.25 Para 

Capistrano, seria imprescindível compreender a ação da Natureza. Ação que primeiramente seria 

passiva, fazendo com que o transplantado colonizador se submetesse ao meio, e depois ativa, com a 

necessidade de posterior integração.

Sem dúvida a Natureza, com as suas forças e seus aspectos e a raça, 
que admitimo­la como produto daquela, quer a consideremos como 
fator originário e irredutível, são dois fatores que pesam fortemente na 
feitura   de   um   caráter   nacional   e   por   conseguinte   na   estrutura   da 
sociedade.   Entretanto,   não   são   os   únicos.   Se   eles   agem   sobre   a 
sociedade, a sociedade reage sobre eles; o meio social de efeito passa 
a   ser   causa,   de   resultante   passa   a   ser   componente.   No   Brasil   é 
justamente o caso e a influência esquecida é a mais poderosa e ativa.26

A Natureza seria sujeito. Independente da forma como atue, ativa ou passiva, estaria 

sempre   presente   na   compreensão   do   nacional.   Apesar   de   visualizar   a   importância   do   negro, 

Capistrano utilizou uma observação do presente para questionar as observações de Romero: afirmou 

que se a mistura com o negro fosse a causa do atraso brasileiro, o instante que viviam representaria o 

momento   de   maior   degenerescência.   “Se   o   atraso   brasileiro   provém   da   massa   de   africanos   que 

concorreu para o aviltamento, então, agora que o cruzamento se deu em maior escala, o atraso devia 

ser e devia tender a ser maior. É pelo menos contestável.”27 

Seria a ação da Natureza, recuperada através da investigação de fontes de cronistas da 

época, que dotaria a Colônia da determinação característica, fruto da fraqueza que se apresentava 

devido à fragilidade daqueles que aqui residiam. “Por que a Natureza não deixava desenvolverem­se 

as funções, porque a ataraxia das funções trouxe a atrofia do organismo – é fácil demonstrar. O que é 

difícil é explicar estes fatos com o cruzamento com o preto.” 28 Quanto à questão – neste aspecto, para 

25
 A querela entre os dois autores ainda se estenderia em dois outros artigos intitulados “História Pátria” e “Sobre a 
Colônia do Sacramento”. Em ambos, a discussão se pautará pelos mesmos termos, diferenciando­se pouco, mas sem 
modificação das questões centrais. In: ABREU, João Capistrano de.  Ensaios e Estudos,  3° Série. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira, 1977.
26
ABREU, João Capistrano de. “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” In: Ensaios e Estudos, 4° série. 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 5. 
27
 Idem. p. 11.
28
 Idem. p.12.
Capistrano, menor – da formação étnica, o autor concordava com Romero e com Martius sobre o 

caráter eminentemente mestiço da população. Discordava, neste ponto, de Pereira Barreto, quando o 

positivista paulista afirmava que por “fatalidade biológica e determinismo sociológico”, temos sido, 

somos e seremos portugueses.29

Importante observar que, nas décadas iniciais do século XX, havia um intenso debate 

acerca das teorias raciais, que caracterizava grande parte da produção intelectual e que orientou o 

tratamento dispensado à questão da raça, levando a discussão do “problema racial” a ser vista sob um 

olhar muito particular, que acentuava a mistura de etnias. Tomando o caráter basicamente híbrido de 

nossa   sociedade   como   um   dado   natural,   como   um   elemento   do   contexto,   grande   parte   da 

intelectualidade no período dividia­se, a respeito do tema, em duas posições distintas. A primeira 

delas   sustentava   praticamente   a   inviabilidade   do   país;   essencialmente   se   imaginava   que   a 

miscigenação, ao propiciar o cruzamento, a relação entre “espécies” de qualidade diversa, levava, 

inexoravelmente, à esterilidade cultural, comprometendo a civilização no país. 

Essa suposta condenação à barbárie era criticada por uma segunda posição, que entendia a 

miscigenação como responsável pela nossa redenção. A possibilidade de percorrer essa trilha somente 

ocorreu   porque   a   mestiçagem   passou   a   ser   considerada   como   promotora   de   um   processo   de 

branqueamento, através do qual seria atingido um gradual predomínio dos caracteres brancos sobre os 

negros.30 Ambas as tendências, contudo, aliam de maneira negativa a herança recebida da mistura das 

três raças. Em ambos os casos, a supremacia branca dá sentido ao argumento: seja na primeira, que 

julga   os   constrangimentos   totalmente   insuperáveis,   seja   na   segunda,   que   aposta   na   sua   futura 

superação através de um desejo de ser similar ao Outro, o europeu, o branco, o exemplar. 

O embate entre Sílvio Romero e Capistrano se aguçou ao atribuir o primeiro à ausência de 

uma etnologia brasileira, voltada para o estudo do negro e do mestiço,  à idealização romântica do 

indígena e à questão da escravidão. Nos Estudos sobre a poesia popular no Brasil (1888), Romero 

denunciou esse descaso intelectual e abordou a influência das raças, inclusive do africano e do afro­

29
 Idem. Trata­se da crítica ao livro  Soluções positivas da política brasileira, publicado pelo positivista paulista em 
1879.
30
 Conforme afirma Lilia Moritz Schwarcz, em fins do século XIX, estabelecia­se um paradoxo entre liberalismo e 
teorias raciais em que o primeiro fundava­se no indivíduo e em sua responsabilidade social e o segundo retratava a 
atenção colocada no sujeito enquanto resultado de uma estrutura biológica singular. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. 
O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das 
Letras, 1993. pp. 11­47.
brasileiro, na poesia popular. O livro se encerra como um apelo sentimental à abolição da escravidão:

...libertemos   os   negros;   porque   os   devemos   considerar   os 


desafortunados que nos ajudaram a ter fortuna; os cativos que nos 
auxiliaram   na   conquista   da   liberdade;   os   ignorantes   que   nos 
facilitaram a posse da civilização, e hoje nos oferecem o ensejo de 
praticarmos um ato nobre: a emancipação dos escravos!31

A partir da submissão do cultural ao racial, ele desdobra a mestiçagem em dois níveis: 

“Deste imenso mestiçamento físico e moral, desta fusão de sangue e de almas é que tem saído 

diferenciado o brasileiro de hoje e há de sair cada vez mais nítido o do futuro.”32 Pela mestiçagem 

moral, seria possível pensar uma perspectiva crítica e seletiva diante do influxo externo e superar o 

mimetismo cultural e a imitação do estrangeiro. A cultura brasileira é definida como mestiça ou 

compósita,   cujo   caráter   específico   depende   da   integração   entre   elementos   díspares.   Em   termos 

literários e artísticos, a consciência nacional se criaria pela fusão entre as raças e pela incorporação da 

“faculdade de imaginação e sentimento do continente americano e africano” e uma de expressão 

“civilizada”.33

A perspectiva anti­romântica e pró­abolicionista de Romero se relaciona ao projeto de 

investigação “integral” da contribuição cultural das raças. Para tanto, constrói uma teoria etnográfica 

hierarquizada, em que o negro é apresentado como superior ao indígena, e o branco mais evoluído do 

que ambos. Estabelece distinções no interior da raça branca, que divide em diversos tipos: enquanto 

os germanos, eslavos e saxões caminham para o progresso, outros grupos, como os celtas e latinos 

mostram claros sinais de decadência. Os portugueses são vistos como povo inferior, resultante do 

cruzamento entre ibéricos e latinos, o que representava a impossibilidade orgânica de produzir por si. 

Os colonizadores trouxeram assim os males crônicos das raças atrasadas, desprovidas do impulso 

inventivo dos germanos e saxões. 

A partir dessa concepção, a dependência cultural é explicada como impulso psicológico 

ou tendência de caráter resultante da mistura de três raças inferiores: “O servilismo do negro, a 

preguiça do índio e o gênio autoritário e tacanho do português produziram uma nação informe, sem 

31
 ROMERO, Sílvio apud VENTURA, Roberto Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 46.
32
 Idem Ibidem.
33
 Idem p.48.
qualidades fecundas e originais.”34 A formação do povo a partir de três raças sem originalidade teria, 

como conseqüência, a tendência à imitação do estrangeiro. Em termos de produção intelectual, o 

mimetismo traria prejuízos, como a “falta de seriação nas idéias” e a “ausência de uma genética”, que 

faria com que os autores não procedessem um dos outros, o que o fez negar, em A filosofia do Brasil, 

a existência do pensamento filosófico entre nós.35  Sua teoria da mestiçagem e do branqueamento 

parte   de   uma   combinação   de   pressupostos   raciais   (existência   de   diferenças   étnicas   inatas)   e 

evolucionistas (lei da concorrência vital e do predomínio do mais apto).

Seja com relação à noção de raça, seja com relação à noção de Natureza, Sílvio Romero e 

Capistrano necessitavam pressupor a existência do seu objeto privilegiado, o fenômeno histórico e 

cultural   “Brasil”.   Apesar   dessa   pressuposição,   a   concepção   de   caráter   nacional   apresenta   certa 

diferenciação   entre  ambos.  Visando a   perseguir  com  maior  proximidade   a  questão  que  estamos 

visando a adensar, tentar­se­á compreender a sua noção de caráter nacional. Pode­se afirmar que 

Romero   visa   a   espelhar   o   caráter   de   uma   nação,   aproximando­se   do   que   o   antropólogo   norte­

americano Richard Handler chama de “objetificação cultural”, ou seja, que se observe (e se escreva 

sobre) uma cultura como uma “coisa”, um objeto natural ou entidade constituída de objetos e traços. 

Assim   concebida,   “a   nação   ou   grupo   étnico   é   tomado   como   sendo   delimitado,   contínuo   e 

precisamente  distinguível   de   outras   entidades   análogas.”36  Além   disso,   nessa  perspectiva,   o   que 

distingue cada nação ou grupo étnico é sua cultura, que provê o conteúdo da individualidade do 

grupo. Os traços que constituem esse conteúdo passam a estar inseridos em um quadro de eternidade 

no qual, ainda que participem dos acontecimentos históricos, o tempo é irrelevante. Nesse sentido, 

um estudo que promova a objetificação da cultura não se encontra muito distante do determinismo 

que caracteriza as explicações biológicas que recorram à noção de raça. Dante Moreira Leite, em seu 

o  Caráter Nacional Brasileiro, fez observações que se aproximam dessa perspectiva. Fazendo um 

inventário da produção brasileira que se deteve no tema, diz que “os estudos contemporâneos do 

caráter nacional revelam, apesar de tudo o que dizem seus autores, um  nacionalismo exacerbado, 

34
 Idem.
35
 ROMERO, Sílvio. “A Filosofia no Brasil. Ensaio Crítico” In: Obra Filosófica. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1969. 
p. 7. O notório atraso seria a percepção de que não houve nenhum livro de filosofia escrito durante os três séculos 
coloniais.
36
 HANDLER, Richard.  Nationalism and the politics of culture in Quebec. Wisconsin: Wisconsin University Press,. 
1988. p. 16.
capaz de substituir ideologicamente o racismo.”37  Capistrano de Abreu termina por ser englobado 

pelo mesmo autor nessa categoria.

Esse   tema,   contudo,   levanta   uma   pista   que   merece   ser   seguida.   Enquanto   Romero 

privilegiou o quesito raça, Capistrano privilegiou a Natureza. O privilégio do primeiro faz com que a 

possível  causa do nosso atraso somente fosse ultrapassada através de uma solução vinculada  ao 

influxo externo, como o branqueamento, por exemplo. Já Capistrano de Abreu, através da Natureza, 

dota o país de singularidade e aponta modificações para o futuro atreladas a ela. Assim, a solução 

para o futuro se remete ao passado, mas um passado que mantém uma influência permanente e 

longeva, e que dotará de especificidade aquele que com ele travar contato.

Essa seria a influência ativa a que o autor se remete ao longo de seu artigo  “O caráter 

nacional e as origens do povo brasileiro”. Uma integração entre homem e Natureza que leva muito 

mais tempo: 

Se a influência ativa pode – embora sem bases – ser contestada, a 
influência   passiva   é   de   uma   evidência   fulminante   no   Brasil.   Que 
significam tradições de grandeza entre um povo a quem elas  nada 
lembravam? Que significam costumes polidos em uma sociedade que 
se ia formar? As florestas seculares não determinavam um sistema 
novo  de  agricultura?   As   verdades   das   estações   não  reagiam   sob  a 
cultivação!   As   distâncias   a   dificuldades   de   transporte   não   reagiam 
sobre a indústria? Matas, distâncias e estações, se não me engano, são 
parte da natureza e sua influência é patente.38

A ação da Natureza é dupla: “ativa ou passiva manifesta­se como movimento ou como 

resistência”.39  A   influência   passiva   é   a   influência   que   ocorre   no   momento   do   contato   entre   o 

civilizado e o meio, o choque instantâneo do deslocamento espacial sofrido pelos portugueses. Já a 

influência ativa ocorre ao longo de um determinado período de tempo mais extenso, de maneira mais 

orgânica,   em  ritmo muito mais lento. Ambas  são maneiras de tentar compreender  os  efeitos   da 

Natureza   diante   dos   “fatores   exóticos”.   A   Natureza   é,   então,   uma   categoria   fundamental   para 

37
 LEITE, Dante Moreira.  O caráter Nacional Brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Pioneira, 1976. pp. 
124­125. Desta forma, o conceito de Nação seria compreendido como narrativa coesa acerca dos caracteres de 
determinado grupamento social. 
38
 ABREU, João Capistrano de. “O Caráter Nacional e as origens do povo brasileiro” In: Ensaios e Estudos, 4° série. 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
39
 Idem p.17
entender sua escrita da História do Brasil.40 

Abreu dialoga com a dissertação de Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, 

e sua perspectiva de conferir legitimidade nos trópicos ao Império através de uma proposição acerca 

de sua identidade específica. O texto do viajante bávaro, segundo esse tema, constitui, sob a forma de 

narrativa   histórica,   uma   elaboração   acerca   do   passado   nacional   que   dialoga   com   os   anseios   do 

presente e aponta um horizonte para o futuro. Os elementos­chave da história nacional estariam na 

própria Natureza.41 Como Capistrano não deixa de utilizar a categoria raça, observa­se que ela passa 

a possuir um sentido pouco usual, como fica delimitado a partir da contraposição às observações de 

Sílvio Romero na polêmica entre ambos. Ela deixa de possuir o estrito vínculo biológico e passa a 

fazer com que, apesar de ser ainda uma categoria de que o autor se utiliza, esteja muito mais próxima 

da cultura do que do determinismo biológico.

O entendimento do meio físico como modificador do povo vincula­se a uma concepção 

neolamarckiana de raça, uma definição que, baseando­se na ilimitada aptidão dos seres para se adaptar 

às   mais   diversas   condições   ambientais,   enfatiza,   acima   de   tudo,   a   sua   capacidade   de   incorporar, 

transmitir e herdar as características adquiridas na sua interação com o meio físico. “A idéia de raça é 

convertida muito mais em um efeito do que em uma causa, mantendo­se como uma intermediária das 

noções de raça e de cultura.”42  Há um compromisso de cunho biologizante, mas que não implica a 

composição de um evolucionismo. Apesar do papel privilegiado que o português possui ao longo de todo 

o livro Capítulos de História Colonial, não há a composição de uma hierarquia explícita entre as raças, 

como se o seu “caráter independente”43, além de ter lhe dotado da propensão a certo tipo de ações, 

tivesse propiciado maior miscibilidade ante o contato com as outras raças. 

Essa transitividade que o argumento neolamarckiano possibilita conduz a certa confusão 

40
 Como dirá acerca de sua história íntima: “Uma história íntima – deve mostrar como aos poucos se foi formando a 
população, devassando o interior ligando entre si as diferentes partes do território, fundando indústrias, adquirindo 
hábitos, adaptando­se ao meio e constituindo por fim a nação.” Gazeta de Notícias em 19/10/1880. In:  Ensaios e  
Estudos, 4ª. Série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 157.
41
  Sobre uma reflexão aprofundada acerca da noção de história em Martius: GUIMARAES, Manoel Luiz Salgado. 
“História   e   natureza   em   von   Martius:   esquadrinhando   o   Brasil   para   construir   a   nação”.  Hist.   cienc.   saude­
Manguinhos.,  Rio de Janeiro,  v.7,  n.2,  2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em: 06  
Maio  2007. 
42
 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa­Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos30. Rio 
de Janeiro: 34,1994. p. 39.
43
 ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. 6° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 
17.
entre o biológico e o cultural, que acaba por permitir o estudo das sociedades em uma dinâmica muito 

próxima à da relação entre história e cultura. “Não existem raças verdadeiras conforme uma explicação 

fisiológica,   mas deve­se falar de raças ‘históricas’  em processo de formação.”44  O traço fortemente 

histórico­cultural da explicação de Capistrano é ressaltado quando, contra o argumento de Romero de 

que a Natureza não seria um fator importante para a compreensão do nosso caráter nacional, observa que 

“É sem razão que alegam ser o tempo insuficiente para tanto; a deficiência do tempo refere­se antes à 

percepção adequada do que à objetiva.”45. O lapso de tempo passa a ser mais um indício que ressalta o 

traço fortemente histórico­cultural de sua explicação, aproximando­a da noção de raça histórica. 

Não só quatro séculos são o suficiente para a elaboração biológica, e, 
por   conseguinte,   sociológica;   como   a   ignorância   dos   primitivos 
colonizadores, sua índole genial, o segregamento a que condenou­os a 
política da metrópole, oferecendo uma resistência mínima à pressão 
mesológica,   tendiam   a   deixar   produzirem­se   livremente   os   seus 
efeitos... é evidente quanto isto deve ter concorrido para o suplemento 
do tempo.46 [Grifo meu]

O tempo não é algo desconectado da experiência particular ocorrida em cada localidade. A 

maior ou menor demora para que ocorra a reverberação de uma modificação na característica de cada 

local somente poderá ser compreendida se for observada a completa gama de elementos que nela 

interagem. Todos eles irão gerar uma feição particular aos habitantes daquele lugar, sendo transmitido 

aos   seus   descendentes.   O  argumento  lamarckiano   possui   seu   peso  no  conceito   de   adaptação   –   a 

capacidade de transmissão de características adquiridas. 

Em seu texto “Lamarckianism in American Social Science”, George Stocking demonstra a 

presença de argumentos que envolvem a noção de hereditariedade das características adquiridas – às 

vezes   com   referência   direta   a   Lamarck   e,   em   muitas   outras,   não   –   nas   Ciências   Sociais   norte­

americanas nos últimos vinte anos do século XIX e na primeira década do século XX. Apesar de, nesse 

contexto,   a   referência   a   Darwin   ser   intensa,   através   do   que   ficou   conhecido   como   “darwinismo 

44
 STOCKING, George. “Lamarckianism in American Social Science” In: STOCKING, George. Race, Culture and  
Evolution. New York: The Free Press, 1968. p.245.
45
 ABREU, João Capistrano de. “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” In: Ensaios e Estudos, 4° série. 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 17.
46
 Idem. p. 17.
social”47, é com o apelo ao argumento lamarckiano que ele se presentificava. O conceito de adaptação 

compreendido como “mudanças na estrutura ou no comportamento orgânico que foram causadas por 

influências   diretas   do   meio   ambiente   ou   que   foram   produto   das   respostas   do   organismo   a   tais 

influências   [e   que]   eram   transmitidas   por   hereditariedade”48  é   a   base   de   sustentação   daquele 

argumento. 

O   lamarckianismo,   diz   Stocking,   forneceu   “uma   teoria   comportamental   da   evolução 

biológica” e possibilitou “um dos últimos elos teóricos entre a teoria biológica e a social”.49  Dentre 

outros aspectos específicos, possibilitou aos cientistas sociais uma elaboração para a formação das 

raças e da estrutura mental que não fosse apenas biológica. A concepção segundo a qual os novos 

hábitos adquiridos pela adaptação ao meio natural geravam mudanças no organismo dos indivíduos e 

essas, por sua vez, eram herdadas pelos descendentes, permitiu que os cientistas sociais, mesmo sem 

uma diferenciação clara do biológico e do social, formulassem explicações para as diferenças raciais 

que se aproximam das que foram elaboradas posteriormente para explicar o conceito de cultura. 

A correspondência de Capistrano dá indicações do possível contato que teria mantido, 

mesmo que de forma sutil, com tais formulações intelectuais. Em carta destinada a Paulo Prado, datada 

de 1923, Capistrano solicitou patrocínio para a tradução de um texto de Carlos von den Steinen, para a 

qual encontrava dificuldades financeiras na edição. 

O autor da carta junta, Franz Boas, é universalmente conhecido 
como   uma   das   maiores   autoridades   em   questões   antropológicas. 
Carlos von den Steinen, a que se refere, fez duas expedições à nossa 
terra e lançou as bases da etnografia científica do Brasil. Peço­lhe se 
interesse pela causa, lance uma derrama entre os amigos e mande a 
Franz Boas uma ordem prestigiosa para facilitar a impressão da obra 
que deve ser genial... Devolva­me a carta de Franz Boas para ver se 
com ela consigo alguma coisa nestes pagos.50 

O contato ainda torna­se um pouco mais estreito. Em carta enviada a João Lúcio de 

47
 A expressão é usada por HOFSTADTER, Richard. Social Darwinism in American Thought. Boston: 
Beacon Press, 1955. 
48
 STOCKING, George. “Lamarckianism in American Social Science” In: STOCKING, George. Race, Culture and  
Evolution. New York: The Free Press, 1968. p. 243.
49
 Idem. p.245.
50
 Carta de Capistrano de Abreu a Paulo Prado 06/02/1923 In: Correspondência de Capistrano de Abreu vol 2. Rio de 
Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
Azevedo, datada daquele mesmo ano, Abreu assim se reportava ao texto de Boas:

Não é só V. quem recebe elogios germânicos: Tolle et lege: Wie oft 
habe   ich  Ihrer   gedacht   als  einen   der  besten  und  liebenswürdigsten 
Meenschen denen ich in der Welt begenet in...  Quem escreveu isto? 
Carlos von den Steinen, explorador do Xingu. A propósito de que? 
Franz   Boas,   um   dos   primeiros   etnógrafos,   escreveu­me   sem   me 
conhecer, pedindo que arranjasse algumas assinaturas de 50 dólares 
para   a  obra  em  que  Steinen  gastou  mais   de  vinte   anos   e  que  não 
encontrava editor. Arranjei umas oito ou nove: o elogio de arromba é 
um agradecimento.51

A investida na direção da tradução do texto de Carlos von den Steinen possibilita supor 

uma gama de questões52. Essa proximidade, admiração e troca intelectual, empreendida entre ambos, 

coloca no horizonte uma abordagem que, ao propor o tratamento das tribos indígenas, possibilita 

maior dinamismo cultural. A evolução ocorre a partir da troca exercida entre as raças e o ambiente, 

sendo mais intensa a partir da maior complexidade dos povos. 

Tais ilações permitem compreender de outra forma as ponderações de Capistrano no 

artigo “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro”. De forma diversa ao seu interlocutor 

Silvio Romero, para quem o vínculo ao esteio biológico fez com que o tempo não operasse mudanças 

significativas ao dissenso que aportou em terras nacionais, Abreu assumiu que entre a raça e o meio 

deveria ocorrer “sinergia concreta”53. A noção de raça ganha maior complexidade, podendo ter seus 

atributos  modificados  pela passagem  do tempo,  pelas  graduais  modificações  que, sutilmente,   ao 

longo de variadas gerações, passam a ser incorporadas a elas. As mudanças deixam de ocorrer  no 

tempo e passam a ocorrer através do tempo. O tempo passa a ser concebido como agente qualitativo 

de   mudanças,   passando   a   ser   considerado   tanto   como   uma   modificação   do   seu   passado   quanto 

51
 Carta de Capistrano de Abreu a João Lúcio Azevedo 20/10/1923 In: Correspondência de Capistrano de Abreu vol.2. 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
52
 Capistrano vincula­se a esse horizonte interpretativo, não necessariamente devido ao contato com Carlos von den 
Steinen. Interessa observar  que, no final  da 6° edição dos  Capítulos de História Colonial, há uma anotação de 
Capistrano de Abreu em que usa o conceito de adaptação de maneira muito explícita e a referência teórica que cita é 
um artigo de Franz Boas publicado no The Nation, em 15/02/1919. Acerca disto, ver Capítulos de História Colonial 
6° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p.214.
53
 ABREU, João Capistrano de. “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” In: Ensaios e Estudos, 4° série. 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p.18.
potencialmente modificado pelo seu futuro.54 

A superação do  inacabamento, que impediria a entrada na marcha do progresso, teria 

como   premissa   a   gradual   integração   com   a   Natureza;   uma   integração   que   ocorreria   através   do 

contato, através de uma lenta interação, cujo resultado seria a feição particular que resultou após três 

séculos de trajetória colonial. Ou seja, a feição que era parte intrínseca e inscrita em sua formação. 

Deve­se, então, problematizar o próprio conceito de “formação”. Ele carrega em si uma 

relação íntima com a categoria tempo, designando um vir­a­ser capaz de organizar os diferenciados 

acontecimentos do passado55. Mas esse rearranjo que os eventos terminam por adquirir se direciona a 

um determinado horizonte comum, já inscrito na narrativa antecipadamente, pondo em evidência a 

temporalidade  da  constituição   de  um  determinado  objeto  que,  em  seu  fim,  adquire  determinada 

forma.56  Os elementos que darão significado à idéia de formação e determinarão o seu ritmo são 

passíveis de serem visualizados no tempo de vida do autor. Assim, há uma teleologia composta que 

esse conceito denota, principalmente conforme utilizado pelos autores citados, que faz com que a 

utilização do conceito de formação da nação venha associado à função pedagógica do conceito em 

seus textos. Ou seja, formação é um conceito pleno de sentido e pacificado. A nação se insere em 

uma narrativa capaz de ser contada, capaz de dotar de sentido o conjunto das ações dos homens a que 

se refere.

Ao longo dos  Capítulos de História Colonial, o lugar da Natureza, mais que simples 

imobilidade, é o lugar do amoldamento. A natureza é influência e obstáculo para a formação da 

sociedade brasileira, mesmo em se tratando da sua conversão pela noção de território, a conversão do 

espaço que necessita de um ator.57 Assim se compreende o par influência passiva e ativa da natureza 

nos   argumentos  de  Capistrano. A  influência  passiva foi  o  momento  em  que  a  ação  dos   fatores 

54
 Essa percepção do tempo estaria vinculada a uma percepção moderna. Ver: GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Cascatas 
da Modernização” In: Modernização dos Sentidos. São Paulo: 34, 1998.
55
 Sobre o conceito de formação ver: KOSSELECK, Reinhardt “Historia conceptual e historia social” In: Futuro  
pasado Para uma semântica de los tiempos históricos Barcelona: 1989.
56
 Patrícia Hansen observa essa noção de formação empregada por João Ribeiro em sua análise do texto História do  
Brasil.  Curso Superior.  Ver   HANSEN,   Patrícia  Feições   e fisionomias   do  Brasil.  Historia,  Cultura  e  Nação na  
História do Brasil Curso Superior de João Ribeiro Rio de Janeiro: Access, 2000. 
57
 Um geógrafo atual, Claude Raffestin, faz uma distinção importante entre espaço e território. Segundo o autor, “o 
território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que 
realiza   um   programa)   em   qualquer   nível.   Ao   se   apropriar   de   um   espaço,   concreta   ou   abstratamente   (pela 
representação) o ator territorializa o espaço” RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 
1993. p. 143. 
externos gerou a regressão no padrão de vida daqueles que aqui aportaram.

A influência passiva da Natureza pode resumir­se nessa proposição: 
em   conseqüência   das   condições   especiais   em   que   se   achou   a 
civilização portuguesa por seu transplantamento para o Brasil, como 
distribuição de riqueza, divisão de trabalho; diminuição e dispersão da 
população;   deslocamento   de   centros   governativos,   mentais   e 
econômicos;   nascimento   de   novas   necessidades,   ablação   de   velhos 
usos as funções socais não podiam desenvolver­se normalmente; em 
vez de tenderem a crescer, o seu trabalho tendia a mingua, e como a 
mingua de trabalho traz o acanhamento das funções e o acanhamento 
das   funções   traz   o   depauperamento   do   organismo,   a   sociedade 
brasileira atrofiou­se.58 [Grifo meu]

Ao pensar em passividade e em um de seus efeitos – a atrofia do “organismo” –, Abreu 

imprime dinamismo ao que poderia ser relacionado como essência. A nossa experiência histórica 

estaria   marcada   por   um   momento   inicial   em   que   ocorreu   uma   característica   desordem   após   o 

“deslocamento” do organismo. 

Há toda uma série de reflexões desde o século XVI, dotando a América, desde a sua 

descoberta, de características singulares. Como no caso de Buffon, que enxergava a América como 

possuidora de uma Natureza hostil, que submetia o homem ao seu controle, conforme analisado por 

Antonello Gerbi em Novo Mundo. História de uma polêmica: “Poucos e débeis, os seres humanos do 

Novo Mundo não puderam dominar a natureza hostil, não souberam vencer e submeter as forças 

virgens e revertê­las em seu benefício... manteve­se como um elemento passivo da natureza,  um 

animal como os outros”.59 Capistrano alinha­se a esta perspectiva: homem e meio são indissociáveis.

Sendo que, apesar de avassaladora, a Natureza, agora convertida em meio físico devido ao 

58
  ABREU,   João   Capistrano.   “O   caráter   nacional   brasileiro”.   In:  Ensaios   e   Estudos,   4°   série.   Rio   de   Janeiro: 
Civilização Brasileira, 1977. p.18.
59
 GERBI, Antonello. Novo Mundo. História de uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.20. Para 
Gerbi, Buffon marca um momento em que a discussão sobre a originalidade da América toma moldes de discurso 
científico, estabelecendo um espaço privilegiado para a disseminação da degradação do ambiente e do homem 
americano. Após ele, a discussão se estende e permanecerá presente na reflexão dos maiores autores do final do 
século XVIII e XIX, como Goethe, Lineu, Herder, Kant, entre outros, até culminar nas concepções opostas de Hegel 
e   Humboldt   e,   mais   tarde,   sofrer   uma   desvalorização   enquanto   questões   científicas.   No   entanto,   esses   dois 
momentos permanecem de certa forma unidos pela geração de expectativas com que várias obras desses autores 
lidam  e podem ser identificadas  como formadoras  de uma visão de mundo inicial dos diferentes  viajantes que 
visitaram o país.
instrumental científico mobilizado pelo historiador, gerou uma desorganização após o Descobrimento, 

mas não se impôs enquanto instância determinística às três raças. Assim, a influência do meio passou 

a estar de maneira longeva na formação da Nação, sendo esse o argumento que propiciou pensar a 

noção de influência passiva. Desse modo, rompeu­se a noção de determinação, nos argumentos de 

Capistrano de Abreu, possibilitando ao tempo gerar mudanças conforme as ações dos homens no 

mundo as fizessem. Apesar de ambos lidarem com a noção de caráter nacional, o olhar de historiador 

de Capistrano propiciou­lhe fugir do caráter dedutivo que a argumentação pautada no determinismo 

biológico possuía e possibilitou, de maneira diferenciada, que a solução para os impasses do país 

estivessem vinculadas às mudanças geradas pela agência humana em terras do Brasil. Aquilo que 

pondera, mas não restringe os atos dos homens. 
REFERÊNCIAS

ABREU, João Capistrano de. “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” In:  Ensaios e  
Estudos, 4° série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

____________________  Capítulos   de   História   Colonial.   6°   ed.   Rio   de   Janeiro:   Civilização 


Brasileira, 1977.

__________________  Correspondência de Capistrano de Abreu vol.2. Rio de Janeiro: Civilização 
Brasileira, 1976.

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa­Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos 
anos30. Rio de Janeiro: 34,1994.

GERBI, Antonello. Novo Mundo. História de uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

GUIMARÃES,   Manoel   Luiz   Salgado.  “História  e   natureza  em   von  Martius:  esquadrinhando  o  


Brasil   para   construir   a   nação”.  Hist.   cienc.   saude­Manguinhos.,   Rio   de   Janeiro,   v.7,   n.2,  
2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em: 06  Maio  2007. 

GUMBRECHT,   Hans   Ulrich.   “Cascatas   da   Modernização”   In:  Modernização  dos   Sentidos.  São 
Paulo: 34, 1998.
HANDLER,   Richard.  Nationalism  and   the   politics   of   culture   in   Quebec.  Wisconsin:   Wisconsin 
University Press,. 1988.

HANSEN, Patrícia Feições e fisionomias do Brasil. Historia, Cultura e Nação na História do Brasil 
Curso Superior de João Ribeiro Rio de Janeiro: Access, 2000.

HOFSTADTER, Richard. Social Darwinism in American Thought. Boston: Beacon Press, 1955. 

KOSSELECK,   Reinhardt   “Historia   conceptual   e   historia   social”   In:  Futuro   passado.  Para   uma 
semântica de los tiempos históricos Barcelona: 1989.

LEITE,   Dante   Moreira.  O   caráter   Nacional   Brasileiro:  história   de   uma   ideologia.   São   Paulo: 
Pioneira, 1976.

ROMERO, Sílvio. “A Filosofia no Brasil. Ensaio Crítico” In: Obra Filosófica. Rio de Janeiro: José 
Olimpio, 1969.

SCHWARCZ,  Lilia Moritz.  O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e questão racial  no 


Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

STOCKING, George. “Lamarckianism in American Social Science” In: STOCKING, George. Race, 
Culture and Evolution. New York: The Free Press, 1968. 

VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 
A INTEGRAÇÃO DO TERRITÓRIO DO RIO GRANDE DO NORTE PELOS AÇUDES E 

ESTRADAS DE FERRO (1889­1935).

Autor: Adriano Wagner da Silva ­ Graduando do curso de História da UFRN, bolsista PIBIC/local­ 

UFRN, adrianows10@yahoo.com.br.

Autor: Gabriel Leopoldino Paulo de Medeiros ­ Graduando do curso de Arquitetura e Urbanismo da 

UFRN, bolsista IC­CNPq, gabrielleopoldino@yahoo.com.br.

RESUMO

A criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), em 1909, enfatizou a construção de açudes 
e vias férreas na busca da solução à falta de integração da região das secas no Nordeste. O objetivo 
deste trabalho é compreender o papel das ações na indução do planejamento do território do RN, 
adotando como abordagem mais específica a construção das estradas de ferro (fluxos) e dos açudes 
(fixos). As fontes utilizadas foram os relatórios do Ministério da Viação e Obras Públicas, artigos da 
Coleção Mossoroense e documentos da época. 

Palavras­chaves: Seca; Açude; Estrada de Ferro

ABSTRACT

The “Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS)”´s creation, in 1909, emphasized the dam´s and 
railroad´s constructions in search of lack dry region´s integration in Northeast. The paper´s objective 
is comprehend the actions in the induction of territory’s planning of RN, and adopting as focus the 
railroad´s (flow) and dam´s (fixture) constructions. The fonts used were the Ministry of Transport and 
Public Works’ repports, issues of the “Coleção Mossoroense” and primary documents.
Key words: Drought; Dams; Railroads

INTRODUÇÃO

A   transição   do   século   XIX   para   o   XX   foi   marcada   por   uma   efetiva   mudança   no 
planejamento   urbano   e   territorial   no   Brasil.   A   ascensão   de   uma   nova   ciência,   a   engenharia, 
possibilitou   uma   abordagem   inovadora   acerca   da   construção   da   cidade   moderna   no   país.   Os 
engenheiros,   além  de intervirem  decisivamente  no novo  modo de  pensar  as   cidades,  também  se 
constituíram personagens fundamentais na construção do território, ao intervirem em regiões diversas 
que abrangiam desde a escala rural à urbana. A partir da preocupação em se planejar as relações entre 
cidade e região, os interesses técnicos foram voltados aos estados do Nordeste onde se deu início a 
um processo de intervenção, sistematizado no início do século XX, com a finalidade de combater os 
efeitos das secas. 
A região das secas abrange grande parte dos sertões do semi­árido do Nordeste brasileiro, 
uma área de aproximadamente 600.000 km². A principal causa da estiagem não é propriamente a 
escassez de chuvas, mas a grande irregularidade existente nelas. A partir das últimas décadas do 
século  XIX,  especialmente em decorrência da grande seca de 1877­79, as discussões acerca   das 
causas do fenômeno e das soluções a serem adotadas passaram a ser cada vez mais constantes, tendo 
como foco irradiador desse processo a participação das comissões e organizações de engenharia. A 
partir da evolução técnica e tecnológica, a antiga imagem de problema insolúvel começou  a ser 
combatida por um pensamento positivista, onde se era possível, sim, intervir com eficiência a partir 
da   melhoria   da   infra­estrutura   e   de   políticas   menos   assistencialistas   e   remediadoras   e   mais 
planejadoras e duradouras. Como manifestação desse saber, já diria em 1889 o engenheiro Newton 
Bulamarqui em uma das sessões do Clube de Engenharia60:

Com effeito, o homem não tem o poder de crear serras e rios, de dirigir a corrente 
dos ventos e dizer ás nuvens que parem e se resolvam em chuvas n’uma dada região: 
jámais poder­se­há conseguir que chova á nossa vontade. Mas a verdade é que a sciencia 
humana ainda não disse a última palavra em assumpto nem um; tudo caminha e não será 
impossivel que alguma cousa se consiga n’esse sentido com a applicação scientifica dos 
meios   que   a   propria   natureza   nos   está   ensinando   (REVISTA   DO   CLUB   DE 
ENGENHARIA, 1889, p. 19).

60
  A ortografia e pontuação das citações  deste trabalho foram  mantidas de acordo com os documentos originais, 
inclusive os eventuais erros tipográficos e de redação desde que esses não comprometam o entendimento do texto.
Dessa forma, as ações mais pontuais foram dando margem a intervenções sistemáticas e 
de planejamento prévio, culminando na institucionalização dessas medidas. Logo, no ano de 1909 é 
fundada a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), primeiro órgão destinado à articulação de 
obras e políticas de combate ao flagelo. A premissa inicial dos trabalhos da Inspetoria foi a de realizar 
pesquisas e estudos acerca da própria região do sertão nordestino, que constituía uma área cujas 
características ainda eram pouco conhecidas. As ações da Inspetoria, segundo podem­se subentender 
a partir da descrição de documentos da época, tinham o objetivo de possibilitar a permanência da 
população na própria região – empregando­a nas obras de combate à seca – a partir da melhoria da 
infra­estrutura de transportes (rodovias e linhas ferroviárias), de construção de açudes e de irrigação, 
tendo como principal ênfase as duas primeiras. 

OS AÇUDES E A INTEGRAÇÃO DO TERRITÓRIO DO RN

O inicio da República no Rio Grande do Norte também foi marcado, de forma semelhante 

ao que acontecia com a então região Norte61 do país, pela implantação de açudes públicos de grande, 

médio e pequeno porte, que tinham como objetivo amenizar os males proporcionados pelas secas. 

Essas   ações   agiam   de   acordo   com  dois   vieses   principais:   gerar   as   condições   necessárias   para   a 

manutenção  das atividades agrícolas (promovendo uma produção regular mesmo em períodos  de 

secas) e, consequentemente, contribuir de forma imediata com a fixação do sertanejo em sua própria 

terra, diminuindo as migrações do meio rural para o espaço urbano.  O próprio emprego da mão­de­

obra   sertaneja   nessas   construções   também   constituiu   uma   forma   de   fixar   as   levas   de   retirantes, 

evitando o intenso êxodo em especial para as cidades litorâneas do estado do Rio Grande do Norte em 

princípios do século XX.

 A construção de açudes a cada seca que surgia (principalmente após a ocorrida em 1877), 

cada vez mais era requisitada nos discursos de políticos (sobretudo pertencentes ao Norte do país), 

tanto na Câmara e Senado Federal como em periódicos nacionais e locais, por intelectuais, médicos, 

escritores, engenheiros politécnicos, entre outros indivíduos da referida época. Em caso especifico, 

um periódico potiguar da esfera governista declarava:

61
  Em 1941, o CNG (Conselho Nacional de Geografia), por intermédio do geógrafo Fabio de Macedo, realizou a 
divisão regional do Brasil, buscando definir cada grande região brasileira através de suas características físicas, com 
o objetivo de organizar o conhecimento sobre o país. É desse trabalho que surgiria a primeira denominação oficial 
de Nordeste. Porém, essa denominação não fora totalmente aceita, não sendo utilizada pelos órgãos oficiais da 
época.  Somente  em  1968  é   que  o  IBGE,  ao   fazer   uma  nova  divisão  do  país   em   grandes   regiões   geográficas, 
considerou como nordestinos os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, 
Alagoas, Sergipe, Bahia, e o território Federal de Fernando de Noronha.      
Angicos, 9 de outubro de 1889

A   aridez   e   a   deficiência   das   aguadas   naquela   vila   (...)   tornavam   urgente   que   ali   se 
construísse um reservatório ou açude, que proporcionasse à população um elemento tão 
indispensável à vida como a água. (A Republica, 9 de outubro de 1889 apud. SILVA, 
1978, p.95).  
     

Na defesa pela implantação dos açudes públicos, o Senador Tomaz P. Sobrinho, um dos 

principais estudiosos de tal problemática do Nordeste do país (mesmo que dando ênfase ao caso 

ocorrido no Ceará), afirmava que dentre as ações cuja viabilidade e utilidade eram discutidas e aceitas 

pelo Governo Federal, a dos açudes:

Tratava­se de uma orientação vencedora em toda linha não obstante a discrepância de uma 
ou outra pessoa que, aliás, não oferecia  argumentos  ponderáveis  para amparar  as  suas 
opiniões. Nestas condições  era  natural  que o Governo Geral  a adotasse, como de fato 
adotou sem tangiversações.  Entre as  diferentes  providências  apontadas, umas de modo 
absoluto e outras, apenas, como elementos subsidiários dos açudes, poucas conseguiram 
relativa consistência; foram, como era de esperar, brevemente esquecidas, ficando somente 
como   elemento   de   salvação   do   Ceará,   ou   melhor,   do   Nordeste,   os   açudes   grandes 
excepcionalmente   também   pequenos   ou   médios.   Falava­se   com   certa   insistência   em 
reflorestamento, poços profundos, ou artesianos, cisternas  e várias  outras  providências, 
algumas  das  quais  dignas  de apreço,  porém  muitas  de uma ingenuidade  estarrecedora. 
Salvo a açudagem e conseqüente irrigação, as demais soluções propostas flutuavam sem 
firmeza,   assentes   num   terreno   inconsistente,   malgrado   os   esforços   de   alguns   de   seus 
propugnadores. (SOBRINHO, 1982, p.81).              

    Nas letras de Sobrinho, pode se perceber o quanto ganhava força o ideal de estruturação 

do território sertanejo por meio da ênfase na construção dessas barragens entre os principais meios de 

discussão da época. Discurso que era idealizado, sobretudo, por engenheiros politécnicos, que dentre 

outros aspectos, defendiam essa inovação técnica como solução visando a garantir a água que faltava 

ao sertão para resistência dos longos períodos secos.

  É bom lembrar que a prioridade dada a tal medida pelo Governo Federal (e sua fácil 

adesão pela opinião pública) se dava em virtude de haver, em princípios do século XX, a crença de 

que seria a falta d’àgua nos sertões o principal problema existente no mundo sertanejo. Dessa forma, 

percebe­se que, com a ocorrência periódica das secas, as construções de açudes públicos eram de 

certa maneira uma medida natural e conveniente para solucionar esse problema de forma imediata. 

Tal fator acaba por evidenciar também o porquê de cada vez mais tal ação ter alcançado forte apoio 
frente à opinião pública e oficial. 

Os engenheiros politécnicos acreditavam que as implantações dessas obras propiciariam 

aos poucos a água necessária às populações sertanejas para uso doméstico, para o gado (leiteiro e de 

corte) e para os serviços da lavoura ­ mesmo em períodos de estiagens ­ promovendo uma produção 

regular   da   lavoura   com   o   auxilio   da   irrigação.   Esse   evento   favoreceria   a   manutenção   de   uma 

produção, circulação e comercialização regular tanto de produtos de subsistência, quanto a outros de 

importância econômica maior para o desenvolvimento do sertão potiguar, caso do algodão seridoense.

  Essas medidas, segundo alguns desses técnicos, iriam criar na região seca e árida do 

sertão   uma   espécie   de   microclima,   em   uma   tentativa   de   amenizar   de   forma   significativa   as 

intempéries climáticas sofridas na mesma. Outros chegaram a declarar que havia a possibilidade de, 

por meio da evaporação das águas desses açudes, se produzirem nessas zonas algumas precipitações. 

 Foi então a partir desses ideais dos engenheiros politécnicos e do requerimento popular 

por medidas urgentes e mais precisas contra os males das secas que, a partir de princípios do século 

XX, se intensificou a construção desses açudes por Comissões de Açudagem e Irrigação. Nos estados 

do Ceará e Rio Grande do Norte (principais regiões afetadas pelas secas), essas ações também foram 

aos poucos se constituindo como uma das soluções centrais propostas para estruturar esses territórios 

para resistirem de forma eficaz aos períodos secos. Segundo Sobrinho:

O   Governo   ou   a   administração   pública   continuava   depositando   plena   confiança   na 


construção   de  açudes  e   respectivas  obras   de  irrigação   como  o  mais  acertado   meio  de 
combater os efeitos  das secas. A tendência para desprezar outras providências  úteis se 
tornara manifesta. (SOBRINHO, 1982, p.87).   
      

A ênfase em tais ações se dava basicamente pelo fato de que, com as secas ocorridas entre 

os anos de 1877, 1891, 1898, 1900, 1903, 1904, intensas migrações de sertanejos se projetavam em 

direção   (principalmente)   ao   meio   urbano   natalense.   Essas,   por   sua   vez,   acabaram   deixando   em 

suspenso o vigente processo de modernização urbana tão almejado pelas elites que ali viviam e que 

viram esses sertanejos como sendo algo que “enfeava” a estética moderna da cidade idealizada. Com 

esses reservatórios, afirmavam os engenheiros, que mesmo em períodos secos, haveria a água para o 
gado   (o   qual   permanecendo   “gordo”,   teria   seu   preço   normal   garantido   no   mercado)   e   para   uso 

domestico;   quanto   à   lavoura,   estaria   garantida   a   produção   regular   de   alimentos   de   primeira 

necessidade e, sobretudo, do algodão, principal fonte econômica existente na região do Seridó no 

sertão Norte­riograndense. 

Outro aspecto importante quanto à implantação dessas obras hidráulicas na busca pela 

estruturação desse território, é o fato de esses engenheiros buscarem a fixação desses sertanejos (em 

seu local de origem) com o objetivo de resolver o problema da falta de integração nacional existente 

no país. Requisito fundamental para que o Brasil viesse a se tornar uma nação moderna dentro dos 

padrões ocidentais. O referido processo via­se prejudicado, dentre outros fatores, pela migração em 

decorrência do fenômeno das secas nos sertões brasileiros, as quais provocavam nessas regiões o 

fenômeno de desterritorialização62. Esse desarticulava o espaço geográfico através do despovoamento 

das áreas de cultura. Uma vez que essas regiões não desempenhavam bem o seu papel na hierarquia 

de   produção   econômica   do  país,   ficava   prejudicada   a  existência   de   uma   articulação   racional   do 

território brasileiro, no qual todas as regiões deveriam cumprir bem sua função econômica, política e 

administrativa   dentro   de   uma   hierarquia   nacional   encabeçada   pelos   paradigmas   de   produção   e 

comércio ditados pelos estados do sul do país. Realidade essencial que ocorria em outros países da 

Europa ocidental. 

A construção de açudes nos sertões do Ceará e Rio Grande do Norte acabava por manter 

em atividade essas zonas de cultura (de forma restrita), mesmo durante as estiagens.

  Idealizavam, os engenheiros, que a segurança hídrica garantida pelas barragens a essas 

atividades agrícolas, aos poucos promoveria o desenvolvimento sócio econômico dessas regiões. Para 

tal,   esses   técnicos   requisitavam   que   essas   medidas   saíssem   de   uma   esfera   emergencial   e 

assistencialista. É caso do ilustre engenheiro Aarão Reis, que afirmava a necessidade da construção 

desse território “como um meio que fosse transformado e integrado por ações e obras sistemáticas, 

planejadas e conduzidas, sobretudo pelos engenheiros.” (AARÃO REIS, 1920).

  O açude teria, então, a função de elemento organizador do espaço nordestino na medida 

em que não permitia a desocupação do mesmo, contribuindo assim para a formação de uma nação 

moderna.  

62
 Desterritorialização aqui entendida em uma perspectiva geográfica significa a deslocalização das relações sociais de 
determinado espaço físico. 
Os discursos acabaram por desembocar na institucionalização do processo de intervenção 

na região sertaneja por meio da técnica e da ciência (influencia das idéias positivistas da época) com a 

criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) em 1909.

  Era o início de uma mudança na forma de pensar e agir sobre a problemática das secas. 

Tal fato evidenciava um dos pontos da ideologia do planejamento tecnicista e progressista (idéia de 

progresso nacional) apregoada pelo governo republicano e absorvida pelas oligarquias nordestinas. 

Estas afirmavam a necessidade desses investimentos federais na região norte, para que se cumprisse o 

desenvolvimento do país de forma completa, atendendo às necessidades sociais e econômicas de 

grande parte da região sul e do norte brasileiras.

  Nesse ponto, o objetivo idealizado também pelos engenheiros seria o de, por meio de 

inovações   técnicas   sistemáticas   e   continuadas,   integrarem   o   território   das   secas   ao   centro   de 

desenvolvimento   econômico   e   social   mais   dinâmico   do   país.   O   sul   desenvolvido   e   em   vias   de 

industrialização. Afirmavam, as elites políticas e econômicas do Norte, ser esse um fator fundamental 

para a aceleração do desenvolvimento, sobretudo, econômico da região sul do país. Mais um motivo 

para o rápido investimento na construção de açudes públicos no norte do país. 

As ações da IOCS, que a posteriori tornara­se IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra 

as Secas), em 1919, continuariam no decorrer do século XX (mesmo que com obras sistemáticas e de 

certa   forma   continuadas),   com   um   caráter   emergencial.   Ao   findar   os   períodos   de   estiagens,   as 

atividades paravam, sendo retomadas somente com a eclosão de outras secas.  

Mesmo assim, a ênfase na construção de açudes, visando a favorecer essa integração do 

território das secas, continuava. Continuava também a reivindicação de intelectuais, engenheiros e 

ilustres políticos do Norte, como a do Deputado Eloy de Souza, para que a união fornecesse verbas e 

tecnologias para a produção de uma infra­estrutura básica da região sertaneja: 

Criando um patriotismo novo, o de amor à terra, onde cada um de nós nasceu ou elegeu 
para a sua, a federação vai assegurando, com a prosperidade de cada um do Estados, a 
prosperidade  da  própria   nação,   transmudando  assim  por  breve   tempo uma  desarmonia 
aparente na mais perfeita unidade. Não sou dos que pensam que preferências geográficas 
tenham deixado os Estados do Norte na situação de inferioridade em que muitos ou quase 
todos se encontram, em confronto com seus irmãos do Sul, alguns do quais justamente o 
nosso orgulho (...). (ANAIS DA CÂMARA FEDERAL, 28 nov.1906 apud. SILVA, 1978, 
p.97).
O discurso de Eloy de Souza busca negar a suposta “inferioridade geográfica de alguns 

estados” e justifica a ajuda econômica à região norte, fato que segundo Janice T. da Silva:
(...) Nessa linha de argumentação, o desenvolvimento econômico do Nordeste não é mais 
importante em si mesmo, mais por que suas conseqüências  reverterão em beneficio da 
Federação,   trata­se,   agora   de   uma   transação,   de   um   contrato,   que   deve   responder   aos 
interesses das duas partes contratantes: a União e ao Nordeste. (SILVA, 1978, p.96).

O referido fato evidencia o porquê de, aos poucos, o ideal dos engenheiros politécnicos de 

estruturação   técnica do  espaço  geográfico  nordestino ter sido absorvido e  posto em prática  pelo 

Governo Republicano. 

A integração do território das secas, dentre outras ações, pelas estradas de ferro e pelos 

açudes, favoreceria a aceleração do progresso econômico brasileiro que defendiam esses técnicos. A 

implantação dos açudes garantiria água para a lavoura, consequentemente promoveria uma migração 

ordenada de mão­de­obra para os trabalhos nas fazendas do sul, sobretudo cafeeiras, indústrias e 

construções públicas dessa região, aspecto necessário ao desenvolvimento da economia. No Oeste 

Paulista, as estradas de ferro facilitariam a circulação de bens e pessoas, além do escoamento de 

riquezas produzidas na região das secas, facilitando a exportação de produtos que dinamizavam a 

economia também da região Nordeste. 

Em caso especifico, no sertão do Rio Grande do Norte, engenheiros da IOCS passaram a 

estudar, projetar e construir açudes de grande, médio e pequeno porte no período compreendido entre 

1909 a 1930, sobretudo nas regiões do Seridó e Oeste Potiguar, regiões que, em princípios do século 

XX, apresentavam um significativo crescimento demográfico. Segundo o Governador José Augusto 

B. de Medeiros, os dados apresentados pelos recenseamentos realizados de 1900 a 1920 apresentavam 

os seguintes números: 

Tabela 01 – População do Rio Grande do Norte (1900 a 1920)

Ano População
1900 41.800
1920 85.840
Fonte: AUGUSTO, José. Seridó, 1980.
  Esses   dados,   mesmo   que   aproximativos,   mostram   o   quanto   a   população   crescia 

vertiginosamente, fator que indicava a necessidade urgente de medidas que melhor estruturassem 

esses espaços, evitando as fortes migrações em períodos de estiagens. A edificação de açudes se 

constituiu como fator fundamental para o cumprimento desse propósito inicial, dado o seu caráter de 

elemento “fixo” em meio à produção espacial do território das secas no RN.

  Em seu livro “Espaço e Método” (1985), o geógrafo Milton Santos afirma que os avanços 

técnicos e produtivos são responsáveis pela dinamização dos elementos “fixos” e “fluxos”, no qual os 

primeiros correspondem à fixação do capital sob a forma do desenvolvimento urbano e os segundos à 

circulação   de   bens,   pessoas   e   mercadorias.   Esses   elementos   também   constituem   estratégias   de 

integração  e consolidação do território. Os açudes teriam, então, dentro dessa conceituação,  essa 

função de fixação de potencial humano e, consequentemente a tal ação, a de promover a fixação do 

capital (com a garantia da água para uma produção agrícola regular e conseqüente escoamento e 

comercialização   desta)   ali,   com   vistas   à   formação   de   um   desenvolvimento   e   a   conseqüente 

consolidação de uma rede urbana do sertão norte­riograndense. Este, uma vez integrado às principais 

regiões de produção potiguar, por meio de outras inovações técnicas que garantiriam o escoamento da 

riqueza (caso das estradas de ferro), aos poucos teria um desenvolvimento econômico social. José 

Augusto B. de Medeiros apresenta de forma sintética os açudes públicos que foram construídos na 

região do Seridó na primeira metade do século XX:

Na zona do Seridó, o sertanejo  previdente, segundo leio em “O problema da água no 
Nordeste”, de Garibaldi Dantas, tinha iniciativa própria e já em 1915 havia construído 710 
açudes assim distribuídos:
Município de Currais novos, 52 açudes, fertilizando 500.000 braças 
Município de Acari, 82 açudes, fertilizando 781.000 braças
Município de Jardim, 106 açudes, fertilizando 1.000.000 braças
Município de Caicó, 400 açudes, fertilizando 400.000 braças
Município de Serra Negra, 35 açudes, fertilizando 400.000 braças
Total: 710 açudes, fertilizando 7.084.000 braças quadradas.  (AUGUSTO, 1980, p.42). 

Essa   gama   de   açudes   contribuía   com   a   irrigação   de   áreas   significativas   de   terras 

produtivas   do   Seridó   potiguar   favorecendo,   sobretudo,   a   produção   do   algodão   mocó,   o 

desenvolvimento sócio econômico e urbano dos municípios atendidos por esses reservatórios.  

Em dias atuais sabe­se que a garantia permanente de água por parte desses açudes é 
restritiva para outros usos, visto que a irrigação de suas águas não abrange todas as áreas que sofrem 

com as secas. Tendo, portanto, alcance restrito às populações residentes em áreas próximas a essas 

obras, o favorecimento de grandes proprietários de terras acabava acontecendo. Essa realidade não 

permitia um avanço sócio­econômico mais amplo. 

Logo,   a   água   como   fator   de   desenvolvimento   econômico   social   para   a   maioria   da 

população   pobre   que   vivia   da   pequena   lavoura   no   campo,   como   idealizavam   os   engenheiros 

politécnicos da IOCS aqui no RN, não foi possível. 

Porém, o crescimento e desenvolvimento da economia seridoense e Oeste Potiguar fora 

possível em núcleos urbanos, dentre outros aspectos, pela implantação dessas obras que garantiam a 

segurança hídrica a Vilas e pequenas cidades nessas regiões, possibilitando inclusive que algumas 

dessas vilas viessem a assumir o posto de cidades, como é o caso da Vila do Príncipe (atual Caicó). 

Ora, na ótica do engenheiro, para que tal região se desenvolvesse e se integrasse ao processo de 

produção e comercialização regional, era necessário ali o surgimento de uma rede urbana, a qual 

implicaria na facilitação da produção, circulação e comercialização de mercadorias dessa área para 

outras do país (principalmente da região Sul). Em especial do algodão Mocó, o qual era exportado 

para a Europa e concorria no mercado internacional com o algodão egípcio (o Sakelarides), um dos 

melhores do mundo na época.

Os açudes então delegavam a água necessária para a produção do algodão, o qual, por sua 

vez,   tendo   garantida a sua  produção  regular  (mesmo  em períodos  de secas),  atendia  a demanda 

existente no mercado local, regional, nacional e até internacional Sobre tais barragens na região do 

Seridó, afirmava José Augusto (...) “e eles, os açudes, prestaram e estão prestando àquelas paragens 

imensos benefícios proporcionando­lhes consideráveis vantagens econômicas.” (AUGUSTO, 1980, p.

43).

A   Inspetoria   encarregou,   no   decorrer   das   primeiras   décadas   do   século   XX,   vários 

engenheiros,  como o engenheiro civil Dr. Flávio Torres de Castro e Guilherme Schnaider, entre 

outros, para a realização do exame, elaboração de projeto, descriminação de orçamento e despesas (as 

quais   apresentavam   grande   desproporção   entre   o   custo   da   obra   e   o   orçamento   organizado   pela 

Inspetoria) e execução das mesmas com vistas à reconstrução do açude 25 de Março (no município de 

Pau dos Ferros) e também dos açudes Arapuá (Luis Gomes), Pêssoa (São Miguel) e Sacco (Mossoró) 
na região do Oeste Potiguar. A população sertaneja e o gado se beneficiavam com abastecimento de 

água potável para o consumo diário, pois favorecia a plantação abundante de cana doce, a acumulação 

de   peixes   (os   quais   abundavam   nas   enchentes   do   rio   Apody).   Sobre   a   ação   da   IOCS   quanto   à 

construção de açudes como parte central na política de salvação no Seridó, afirmava José Augusto.:

(...) limitando­me ao exame do que ocorre no Seridó, devo declarar que o Departamento de 
Obras Contra as Secas examinou ponto por ponto da região, os rios, os seus boqueirões e 
fixou­se   na   indicação   de   vários   açudes   de   tipo   médio   ou   grande   que   deviam   ser 
construídos diretamente pelo Governo Federal: o Gargalheira, o Boqueirão, do Seridó, o 
Pedra Lavrada, o Zangarelha, o Cruzeta, o Barra do Mainosa, o Itans, o Mundo Novo, o 
Sabugi, o Totoró, o Dinamarca etc. Destes já estão construídos e prestam serviços muito 
grandes o Mundo Novo, e o Itans, no município de Caicó, o Cruzeta em Acari, e o Totoró 
e   o   Cerro   Corá   em   em   Currais   Novos,   dos   quais   os   de   maior   vulto   são   o   cruzeta, 
construído em 1929, com um volume d’àgua de 29.753.000m³ e o Itans em 1936, com 
81.000.000m³. Os outros dois têm represa bem menor o Totoró com 3.941.000m³, o Cerro 
Corá, com 1.000.000. Todos, porém, benéficos às regiões. (AUGUSTO, 1980, p.43). 
                

Anteriormente, sem a existência desses açudes, públicos e privados (construídos  pela 

Comissão de Açudes e Irrigação e pela iniciativa privada no inicio do século XX), os moradores se 

retiravam em grandes levas, levando todo o gado para os raros lugares onde existia água, como a 

região do alto Amazonas, o Cariry, no Estado do Ceará, para os brejos no estado da Paraíba e para a 

capital do estado do Rio Grande do Norte. 

A edificação dessas obras hidráulicas junto a pequenas cidades e vilas, do Seridó e Oeste 

potiguar, aos poucos permitiu uma produção regular do algodão, açúcar, cera de carnaúba, mandioca, 

milho, feijão, sisal, fibras, entre outros produtos que apresentavam significativa importância para a 

economia local. Tal inovação técnica permitia a irrigação de áreas de alto potencial produtivo – caso 

do açude Gargalheira, em Acari, que irrigava cerca de mil hectares de terras, o Itans, em (Caicó), com 

cerca de 2.500 há, e do Santo Antonio de Carnaubal (carnaúbas), na região do Alto Oeste, com 350 

ha. Essas ações possibilitavam que essas áreas fossem valorizadas, atraindo investimentos quanto ao 

cultivo de fibras, algodão, entre outros produtos, fato que, somado à construção de estradas de ferro 

pela IOCS, possibilitou a dinamização da economia local, por meio de um intenso escoamento de 

riquezas nessas regiões.

  O escoamento da produção favorecido pela ferrovia era possível mesmo em períodos de 
estiagem, devido à implantação de açudes públicos nessas áreas. Essas obras, ao permitirem uma 

produção   agrícola   regular,   acabavam   por   favorecer   a   conseqüente   circulação,   distribuição, 

comercializações e consumo de produtos essenciais  à sobrevivência e consolidação da economia 

local, a qual tinha seu mercado voltado para a exportação (caso da fibra e do comércio do algodão em 

especial para a Inglaterra). 

A   dinamização   da   economia,   aos   poucos,   favoreceu   a   transformação   de   pequenas 

comunidades   como   Acari   e   Vila   do   Príncipe63,   nas   respectivas   cidades   de   Acari   e   Caicó,   em 

princípios do século XX. 

  Logo, os açudes (aliados a sistemas de irrigação) e estradas de ferro nos sertões do RN 

possibilitaram condições politico­administrativas e econômicas para que vilas assumissem a condição 

de cidades. 

Essa situação favoreceu a consolidação de novas cidades à posição de sedes do poder 

administrativo, cerne da vida política e social e de centros irradiadores de produção e comércio dos 

municípios   locais.   Consequentemente,   essas   medidas   permitiram   certo   desenvolvimento 

socioeconômico nesses novos núcleos urbanos, promovidos pela produção agrícola e abastecimento 

do gado leiteiro e de corte, e o respectivo comércio desses. Isso dava­se mesmo em períodos de 

estiagem,   garantidos   pela   segurança   hídrica   trazida   pelos   açudes   públicos,   fato   que   também 

corroborou para a formação de uma rede urbana nas regiões do Seridó e Alto Oeste no estado do Rio 

Grande do Norte.

Em linhas gerais, os açudes constituíram elementos de grande importância no escopo das 

políticas de planejamento territorial e na visão técnica dos engenheiros. Aos poucos, o ideal desses 

técnicos foi em parte sendo realizada no sertão potiguar, visto que com a implantação desses açudes 

houve uma fixação significativa do homem sertanejo em sua região e o desenvolvimento das áreas 

urbanas atendidas. A contribuição desses açudes culminava com o escoamento da produção permitida 

pelas estradas de ferro. 

  As   ferrovias,   por   sua   vez,   corroboraram   com   o   desenvolvimento   urbano   de   alguns 

municípios   do   estado,   a   partir   do   crescimento   econômico   gerado   pela   interligação   de   diferentes 

regiões produtivas, como o vale do Ceará­Mirim, o Seridó, a cidade de Macau, expoente salineiro e 

63
 Em 1845, a divisão político­administrativa do território potiguar em 1845 denominava as mesmas como vilas, ainda 
não possuindo um status de cidade.
porto de escoamento, e a capital Natal. 

A segurança hídrica que esses reservatórios possibilitavam às vilas, como a do Príncipe 

(atual Caicó), dentre outras cidades do Oeste potiguar, acabou por colaborar para o desenvolvimento 

urbano e econômico dessas regiões pela produção e exportação por meio das ferrovias do algodão e 

do gado.

Essas   obras   de   caráter   hidráulico   acabaram   gerando,   em   linhas   gerais,   uma   melhora 

significativa quanto ao bem estar social das populações, tanto do campo, quanto dessas vilas e cidades 

do sertão  potiguar, promovendo para as últimas um dos elementos fundamentais na existência e 

desenvolvimento desse meio urbano, a água.

A   construção   de  açudes   no   Nordeste   pela  IOCS,   em  especifico  na  região  do   Seridó 

potiguar na busca da formação de um território integrado na região, permitiu a valorização dessas 

áreas. Por sua vez, a valorização das áreas favorecidas atraiu investimentos, dinamizando a economia 

dessas  regiões, além do  crescimento demográfico e expansão física dos assentamentos humanos. 

Observou­se, dessa forma, que as medidas da inspetoria deram condições político­administrativas e 

econômicas para que vilas alçassem a condição de cidades, corroborado, dessa forma, para formação 

de   uma   rede   urbana   que   aos   poucos   se   integrava   a   esses   espaços   da   economia   regional.   Os 

conhecimentos, interpretações  técnicas  e ações  empreendidas  nos  sertões  do Brasil e do RN  em 

especifico, foram, dessa forma, de fundamental importância para a construção do território nordestino 

no início do século XX. 
      

AS ESTRADAS DE FERRO: A QUESTÃO ECONÔMICA, A INTERLIGAÇÃO DE 

ZONAS PRODUTIVAS E A FORMAÇÃO DE UMA REDE URBANA

A ferrovia se caracterizou como elemento de fascínio entre as nações latino­americanas em 

finais do século XIX. No Brasil, havia o interesse econômico e a crença em profundas transformações 

produtivas   causadas   pela   sua   implantação.   Esse   imaginário   da   linha   férrea   como   elemento 

transformador, capaz de dinamizar a produção de uma região e mudar hábitos e costumes foi refletido 

também no Rio Grande do Norte, impulsionando a construção das primeiras vias no estado a partir do 

entusiasmo das elites ligadas à produção açucareira. 
Havia de fato uma fé inabalável nas estradas de ferro por parte das administrações no Rio 
Grande   do   Norte.   Atribuía­se   às   ferrovias   não   somente   a   capacidade   de   melhorar   o 
escoamento   da   produção.   Elas   também   desenvolveriam   a   produção   agrícola,   trariam 
indústrias, engrandeceriam cidades e até mesmo fariam surgir um espírito empreendedor 
nos habitantes das áreas cortadas pelos trilhos (RODRIGUES, 2006, p.92).

A construção da estrada entre Natal e Nova Cruz, depois arrendada pela companhia The  

Great  Western of Brazil Railway  Limited, em finais do século XIX, corroborou esse sentimento 

progressista, além de “fortalecer o comércio da capital, ao centralizar em Natal o escoamento da 

produção   do   sul   da   província”   (RODRIGUES,   2006,   p.   93).   Essa   lógica   de   centralização   não 

respondia   apenas   a   um   anseio   das   elites   locais,   mas   representava   todo   um   plano   nacional   de 

fortalecimento das capitais, que visava promover o desenvolvimento econômico das mesmas a partir 

da otimização de lucros. Apesar do surgimento de novas políticas de planejamento durante a transição 

entre os séculos XIX e XX, como redes urbanas mais modernas e menos encefálicas, a tendência 

centralizadora   ainda   era   a   mais   correntemente   apontada   pelos   engenheiros   no   planejamento 

ferroviário (RODRIGUES, 2006). 

Partindo desse viés, pode­se dizer que os planejamentos intraurbano e territorial seguiam 

tendências  paralelas, ambos  calcados  na articulação das  partes. As  ferrovias, além  de  serem  um 

dispositivo de alto impacto territorial, deixaram intervenções no espaço intraurbano. 

De acordo com a primeira parte do trabalho (Referenciais teóricos e conceitos básicos), a 

análise da mútua influência existente entre rede urbana e rede ferroviária será empreendida de acordo 

com a metodologia de Francisco Zorzo (2003), em que dois aspectos primordiais são evidenciados: o 

fator comercial e o fator humano. O primeiro refere­se ao desenvolvimento em termos de infra­

estrutura   urbana   e   vidas   culturais,   ocasionados   pela   penetração   mercantil   advinda   da   expansão 

ferroviária e fruto do escoamento da produção das regiões abrangidas e do transporte de mercadorias. 

O segundo faz referência ao crescimento populacional da região servida, além do surgimento de 

novas centralidades e emancipação. São abrangidos por esse aspecto o movimento de passageiros e de 

informação, além da contribuição dada pela construção da EFCRN ao combate dos efeitos das secas 

no sertão potiguar. 
O FATOR COMERCIAL

Como visto anteriormente, a instalação e expansão da Estrada de Ferro Central do Rio 

Grande do Norte obedeceram a uma proposta de favorecimento da capital do Estado, tanto no âmbito 

de melhoramentos estéticos e funcionais na estrutura urbana de Natal como, principalmente, para o 

âmbito econômico. O traçado estabelecido pelos estudos da “Comissão de Obras Contra as Secas” 

tinha o objetivo de interligar diversas regiões produtivas do estado à cidade do Natal, que funcionaria 

como   porto   de   escoamento   dessa   produção.   O   anseio   das   elites   no   sentido   de   sobrepujar   as 

dificuldades geográficas impostas e o papel de Natal apenas como centro administrativo são evidentes 

nos discursos do início do século XX:

De fato, isolada entre as dunas e o mar, Natal, na opinião de seus intelectuais, precisava de 
uma   intervenção   sobre   a   natureza,   uma   intervenção   técnica   destinada   a   –   para   nos 
determos   na   enumeração   de   duas   das   mais   mencionadas   causas   da   obstrução   do   seu 
progresso   – reequipar  seu  porto,  incluindo aí  a  fixação   das   dunas   próximas, retirando 
obstáculos naturais que bloqueavam a entrada de embarcações de maior calado, e ligar por 
vias férreas ou estradas carroçáveis a capital aos sertões. (ARRAIS, 2005, p.29).

A   implantação   da   estrada   teve   como   conseqüência   imediata   a   ampliação   de   sua 

interiorização   no   âmbito   comercial   do   Rio   Grande   do   Norte.   Essa   interiorização   se   refletiu   no 

crescente   volume   de   mercadorias   transportadas   pela   linha   e   na   intensificação   dos   trabalhos   de 

expansão da mesma. Já no ano de 1908, pouco tempo após o início dos trabalhos de prolongamento 

da estrada visando a cidade de Caicó, a linha transportava cerca de 3 mil toneladas de mercadorias de 

importação e mais de 2 mil toneladas de exportação. O serviço de informação também foi dinamizado 

pela Central, que no mesmo ano foi responsável pelo movimento de mais de 1400 telegramas para as 

áreas abrangidas (VIAÇÃO E OBRAS..., 1909). 

No ano de 1911, a linha férrea havia se expandido consideravelmente. Contando com 

cerca de 56 quilômetros antes dos trabalhos de expansão em 1908, em 1911 a estrada já possuía 100 

quilômetros de extensão em tráfego e 99 quilômetros em trabalho de construção. Outras localidades 

passaram a ser abrangidas pela rede viária, entre elas Baixa Verde e Cardoso, que nesse ano consistia 

o ponto terminal da mesma. Após problemas na execução das obras, que permaneceram paralisadas 
durante quatro meses, a concessão da estrada passa para a “Companhia de Viação e Construções”, 

que as reinicia até o quilômetro 200 em Angicos, cujo leito encontrava­se quase totalmente pronto ao 

final de 1911.

Para ilustrar o crescimento e o impacto comercial da linha, deve­se observar que em 

1911,   depois   da   expansão   física   empreendida,  foram   transportadas  mais   de   17   mil   toneladas   de 

mercadorias e precisamente 1540 telegramas (VIAÇÃO E OBRAS..., 1911), fato que dinamizou a 

economia   das   localidades   atendidas.   O   crescimento   físico   é   intensificado   no   ano   de   1912, 

especialmente nas estruturas de apoio em detrimento da extensão da linha, que pouco cresceu. É 

iniciada a construção de uma série de equipamentos, entre eles o armazém de Baixa Verde e três 

galpões na esplanada da capital, bem como a instalação da “Comissão de Melhoramentos de Natal” 

na praça Silva Jardim e as obras da estação central, oficinas e almoxarifado na capital. 

A ocorrência de mais uma seca é responsável por mais uma interrupção nas obras da 

Central, devido à falta de mão­de­obra ocasionada pelo êxodo para o Amazonas. Apesar disso, os 

estudos de planejamento do traçado Lajes­Caicó, do ramal Lajes­Macau e do prolongamento Caicó­

Milagres são continuados. É válido salientar que o plano de construção de um ramal interligando o 

eixo central da estrada à cidade de Macau é de grande importância econômica para a rede férrea e de 

cidades, uma vez que, além de porto de escoamento, a cidade era uma importante produtora de sal 

marinho. 

No ano de 1915, várias obras do parque ferroviário na esplanada Silva Jardim já haviam 

sido concluídas, como as oficinas, a rotunda para máquinas, a ponte de atracação, o almoxarifado, o 

reservatório   para água  e  os  depósitos  para carros.  Outros  trabalhos  encontravam­se  em iminente 

avanço, como as obras de construção da ponte sobre o Rio Potengi e outras instalações da praça Silva 

Jardim (VIAÇÃO E OBRAS..., 1915). A extensão da linha chegava até a cidade de Lajes, nova 

estação terminal, um trecho de aproximadamente cento e vinte quilômetros. As obras de expansão 

continuavam por diversas ligações, como Pedra Preta­Lajes, Lajes­Caicó e o ramal de Macau. 

Nesse ano, há também a mudança do traçado anteriormente proposto, o que ocasionou o 

abandono de quarenta e seis quilômetros em adiantada construção em direção a Angicos, que faria a 

ligação   da   linha   a   Caicó.   A   modificação   atendeu   às   possibilidades   de   orçamento   que   seriam 

ultrapassadas, uma vez que a escavação teria de ser feita na rocha. No entanto, pode­se formular a 
hipótese de influência política na alteração do traçado, uma vez que o trecho abandonado encontrava­

se em vias de conclusão. 

Em   1919,   as   obras   de   expansão   sofreram   algumas   dificuldades,   como   a   falta   de 

dormentes, deixando cerca de 12 quilômetros com serviço incompleto, e as dificuldades no transporte 

de água para os funcionários, provinda da lagoa de Extremoz, tendo que percorrer uma distância de 

cento e noventa quilômetros. Apesar dos problemas encontrados, a estrada continuava com um fluxo 

intenso de mercadorias e passageiros, apresentando um crescente aumento de receita e tarifas 40% 

mais baratas em comparação com as da companhia  Great Western, que administrava a linha entre 

Natal e Nova Cruz (ver figura 05). 

Em virtude dos maus serviços prestados pela “Companhia de Viação e Construções”, em 

julho de 1920 o contrato é rescindido e a estrada passa para a administração direta do Governo 

Federal, através do decreto n. 14.136 (VIAÇÃO E OBRAS..., 1920). A linha é recebida em estado 

pouco satisfatório e a rescisão do contrato ocasionou uma série de indenizações que causaram um 

considerável aumento das despesas e conseqüentemente do déficit naquele ano. Em 1921, a extensão 

em tráfego não cresceu, apresentando os mesmos 147 quilômetros registrados em 1919. Ainda como 

conseqüência das despesas do ano anterior, o déficit manteve­se estável. Apesar disso, a Estrada de 

Ferro Central do Rio Grande do Norte representava um importante dispositivo de circulação para o 

estado e especialmente para as cidades interligadas e suas economias. Como exemplo disso, basta 

citar   que   em   1922   o   volume   de   mercadorias   trafegadas   correspondeu   ao   montante   de   35   mil 

toneladas, sendo os dois produtos mais transportados o algodão, com seis mil e trezentas toneladas, 

seguido   pelo   açúcar,  com três  mil e quatrocentas, cerca  de 50% a mais  em relação a 1921.   Os 

investimentos na estrutura física continuaram sendo substituídos por mais de vinte mil dormentes e 

contratado  pessoal. Os  estudos  para construção do prolongamento Lajes­Caicó adotam o traçado 

estabelecido   em   1905   pela   comissão   chefiada   pelo   engenheiro   Sampaio   Correia,   que   visava   o 

contorno da Serra da Borborema, acompanhando o Rio Piranhas­Assú. As obras do ramal de Macau 

continuam paralisadas nesse ano. 

A extensão em tráfego de 1923 passa a ser de 176 quilômetros, uma vez que o trecho de 

27 quilômetros já construídos do ramal de Macau começa a funcionar, passando pela estação Epitácio 

Pessoa até o povoado de Carapebas (VIAÇÃO E OBRAS..., 1923). Um fato importante é de que, 
tanto em 1923 como em 1924, a Central apresentou saldo positivo entre sua receita e seus gastos, 

diferentemente dos anos anteriores. No ano de 1925, apesar dos resultados financeiros dos anos que o 

precederam, os investimentos na linha se tornam consideravelmente difíceis, uma vez que apenas 

26% dos dormentes encontravam­se em bom estado, sendo necessária a substituição de mais de cem 

mil, o que só seria possível através de verbas extraordinárias. Além disso, a construção de estradas de 

rodagem  é  intensificada no  Rio Grande  do Norte, tais  como Natal­Currais  Novos,  Lajes­Currais 

Novos, Caicó­Jardim, Currais Novos­Acari e Jardins­Parelhas (VIAÇÃO E OBRAS..., 1925).

O FATOR HUMANO

Pode­se   citar   como   hipótese   o   crescimento   populacional   da   região   servida,   além   da 

emancipação de várias localidades a partir da inserção da EFCRN. Apesar do aumento da população 

dos núcleos interligados permanecer no campo da hipótese, uma vez que não foram encontrados 

dados empíricos em relação a essa questão, pode­se afirmar, com base em informações coletadas nos 

RMVOP, que os impactos causados no âmbito comercial, explicitados no item “Fator Comercial”, 

tiveram como conseqüência a dinamização do fator humano. Esse fator corresponde ao transporte de 

passageiros, informação e mercadorias, que cresceu proporcionalmente à expansão da linha, gerando 

melhora na infra­estrutura básica das cidades abrangidas. Para se ter uma idéia do crescimento, basta 

dizer que em 1909 a linha transportou cerca de 13 mil passageiros e, em 1914, cerca de 34 mil. O 

crescimento físico também foi evidente, visto que em 1915 a estrada já havia superado o dobro da 

quilometragem de 1908. 

Para melhor ilustração da dinâmica empreendida pela linha férrea, elaboramos um quadro 

em que é discriminado o número de passageiros transportados no período abordado pelo recorte do 

trabalho. Esse quadro foi construído a partir de dados colhidos nos Relatórios do Ministério de Viação 

e Obras Públicas. 

Quadro 01 – Número de passageiros e mercadorias transportados pela EFCRN entre 1908 e 1922.
Ano Passageiros Mercadorias (tons.)
1908 12.214 6.636,771
1909 13.624 7.818,835
1910 17.804 11.096,764
1911 26.585 17.453,270
1913 30.934 6.647,000
1914 34.871 6.639,000
1921 51.834 25.686,930
1922 59.329 39.136,183

Fonte: Relatórios do Ministério de Viação e Obras Púbicas Observação: Elaborado pelo autor.

Destarte, os aspectos evidenciados encontram­se em concordância com Zorzo (2003), a 

partir da análise de mútua influência existente entre rede urbana e rede ferroviária, uma vez que 

houve uma alteração nas dinâmicas do aspecto humano, com o aumento do número de passageiros 

transportados,   e   do   aspecto   econômico,   com   o   desenvolvimento   do   agro­comércio   e 

conseqüentemente da infra­estrutura urbana.  

Um   fator   que   reforça   ainda   mais   a   importância   da   Estrada   de   Ferro   Central   como 

elemento de integração e conseqüentemente de formação de uma rede urbana, é que mesmo com um 

déficit   crescente,   as   obras   e   a   circulação   continuaram   em   expansão   nos   anos   seguintes.   Como 

ilustração desse crescente déficit entre receita e despesas, que só não aconteceu nos anos de 1923 e 

1924, podemos citar, com base em dados presentes nos RMVOP, que em 1910 o seu valor era de 

109:575$112 (Cento e nove contos, quinhentos e setenta e cinco mil e cento e doze réis), chegando a 

atingir picos de 297:539$182 (Duzentos e noventa e sete contos, quinhentos e trinta e nove mil e 

cento e oitenta e dois réis) em 1920.

Como no estudo de Francisco A. Zorzo, no Rio Grande do Norte a implantação de vias 

férreas também obedeceu a uma conformação territorial construída historicamente. Essa estrutura é 

dependente de uma série de dispositivos de poder do território. No estudo da ferrovia como elemento 

conectivo e determinante na formação de uma rede urbana, as vias terrestres constituem o principal 

dispositivo histórico de poder. Através delas é que são impostas diferentes funcionalidades, gerando a 

diferenciação e conseqüentemente a hierarquia urbana. 
A rede ferroviária, assim como a rede formada pelas antigas vias carroçáveis, exerce o 

mesmo   papel   de  divisão  fundiária,   circulação   de  riquezas   e   escoamento   da   produção,   sobretudo 

agrícola. A sua diferença reside no fato de que ela originou uma nova dinâmica desse processo, tanto 

em relação ao volume, como em eficiência e rapidez. No Rio Grande do Norte, a Estrada de Ferro 

Central exerceu significativamente esse papel. A sua ação foi incisiva na formação de uma complexa 

rede urbana a partir da ligação de diferentes potencialidades, tais como a região do vale do Ceará­

Mirim, com a produção de cana­de­açúcar, a região do Seridó, com sua produção algodoeira e de 

cereais, a cidade de Macau, expoente salineiro e porto de escoamento, e a cidade de Natal, centro 

administrativo, comercial e portuário. 

Evidenciam­se   neste   trabalho   as   diversas   contribuições   econômicas   geradas   pela 

implantação da Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte. O aspecto econômico, ligado ao 

desenvolvimento   do   agro­comércio,   contribuiu   significativamente   no   desenvolvimento   da   infra­

estrutura   urbana,   uma   vez   que   era   responsável   pela   circulação   de   bens,   capitais   e   informação, 

condicionantes de uma dinamização comercial nas regiões abrangidas, além de garantir a cristalização 

de uma malha urbana conectada pela ferrovia.

O aspecto humano também foi alvo de intervenções graças à implantação da via férrea. 

Essas   mudanças  estão relacionadas   ao crescimento  demográfico  e  emancipação  de  centralidades, 

como por exemplo, Taipu, que, apesar de se constituir município ainda no século XIX, apenas veio a 

se sobressair através do dinamismo imposto pela Central. Dois fatores relevantes e que merecem ser 

mencionados   foram  o transporte  de passageiros,  que  aumentou paulatinamente  de acordo  com  a 

expansão física da estrada, gerando assim a disponibilidade de potencial humano, especialmente no 

tocante à mão­de­obra e às ações contra a seca, a partir do emprego de mão­de­obra flagelada em seu 

prolongamento e através do transporte de víveres e material para as obras contra o flagelo. 

Dessa   forma,   baseando­se   nas   vantagens   econômicas   e  humanas   proporcionadas   pela 

formação de uma rede urbana, podemos afirmar que a Estrada de Ferro Central do Rio Grande do 

Norte gerou uma melhora significativa no grau de desenvolvimento urbano das cidades abrangidas 

por ela.
REFERÊNCIAS

ALMEIDA,   Caliane Christie.  Os Caminhos da Habitação: Um  panorama  geral  das  intervenções 


estatais. Natal (1889­1964). 2005. Tabalho final de graduação (Curso de Arquitetuta e Urbanismo) – 
Departamento de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2005.

AUGUSTO, José. Seridó. Brasília: Senado Federal, 1980. 

A REPÚBLICA. Natal: 16 jan. 1908.

A REPÚBLICA. Natal: 17 mar.1908.

A REPÚBLICA. Natal: 05 maio 1908.

A REPÚBLICA. Natal: 07 maio 1908.

ARRAIS, Raimundo (Org.).  Crônicas de Origem: a cidade de Natal nas crônicas cascudianas dos 
anos 20. Natal: EDUFRN, 2005.

CASCUDO,   Luís   da   Câmara   (1934).  Viajando   o   Sertão.   2.   ed.   Natal:   EDUFRN,   1985.
_______. (1947) História da Cidade do Natal. 3. ed. Natal: IHGRN, 1999. 

CUNHA,   Euclides   da   (1902).   Os   Sertões.   3.   ed.   Rio   de   Janeiro:   Record,   2000.


CNPq.  Entre as Secas e as Cidades: formação de práticas, saberes e representações do urbanismo 
(1850­1930). Brasília: 2004, Projeto de Pesquisa.

CÔRREA, Roberto Lobato. A Rede Urbana. São Paulo: Editora Ática, 1989.

DANTAS, Ana Caroline de C. L.  Sanitarismo e planejamento urbano: a trajetória das propostas 
urbanísticas   para   Natal   entre   1935   e   1969.     ).   2003.   Dissertação   (Mestrado   em   Arquitetuta   e 
Urbanismo) – Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio 
Grande do Norte, 2003. 

FARIAS, Hélio Takashi Maciel de. As mariposas na cidade: o espaço urbano e os migrantes rurais na 
Natal da década de 1920. Trabalho apresentado como requisito parcial para aprovação da disciplina 
Planejamento e Projeto Urbano e Regional 04 Departamento de Arquitetura, Universidade Federal do 
Rio Grande do Norte, 2004.

FERREIRA,  Angela Lúcia A., EDUARDO, Anna Rachel B., DANTAS, Ana Caroline de C.  L., 


DANTAS, George Alexandre F. Uma Cidade Sã e Bela: a trajetória do Saneamento de Natal entre 
1850 e 1969. Natal: CAERN, 2004. No prelo.

FERREIRA, Angela Lúcia A., DANTAS, George Alexandre F. (Org.). Surge et Ambula: a construção 
de uma cidade moderna, Natal (1890­1940). Natal: EDUFRN, 2006. 

FERREIRA,   Angela  Lúcia  de Araújo;  DANTAS,  George  A. F.   Os   “indesejáveis”   na cidade:   as 
representações   do   retirante   da   seca   (Natal,   1890­1930).  Scripta   Nova  Disponível   em:< 
http//www.ub.es/geocrit/sn­94­96.htm.>

FERREIRA, Angela L. de A, DANTAS, George A. F. e EDUARDO, Anna Rachel B. “Em torno das 
cidades: urbanismo e secas no Nordeste do Brasil, 1900­1920”. Scripta Nova.. Disponível em:< http//
www.ub.es/geocrit/sn­194­104.htm>
FERREIRA, Angela L. de A, DANTAS, George A. F. e FARIAS, Hélio T. M. A dimensão técnica  
das secas: formulações iniciais, leituras do território e planejamento na virada para o século XX. 
Natal: 2006 . Artigo inédito.

FERREIRA, Angela L. de A, DANTAS, George A. F. e EDUARDO, Anna Rachel B. Saudáveis 
trópicos: cidade, higiene e ordem para a Nação em formação (Brasil, 1850 – 1930). La integración  
del territorio en una idea de Estado. México y Brasil, 1821­1946. México D. F.: El Instituto de 
Investigaciones Dr. José María Luis Mora y la Universidad Nacional Autónoma de México  (No 
prelo). 

FERREIRA, Angela L. de A, DANTAS, George A. F. e FARIAS, Hélio T. M. Adentrando Sertões: 
considerações sobre a delimitação do território das secas. VIII Colóquio Internacional de Geocrítica – 
Geografía histórica e historia del territorio. Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/colmex/dantas­
ferreira.htm.

FERREIRA,  Angela Lúcia A., EDUARDO, Anna Rachel B., DANTAS, Ana Caroline de C.  L., 


DANTAS, George A. F. A paisagem criada pelo saneamento: propostas arquitetônicas para a Natal 
dos   anos   1930. In:  CONGRESSO  BRASILEIRO  DE ARQUITETOS,  13,  2003,  Rio de  Janeiro. 
Anais... Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. 9 ed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979. 

MORAES, Antonio Carlos Robert. O Sertão: Um “Outro” Geográfico.  Terra Brasilis: Revista de 
História do Pensamento Geográfico no Brasil. Rio de Janeiro: Território, 2002­2003.

NOVAES, Henrique de. Um inquerito dos “Diarios Associados” sobre a obra da revolução: combate 
ás seccas do Nordeste. Revista do Clube de Engenharia, n. 8, p. 360­372, maio. 1935.

________. Um subsidio para a historia da Inspectoria de obras contra as seccas. Revista do Clube de  
Engenharia, n.5, p. 251­255, jan. 1935.
________. A recuperação do Vale do São Francisco.  Revista do Clube de Engenharia, n. 138, p.
33­53, 1948.

PROPESQ. Habitação Urbana em Natal (1889­1964): produção e significados. Natal: 2005, Projeto 
de Pesquisa.

QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

REIS, Aarão. Obras novas contra as sêcas (executadas de 3 de setembro de 1915 a 31 de outubro de 
1918). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1920.

REVISTA DO CLUB DE ENGENHARIA. Rio de Janeiro: [s. n.],  ano 3, v.2, 1889.

________. Rio de Janeiro: [s.n.], n.19, 1909.

REVISTA DA ILUSTRAÇÃO BRASILEIRA. Rio de Janeiro: [s. n.],   n.1 , 1922.

RODRIGUES, Wagner do Nascimento. Dos caminhos de água aos caminhos de ferro: a construção 
da hegemonia de Natal através das vias de comunicação (1820­1920). Natal: Dissertação (Mestrado 
em   Arquitetuta   e   Urbanismo)   –   Programa   de   Pós   Graduação   em   Arquitetura   e   Urbanismo, 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2006. 

SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985.

SILVA, Janice Theodoro da. Raízes do planejamento: Nordeste (1889 – 1930). São Paulo: Ciências 
Humanas, 1978. 

SOBRINHO, Thomaz Pompeu. História das Secas (Século XX). Homenagem ao Primeiro Centenário 
da Abolição Mossoroensse. 2. ed., v. 226. Mossoró: Coleção Mossoroense, 1982 
VIAÇÃO E OBRA PÚBLICAS Relatório Anual. Rio de Janeiro: 1909. 

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1910.

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1911.

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1912.

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1915.

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1919.

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1920.

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1921.

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1922.

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1923.

________. Relatório Anual. Rio de Janeiro: [s. n.], 1925.

ZORZO, Francisco A. Ferrovia e Rede Urbana na Bahia (1860­1930. In: ENCONTRO 

NACIONAL DA ANPUR, 10, 2003. Belo Horizonte. Anais... São Paulo: FAU/USP, 2003. 
ESPAÇO E HISTÓRIA – REFLEXÕES SOBRE UMA RELAÇÃO FUNDAMENTAL

Autor: José D’Assunção Barros ­ Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense, 
jose.assun@globo.com, Professor da Universidade Severino Sombra.

RESUMO

Este artigo busca esclarecer e discutir as relações entre “espaço”, “tempo” e 
História. A ênfase é dirigida para as várias modalidades historiográficas para as 
quais   adquirem   uma   significativa   centralidade   conceitos   como   o  de   espaço, 
região   e   território.   A   História   Regional,   A   Geo­História,   e   as   relações 
interdisciplinares entre História e Geografia são especialmente enfatizadas.

Palavras­chave: Espaço, Região; Geo­História.

ABSTRACT

This article attempts to clarify and discuss the relations between space, time 
and   History.   The   emphasis   is   in   the   various   historiographic   modalities   of 
History for which ones the concepts of space, region, and territoriality have a 
significant   centrality.   The   Regional   History,   the   Geo­History,   and   the 
interdisciplinary   relations   between   History   and   Geography   are   specially 
emphasized.
 

Key Words: Space, Region; Geo­History.
ESPAÇO E HISTÓRIA – REFLEXÕES SOBRE UMA RELAÇÃO FUNDAMENTAL

Espaço e História, nos dias de hoje já é quase um lugar­comum afirmar, entretecem uma 

relação tão importante como Tempo e História. Se não existe História que não esteja firmemente 

ancorada em um conceito bem estabelecido de temporalidade, em certa forma de perceber e dar a 

perceber o tempo e a sua concretização na vida social e nos processos históricos através dos quais o 

mundo se transforma constantemente, também a noção de Espaço é já dimensão inseparável dos 

modos de compreensão do historiador acerca das sociedades que examina. Pode mesmo se dar, como 

veremos adiante, que esse Espaço não seja necessariamente geográfico, físico, material – embora isso 

freqüentemente   ocorra   –   mas   uma   modalidade   de   espaço,   ainda   que   seja   um   espaço   social, 

imaginário, ou mesmo literário ou virtual, é naturalmente uma dimensão inseparável do compreender 

e do fazer histórico.

É   verdade   que   definir   a   História   através   de   sua   relação   com   o   Tempo   foi   uma 

preocupação   anterior   dos   historiadores,   e   nesse   sentido   pode­se   lembrar   que   já   se   disse   que   “a 

História é o estudo do homem no Tempo”. A definição foi proposta por Marc Bloch por volta de 

meados do século XX64, mas hoje parece tão óbvia que já deve ter sido mencionada inúmeras vezes 

em obras de historiografia e certamente na maioria dos manuais de História. No entanto, quando Marc 

Bloch a propôs, estava confrontando essa definição a uma outra que também parecera perfeitamente 

óbvia aos historiadores do século XIX: “a História é o estudo do Passado Humano”.

A   idéia   de   “estudo”,   que   aparece   em   ambas   as   definições,   aliás,   é   particularmente 

64
 BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.55.
sintomática, e assinala um momento no século XIX em que a história passa a ser considerada uma 

Ciência – uma ciência interpretativa, com seus métodos próprios e abordagens teóricas, e que deve se 

processar sob o métier de um novo tipo de estudioso e especialista que é o Historiador (no sentido 

acadêmico). O Historiador – no sentido moderno, e não no antigo – era esta figura de conhecimento 

que, no século XVIII, estivera ainda inserida embrionariamente dentro da polivalência do Filósofo de 

tipo iluminista como uma de suas inúmeras facetas (Voltaire, David Hume, Montesquieu e muitos 

outros filósofos escreveram eventualmente obras de História, ao mesmo tempo em que elaboravam 

ensaios voltados para a reflexão metafísica, para a estética, para a política ou para a epistemologia).

Antes de se tornar “estudo”, a História fora muitas coisas, inclusive algo que – de maneira 

igualmente   óbvia   para   os   homens   de   outro   tempo   –   definira­se   como   o   “registro  do   Passado 

Humano”. A passagem do mero “registro” ao “estudo” é , como se disse, particularmente sintomática; 

mas por hora retornemos ao que há de propriamente distintivo em definir a História como “estudo do 

Passado Humano” ou como “Estudo do Homem no Tempo”.

Quando se diz que “a História é o estudo do homem no tempo”, rompe­se com a idéia de 

que a História deve examinar apenas e necessariamente o Passado. O que ela estuda na verdade são as 

ações e transformações humanas (ou permanências) que se desenvolvem ou se estabelecem em um 

determinado período de tempo, mais longo ou mais curto. Tem­se aqui o estudo de certos processos 

que se referem à vida humana numa diacronia – isto é, no decurso de uma passagem pelo tempo – ou 

que   se   relacionam   de   outras   maneiras,   mas   sempre   muito   intensamente,   com   uma   idéia   de 

‘temporalidade’ que se torna central nesse tipo de estudo. Vista dessa maneira a partir da terceira 

década do século XX, a História expandia­se extraordinariamente no campo das Ciências Humanas. 

Com   essa   nova   redefinição   –   constantemente   confirmada   por   uma   considerável   e   progressiva 

variedade de novos objetos e sub­especialidades – a História assenhorava­se, por exemplo, do mais 

recente de seus domínios: o Tempo Presente. Estudar o momento presente, com vistas a perceber 

como esse momento presente é afetado por certos processos que se desenvolvem na passagem do 

tempo,   ou   como   a   temporalidade   afeta   de   diversos   modos   a   vida   presente   –   incluindo   aí   as 

temporalidades imaginárias da Memória ou da Ficção – passava a ser também uma das tarefas do 

Historiador.

Definir a história como o estudo do  homem  no  tempo  foi, portanto, um passo decisivo 


para a expansão dos domínios historiográficos. Contudo, a definição de História, no seu aspecto mais 

irredutível,   deve  incluir  ainda  uma  outra   coordenada  para  além  do “homem”   e  do  “tempo”.   Na 

verdade, a História é mais precisamente o estudo do Homem no Tempo e no Espaço e é sobre esta 

última relação, na verdade igualmente primordial, que iremos refletir a seguir. De fato, as ações e 

transformações que afetam aquela vida humana que pode ser historicamente considerada dão­se em 

um   espaço   que   muitas   vezes   é   um   espaço   geográfico   ou   político,   e   que,   sobretudo,   sempre   e 

necessariamente constituir­se­á em espaço social. Mas com as expansões dos domínios históricos que 

começaram a se verificar no último século, esse Espaço também pode ser perfeitamente um “espaço 

imaginário”   (o   espaço   da   imaginação,   da   iconografia,   da   literatura),   e   adivinha­se   que   em   um 

momento que não deve estar muito distante os historiadores estarão também estudando o “espaço 

virtual”, produzido através da comunicação virtual ou da tecnologia artificial. Pode se dar que, em um 

futuro   próximo,   ouçamos   falar   em   uma   modalidade   de   História   Virtual   na   qual   poderão   ser 

examinadas as relações que se estabelecem nos espaços sociais artificialmente criados nos chats  da 

Internet, na espacialidade imaginária das  webpages  ou das simulações informáticas ou mesmo no 

espaço de comunicação quase instantânea dos correios eletrônicos – essas são futuras fontes históricas 

com as quais também terão de lidar os historiadores do futuro. Mas, por hora, consideraremos apenas 

o Espaço nos seus sentidos tradicionais: como lugar que se estabelece na materialidade física, como 

campo   que   é   gerado   através   das   relações   sociais   ou   como   realidade   que   se   vê   estabelecida 

imaginariamente em resposta aos dois fatores anteriores.

Tão logo se deu conta da importância de entender o seu ofício como a Ciência que estuda 

o homem no tempo e no espaço – e essa percepção também se dá de maneira cada vez mais clara e 

articulada em meio às revoluções historiográficas do século XX – os historiadores perceberam a 

necessidade de intensificar sua interdisciplinaridade com outros campos do conhecimento. Emergiu 

daí   uma   importantíssima   interdisciplinaridade   com   a   Geografia,   ciência   que   já   tradicionalmente 

estuda o espaço físico – e, se considerarmos outras formas de espaço como o “espaço imaginário” e o 

“espaço   literário”,  poderíamos  mencionar  ainda  a  interdisciplinaridade  com a Psicanálise, com  a 

Crítica   Literária,   com   a   Semiótica   e   com   tantas   outras   disciplinas   que   ofereceram   novas 

possibilidades de métodos e técnicas aos historiadores. Na verdade, a noção de espacialidade foi se 

alargando com o desenvolvimento da historiografia do século XX: do espaço físico ao espaço social, 
político e imaginário e daí até a noção do espaço como “campo de forças” que pode inclusive reger a 

compreensão das práticas discursivas. Neste momento, contudo, iremos nos concentrar nas noções de 

espaço que surgem a partir da interdisciplinaridade com a Geografia.

A   interdisciplinaridade   entre   a   História   e   a   Geografia   é   estabelecida,   entre   outros 

aspectos, através de conceitos como “espaço”, “território”, “região” e é sobre eles que passaremos a 

refletir nas próximas linhas. Em uma de suas instâncias mais primárias, o espaço pode ser abordado 

como uma área indeterminada que existe previamente na materialidade física (e, neste caso, ainda não 

estaremos considerando as noções de “espaço social”, de “espaço imaginário” e de “espaço literário” 

que   já   foram   mencionadas).   Foi   a   partir   dessa   noção   fundadora   que,   na   Geografia   tradicional, 

começaram a emergir outras categorias como a de “paisagem”, de “território” e de “Região” – noções 

de que logo os historiadores começariam a se apropriar para seus próprios fins.

Grosso modo, uma região é uma unidade definível no espaço, que se caracteriza por uma 

relativa homogeneidade interna com relação a certos critérios. Os elementos internos que dão uma 

identidade à região (e que só se tornam perceptíveis quando estabelecemos critérios que favoreçam a 

sua percepção) não são necessariamente estáticos. Daí que a região também pode ter sua identidade 

delimitada e definida com base no fato de que nela pode ser percebido certo padrão de interrelações 

entre elementos dentro dos seus limites. Vale dizer, a região também pode ser compreendida como 

um sistema de movimento interno. Por outro lado, além de ser uma porção do espaço organizada de 

acordo com um determinado sistema ou identificada através de um padrão, a região quase sempre se 

insere ou pode se ver inserida em um conjunto mais vasto.

Essa noção mais ampla de região – como unidade que apresenta uma lógica interna ou um 

padrão que a singulariza e que, ao mesmo tempo, pode ser vista como unidade a ser inserida ou 

confrontada   em   contextos   mais   amplos   –   abrange   na   verdade   muitas   e   muitas   possibilidades. 

Conforme   os   critérios   que   estejam   sustentando   nosso   esforço   de   aproximação   da   realidade,   vão 

surgindo   concomitantemente   as   várias   alternativas   de   dividir   o  espaço  antes   indeterminado   em 

regiões mais definidas. Posso estabelecer critérios econômicos – relativos à produção, circulação ou 

consumo – para definir uma região ou dividir uma espacialidade mais vasta em diversas regiões. 

Posso preferir critérios culturais – considerar uma região lingüística ou um território sobre o qual são 

perceptíveis   certas   práticas   culturais   que   o   singularizam,   certos   modos   de   vida   e   padrões   de 
comportamento nas pessoas que o habitam. Posso me orientar por critérios geológicos – e estabelecer 

em um espaço mais vasto as divisões que se referem aos tipos de minerais e solos que predominam 

em uma área ou outra – ou posso ainda considerar zonas climáticas. A Geografia, como é de se 

esperar,   privilegia   certos   critérios:   muito   habitualmente   lança   luz   sobre   certos   aspectos   que   se 

relacionam com a materialidade física, e pode ou não relacionar estes aspectos a outros de ordem 

cultural (como é o caso, de modo geral, da Geografia Humana).

Uma noção importante a ser considerada aqui, antes de examinarmos como a História 

pode se beneficiar da abordagem geográfica, é a de “paisagem”. Para a Geografia, uma paisagem é 

uma associação típica de características geográficas concretas que se dão numa região – ou numa 

extensão específica do espaço físico – e constitui um determinado padrão visual que se forma a partir 

dessas características que a singularizam (pensemos na paisagem de um Deserto, de uma Floresta, ou 

de uma Cidade). Podemos falar de uma “paisagem natural”, mas também de uma “paisagem cultural” 

– essa última dando a perceber as interferências do homem que acabam por imprimir­se na fisionomia 

de um determinado espaço, conferindo­lhe uma nova singularidade.

Uma paisagem geográfica, dessa maneira, surge em decorrência da repetição – em uma 

determinada superfície ou espaço – de certos elementos produzidos por combinações de formas e que, 

conforme já foi dito, tanto podem ser físico­naturais como humanos. A paisagem pode coincidir com 

uma “região natural” – conceito que definiremos a seguir – ou pode ser derivada de um padrão cuja 

singularidade associa­se a um tipo de ocupação agrícola ou organização humana do espaço. Para 

esses últimos casos, um campo de trigo ou uma cidade de alta densidade demográfica podem ser 

apontados como exemplos de paisagens que têm elaboradas culturalmente as suas materialidades 

físicas; e a multidiversificada vegetação que recobre uma floresta virgem ou a vasta extensão de areia 

que constitui um deserto inóspito podem ser indicados como exemplos de paisagens que coincidem 

com “regiões naturais”.

A  paisagem,   esse   padrão   de  visualidade  que  se  mostra  ao  homem  no  seu  estado   de 

percepção mais espontânea, foi, por motivos óbvios, o primeiro grande aspecto a ser considerado pelo 

conhecimento geográfico no seu esforço de compreensão do mundo. Aliada ou não à percepção mais 

imediata de uma determinada paisagem, a noção de “região natural” cedo se constituiu em outra das 

mais   primordiais   noções   geográficas  e  baseia­se  francamente  no  papel   desempenhado  por  certos 
elementos físicos na organização do espaço. Pode­se considerar, nesse caso, uma bacia hidrográfica, 

um conjunto afetado por um tipo de clima, ou uma montanha – e, a  partir deste ou daquele fato 

natural que assume uma centralidade na percepção ou análise, é estabelecida em seguida uma rede de 

relações   ou   desdobramentos  que  terminam por definir  o espaço.  Exemplos  clássicos  de “regiões 

naturais” são as vastas e impenetráveis florestas que ainda resistem em muitas partes do globo às 

ações   depredatórias   do  homem,  ou  a  inóspita  caatinga  da  qual   a  vida  humana   ocupa   apenas   os 

interstícios.

Esses e alguns outros são os espaços gerados pela materialidade física do mundo e pela 

Natureza, com nenhuma ou pouca participação do homem. A Montanha ou os rios impõem os seus 

limites e caminhos, uma zona climática dita suas regras. Por outro lado, ocorre também que a Política 

– aqui referida à vasta complexidade de estruturas de poder que estabelecem limites e centros de 

organização que terminam por reordenar o espaço e a materialidade de múltiplas maneiras – também 

produz a sua própria espacialidade. Na superfície do globo terrestre, formam­se nações e dentro delas 

estados, províncias, unidades administrativas, comarcas, cidades. Todas essas divisões foram criadas 

pelo homem e acabam por se superporem de um modo ou de outro às divisões impostas naturalmente 

ou também por interagir com as paisagens que podem ser percebidas de diversas maneiras. Dessa 

maneira, os aspectos físicos e os aspectos políticos ­ geralmente combinados de alguma forma – 

terminam por serem aqueles que vêm à tona mais espontaneamente quando se pensa em considerar a 

espacialidade. Mas, como sempre frisamos, esses aspectos podem não ser os mais importantes em 

função de uma determinada análise da realidade a ser empreendida, seja esta uma análise histórica, 

geográfica, sociológica ou antropológica. Voltaremos a essa questão oportunamente.

Quando   os   historiadores   deram­se   conta   da   necessidade   de   –   sobretudo   para   certos 

objetos históricos a serem examinados – colocar em um mesmo nível as noções de tempo e espaço, 

logo começaram a dialogar com conceitos mais tradicionais da Geografia, como aqueles que atrás 

explicitamos. Uma das primeiras escolas geográficas a terem merecido a atenção dos historiadores de 

novo tipo e, mais particularmente, da historiografia original e derivada da Escola dos Annales, foi a 

escola   geográfica   de   Vidal   de   La   Blache   –   geógrafo   que   já   atuava   interdisciplinarmente   com 

historiadores desde 190565. É a contribuição desse geógrafo com relação às noções de “espaço” e de 
65
  Vidal de la Blache contribuiu para a  História da França  de Ernest Lavisse com um primeiro volume intitulado 
Tableau de la geographie de la France (Paris: Éditions de la Table Ronde, 1903).
“região”   que   veremos   em   diversas   obras   de   Lucien   Febvre   e,   mais   tarde,   no  Mediterrâneo  de 

Fernando   Braudel.   É  também um  modelo derivado de  Vidal  La  Blache  que veremos  nas   várias 

monografias de “história local”, que começam a ser produzidas em quantidade nos anos 1950.

O   modelo   geográfico   de   Vidal   de   La   Blache   constituiu­se   por   oposição   à   escola 

geográfica alemã que se constituía em torno de Ratzel. Enquanto este era francamente determinista, 

atribuindo   uma   influência   quase   linear   do   meio   sobre   o   destino   humano,   Vidal   de   La   Blache 

trabalhava mais propriamente com a idéia de um “possibilismo geográfico”. Isso significa que, ainda 

que colocando o meio geográfico no centro da análise da vida humana, Vidal de La Blache buscava 

enfatizar as diversas possibilidades de respostas que podiam ser colocadas pelos seres humanos diante 

dos desafios do meio. Para além disso, tinha­se aqui uma geografia cujas noções essenciais eram 

constituídas a partir dos conceitos da Biologia. A moldura na qual se enquadrava a vida humana não 

era tanto a Terra como teatro de operações no qual intervinham os diversos fatores físicos, como o 

clima e  a base geológica, mas a Terra enquanto matéria viva, coberta de vegetação e variedade 

animal, formadora de ambientes ecológicos e de possibilidades vitais.

As primeiras aplicações das concepções espaciais derivadas da escola geográfica de Vidal 

de La Blache apareceriam nas novas obras historiográficas que enfrentaram o desafio de estudar as 

macro­espacialidades. Lucien Febvre já havia se valido francamente da concepção espacial de La 

Blache para começar a pensar as relações entre o meio físico e a sociedade. O resultado dessa reflexão 

foi concretizado na obra A  Terra e a Evolução Humana  (1922)66. Contudo, é Fernando Braudel o 

primeiro a aplicar essas noções a um objeto historiográfico mais específico e de maior magnitude. O  

Mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Felipe II  (1945) – obra que se celebrizou por 

entremear para um mesmo objeto o exame de três temporalidades distintas (a longa, a média e a curta 

duração), cada qual com seu ritmo próprio – traz precisamente no primeiro volume, dedicado ao 

estudo   de   uma  longa   duração   em   que   tudo   se   transforma   muito   lentamente,   um  paradigma   que 

marcaria toda uma geração de historiadores: a idéia de estabelecer como ponto de partida da análise 

historiográfica o espaço geográfico.

Nessa obra de Braudel, como em Vidal de La Blache, o “meio” e o “espaço” são noções 

perfeitamente equivalentes. Oscilando entre a idéia de que o meio determina o homem, e a de que os 

66
 FEBVRE, Lucien. La terre et la evolution humaine. Paris: Albin Michel, 1922.
homens instalam­se no meio natural transformando­o de modo a convertê­lo na principal base de sua 

vida social, Braudel termina por associar intimamente a “civilização” e a “macro­espacialidade”. Em 

Mediterrâneo  ele afirma que, “uma civilização é, na base, um espaço trabalhado, organizado pelos 

homens e pela história” e, em A Civilização Material do Capitalismo (1960), ele reitera essa relação 

sob a forma de uma indagação: “o que é uma civilização senão a antiga instalação de uma certa 

humanidade em um certo espaço?”.67 Essa relação íntima entre a sociedade e o meio geográfico (no 

sentido   lablachiano)   estaria   precisamente   na   base   da   formação   de   uma   nova   modalidade 

historiográfica: a Geo­História.

A Geo­História introduz a geografia como grade de leitura para a história68 e, ao trazer o 

espaço para primeiro plano e não mais tratá­lo como mero teatro de operações – e sim como o próprio 

sujeito   da   História   –,   possibilita   o   exame   da   longa   duração,   essa   história   quase   imóvel   que  se 

desenrola   sobre   uma   estrutura   onde   os   elementos   climáticos,   geológicos,   vegetais   e   animais 

encontram­se em um ambiente de equilíbrio dentro do qual  se instala o homem. Rigorosamente 

falando,  não é tanto com a idéia de um “determinismo geográfico”  que Braudel  trabalha em  O  

Mediterrâneo e sim com a idéia de um “possibilismo” inspirado precisamente na geografia de Vidal 

de   La   Blache.   Afora   isso,   o   empreendimento   a   que   o   historiador   francês   se   propõe   nessa   obra 

paradigmática é o de realizar uma “espacialização da temporalidade” e, mais tarde, ele aprimorará 

também uma “espacialização da economia”, chegando ao conceito de “economias­mundo” que já se 

encontra perfeitamente elaborado e sustentado em exemplos históricos com A Civilização Material 

do Capitalismo.

O objeto do primeiro volume de O Mediterrâneo – que representa a grande originalidade 

dessa obra dividida em três partes que se referem a cada uma das três temporalidades que marcam os 

ritmos da história – é a relação entre o Homem e o Espaço. É essa relação que ele pretende recuperar 

através de “uma história quase imóvel ... uma história lenta a desenvolver­se e a transformar­se, feita 

muito freqüentemente de retornos insistentes, de ciclos sem fim recomeçados”69. A interação entre o 

Homem e o Espaço, as suas simbioses e estranhamentos, as limitações de um diante do outro, tudo 

67
 (1) BRAUDEL, Fernando. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris : 1966, p.107 
(original : 1949). (2) BRAUDEL, Fernando. Civilisation matérielle et capitalisme. Paris : 1967, p.95.
68
 DOSSE, François. A História em Migalhas. São Paulo: Editora Ensaio, 1994, p.136.
69
 BRAUDEL, Fernando. Écrits sur l’Histoire. Paris: Flammarion, 1969, p.11.
isso não constitui propriamente a moldura do quadro que Braudel pretende examinar, mas o próprio 

quadro em si mesmo. Eis aqui o primeiro ato desse monumental ensaio historiográfico e é sobre esta 

história quase­imóvel de longa duração – a temporalidade espacializada em que o tempo infiltra­se no 

solo a ponto de quase desaparecer – que se erguerá o segundo ato, a “média duração” que rege os 

“destinos   coletivos  e  movimentos de conjunto”,  trazendo  à tona uma história  das estruturas  que 

abrange desde os sistemas econômicos até as hegemonias políticas, os estados e sociedades. Trata­se 

de uma história de ritmos seculares, não mais milenares e, depois dela, surgirá o último andar – a 

“curta  duração”,  que rege a história dos  acontecimentos, formada por “perturbações  superficiais, 

espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas”.70

É fácil perceber como o sujeito da história, nas duas obras monumentais de Braudel, 

transfere­se do homem propriamente dito para realidades que lhe são muito superiores: o “Espaço”, 

no  Mediterrâneo; e a “Vida Material”, na Civilização Material do Capitalismo. São esses grandes 

sujeitos   históricos   que   abrem   o   campo   de   possibilismos   para   as   subseqüentes   histórias   dos 

“movimentos coletivos” e dos “indivíduos”. Tal como observa Peter Burke em uma sintética mas 

lúcida análise de  O Mediterrâneo, um dos objetivos centrais de Braudel nessa obra é mostrar que 

tanto   a   história   dos   acontecimentos   como   a   história   das   tendências   gerais   não   podem   ser 

compreendidas sem as características geográficas que as informam e que, de resto, têm a sua própria 

história longa:

O capítulo sobre as montanhas, por exemplo, discute a cultura e a sociedade 
das regiões montanhosas, o conservadorismo dos montanheses, as barreiras 
socioculturais que separam os homens da montanha dos homens da planície, e 
a   necessidade   de   muitos   jovens   montanheses   emigrarem,   tornando­se 
mercenários.71

O Mediterrâneo e Felipe II, enfim, é a insuperável obra prima em que Braudel pretendeu 

demonstrar que o tempo avança com diferenças velocidades, em uma espécie de polifonia na qual a 

parte   mais   grave   coincide   com   a   história   quase   imóvel   do   Espaço   e   onde   temporalidade   e 

70
 BRAUDEL, Fernando. On History. Chicago: University of Chicago Press, 1980, p.21.
71
 BURKE, Peter. A Escola dos Annales. São Paulo: UNESP, 1991, p.50.
espacialidade praticamente se convertem uma à outra. Paradoxalmente, apesar de ter sido o primeiro a 

propor uma “história quase imóvel” como um dos níveis de análise, outra grande contribuição de O  

Mediterrâneo  foi a de mostrar que tudo está sujeito a mudanças, ainda que lentas, o que inclui o 

próprio Espaço. De fato, a leitura de  O Mediterrâneo  mostra­nos que o espaço definido por esse 

grande Mar era muito maior no século XVI do que nos dias de hoje, pelo simples fato de que o 

transporte e a comunicação eram muito mais demorados naquele período72. Com isso, percebe­se que 

a espacialidade dilata­se ou comprime­se no tempo conforme consideremos um período ou outro nos 

quais se contraponham diferentes possibilidades dos homens movimentarem­se no espaço. Mais uma 

vez, homem, espaço e tempo aparecem como três fatores indissociáveis.

Se o Espaço está sujeito aos ditames do Tempo, por outro lado a Temporalidade também 

está sujeita aos ditames do Espaço e do meio geográfico. Apenas para dar um exemplo assinalado por 

François Dosse, o mesmo Mediterrâneo de Braudel também mostra­nos um mundo dicotomicamente 

dividido em estações: enquanto o verão autoriza o tempo da guerra, o inverno anuncia a estação da 

trégua   –   uma   vez   que   “o   mar   revolto   não   permite   mais   aos   grandes   comboios   militares   se 

encaminharem   de   um   ponto   ao   outro   do   espaço   mediterrânico:   é,   então,   o   tempo   dos   boatos 

insensatos, mas também o tempo das negociações e das resoluções pacíficas”73. Dessa maneira o 

Clima (um aspecto físico do meio geográfico) reconfigura o Espaço e este redefine o ritmo de tempos 

em que se desenrolam as ações humanas. Espaço, Tempo e Homem.

A obra de Fernando Braudel também nos permite iniciar outra reflexão que retomaremos 

mais adiante e que se refere à consideração de uma diferença fundamental entre “duração” e “recorte 

de tempo”. Braudel ousou estudar o “grande espaço” no “tempo longo”. Quando falamos em “tempo 

longo”, referimo­nos a uma “duração” – ou antes: a um determinado “ritmo de duração”. O tempo 

longo é o tempo que se alonga, o tempo que parece passar mais lentamente. Não devemos confundir 

“longa duração” com “recorte extenso”. O recorte de Braudel em  O Mediterrâneo  – pelo menos o 

recorte deste trecho da História de que ele se vale para orquestrar polifonicamente as três durações 

distintas – é o reinado de Felipe II. Braudel não estudou nessa obra um “recorte temporal estendido”. 

72
 Conforme ressalta Braudel, “cruzar o Mediterrâneo de norte a sul levava de uma a duas semanas”, enquanto 
atravessá­lo de leste a oeste podia consumir “dois ou três meses” (BRAUDEL, Fernando. La Méditerranée ..., 
op.cit., p.363).
73
 DOSSE, François. A História em Migalhas. op.cit., p.140.
Ele estudou um recorte tradicional, que cabe em uma ou duas gerações e que coincide com a duração 

de um reinado, mas examinando através desse recorte a passagem do tempo em três ritmos diferentes. 

Uma  outra  coisa seria examinar um determinado espaço – grande ou pequeno – em um recorte 

extenso ou estendido. Dito de outra forma, o ritmo de tempo que o historiador sintoniza em sua 

análise   de   uma   determinada   realidade   histórico­social   nada   tem   a   ver   com   o   “recorte   temporal 

historiográfico” escolhido pelo historiador.

Com   relação   ao   seu   recorte   espacial,   Fernando   Braudel   havia   considerado   que   o 

Mediterrâneo possuía, sob certos aspectos, uma unidade que transcendia as unidades nacionais que se 

agrupavam em torno do grande “mar interior” e que ultrapassava a polarização política entre os dois 

grandes impérios da época: o Espanhol e o Turco. Por outro lado, o historiador francês precisou lidar 

com a “unidade na diversidade” e descreve dezenas de regiões autônomas cujos ritmos convergem 

para um ritmo supralocal. O mundo mediterrânico que ele descreve é constituído por um grande 

complexo de ambientes – mares, ilhas, montanhas, planície e desertos – e que se vê partilhado em 

uma pluralidade de regiões a terem sua heterogeneidade decifrada antes de ser possível propor a 

homogeneidade   maior   ditada   pelo   tipo   de   vida   sugerido   pelo   grande   Mar.   Esse   foi   o   desafio 

enfrentado por Braudel.

Se   Fernando   Braudel   trabalhou   com   o   “grande   espaço”,   as   gerações   seguintes   de 

historiadores trouxeram também a possibilidade de uma nova tendência que abordaria o “pequeno 

espaço”.   Essa nova tendência, que se fortalece nos anos 1950, ficou conhecida na França  como 

“História Local”. Também aqui a contribuição da Geografia derivada de Vidal de La Blache destaca­

se  com  particular nitidez, ajudando a configurar um conceito de Região que logo passaria  a  ser 

utilizado  pelos  Historiadores  para o estudo de micro­espaços  ou espaços  localizados, em muitos 

sentidos   dotados   de  uma  homogeneidade  bem  maior  do  que  os   macro­espaços   que  haviam  sido 

examinados   por   Braudel.   Do   macro­espaço   que   abriga   civilizações,   a   historiografia   moderna 

apresentava   agora   a   possibilidade   de   examinar   os   micro­espaços   que   abrigavam   populações 

localizadas, fragmentos de uma comunidade nacional mais ampla. A História Local nascia, aliás, 

como possibilidade de confirmar ou corrigir as grandes formulações que haviam sido propostas ao 

nível das histórias nacionais. A História Local – ou História Regional, como passaria a ser chamada 

com um sentido um pouco mais específico – surgia precisamente como a possibilidade de oferecer 
uma iluminação em detalhe de grandes questões econômicas, políticas, sociais e culturais que até 

então haviam sido examinadas no âmbito das dimensões nacionais.

O modelo de compreensão do Espaço proposto pela escola de Vidal La Blache funcionou 

adequadamente para diversos estudos associados a essa historiografia européia dos anos 1950 que 

lidava com aquilo que Pierre Goubert – um dos grandes nomes da “História Local” – chamava de 

“unidade   provincial   comum”   e   que   ele   associava   a   unidades   “tal   como   um  country  inglês,   um 

contado  italiano, uma Land  alemã, um pays ou bailiwick franceses”.74  Nesses casos e em outros, o 

espaço escolhido pelo historiador coincidia de modo geral com uma unidade administrativa e muitas 

vezes  com uma unidade bastante homogênea do ponto de vista geográfico ou da perspectiva  de 

práticas agrícolas. Também se tratava habitualmente de zonas mais ou menos estáveis – bem ao 

contrário do que ocorria em países como os da América Latina durante o período colonial, onde 

devemos   considerar   a   ocorrência   muito   mais   freqüente   de   “fronteiras   móveis”.   A   espacialidade 

tipicamente européia em certos recortes temporais – que não coincide com a de outras áreas do 

planeta e para todos os períodos históricos – permitiu que fosse aproveitado por aqueles historiadores 

que começavam a desenvolver estudos regionais, cobrindo todo o Antigo Regime, um modelo em que 

o espaço podia ser investigado e apresentado previamente pelo historiador, como uma espécie de 

moldura onde os acontecimentos, práticas e processos sociais se desenrolavam. Freqüentemente, e até 

os anos 1960, as monografias derivadas da chamada Escola dos Annales apresentavam previamente a 

Introdução   Geográfica   e   depois   vinha   a   História,   a   organização   social,   as   ações   do   homem.   A 

possibilidade de esse modelo funcionar, naturalmente, dependia muito do objeto que se tinha em 

vista, para além dos padrões da espacialidade européia nos períodos considerados.

A crítica que depois se fez a esse modelo onde o espaço era como que dado previamente 

– tal como aparecia nas propostas derivadas da escola de Vidal de La Blache – é que na verdade 

estava   sendo   adotado   um   conceito   não­operacional   de   Região.   As   Regiões   vinham   definidas 

previamente, como que estabelecidas de uma vez por todas, e bastava o historiador ou o geógrafo 

escolher a sua para depois trabalhar nela com suas problematizações específicas. Freqüentemente – 

quando  a  região  coincidia  com um  recorte político­administrativo que permanecera  sem maiores 

alterações desde a época estudada até o tempo presente – isso representava certa comodidade para o 

74
 GOUBERT, Pierre. “História Local” in História & Perspectivas. Uberlândia, 6­45­47, Jan/Jun 1992, p.45.
historiador, que podia buscar as suas fontes exclusivamente em arquivos concentrados nas regiões 

assim definidas.

Em seu célebre artigo sobre “A História Local”, Pierre Goubert chama atenção para o fato 

de que a emergência da história local dos anos 1950 havia sido motivada precisamente por uma 

combinação   entre   o   interesse   em   estudar   uma   maior   amplitude   social   (e   não   mais   apenas   os 

indivíduos ilustres, como nas crônicas regionais do século XIX) e alguns métodos que permitiriam 

esse estudo para regiões mais localizadas – mais particularmente as abordagens seriais e estatísticas, 

capazes de trabalhar com dados referentes a toda uma população de maneira massiva. Ao trabalhar 

em suas pequenas localidades, os historiadores poderiam, dessa maneira, fixar sua atenção “em uma 

região geográfica particular, cujos registros estivessem bem reunidos e pudessem ser analisados por 

um   homem   sozinho”75.   A   coincidência   entre   a   região   examinada   e   uma   unidade   administrativa 

tradicional como a paróquia rural ou o pequeno município, podemos acrescentar, permitia por vezes 

que  o  historiador resolvesse todas as suas carências de fontes em um único arquivo, ali mesmo 

encontrando e constituindo a série a partir da qual poderia extrair os dados sobre a população e a 

comunidade examinada.

Com   o   progressivo   surgimento   dos   novos   problemas   e   objetos   que   a   expansão   dos 

domínios historiográficos passou a oferecer cada vez mais no decurso do século XX, o modelo de 

região derivado da escola geográfica de La Blache começou a ser questionado precisamente porque 

deixava encoberta a questão essencial de que qualquer delimitação espacial é sempre uma delimitação 

arbitrária  e  também de que as  relações  entre  o homem e o espaço modificam­se  com o tempo, 

tornando   inúteis   (ou   não­operacionais)   delimitações   regionais   que   poderiam   funcionar   para   um 

período mas não para outro. Uma paisagem rural facilmente pode se modificar a partir da ação do 

homem,   o   que   mostra   a   inoperância   de   considerar   regiões   geográficas   fixas   –   e   isto   se   mostra 

especialmente relevante para os estudos da América Latina no período colonial, mais ainda do que 

para os estudos relativos à Europa do mesmo período76. De igual maneira, um território (voltaremos a 

75
 GOUBERT, Pierre. “História Local”. op.cit., p.49.
76
  Mesmo   para   períodos   posteriores,   deve   ser   observada   uma   distinção   na   espacialidade   de   certos   países   que 
adquiriram centralidade em termos de domínio econômico e os chamados países subdesenvolvidos. Milton Santos 
observa que “descontínuo, instável, o espaço dos países subdesenvolvidos é igualmente multipolarizado, ou seja, é 
submetido   e   pressionado   por   múltiplas   influências   e   polarizações   oriundas   de   diferentes   tipos   de 
decisão” (SANTOS, Milton. O Espaço Dividido. São Paulo: EDUSP, 2004, p.21).
esse conceito) não existe senão com relação ao âmbito de análises que se tem em vista, aos aspectos 

da vida humana que estão sendo examinados (se do âmbito econômico, político, cultural ou mental, 

por exemplo).

Atrelar o espaço ou o território historiográfico que o historiador constitui a uma pré­

estabelecida região administrativa, geográfica (no sentido proposto por La Blache) ou de qualquer 

outro tipo, implicava deixar escapar uma série de objetos historiográficos que não se ajustam a esses 

limites.   A   mesma   comodidade   arquivística   que   pode   favorecer   ou   viabilizar   um   trabalho   mais 

artesanal do historiador – capacitando­o para dar conta sozinho de seu objeto sem abandonar o seu 

pequeno recinto documental – também pode limitar e empobrecer as escolhas historiográficas. Uma 

determinada prática cultural, conforme veremos oportunamente, pode gerar um território específico 

que nada tenha a ver com o recorte administrativo de uma paróquia ou município, misturando pedaços 

de unidades paroquiais distintas ou vazando municípios. Do mesmo modo, uma realidade econômica 

ou   de   qualquer   outro   tipo   não   coincide   necessariamente   com   a   região   geográfica   no   sentido 

tradicional.

A crítica aos modelos de recorte regional­administrativo ou de recortes geográficos à 

velha maneira de Vidal La Blache não surgiu apenas das novas buscas historiográficas, mas também 

de desenvolvimentos que se deram no próprio seio da Geografia Humana. Tal ressalta Ciro Flamarion 

Cardoso  em um ensaio bastante importante sobre a História Agrária. À altura dos anos 1970,  o 

conceito de “região” derivado da escola de Vidal de la Blache começou a ser radicalmente criticado 

por autores como Yves Lacoste77  – que sustentavam que a realidade impõe o reconhecimento de 

“especialidades diferenciais, de dimensões e significados variados, cujos limites se recortam e se 

superpõem, de tal maneira que, estando num ponto qualquer, não estaremos dentro de um, e sim de 

diversos conjuntos espaciais definidos de diferentes maneiras”.78

A idéia de tratar sob o ponto de vista das “espacialidades superpostas” a materialidade 

física sobre a qual se movimenta o homem em sociedade, incluindo sistemas diversificados que vão 

da rede de transportes à rede de conexões comerciais ou ao estabelecimento de padrões culturais, 

aproxima­se muito mais da realidade vivida do que o encerramento do espaço em regiões definidas de 

uma   vez   para   sempre   e   associadas   apenas   aos   recortes   administrativos   e   geográficos   que 
77
 LACOSTE, Yves. La geographie, ça sert d’abord à faire la guerra. Paris : Maspéro, 1976.
78
 CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Editora Vozes, 1979.
habitualmente aparecem nos mapas. A realidade, em qualquer época, é necessariamente complexa, 

mesmo   que   essa   complexidade   não   possa   ser   integralmente   captada   por   nenhuma   das   ciências 

humanas, por mais que estas desenvolvam novos métodos para tentar apreender a realidade a partir de 

perspectivas   cada   vez   mais   enriquecidas.   Voltaremos   oportunamente   a   esse   aspecto,   quando 

discutirmos os recortes a que o historiador é obrigado a se render na operação historiográfica através 

da qual busca apreender a vida humana.

Outro geógrafo importante para a discussão do espaço, embora ainda pouco utilizado 

pelos historiadores, é Claude Raffestin, que faz uma distinção bastante interessante entre o “espaço” e 

o “território”. Segundo Raffestin, “o território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação 

conduzida   por   um   ator   sintagmático   (ator   que   realiza   um   programa)   em   qualquer   nível.   Ao   se 

apropriar   de   um   espaço,   concreta   ou   abstratamente   (por   exemplo,   pela   representação),   o   ator 

‘territorializa’   o   espaço”.79  Obviamente   que   a   definição   de   “espaço”   proposta   por   Raffestin, 

necessariamente ligada à materialidade física, deixa de fora as possibilidades de se falar em outras 

modalidades de espaço – como o “espaço social”, o “espaço imaginário”, o “espaço virtual” – que se 

constituem no próprio momento da ação humana. De qualquer modo, o sistema conceitual proposto 

por Raffestin é importante porque chama atenção para o fato de que a territorialização do espaço 

ocorre não apenas com as práticas que se estabelecem na realidade vivida, como também com as 

ações que são empreendidas pelo sujeito de conhecimento:

‘Local’ de possibilidades, [o espaço] é a realidade material preexistente a 
qualquer conhecimento e a qualquer prática dos quais será o objeto a partir do 
momento   em   que   um   ator   manifeste   a   intenção   de   dele   se   apoderar. 
Evidentemente, o território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma 
produção, a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações 
que envolve, se inscreve num campo de poder. Produzir uma representação 
do espaço já é uma apropriação, uma empresa, um controle, portanto, mesmo 
se isso permanece nos limites de um conhecimento80.

Vale ainda lembrar que a consciência de uma territorialidade que é transferida ao espaço 

pode transcender o mundo humano. Também os animais de várias espécies, que não apenas o homem, 

79
 RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993, p.143.
80
 RAFFESTIN, Claude. op.cit., p.144.
costumam territorializar o espaço com as suas ações e com gestos que passam a delinear uma nova 

representação do espaço. O lobo que “marca o seu território” cria para si (e pretende impor a outros 

de  sua  espécie) uma  representação  do espaço que o  redefine como extensão de terra sob  o  seu 

controle. Demarcar o território é demarcar um espaço de poder. No âmbito da Macro­Política, não é 

senão isso o que fazem os Estados­Nações ao constituir e estabelecer um rigoroso controle sobre suas 

fronteiras81.

Mas   a   noção   de   território   pode   ser   levada   adiante.   A   combinação   das   já   discutidas 

proposições   de Yves  Lacoste  com  os   conceitos  de  “espaço”  e  “território”   propostos   por  Claude 

Raffestin também permitiriam falar mais propriamente de “territorialidades superpostas”. Em sua 

realidade vivida, os seres humanos – e de formas extremamente complexas – estão constantemente se 

apropriando do espaço sobre o qual vivem e estabelecem suas diversificadas atividades e relações 

sociais.   Um  mesmo  homem, no  seu agir cotidiano e na sua correlação  com outros  homens,   vai 

produzindo territórios que apresentam maior ou menor durabilidade. Ao se apropriar de determinado 

espaço e transformá­lo em sua propriedade – seja através de um gesto de posse ou de um ato de 

compra em um sistema onde as propriedades já estão constituídas – um sujeito humano define ou 

redefine um território. Ao se estabelecer um determinado sistema de plantio sobre uma superfície 

natural,   ocorre   aí   uma   nova   territorialização   do   espaço,   claramente   caracterizada   por   uma   nova 

“paisagem” produzida culturalmente e por uma produção que implicará em controle e conferirá poder.

O  território que se  produz  e  se  converte  em propriedade fundiária  –  ou em  unidade 

política estável para considerar um nível mais amplo – pode existir em uma duração bastante longa 

antes de ser tragado por um novo processo de reterritorialização. Contudo, se um homem exerce a 

profissão de professor ou a função de político no momento de exercício dessas funções, ele poderá 

estar territorializando uma sala de aula ou um palanque por ocasião de um comício político, por 

exemplo, constituindo­se estes em territórios de curtíssima duração. A vida humana é eterno devir de 

territórios de longa e curta duração, que se superpõem e se entretecem ao sabor das relações sociais, 

das práticas e representações. E, sob certo ângulo, a História Política é o estudo desse infindável devir 

de territorialidades, que se constitui a partir dos espaços físicos, mas também dos espaços sociais, 
81
  “Por território entende­se a extensão apropriada e usada. Mas o sentido da palavra territorialidade como sinônimo  
de pertencer àquilo que nos pertence ... esse sentido de exclusividade e limite ultrapassa a raça humana” (SANTOS, 
Milton e SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil – território e sociedade no início do século XX. Rio de Janeiro: Record, 
2003, p.19.
culturais e imaginários.

Os caminhos mais recentes da Geografia Humana também convergiram para considerar o 

espaço como “campo de forças”. É de um “espaço social” que Milton Santos está falando quando 

propõe associar a noção de campo a uma Geografia Nova82. Abordando a questão do ponto de vista 

do materialismo dialético, ele chama atenção para o fato de que o espaço humano é, em qualquer 

período histórico, resultado de uma produção. “O ato de produzir é igualmente o ato de produzir 

espaço”. O homem que, devido à sua própria materialidade física, é ele mesmo espaço preenchido 

com o próprio corpo, além de ser espaço também está no espaço e produz espaço.

Mas   poderíamos   mais   uma   vez   unir   essas   pontas   e   dizer   que   “o   ato   de   produzir   é 

igualmente  o   ato  de  produzir  territórios”.  Cultivar   a  terra  é  dominar  a   terra,   é   impor­lhe  novos 

sentidos, é apartá­la do espaço indeterminado, inclusive frente a outros homens, é exercer um poder e 

obrigar­se a um controle. Fabricar mercadorias (ou controlar a produção de mercadorias) é invadir um 

espaço, é adentrar esse complexo campo de forças formado pela produção, circulação e consumo, e 

tudo isso passa também por exercer um controle sobre o espaço vital dos trabalhadores, sobre o seu 

tempo. Produzir idéias é se assenhorear de espaços imaginários e, de algum modo, exercer, através 

desses espaços, diversificadas formas de poder. A produção de discursos, por fim, implica adequar­se 

a uma espécie de territorialização da fala, na qual devem ser reconhecidas aquelas regras, limites e 

interdições que foram tão bem estudadas por Michel Foucault83. Em todos esses casos, enfim,  a 

produção estabelece territórios, redefine espaços. E de todos esses tipos de espaços deve se apropriar 

o historiador no exercício de seu ofício.

82
 SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. Rio de Janeiro: 1974, p.174.
83
 “Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e distribuída 
por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento 
aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade” (FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: 
Edições Loyola, 1996, p.8­9). 
REFERÊNCIAS

BLOCH, Marc. Apologia da História, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BRAUDEL, Fernando. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: 
Flammarion, 1966.

BRAUDEL, Fernando. Civilisation matérielle et capitalisme. Paris: Flammarion,1967.

________. Écrits sur l’Histoire, Paris: Flammarion, 1969.

________. On History. Chicago: 1980.

BURKE, Peter. A Escola dos Annales. São Paulo: UNESP, 1991.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Editora Vozes, 
1979.

DOSSE, François. A História em Migalhas, São Paulo: Editora Ensaio, 1994.

FEBVRE, Lucien. La terre et la evolution humaine, Paris: Albin Michel, 1922.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso, São Paulo: Edições Loyola, 1996.

GOUBERT, Pierre. “História Local” in História & Perspectivas, Uberlândia, 6­45­47, Jan/Jun 1992.

LA BLACHE, Vidal de. Tableau de la geographie de la France. Paris: Éditions de la Table Ronde, 
1903.

LACOSTE, Yves. La geographie, ça sert d’abord à faire la guerra. Paris : Maspéro, 1976.

RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.

SANTOS, Milton. O Espaço Dividido. São Paulo: EDUSP, 2004.

SANTOS, Milton e SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil – território e sociedade no início do século 
XX, Rio de Janeiro: Record, 2003, p.19.

SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. Rio de Janeiro: 1974.

You might also like