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Direito Natural, Positivismo e

Pós-Positivismo: compreensões
a partir da História

Eros Belin de Moura Cordeiro


Mestre em direito das relações sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Paraná. Professor colaborador de Teoria Geral do Direito Civil e Teoria Geral dos Contratos
das Faculdades Integradas do Brasil – Unibrasil. Professor adjunto de Contratos e
Responsabilidade Civil do UnicenP. Professor convidado da Escola Superior de Advocacia
da Seccional do Estado do Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil. Advogado.

1 INTRODUÇÃO: NECESSIDADE DE COMPREENSÃO


DO POSITIVISMO JURÍDICO E SUA CRISE

Os cursos jurídicos, os juristas, a hermenêutica jurídica são fortemente


influenciados pela doutrina do positivismo jurídico. O Direito positivo está pre-
sente de tal maneira no trato jurídico que ao se falar em Direito natural parece
que se está a dizer de algo pertencente a um passado distante, motivo pelo qual
sempre é relegado a uma mera notícia histórica.
A força da doutrina positivista é tão grande que se a aplica automatica-
mente, de forma até inconsciente1. No entanto, se comparado ao Direito natural
(cujos primeiros pensamentos surgiram na Grécia antiga), a hegemonia da dou-
trina positivista é fato recente (consolidou-se efetivamente com o Código Civil
francês, no início do século XIX). Além disso, a consagração positivista somente
concretizou-se após o papel importante de um dos conteúdos históricos do Di-
reito natural: o jusracionalismo.
Essas informações preliminares são fundamentais para demonstrar a im-
portância de se estudar o percurso histórico que desembocou na hegemonia da
doutrina positivista. Essa análise ganha relevo com a crise pela qual passa o
positivismo, que não apenas se mostra insuficiente para abarcar a realidade so-
cial à sua volta, como também se apresenta como um entrave na realização da
justiça. Somente com o estudo histórico de como surgiu e se consolidou a dou-
trina positivista é que tal crise pode ser melhor compreendida e dimensionada.

1) Cabe ressaltar aqui a justificativa de Norberto BOBBIO para propositura de um curso sobre positivismo: “(...)
um dever da parte de quem – como nós – pertence a uma geração que foi educada no positivismo jurídico e
habituada a considerá-lo como filosofia dos juristas (no sentido que torna explícitas as concepções adotadas
implicitamente e, talvez, inconscientemente por todos aqueles que praticam o direito)”. (O positivismo jurídi-
co: lições de filosofia do direito. Compilação de Nello Morra. Trad. de: Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E.
Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 233).

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Nessa ordem de idéias, o objetivo deste pequeno estudo é analisar a traves-
sia histórica percorrida pelo Direito natural, passando por seus diversos conteú-
dos históricos, enfocando em particular o Direito natural racional (jusracionalis-
mo, que abre as portas ao positivismo) e a consolidação do positivismo jurídico.
Por fim, enfrenta-se a crise do positivismo jurídico, inserta em um complexo ce-
nário de correntes críticas (período que se tem denominado pós-positivismo).
Para empreender tal tarefa, perquire-se inicialmente a compreensão do Di-
reito natural, enfatizando suas características e focando em especial as temáti-
cas que aborda (deslocadas, a partir do positivismo, para o campo da filosofia do
Direito), valendo-se dos contributos de MENEZES CORDEIRO2 e Elias DÍAZ3.
Em seguida, passa-se a análise histórica do Direito natural até o período
do Direito racional, ressaltando-se a importância do seu sentido histórico (assu-
mindo ora caráter conservador, ora caráter revolucionário), tomando novamente
por base o estudo de Elias DÍAZ4. Enfrenta-se, então, o período do Direito racio-
nal, que abriria as portas ao positivismo jurídicos, adotando-se como marcos
teóricos a obra de Franz WIEACKER5 e o estudo crítico de Luís Roberto BARROSO6.
Daí segue-se à consolidação da hegemonia da doutrina positivista com as gran-
des codificações (que correspondem de forma paradoxal, quando do auge do
jusracionalismo, ao fim do Direito natural), levando-se em consideração os tra-
balhos de Norberto BOBBIO7 e António Manuel HESPANHA8.
Por fim, adentra-se à crise do positivismo e as suas repercussões nas teo-
rias críticas do Direito, cujas fontes principais foram as obras de Luiz Edson
FACHIN9 e Luís Roberto BARROSO10.
Empreende-se, assim, a compreensão de como surgiu e se consolidou a
doutrina positivista, assim como suas características e seus limites, adotando-
se como fio condutor que permeia todo o trabalho o viés crítico do conceitualis-
mo abstrato, em nome de uma perspectiva construtiva visando um Direito menos
legalista e mais justo.

2 NOÇÕES GERAIS SOBRE DIREITO NATURAL

Inicialmente, para a precisa abordagem da evolução do Direito natural, de

2) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Livraria Almedina,
2ª impressão, 1997.
3) DÍAZ, Elias. Sociologia y filosofia del derecho. Madrid: Taurus, 1988.
4) DÍAZ, Elias. Ob. cit..
5) WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad. de: António Manuel Botelho Hespanha.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1980.
6) BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In Temas de direito constitucional, t. II. Rio de Janeiro: Reno-
var, 2003, p. 6-38.
7) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit..
8) HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica europeia. Panorama histórico da
cultura jurídica europeia. Lisboa: Publicações europa-américa, 2ª ed., 1998.
9) FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
10) FACHIN, Luiz Edson . Ob. cit..

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como desemboca no racionalismo e com isso abre as portas para o desenvolvi-
mento do positivismo, é necessário buscar, ainda que em linhas gerais, o que
seja Direito natural (a expressão jusnaturalismo nada mais é do que o próprio
Direito natural, termo este difundido na era moderna11).
Segundo MENEZES CORDEIRO, a expressão Direito natural é multissignifi-
cativa e pode ser compreendida em três sentidos fundamentais: o sentido clássi-
co, e a partir desta noção clássica, um sentido amplo e um sentido restrito12.
O sentido clássico explica o Direito Natural como filosofia e teoria do di-
reito, em que os materiais éticos e as questões jurídicas foram tratadas como
complexo unitário. A partir dessa noção clássica, pode-se adotar uma concep-
ção ampla e uma restrita. A concepção ampla do Direito natural ocupa-se com a
fundamentação e justificação do Direito, ou seja, a preocupação do Direito natu-
ral não é saber o que é de Direito, e sim o que é o Direito. Já a noção estrita
compreende o Direito Natural como um conjunto de normas independentes e
pré-eminentemente válidas ao Direito positivo, imanentes ao Homem, tendo le-
gitimidade por si só (e não por força de uma autoridade), derivadas da natureza13.
O Direito natural, portanto, trata de assuntos de filosofia do Direito e da
ética14 e apresenta fundamento diverso do sistema normativo criado pelo Esta-
do. Por tratar de assuntos filosóficos (e dos temas fundamentais de dada soci-
edade), o Direito natural teve diversos significados no curso da história. Como
salienta MENEZES CORDEIRO,

11) AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 3ª ed., 2000, p. 44: “Na época
moderna, o direito natural desevolve-se sob o nome de jusnaturalismo (Grotius e Pufendorf), sendo visto como
‘expressão de princípios superiores ligados á natureza racional e social do homem’, dos quais pode-se deduzir um
sistema de regras jurídicas.” Sobre o Direito natural racional, suas características, principais idealizadores e de
como influenciou no surgimento da doutrina positivista, vide capítulo 3.
12) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Ob. cit., p. 203-204, nota 3.
13) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Idem, ibidem: “A expressão <<Direito Natural>> é
multissignificativa; esse factor, nem sempre tido em conta, contribui para a formação de uma mitologia em torno
do tema que, embora substancialmente complexo é de enunciado formal simples. Cabe, da semântica variada
inerente à expressão <<Direito Natural>>, isolar três aplicações fundamentais. Em sentido clássico – o que figura
no texto – o <<Direito Natural>> exprime a filosofia e a Teoria do Direito, em geral; esta acepção foi freqüente
no chamado racionalismo, que se prende, de forma directa, ao naturalismo ibérico anterior (...). Segue-se, depois,
um sentido amplo e um sentido restrito. Em sentido amplo, <<Direito Natural>> é a área da Filosofia do Direito que
se ocupa dos fundamentos e da justificação do Direito, bem como dos princípios que devem informá-lo, para que ele
seja considerado <<justo>>. (....) Em sentido estrito, o Direito Natural é um conjunto de normas; mais precisamen-
te, na definição de Max WEBER, Witschaft und Gesellshaft (1922), 496 <<....o conjunto de normas independentes
de todo o Direito positivo e, perante ele, pré-eminentemente válidas, que não fazem depender sua dignidade de
propositura arbitrária, mas antes, de forma inversa, cujo poder de vinculação só legitimam. Portanto, o conjunto
de normas que não são legitimadas por força de sua origem num legislador idôneo, mas sim por força de pura
qualidade imanente: a única forma consequente de legitimidade de um Direito que pode, aliás, permanecer na
ausência de revelações religiosas ou da sacralidade autoritária da tradição e de seus suporte>>”.
14) Foi com o advento do jusracionalismo e, mais precisamente, com o surgimento do positivismo e a conse-
qüente consolidação da separação entre Direito e Moral é que a expressão “Filosofia do Direito” apareceu: “La
reflexión filosófica sobre el Derecho ha sido así durante todos esos siglos, de modo preferente, especulación en
torno al Derecho natural, entendido éste como sinónimo de Derecho justo, de Justicia sin más. La <<Ciencia del
Derecho natural>>, los tratados teológicos o no sobre la ley natural y sobre <<la virtud ética de la justicia>> han
construido, pues, formalmente los precendentes históricos de lo después sería la Filosofía del Derecho. Recuerda
Truyol Serra en este sentido, ofreciendo un buen cuadro de referencias para la localización del iusnaturalismo:

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A referência a um Direito natural obriga a uma colocação histórica. Ainda
que abstraindo, por agora, das posições recentes que, partindo do Natural
variável de STAMMLER, fazem, dele, um Direito de cultura, deve-se salien-
tar-se que o Direito natural, por envolver as representações axiológicas mais
sensíveis de cada sociedade, está, por excelência, dependente do estágio
cultural em que se encontre a ordem jurídica onde seja propugnado. A in-
terceptação entre Direito natural e cultura é reforçada nos períodos em que
as directivas jusnaturalistas assumiram, directamente, uma papel político-
social. O que ocorreu no racionalismo. A cultura só apreensível na história.15

Assim, pode-se ter uma noção, ainda que grosseira, do Direito natu-
ral enquanto teorização de materiais filosóficos, especialmente éticos. Em razão
de enfrentar tais problemáticas, deduz-se também uma característica fundamental
do Direito natural: sua historicidade. No entanto, apesar do conteúdo do Direito
natural variar no tempo e de acordo com cada sociedade, há outras duas caracte-
rísticas que sempre estão presentes quando se fala em jusnaturalismo: a univer-
salidade e a imutabilidade. Com efeito, como explica DÍAZ,

Sin esa base predominante de universalidade-inmutabilidade no debe en


rigor hablarse de iusnaturalismo, salvo com riesgo de crear un injustificado
confusionismo: se podrá hablar de Derecho justo, legítimo, etc., pero no de
Derecho natural. Convendría no olvidar esto cuando hoy, com excessiba pre-
cipitación, se habla de nuevos renaciementos del Derecho natural em cuanto
aparece la mais incipiciente señal de uma filosofia crítico-valorativa16.

Aliado a isso, o jusnaturalismo ainda se apresenta como fundamento últi-


mo do Direito. Dizendo de uma forma mais direta, os jusnaturalistas creditam a
autenticidade exclusiva do Direito ao Direito natural, em que o Direito positivo
apenas concorda com ele e dele retira seu fundamento. O Direito natural, então,
seria o verdadeiro Direito e também natural (ou seja, está acima do sistema posi-
tivo, acima da história, acima da localidade: imutável e universal)17.

<<La expresión Filosofia del derecho es, en efecto, una denominación nueva para un objeto antiguo que, por estar
tratado en una conexión conceptual más amplia, no tenía etiqueta propia. (...)>> Y continúa Truyyol: <<Fue la
escuela racionalista de los siglos XVII y XVIII la que, al separar la moral del derecho y proclamar la autonomía de
éste, convierte al Derecho natural en disciplina propia con um amplo contenido: así surgen los títulos con
referencia expressa al ius naturae et gentium (Pufendorf, Tomasio, Wolf)>>.” (DÍAZ, Elias. Ob. cit., p. 260).
Como se verá adiante, o deslocamento do material ético e filosófico do campo do Direito natural para o campo da
Filosofia do Direito atenderá às pretensões do positivismo jurídico, pois sedimentará a idéia da concepção neutra
do Direito, isto é, como produto unicamente derivado da produção legislativa formal do Estado. Essa observação
também explica, com a atual crise do positivismo jurídico (que vem desde o final do século XIX e acentuou-se no
decorrer do século XX), o crescimento em importância dos estudos filosófico-jurídicos: “La nueva terminologia
suponía, em efecto, uma nueva problemática, um nuevo sentido histórico, diferentes planteamientos que los
tradicionales em la reflexión sobre la crítica y los fundamentos del Derecho: hay pues, por de pronto, uma
oposición de la Filosofia del Derecho al iusnaturalismo de los siglos precedentes. Pero tambbién, em seguida, uma
superación crítica del positivismo que empieza a manifestarse y que va a tener amplia vigência, em diferentes
formas, durante los siglos XIX e XX. Puede decirse que es precisamente a través de ese trabajo de depuración crítica
frente a los diferentes iusnaturalismos, teológicos o racionales, y frente a los positivismos de raíz decimonónica,
cuando se constituye en nuestro tiempo con validez propia la Filosofía del Derecho.” (DÍAZ, Elias. Idem, p. 262).
15) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Ob. cit., p. 205.
16) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Idem, p. 265.

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Pelo que foi exposto, pode-se ter uma noção geral a respeito do Direito natu-
ral (ou jusnaturalismo): trata-se da doutrina que defende um Direito supra-estatal
(e, portanto, independente do sistema positivo), com pretensões de universalidade,
imutabilidade, autenticidade (apesar de seus fundamentos variarem no curso da his-
tória e de acordo com dada sociedade) e, por se apresentar com justificação do
Direito, tematizador de assuntos filosóficos e éticos (que, a partir da hegemonia do
juspositivismo, foram deslocados para o campo da filosofia do Direito18).
No entanto, para melhor compreensão do Direito natural e de como grada-
tivamente cedeu espaço ao positivismo jurídico, é necessário a análise do cami-
nho que percorreu no curso da história, em especial das posições centrais do
jusnaturalismo teológico transcendental e do jusracinalismo predominante nos
séculos XVII e XVIII (que propiciou as condições teórico-filosóficas para o surgi-
mento da doutrina positivista).

3 SIGNIFICADO HISTÓRICO DO DIREITO NATURAL


E AS POSIÇÕES CENTRAIS DO JUSNATURALISMO
TRANSCENDENTAL CRISTÃO E DOS JUSRACIONALISMO

Como visto, as diversas concepções do Direito natural variaram no curso


da história, podendo-se afirmar que o conteúdo do Direito natural é historica-
mente determinado. Daí a conclusão de que não existe um só Direito natural,
incondicionado (apesar de todas as concepções de Direito natural apontarem à
uma noção de imutabilidade e universalidade)19.
Pode-se, com isso, determinar diversos tipos históricos de Direito natural:
platônico-aristotélico; estóico; transcendente (San Agustín y Santo Tomás, que
desembocou no neoescolástico contemporâneo), racionalista de Pufendorf, To-
másio e Wolff, dentre outros.20
Os primeiros estudos acerca do Direito natural deram-se na antigüidade,
inicialmente com os sofistas, que concebiam o Direito natural a partir do existen-
cialismo (especialmente Protágoras: o homem caracteriza-se pelos traços própri-
os de cada um21). O idealismo de Platão e o hilemorfismo de Aristóteles (união de

17) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Idem, p. 266.


18) “O jusnaturalismo é um doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale),
ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo
Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade em si e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer.
O jusnaturalismo é, por isso, uma doutrina antitética à do ‘positivimo jurídico’, segundo a qual só há um direito, o
estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos”. (BOBBIO, Norberto;
MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. de: Carmen C. Varriale; Gaetano Lo
Mônaco; João Ferreira; Luís Guerreiro Pinto Cacais; Renzo Dini. Brasília: UNB, 2002, p. 655-656.
19) DÍAZ, Elias. Ob. cit., p. 263: “Dentro de esas coordenadas comunes a toda concepción sobre el Derecho
natural, cabe y es legítimo diferenciar, no obstante, diferentes tipos de iusnaturalismo manifestados de modo
sucesivo en la historia. (Digamos entre paréntesis que esta pluralidad de concepciones sobre el Derecho natural,
admitida por los propios iusnaturalistas, que conlleva a diferentes contenidos del mismo, se aduce con frecuencia
– y el argumento es altamente polémico – como una prueba más de la imposibilidad de un Derecho natural, más
o menos incondicionado históricamente.”
20) DÍAZ, Elias. Idem, ibidem.

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forma e matéria como fundamento das coisas) quebrariam um pouco esse particu-
larismo existencial com as noções de generalidade e universalidade do Direito
natural22. Mas foi com a filosofia estóica que as idéias de universalidade e genera-
lidade de Platão e Aristóteles sedimentaram-se23. Era época do crescimento do
Império Macedônico e expansão do helenismo, surgindo a necessidade de busca
de denominadores comuns em meio às variedades culturais. Essa generalidade e
universalidade só poderiam ser alcançadas por intermédio da natureza humana, ou
mais especificamente, da razão24. Posteriormente, com o advento da Idade Média,
surgiria o jusnaturalismo cristão, ora apegado às leis de Deus, ora apegado à pos-
tulados filosóficos gregos (ao idealismo platônico, por S. Agostinho e pela segun-
da escolástica e ao existencialismo por Duns Scotus e Guilherme de Ockham) e,
mais tarde, na modernidade, o jusnaturalismo racional.25
Apesar da diferenças existentes entre as várias concepções de Direito natural,
pode-se, com base no pensamento de Elías DÍAZ, reduzir a duas posições centrais
do jusnaturalismo: o transcendente, de raiz teológica, concebidas basicamente por
Santo Agostinho e Santo Tomas de aquino, e o racionalista de Hugo Grócio, Pufen-
dorf, Tomasio, Wolff, assim com as teorias políticas de Hobbes, Locke e Rousseau26.
Tais concepções são centrais não só por sua importância histórica, mas
também por sedimentarem as características principais do Direito natural, já res-
saltadas: a imutabilidade e a universalidade27.
A diferença entra essas duas concepções reside em que a concepção esco-
lástica é primordialmente ontológica (o Direito é o Direito natural; o Direito po-
sitivo somente existe porque é conforme o Direito natural28), ao passo que o
Direito natural racionalista primordialmente é deontológico (a universalidade e
imutabilidade não de limita ao Direito; podem existir valores que também são
universais, como os valores éticos, por exemplo29).

21) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Ob. cit., p. 206.


22) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Idem, ibidem.
23) WIEACKER, Franz. Ob. cit., p. 291: “A convicção de que a sociedade humana era ordenada por leis foi
fundamentada pelos sofistas (Gorgias, Calides, Trasímaco) de uma forma naturalista ou (Protágoras, Lícofron)
relativista; deste modo, eles converteram-se nos autênticos descobridores do direito natural como problema.
Em contrapartida, no conceito anti-sofista e socrático de verdade, a justiça torna-se, pela primeira vez, objecto
de um saber válido em geral, incondicionado e transcendente na teoria e idéias de Platão; e, com Aristóteles, é
organizado numa disciplina científica e ao mesmo tempo preenchido com determinações de caráter material”.
24) WIEACKER, Franz. Idem, p. 208.
25) As causas que levaram à consolidação do jusnaturalismo racional (grande precursor do positivismo jurídico
e, portanto, temática fundamental à este trabalho) serão vistos mais à frente (infra, capítulo 4).
26) WIEACKER, Franz. Idem, 264. No mesmo sentido, BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 20: “O rótulo
genérico do jusnaturalismo tem sido aplicado a fases históricas diversas e a conteúdos heterogêneos, que
remontam à antigüidade clássica e chegam aos dias de hoje, passando por densa e complexa elaboração ao longo
da Idade Média. A despeito das múltiplas variantes, o direito natural apresenta-se, fundamentalmente, em duas
versões: a) a de uma lei estabelecida pela vontade de Deus; b) a de uma lei ditada pela razão. O direito natural
moderno começa a formar-se a partir do século XVI, procurando superar o dogmatismo medieval e escapar do
ambiente teológico em que se desenvolveu. A ênfase na natureza e na razão humanas, e não mais na origem
divina, é um dos marcos da Idade Moderna e base de uma nova cultura laica, consolidada a partir do século XVII.”
27) WIEACKER, Franz. Idem, p. 266-267.
28) WIEACKER, Franz. Idem, p. 266.
29) WIEACKER, Franz. Idem, p. 267.

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Para o Direito natural cristão, a lei universal ou lei eterna é a razão ou
vontade de Deus30; a lei natural é a transcrição da lei eterna na alma humana. A lei
positiva somente será lei se concordar com a lei natural, que por sua vez é con-
cebida a partir da lei eterna. O esquema central da escolástica é a hierarquização
de leis: a lei positiva baseia-se na lei natural que surge da lei eterna, ditada pela
vontade de Deus (e pronunciada pela Igreja). Só há Direito se este for derivado da
lei universal eterna31.
Com a crise da Igreja (período denominado de Reforma), a unidade eclisiás-
tica se desfaz32. O universalismo destrói-se, por diversos centros ligados ä Igreja
estabelecem conteúdos diversos à lei eterna. A pretensão de universalidade, então,
deve fundar-se em outro pilar. Esse pilar será a razão humana independente, des-
tituída de qualquer religiosidade33. É a autonomia da razão humana frente à razão
teleológica que caracteriza a base do fundamento racionalista do Direito natural34.
Começava a se desenhar o jusracionalismo, que será mais detidamente
analisado no próximo capítulo. Cabe, agora, assinalar a importância desse per-
curso histórico do jusnaturalismo, ou seja, determinar seu sentido histórico: o
Direito natural é condicionado historicamente, e passa a assumir ora caráter re-
volucionário, ora caráter conservador35.

30) O jusnaturalismo cristão era relativo, ou seja, apresentava um constante relação entre o Direito da natureza
do homem e Deus; foi com São Tomás de Aquino que alcançou a universalidade característica de uma teoria de
Direito natural: “Na medida em que a separação do bem e do mal por Deus constitui um acto do seu livre arbítrio
e, portanto, uma opção histórica e não o resultado de valores gerais, tornou-se característica de todo o pensa-
mento jurídico cristão a relativização do direito natural perante à revelação divina e, portanto, a problematiza-
ção das relações entre direito natural humano e justiça divina. (...) Mas só com o aparecimento de um sistema
filosófico na alta-escolástica o direito natural se tornou numa autêntica metafísica do direito. Quando S. Tomás
de Aquino recorria, com a analogia entis, à teoria aristotélica das idéias, a qual concebe a existência contrária aos
valores como um modo incompleto de existência, estava a determinar o ser pelo valor e a decidir-se pela
preeminência da razão em relação à vontade do criador.” (WIEACKER, Franz. Idem, p. 292-293).
31) “Ley eterna (que no se confunde com la ley divino-positiva manifestada por Dios a través de la revelación),
ley natural y ley humano-positiva, articuladas jerárquicamente y fundadas todas en la primera, constituyen el
esquema central de la concepción iusnaturalista escolástic-medieval. Lo decisivo en ella es su fundamentación
religiosa y teológica, su apoyo en su concepto de ley eterna (y d ley divino-positiva) inspirada e intrepretada por
la concepción del mundo y del orden propios de la Iglesia católica medeval” (Elías DÍAZ. Ob. cit, p. 270).
32) Elías DÍAZ. Idem, ibidem.
33) WIEACKER, Franz. Ob. cit., p. 317: “Os pioneiros do jusracionalismo baseiam-se originalmente no calvinismo
político (Althussius, o próprio Grócio, mais tarde Milton e John Locke, os americanos e Rousseau); o seu solo político,
Genebra, os Países Baixos, a Inglaterra e os Estados Unidos; o seu clima, o vento salgado do mar aberto, no qual era
defendida a liberdade contra os lacaios dos príncipes; os seus lugares de formação, os Países Baixos, a Suíça e, na
Alemanha, Heidelberga e as escolas reformadas já referidas, como Herborn, Duisburg, Burgsteinfurt. Sua forma jurídica
é a soberania das comunidades calvinistas dirigidas pelos mais velhos, à qual se haeria de sobrepor mais tarde o triunfo
da soberania popular nos Estados Unidos e (se quisermos atribuir a Rousseau uma tal influência) em França.”
34) DÍAZ, Elias. Ob. cit., p. 270-271: “Si se quiere encontrar un concepto unitario de Derecho natural, aceptado
por todos los hombres sean cuales fueren sus ideas religiosas, se hace preciso independizar aquél de éstas. En el nuevo
clima de incipiente racionalismo (siglos XVI-XVII), de afirmación de la autonomía e independencia de la razón
teológica, se piensa que la base y el fundamento de ses Derecho natural no puede ser ya, decimos, la ley eterna, sino
la misma naturaleza recional del hombre, que corresponde y pertenece por igual a todo el género humano: la razón,
se dice, es lo común a todo hombre. Sobre ella se puede construir una auténtico y nuevo Derecho natural.”
35) Elías DÍAZ. Idem, p. 272, embora não seja este o papel do jusnaturalismo, já que constitui-se, por tudo o que
já foi exposto (especialmente no capítulo 1), como método de conhecimento do Direito (nesse sentido,
WIECKER, Franz. Ob. cit., p. 289).

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Esse sentido histórico do jusnaturalismo é fundamental para a compreen-
são do Direito natural racionalista36, que apresenta nítida ruptura com as con-
cepções de Direito natural anteriores (a revolução francesa é exemplo claro37: o
direito natural passou a ter nítido caráter revolucionário ao servir como argu-
mento para superação dos privilégios feudais, além de propiciar as bases para
ascensão da classe burguesa ao poder e solidificação do capitalismo emergente);
consolidado o triunfo da revolução, o direito natural passou a ter nítido caráter
conservador com relação à outra ruptura que surgiria: à do império da lei, o que
abriu de vez as portas para o surgimento do positivismo jurídico (e para conse-
qüente queda do Direito natural, como se verá).
Mas para a compreensão de como surgiu o positivismo jurídico e o conse-
qüente declínio do jusnaturalismo, faz-se necessário analisar o período de dois
séculos (1600-1800) em que o Direito natural racionalista influenciou direta-
mente a legislação e a jurisprudência da maior parte dos países da Europa. Esse
período, denominado de “jusracionalismo”, pode ser considerado como prepara-
dor para a consagração da doutrina juspositivista.

4 DIREITO NATURAL RACIONALISTA


(JUSRACIONALISMO) E A ABERTURA AO POSITIVISMO

No início do século XVII, a Europa vivia momento conturbado, em que


desenhava-se um quadro de mudanças progressistas indicativas da superação
da era medieval. Além da crise na Igreja (autoridade política na Idade média),
movimentos intelectuais decisivos na construção teórica da modernidade co-
meçaram a se desenvolver.Movimentos como humanismo e, especialmente o
nominalismo, levaram a uma significativa e importante transformação no pen-
samento: o deslocamento da razão de Deus para à natureza, fato que abrirá as
portas para a idéia de sistema (a idéia de sistema natural38). Primeiramente es-
sas novas concepções surgiram nas ciências exatas: Galileu Galilei e Issac
Newton, na física, defensores da idéia de domínio da natureza a partir do sujei-
to (tipicamente moderna); daí o desenvolvimento de métodos quantitativos e
experimentais, a noção de natureza desmistificada, e sim constituída e apreen-

36) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 21-22: “A crença de que o homem possui direitos naturais, vale dizer, um
espaço de integridade e de liberdade a ser preservado e respeitado pelo p´roprio Estado, foi o combustível das
revoluções liberais e fundamento das doutrinas políticas de cunho individualista que enfrentaram a monarquia absoluta.
A revolução Francesa e sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e, anteriormente, a Declaração
de Independência dos Estados Unidos (1776), estão impregnados de idéias jusnaturalistas, sob a influência marcante de
John Locke, autor emblemático dessa corrente filosófica e do pensamento contratualista, no qual foi antecedido por
Hobbes e cucedido por Rousseau. Sem embargo da precedência histórica dos ingleses, cuja Revolução Gloriosa foi
concluída em 1689, o Estado liberal ficou associado a esse eventos e a essa fase da história da humanidade.”
37) “Tal como os próprios fundadores da época matemática – como Galileu, Descartes, Espinosa e Laibniz –
também os precursores do jusracionalismo são homens de origem burguesa ou patrícia, muitas vezes originários
de comunidades republicanas ou mesmo seus dirigentes políticos e que tinham encontrado e manifestado o
suporte teórico das suas experiências político-sociais como pensadores autónomos fora das universidades”.
(WIEACKER, Franz. Ob. cit., p. 316).
38) WIEACKER, Franz. Idem, p. 282-283.

364 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007


dida pelo Homem39. Mais tarde, Descartes40 e Kant41 trabalhariam sob essa mes-
ma matiz na esfera social.
Tais movimentos pavimentam o caminho do desenvolvimento do jusracio-
nalismo, estruturado fundamentalmente na razão humana (fundadora e explica-
dora de todo o fenômeno jurídico). Destacam-se aqui, de modo especial, Hugo
Grócio, defensor da desconexão do direito da vontade de Deus e precursor da
construção da noção de sistema, idéias estas também desenvolvidas por Samuel
Pufendorf, criador de uma idéia de sistema fundado em premissas teóricas de-
senvolvidas por Thomas Hobbes e Barush Espinosa42.
O pensamento de Puffendorf, acrescido da separação entre Direito e ética
feita por Christian Thomasius43 e da filosofia moral racionalista de Christian Wol-
ff44, proporcionou o substrato teórico do predomínio da razão como conteúdo do
Direito natural e promoveu não só uma nova antropologia, libertando o homem
das amarras religiosas, como trouxe ao Direito uma nova metodologia: a com-
preensão do fenômeno jurídico a partir de deduções lógico-abstratas idealizadas
na noção de sistema. Tudo isso sedimentará os primados da segurança e da
certeza jurídica, que caracterizam o fundamento ideológico do positivismo, e
possibilitará as condições necessárias ao desenvolvimento político-econômico
da modernidade (ascensão da burguesia ao poder e efetivação do capitalismo45).
O positivismo jurídico, então, tem os seus pressupostos delineados. Res-

39) WIEACKER, Franz. Idem, p. 285.


40) HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 149: “Mas, para além destas vozes que lhe vinham do passado,
o século XVII encontrou no ambiente filosófico do seu presente tempo elentos que contribuiram para formar
a sua concepção de um direito natural, estável como a própria razão. Referimo-nos ao idealismo cartesiano,
embora tal concepção filosófica tenha ligações muito profundas com uma anterior escola filosófica da Baixa
Idade Média – o nominalismo de Scotto e Guilherme de Occam.” O método de Descartes, fundado na dúvida,
começava a dar a noção do sujeito moderno, que acondiciona a natureza (o sujeito pensante). Trata-se da
inversão moderna no plano do conhecimento – da relação objeto-sujeito para sujeito-objeto – que seria mais
tarde sedimentada por Kant.
41) Kant estatuiu uma completa revolução na teoria do conhecimento, construindo o sujeito transcendental,
epistêmico (enfim, moderno), como explica Ricardo Marcelo FONSECA: “É na sua Crítica da Razão Pura, de
1781, que Kant empreende a sua filosofia transcendental, ou seja, a investigação que ‘em geral se ocupa menos dos
objetos, do que do modo de os conhecer’. E é aqui (no problema de como conhecer o mundo) que ele opera uma
verdadeira ‘revolução copernicana’ na filosofia, moldando a idéia da subjetividade cognitiva. Assim, se Copérnico
inverteu o modelo de cosmo tradicional segundo o qual o sol girava em torno da terra, Kant aduziu que não é o
sujeito que se origina pelo objeto, mas é o objeto que é determinado pelo sujeito, ou, dito de outro modo, em vez
da faculdade de conhecer ser regulada pelo objeto, é na verdade o objeto que é regulado pela faculdade de conhecer”.
(Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo: Ltr, 2002, p. 61-62).
42) WIEACKER, Franz. Ob. cit., p. 353.
43) WIEACKER, Franz. Idem, p. 358.
44) WIEACKER, Franz. Idem, p. 361.
45) CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino
do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 34-35: “A aliança entre comerciantes e filósofos
reconhecidos foi, a bem dizer, permanente, alcançando o Iluminismo. E de fato, aos filósofos iluministas caberá
o papel de ideólogos daquela classe, e ‘a emancipação política de uma nova classe é apresentada, por parte de seus
ideólogos, em termos de emancipação do Homem em geral’. Assim é que a união entre a burguesia e a filosofia
iria culminar, com o advento da razão, no Estado moderno liberal. Esta união foi o ‘triunfo de uma aliança sem
nuvens entre a finança e o pensamento, esta alargada como o exercício da razão raciocinante’. A ideologia se
tornava em ordem jurídico-política”.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007 365


tava, para sua confirmação, o advento de estatutos legislativos que corporificas-
sem toda essa construção racional. Tais estatutos são as codificações – modelos
racionais legislativos, cujos maiores e mais brilhantes exemplos são o Code Civil
Francês de 1804 e o BGB Alemão de 1896, reflexos da criação dos estados mo-
dernos que, paradoxalmente, representam simultaneamente o apogeu e o declí-
nio do Direito natural racionalista46.

5 POSITIVISMO JURÍDICO E CODIFICAÇÕES:


APOGEU E DECLÍNIO DO DIREITO NATURAL

A formação do Estado moderno foi o primeiro passo para a confirmação


da hegemonia do positivismo jurídico. O seu advento é o pressuposto lógico
da primeira característica do Direito positivo: o monopólio do Estado como
fonte de Direito.
Os preceitos filosóficos que viam o Homem como dominador da natureza
deram condições para que se justificasse a criação de uma autoridade única que
promovesse o preciso direcionamento da sociedade47. O Direito deveria ser pro-
veniente de uma única fonte porque somente assim a ordem e a paz seriam asse-
guradas. E esta autoridade somente poderia ser o Estado48.
O Estado passa, então, a deter o monopólio da produção legislativa. Além
disso, também detinha a exclusividade da interpretação e aplicação das leis pro-

46) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 22: “O jusnaturalismo racionalista esteve uma vez mais ao lado do
iluminismo no movimento de codificação do Direito, no século XVIIII, cuja maior realização foi o Código Civil
francês – o Código de Napoleão -, que entrou em vigor em 1804. Em busca de clareza, unidade e simplificação,
incorporou-se à tradição jurídica romano-germânica a elaboração de códigos, isto é, documentos legislativos que
agrupam e organizam sistematicamente as normas em torno de determinado objeto. Completada a revolução
burguesa, o direito natuiral viu-se ‘domesticado e ensinado dogmaticamente’. A técnica de codificação tende a
promover a identificação entre direito e lei. A Escola da Exegese, por sua vez, irá impor o apego ao texto e á
interpretação gramatical e histórica, cerceando a atuação criativa do juiz em nome de uma interpretação
pretensamente objetiva. O advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos
escritos e o êxito do movimento de codificação simbolizam a vitória do direito natural, o seu apogeu. Parado-
xalmente, representaram, também, a sua superação histórica. No início do século XIX, os direitos naturais,
cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois milênios, haviam se incorporado de forma generalizada aos
ordenamentos positivos. Já não traziam a revolução, mas a conservação. Considerado metafísico e anti-
científico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do século XIX.”
Ressalta-se também que o Código Civil alemão também teve significativa importância, não somente histórica
face ao célebre debate em torno da idéia de codificação entre Savigny e Thibaut (como será visto mais a frente),
como também sistemática e metodológica, que inovou na divisão entre parte geral e especial, onde naquela
estariam os conceitos gerais que se aplicariam a todos os livros da parte geral (partindo, portanto, de uma
fórmula puramente racional: a compreensão do específico é retirada da compreensão do geral).
47) Norberto BOBBIO expõe que uma das “idéias-matrizes” da codificação é a modificação e transformação da
sociedade (do mesmo modo que controla e transforma a natureza, dando-lhe uma utilidade): “O dar a prevalência
à lei como fonte do direito nasce do propósito do homem modificar a sociedade. Como o homem pode controlar
a natureza através do conhecimento de suas leis, assim ele pode transformar a sociedade através da renovação das leis
que a regem; mas para que isto seja possível, para que o direito possa modificar as estruturas sociais, é mister, portanto,
que seja posto através da lei. O direito consuetudinário não pode, de fato, servir a tal finalidade, porque é inconsci-
ente, irrefletido, é um direito que exprime e representa a estrutura atual da sociedade e, conseqüentemente, não
pode incidir sobre esta para modifica-la; a lei, em lugar disto, cria um direito que exprime a estrutura que se quer a
sociedade assuma. O costume é uma fonte passiva, a lei é uma fonte ativa do direito.” (O positivismo..., p. 119-120).

366 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007


duzidas (monopólio jurisdicional). O ideal da pacificação somente seria atingido
com a centralização da justiça nas mãos do Estado49.
Nessa idéia de necessidade de segurança jurídica (valor base do positivis-
mo ético e sustentáculo ideológico da doutrina positivista50) que surgiram as
codificações oitocentistas, com a pretensão de universalidade e perpetuidade51.
A primeira grande codificação foi a francesa de 1804. Os primeiros proje-
tos tinham influência expressa do jusnaturalismo racionalista. Em célebre dis-
curso proferido em 4 de junho de 1793, Cambacérès, autor do primeiro projeto,
afirmou que: “Existe uma lei superior a todas as outras, uma lei eterna, inalterá-

48) HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 169: “Os novos códigos, se, por um lado, procediam a um novo
desenho das instituições correspondente à ordem social burguesa liberal, instituíam, por outro, uma tecnologia
normativa fundada na generalidade e na sistematicidade e, logo, adequada a uma aplicação do direito mais quotidiana
e mais controlável pelo novo centro do poder – o Estado. Estadualismo, certeza do direito e previsibilidade vão,
assim, de braço dado, permitir a efectivação e a estabilização dos novo arranjos sociais, políticos e jurídicos.”
49) O surgimento do positivismo decorre diretamente da necessidade de acabar com o pluralismo das fontes de
Direito (Direito feudal, Direito eclesiástico, Direito romano, Direito bárbaro): “Ora, a concepção racionalista
considerava a multiplicidade e a complicação do direito um fruto do arbítrio da história. As velhas leis deviam,
portanto, ser substituídas por um direito simples e unitário, que seria ditado pela ciência da legislação, uma nova
ciência que, interrogando a natureza do homem, estabeleceria quais eram as leis universais e imutáveis que
deveriam regular a conduta do homem. Os iluministas estavam, de fato, convecidos de que o direito histórico,
constituído por uma selva de normas complicadas e arbitrárias, era apenas uma espécie de direito ‘fenomênico’
e que além dele, fundado na natureza das coisas cognoscíveis pela razão humana, existia o verdadeiro direito. Pois
bem, a natureza profunda, a essência verdadeira da realidade, é simples e suas leis são harmônica e unitariamente
coligadas; por isto, também o direito, o verdadeiro direito fundado na natureza, podia e devia ser simples e
unitário”. (BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 65). Da mesma forma deveria ser eliminada a diversidade de
conteúdos que foram dados ao próprio Direito natural racional: “La herencia de la Modernidad fue que cada escuela
redujo – contra toda la evidencia surgida de la práxis Del derecho – a toda justicia posible a um despliegue de um
sistema que se suponía que encarnaba lãs exigências necesarias y absolutas de la Razón. Así resultaba que existia uma
Justicia – es decir, uma ‘razón’ – para los partidários de grocio y outra para los seguidores de Pufendorf, uma para
los que seguían a Thomasius o gundling, y outra para los que leían a Kant. Si la justicia quedó equiparada – como
sucedió de hecho – a una visión global y racionalista de los fundamentos de la sociedad (visiones que fundamental-
mente contenían propuestas ploíticas), la multiplicidad de estas teorías, de estos sistemas de ‘Derecho natural’,
todos pretendidamente verdaderos y todos opuestos, condujo al escepticismo práctico” (Francisco CARPINTE-
RO. Los inicios del positivismo jurídico en centroeuropa. Madrid: Actas, 1993, p. 107-108).
50) Como salienta Norberto BOBBIO, o fundamento ideológico do positivismo pode ser visto sob dois enfoques:
um extremo, consubstanciado no “dever absoluto ou incondicional de obedecer à lei enquanto tal.” (O positivis-
mo..., p. 225) e outro moderado, consistente no “meio de realizar um certo valor, o da ordem” (BOBBIO,
Norberto. Idem, p. 230). Em suma, são duas faces da mesma moeda: a segurança jurídica, necessária ao sistema
político-econômico emergente (capitalismo).
51) Por isso, é preciso dizer que o movimento de codificação não é um completo descontinuismo em relação ao
jusracionalismo: “Com o jus-racionalismo realça-se, de facto, o caráter universal do direito. Ligada à <<natureza
humana>> eterna e imutável, a regulamentação jurídica não depende dos climas ou das latitudes. Os <<códigos>>
são tendencialmente, universais, pelo que tanto podem ser feitos por um nacional como por um estrangeiro e
podem ser aplicados, livremente, como direito subsidiário ou mesmo principal de outros países. É isto que explica
a tendência para exportar os grandes códigos (nomeadamente o Code civil, de 1804; e, mais tarde, os códigos civis
alemão, italiano e suíço) para áreas culturais totalmente estranhas à européia, como a japonesa (com o reformismo
Meiji, nos finais do século XIX), a chinesa (com o movimento ocidentalizador de 4 de maio de 1919) ou a turca
(com a revolução de Kamal Ataturk).” (HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 168). Guardada as devidas
proporções, a mesma observação pode ser aplicada ao Brasil, cuja codificação de 1916 também é inspirada nos
Códigos francês e alemão, assim como a de 2002 é influenciada detidamente pela portuguesa de 1966 e italiana de
1942 (além de manter a inspiração alemã). Todas essas “influências” comprovam a pretensão de universalidade da
idéia de codificação do Direito, pretensão esta que, como já visto, também é do Direito natural.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007 367


vel, própria a todos os povos, conveniente a todos os climas: a lei da natureza.
Eis aqui o código das nações, que os séculos não puderam alterar, nem os co-
mentadores desfigurar. É a ele apenas que é necessário consultar”.52 Decorrência
direta do apego ao jusnaturalismo, o projeto Cambecéres sustentava-se em “três
princípios fundamentais: reaproximação da natureza, unidade e simplicidade.”53
No entanto, tal projeto não foi aceito, por ter sido considerado muito téc-
nico e pouco filosófico. Cambecéres apresentou outros dois projetos, também
não aceitos. Essa não aprovação pode ser explicada de maneira simples: a crença
na impossibilidade da “realização de um o ‘código de natureza’, simples e unitá-
rio...”54. Sedimentava-se, então, a idéia de um Código totalitário, ou seja, só po-
deria existir um único Direito, uma única lei: a do Código. Assim, a lei da nature-
za ou a lei racional não mais deveria existir, por estar superada pelo Código.
Prevaleceu então o projeto concebido por Portalis, Tronchet, Bogot-Préame-
neau, Maleville, cuja versão definitiva desligou-se completamente do jusnaturalis-
mo (o Conselho de Estado eliminou do projeto inicial o resquício do Direito natural
presente nos artigos 1° e 9°, que previam, respectivamente, um direito universal e
imutável, fundado na razão natural, e o Direito natural como fonte integrativa de
lacunas55). O Código de Napoleão, na verdade, representava uma síntese da tradição
francesa (uma mistura do direito romano erudito aplicado no sul – o qual Portalis
dominava profundamente, tendo baseado boa parte de seu projeto no famoso Trata-
do de direito civil de Pothier – e do direito consuetudinário aplicado no norte56) e dos
ideais da revolução, atendendo assim às pretensões políticas da burguesia da época.
A intenção do Código, então, era ser um ponto de partida e um ponto de chegada ao
mesmo tempo: da tradição passada à construção do caminho do futuro.
Tal apego à tradição não somente implicava em um resgate dos institutos
do Direito romano, mas também em uma preservação do Direito natural racional.
Esse era o ideário dos redatores do Código de Napoleão, mas o que realmente
prevaleceu foi a visão dos interprétes da codificação, como salienta BOBBIO:

Se o código de Napoleão foi considerado o início absoluto de uma nova


tradição jurídica, que sepulta completamente a precedente, isto foi devido
aos primeiros intérpretes e não aos redatores do próprio Código. É de fato
àqueles e não a estes que se deve a adoção do princípio da onipotência do
legislador, princípio que constitui, como já se disse mais de uma vez, um
dos dogmas fundamentais do positivismo jurídico (...).57

52) Apud BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 69.


53) BOBBIO, Norberto. Idem, ibidem.
54) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 70.
55) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 72 e 76.
56) CAENEGEM, R. C. Van. Uma introdução histórica ao direito privado. Trad. de: Carlos Eduardo Lima
Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 8: “As fontes imediatas usadas pelos autores do Code Civil de
1804 foram o direito comum francês tradicional do século XVIII, que era um amálgama dos direitos eruditos e
consuetudinário, parte do qual era bem antiga; e, em segundo lugar, as inovações feitas durante a Revolução. Essa
mistura do velho e do novo adequava-se ao clima político da nação e, depois da queda do ancien regime,
mostrou-se também bastante adequada à sociedade pequeno-burguesa do século XIX.”
57) BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 73.

368 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007


O descompasso entre os redatores do Code e a interpretação que deste se
seguiu pode ser claramente visualizada na discussão a respeito das “lacunas legis-
lativas” (omissão da lei a respeito de dada matéria58). Portalis, em seu discurso pre-
liminar por ocasião da apresentação do projeto, narrou os postulados que iriam
determinar a interpretação e aplicação da lei em França a partir da edição do Código
Civil de 1804: o Juiz que se negar a aplicar a lei sob o pretexto de omissão legislativa,
será responsável por denegar justiça (CCF, 4°). Tal exigência leva ao problema de
quando a lei não oferece a resposta ao caso suscitado, do que apresentam dois
caminhos: buscar a solução dentro do sistema legislativo (isto é, dentro do próprio
Código), ou então deduzí-la fora do sistema, a partir da eqüidade (trata-se da ques-
tão da integração legislativa, que para os positivistas sempre deve-se dar dentro do
sistema – a denominada auto-integração, derivada do dogma da onipotência do
legislador que leva à ao postulado da completude do ordenamento jurídico59).
A resposta de Portalis ao problema da lacuna do Código é dada no artigo 9°:
“Nas matérias civis, o juiz, na falta de leis precisas, é um ministro de eqüidade. A
eqüidade é o retorno à lei natural e as usos adotados no silêncio da lei positiva”60.
A solução dada por Portalis foi bastante clara: a omissão do Código será suprida
pela razão natural, ou seja, pelo Direito natural racional, que passa a ter nova
função: atuará subsidiariamente à lei positiva. O artigo 9°, combinado com o
artigo 1°, que estipulava a razão como fonte da lei positiva a razão natural, con-
sagravam o Direito natural como fundamento do Direito positivo (o que revela a
prevalência do Direito natural, verdadeiramente universal).
No entanto, tais dispositivos não foram aprovados pelo Conselho de Estado.
Dessa rejeição surge a interpretação de que o jusnaturalismo (assim como toda a
tradição precedente) não mais exerceria qualquer influência na interpretação ou
integração do sistema61. As omissões legislativas deveriam ser supridas pelo pró-
prio ordenamento jurídico, e não pela lei da natureza. Surge, então, a Escola da
Exege62 (seus maiores expoentes foram Alexandre Duranton, Charles Aubry e Fré-
déric Charles Rau, Jean Ch. F. Demolombe e Troplong), cujo postulado básico era
que o juiz é a boca da Lei (a redução completa do Direito ao Código). A Escola da
Exegese sedimentaria a doutrina positivista em França, primeiro invertendo a rela-
ção Direito natural/Direito positivo (somente interessaria ao jurista aquilo que do
Direito natural for positivado), e depois ratificando a concepção rigidamente esta-
tal do Direito (que seria reduzido as normas formais estipuladas pelo Estado – a
onipotência do legislador), do que decorre a interpretação da intenção do legisla-
dor, do culto do texto da lei e do respeito ao Direito proveniente da autoridade63.

58) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 73-74.


59) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 74.
60) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 76.
61) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 77.
62) BOBBIO, Norberto. Idem, ibidem: “É neste modo de entender o art. 4°, que se fundou a escola dos intérpretes do
Código Civil, conhecida como ‘escola da exegese’ (école de l’exégèse); esta foi acusada de fetichismo da lei, porque
considerava o Código de Napoleão como se tivesse sepultado todo o direito precedente e contivesse em si as normas
para todos os possíveis casos futuros, e pretendia fundar a resolução de quaisquer questões na intenção do legislador”.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007 369


O Direito natural, então, cumprira seu papel (ao abrir as portas ao positi-
vismo) e seria condenado ao desaparecimento, como ressalta CAENEGEM:

No século XVIII, o direito racional (Vernunftsrecht) fora um instrumento po-


deroso na luta contra o antigo regime político. Durante a Revolução, o di-
reito natural tinha sido constantemente invocado para justificar as novas
normas e os novos sistemas. Na obra teórica de Portalis, o direito natural
desempenha um papel muito importante. O Code civil, e qualquer referên-
cia ao direito natural, fonte perpétua de inspiração para os que se opu-
nham ao status quo, estava fora de questão. Para os adeptos do novo
Code, o papel do direito natural tinha acabado.64

Outro grande passo para a consolidação do positivismo jurídico foi dado


na Alemanha. A ocupação francesa de parte do solo alemão e a conseqüente
perspectiva da aplicação do Código de Napoleão (consolidador dos ideais ilumi-
nistas, especialmente o da igualdade formal entre os cidadãos) em território ger-
mânico (ainda sob a égide do Código prussiano, que conservava a distinção da
população em três castas: nobreza, burguesia e campesinato) fomentavam mo-
vimentos revolucionários, dentre os quais o da codificação do Direito alemão65.
Em torno da idéia de codificação, surge um debate entre os adeptos da
escola histórica e da escola filosófica (que mais tarde desembocaria na escola
pandectista66), revelador de um particularismo significativo para o advento da
doutrina positivista: ambas as escolas criticam o jusnaturalismo67, só que por
perspectivas diversas. Os adeptos da escola história, apegados à variedade e à
irracionalidade histórica, criticavam a razão totalizante, imutável, universal e abs-
trata, que levava à ignorância da evolução da sociedade; a escola filosófica, por
sua vez, pela ausência de sistematização do jusnaturalismo. Em resumo, e escola
histórica defendia a tradição68, ao passo que a escola filosófica sustentava a
interpretação sistemática (ou mais detidamente, a “incidência do raciocínio lógi-

63) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 84-88, passim.


64) CAENEGEM, R. C. Van. Ob. cit., p. 12-13.
65) BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 55.
66) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 57.
67) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 45: “Para que o direito natural perca terreno é necessário um outro passo, é
preciso que a filosofia jusnaturalista seja criticada a fundo e que as concepções ou, ainda, os ‘mitos’ jusnaturalistas
(estado de natureza, lei natural, contrato social...) desapareçam da consciência dos doutos. Esse mitos estavam
ligados a uma concepção filosófica racionalista (a filosofia iluminista, cuja matriz se encontrava no pensamento
cartesiano). Ora, foi precisamente no quadro geral da polêmica antiracionalista, conduzida na primeira metade
do século XIX pelo historicismo (movimento filosófico-cultural de que falaremos no próximo parágrafo), que
acontece a ‘dessacralização’ do direito natural”.
68) E por isso opunham-se a idéia de um Direito exclusivamente estatal: “O programa da Escola histórica era,
justamente, o de buscar as fontes não estaduais e não legislativas do direito. A sua pré-compreensão da sociedade –
subsidiária da filosofia da cultura organicista e evolucionista de Herder e do ambiente cultural e político do romantismo
alemão – levava-a a conceber a sociedade como um todo orgânico, sujeito a uma evolução histórica semelhante á dos
seres vivos, em que no presente se lêem os traços do passado e em que este condiciona naturalmente o que vem depois.
Em toda esta evolução, peculiar a cada povo, manifestar-se-ia um lógica própria, um espírito silenciosamente
actuante, o <<espírito do povo>> (Volksgeist), que estaria na origem e, ao mesmo tempo, daria unidade e sentido a
todas as manifestações histórico-culturais de uma nação.” (HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 182).

370 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007


co-sistemático na interpretação do direito”69, tarefa que melhor seria empreen-
dida com um estatuto legislativo unitário e coeso70).
O maior representante da escola histórica foi Carlos Frederico von Savigny e
da escola filosófica Antonio Frederico Justo Thibaut, responsáveis pela célebre
polêmica a respeito da codificação do Direito alemão71. Venceu Thibaut, e a escola
histórica pode ser vista como precursora do positivismo apenas enquanto crítica
do jusnaturalismo a partir da defesa da tradição e do direito consuetudinário72.
Assim, a doutrina positivista alcançou com as codificações a hegemonia.
Na verdade, substitui o jusnaturalismo e assim o fazendo decretou o declínio
deste. Adotou como método o racionalismo e como fonte exclusiva do Direito a
lei. Pelo método racional, estabeleceu a visão avalorativa, neutra e a-histórica do
Direito; com a onipotência do legislador, concebeu a completude do ordenamen-
to jurídico, a imperatividade e o formalismo do Direito, que seria apenas aquele
editado pelo Estado segunda as regras formais por este estabelecidas.
Toda e qualquer análise jurídica deve nascer exclusivamente das normas
estatais. Separa-se com isso completamente o Direito da moral, o Direito da
Filosofia (que, como já visto, abarca o material jusnaturalista). O Direito é inter-
pretado e operacionalizado de maneira neutra e objetiva (como preconiza Kelsen,
ao estabelecer uma teoria pura do direito), sempre tendo em vista a segurança e
a ordem (como já dito, fundamento ético do positivismo jurídico). Enfim,

a lei passa a ser vista como expressão superior da razão. A ciência do


Direito – ou, também, teoria geral do Direito, dogmática jurídica – é o domí-
nio asséptico da segurança e da justiça. O Estado é a fonte única do poder e
do Direito. O sistema jurídico é completo e auto-suficiente: lacunas eventu-
ais são resolvidas internamente, pelo costume, pela analogia, pelos princípi-

69) BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 56.


70) Ressalte-se que a sistematização também era uma idéia da escola histórica e constantemente defendida por
Savigny. A diferença está que para os membros da escola histórica a sistematização é dos usos e costumes, do
espírito do povo (volksgeist), do material histórico, e para os filósofos partidários de Thibaut a sistematização
seria consolidada em uma legislação unitária e em torno dela se deduziria a interpretação sistemática do Direito
como um todo (a escola histórica defende a constante sistematização a partir da realidade viva da sociedade e
assim contrapõe-se a sistematização artificial promovida por uma codificação). Nesses termos, Savigny, embora
partidário da escola histórica e crítico da idéia da codificação, pode também ser considerado como influenciador
da jurisprudência dos conceitos ou pandectística (sobre a vertente sistemática do historicismo, a jurisprudência
dos conceitos e os teóricos que a influenciaram, HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 185 e seguintes).
71) Conforme já visto, a escola histórica é antilegalista: “A lei – e, ainda mais, o código sistemático – são encarados
como factores, não de construção do direito, mas da sua destruição. Em primeiro lugar, porque introduzem em
elemento conjuctural e decisionista (a decisão legislativa tomada, conjucturalmente, por um governo ou uma
assembléia) num mundo de normas orgânicas, indisponíveis e duráveis (o direito como emanação do espírito do
povo). Em segundo lugar, porque congelam a evolução natural do direito que, como toda a tradição, é uma realidade
viva, em permanente transformação espontânea. Esta animosidade em relação à codificação ficou bem traduzida
numa famosa polêmica entre Savigny e Thibaut, este último favorável a uma codificação geral do direito alemão,
que o primeiro considerava artificial e <<inorgânica>>.”. (HESPANHA, António Manuel. Idem, p. 183).
72) BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 53; “(...) a escola histórica do direito (e o historicismo em geral)
podem ser considerados precursores do positivismo jurídico somente no sentido de que representam uma crítica
radical do direito natural, conforme o concebia o iluminismo, isto é, como um direito universal e imutável
deduzido pela razão. Ao direito natural a escola histórica contrapõe o direito consuetudinário, considerado como
a forma genuína do direito, enquanto expressão imediata da realidade histórico-social e do Volksgeist.”

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007 371


os gerais. Separado da filosofia do direito por incisão profunda, a dogmática
jurídica volta seu conhecimento apenas para a lei e o ordenamento positivo,
sem qualquer reflexão sobre seu próprio saber e seus fundamentos de le-
gitimidade. Na aplicação desse direito puro e idealizado, pontifica o Estado
como árbitro imparcial. A interpretação jurídica é um processo silogístico de
subsunção dos fatos à norma. O juiz – la bouche qui prononce les parole de
la loi – é um revelador de verdades abrigadas no comando geral e abstrato
da lei. Refém da separação de Poderes, não lhe cabe qualquer papel cria-
tivo. Em síntese simplificadora, estas algumas das principais características
do Direito na perspectiva clássica: a) caráter científico; b) emprego da lógica
formal; c) pretensão de completude; d) pureza científica; e) racionalidade
da lei e neutralidade do intérprete. Tudo regido por um ritual solene, que
abandonou a peruca, mas conservou a tradição e o formalismo. Têmis, ven-
dada, balança na mão, é o símbolo maior, musa de muitas gerações: o
Direito produz ordem e justiça, com equilíbrio e igualdade.73

6 DESAFIOS DA CONTEMPORANEIDADE: A CRISE DO POSITIVISMO


E O SURGIMENTO DE UMPENSAMENTO PÓS-POSITIVISTA

A doutrina positivista, promovendo a onipotência da lei, distancia o Direito


da realidade social. Pessoas, relações afetivas, mazelas sociais não interessavam
ao Direito, reduzido à axiomas lógicos e, assim sendo, fechado em si mesmo
dentro se um horizonte abstrato e muita vezes estéril74.
A lei, que à época das revoluções liberais representava a salvaguarda con-
tra os abusos e ingerências do Estado (visão decorrente do trauma do Estado
absolutista), passou a ser não somente insuficiente para atender a demanda so-
cial, como também tornou-se um óbice na realização do Direito, como enfatiza
Antônio Junqueira de AZEVEDO:

Após a Primeira Guerra, a generosidade de alguns espíritos, preocupados


com uma justiça mais efetiva, e também a ambição política de outros,
menos altruístas, desejosos de ver o Estado sem peias, levaram à visão de
que a lei – rígida, inflexível, alheia à diversidade da vida -, antes que útil
instrumento da justiça, era um obstáculo a ultrapassar. O paradigma ter-
mina, pois, por mudar; os juristas deixaram de examinar as questões pelo
ângulo da lei e passaram a tomar, nos seus modelos de solução, como
centro, a figura do juiz (encarado como um representante do Estado). In-
troduziram-se, assim, nos textos normativos, os conceitos jurídicos inde-
terminados, a serem concretizados pelo julgador no caso a decidir, e as
cláusulas gerais, ou seja, fuga da lei para o juiz).75

73) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 13-14.


74) FACHIN, Luiz Edson. Ob. cit., p. 32-33: “Apesar de os sistemas de Direito se proporem como intrínsecos
à realidade, e sobre esta terem a pretensão de dar luminosidade a alguns fatos e atos de relevância jurídica, acabam
por não se debruçar sobre os demais atos e fatos sociais, e, quando o fazem, procuram enquadrar esta situação
juridicamente não definida nos modelos estáticos de definição preexistentes. O Direito, nesse sentido, opera um
corte epistemológico, ou seja, coopta os fatos da realidade que lhe interessam; situação esta que acaba por excluir
diversas outras nuanças das relações, pois não as reconhece no seu corpo normativo e, quando o faz, força a
definição das mesmas, enquadrando-as de acordo com os conceitos presentes no sistema normativo vigente”.
75) AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação. In: Revista de direito do consu-
midor, n° 33. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.-mar. 2000, p. 125-126.

372 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007


A lei, como instrumento racional puro e pré-determinado, não tem condições
de sozinha, abarcar toda a realidade jurídica. Como explica Fernando NORONHA,

o erro do positivismo jurídico (que dominou a ciência jurídica novecentista e


que ainda colhia a maioria dos sufrágios durante a primeira metade do nosso
século XX, tendo, aliás, ainda hoje, muitos e ilustres defensores) foi tentar
isolar no tempo e no espaço cada sistema jurídico, para analisá-lo indepen-
dentemente de suas relações com o meio social, das lutas de interesses, dos
compromissos, das metas e dos valores da sociedade. Todas as escolas po-
sitivistas, desde a da exegese francesa e a pandectística alemã, ambas do
século XIX, até ao kelsenismo e ao neopositivismo deste século XX, enclausu-
ravam o jurista numa torre de marfim, condenando-o, nas palavras de Betti, a
fazer ‘arida analisi formale, astrattamente concettualistica’.76

A crise do positivismo agrava-se em um cenário cada vez mais complexo e


fragmentado. A razão, venerada como grande instrumento humano para compre-
ensão do mundo, já não se sustenta de forma absoluta, coexistindo com outros
fatores77. Da mesma forma a multiplicidade de grupos sociais e interatividade
destes implicam em um nova realidade, bem diversa da presente quando do auge
do positivismo jurídico (que vem se denominado de pós-moderna), levando à
teoria jurídica novas características (o Direito passa a ser plural – diversas fontes
legislativas a regular o mesmo fato, comunicativo - valoriza o tempo e apresenta
a função de informação, protegendo os sujeitos débeis, narrativo, priorizando
normas principiológicas, que estabelecem objetivos e finalidades a serem perse-
guidas, além de promover um retorno aos sentimentos ou seja, a busca de ele-
mentos éticos, sociais e ideológicos fora do sistema)78.
A conseqüência é o surgimento de várias teorias críticas que têm em co-
mum a tese de que o Direito não está reduzido à lei. Começa-se, então, a se
vivenciar novos ares, pós-positivistas, marcados pela superação da legalidade
estrita79. Tal superação não implica em um resgate do Direito natural (não, pelo

76) NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: (autonomia privada, boa-fé,
justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994, p. 28.
77) Como salienta Luís Roberto BARROSO, a crença na razão sofreu pelo menos dois grandes abalos: o primeiro
provocado por Marx, em que a razão seria prisioneira da ideologia e o segundo por Freud, responsável pela tese
de que a razão é condicionada pelo inconsciente. (BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 8-9).
78) Crise da razão, realidade complexa (diversos subgrupos sociais) e interatividade entre eles constituem, para
Antônio Junqueira de AZEVEDO, as características da pós-modernidade: “A pós-modernidade, debaixo dessas três
características – crise da razão, hiper-complexidade, com justaposição das diversidades, e inter-ação -, perceptíveis
também na arquitetura, na literatura, na filosofia, na economia, nas comunicações e até mesmo nas ciências exatas,
atingiu em cheio o direito.” (AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Ob. cit., p. 124-125). Já o pluralismo, a comuni-
cação, a narração e o retorno aos sentimentos constituem os elementos da cultura pós-moderna no direito para
Erik Jayme, como explica Cláudia Lima MARQUES (Contratos no código de defesado consumidor: o novo
regime das relações contratuais. São Paulo: Saraiva, 4ª ed., 2002, p. 162): “Segundo Erik Jayme, as características,
os elementos da cultura pós-moderna no direito, seria: o pluralismo, a comunicação, a narração, o que Jayme
denomina de ‘le retour de sentiments’, sendo a Leitmotive da pós-modernidade, a valorização dos direitos humanos.
Para Jayme o direito, como parte da cultura dos povos, muda com a crise da pós-modernidade”. Ressalte-se, por
fim, que o objetivo deste estudo não é a pós-modernidade. Tais argumentos foram aqui trazidos apenas para
demonstrar a crise da doutrina positivista, insuficiente para lidar com a nova realidade a sua volta.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007 373


menos, no seu conteúdo racional presente nos séculos XVI, XVII e XVIII80), mas
sim em uma abertura do Direito aos valores presentes na sociedade. O reco-
nhecimento da normatividade dos princípios81 (que para o positivismo não eram
considerados normas), assim como a crescente importância das normas des-
critivas de valores82 (em especial o da dignidade da pessoa humana83) indicam a
libertação do Direito do legalismo e do legado positivista que privilegiava a
concepção jurídica a-histórica e neutra84.
Igualmente o Direito passa a dialogar mais com a sociedade e a teoria jurídi-
ca adquire um caráter interdisciplinar. Matérias antes consideradas metajurídicas,
como a filosofia, a ética, a história e a sociologia, adentram ao acervo epistemoló-
gico do jurista85, aproximando institutos técnico-jurídicos (que, para o positivis-
mo, caracterizaria exclusivamente o material teórico do jurista) da realidade social.
O pós-positivismo não se apresenta ainda como um movimento acabado
(sequer consolidado), pois, como acentua BARROSO, “identifica um conjunto de

79) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 15-16: “Uma das teses fundamentais do pensamento crítico é a admissão
de que o Direito possa não estar integralmente contido na lei, tendo condição de existir independentemente da
bênção estatal, da positivação, do reconhecimento expresso pela estrutura do poder. O intérprete deve buscar a
justiça, ainda quando não a encontre na lei. A teoria crítica resiste, também, à idéia de completude, de auto-
suficiência e de pureza, condenando a cisão do discurso jurídico, que dele afasta os outros conhecimentos teóricos.
O estudo do sistema normativo (dogmática jurídica) não pode insular-se da realidade (sociologia do direito) e das
bases da legitimidade que devem inspirá-lo e possibilitar a sua própria crítica (filosofia do direito). Interdisciplina-
riedade, que colhe elementos em outra área do saber – tem uma fecunda colaboração a prestar ao universo jurídico.”.
80) Nesta ordem de idéias é fundamental a verdadeira compreensão da aplicação dos princípios constitucionais
(tradutores dos valores e vetores principais de dado ordenamento jurídico): “O tom pelo qual tal aplicação se dá
não pode reduzir a incidência formal constitucional. Conjugações e corolários de concretização podem, eventu-
almente, infirmar o texto positivado. As coordenadas constitucionais só têm limite nos próprios princípios, não
podendo, assim, a solução concreta da legislação infraconstitucional, especial ou ordinária, contrastar essa
diretiva máxima do Estado democrático de Direito. Vê-se, portanto, nessa principiologia axiológica, uma
ordenação material ou substancial, e a compreensão dos elementos de base que cimentam, a partir da realidade
da vida, o sistema jurídico. Muito longe de um direito natural, que se propôs a vigência eterna e universal, tais
componentes são produto histórico, modulados para não serem arquétipos, à luz da organização econômica e
social. Concepção de vida e de mundo, captadas da sociologia, emergem da cultura em todos os instantes e em
díspares lugares.” (FACHIN, Luiz Edson. Ob. cit., p. 34).
81) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 29: “Os princípios, como se percebe, vêm de longe e desempe-
nham papéis variados. O que há de singular na dogmática jurídica da quadra histórica atual é o reconheci-
mento de sua normatividade.”
82) Como assevera Gustavo TEPEDINO, “O legislador atual procura associar a seus enunciados genéricos prescrições
de conteúdo completamente diverso em relação aos modelos tradicionalmente reservados às normas jurídicas. Cuida-
se de normas que não prescrevem uma certa conduta mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuti-
cos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os
limites para a aplicação das demais disposições normativas. Tal é a tendência das leis especiais promulgadas a partir dos
anos 90, assim como dos Códigos Civis mais recentes e dos Projetos de codificação supranacional.” (Crise de fontes
normativas e técnica legislativa na parte geral do código civil de 2002. In A parte geral do novo código civil: estudos
na perspectiva civil-constitucional. TEPEDINO, Gustavo [Coord.]. Rio de Janeiro: Renovar: 2002, p. XIX).
83) FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 191: “A
dignidade da pessoa humana é princípio fundamental da República Federativa do Brasil. É o que chama de
princípio estruturante, constitutivo e indicativo das idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional. Tal
princípio ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais formando um sistema
interno harmônico, e afasta, de pronto, a idéia de predomínio do individualismo atomista do Direito. Aplica-se
como leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstituciona-
lidade todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que se trata.”

374 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007


idéias difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista,
sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo.”86 No entanto,
ao pregar a superação da visão do Direito como mera atividade de subsunção
lógica fato-norma, proporciona à teoria jurídica novos caminhos (humanos, so-
ciais e éticos) que não se reduzem a um “saber virtual’87.

7 CONCLUSÃO: CONSCIÊNCIA METODOLÓGICA DO JURISTA


E O ETERNO PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO DO DIREITO

O presente trabalho buscou, em linhas gerais, analisar o extenso percurso


histórico do Direito natural, suas transformações e como propiciou o surgimento
do positivismo jurídico. Viu-se que o Direito natural, desde seus primeiros estu-
dos na antigüidade, abordou temáticas éticas e filosóficas, deslocadas posteri-
ormente (mais precisamente a partir da hegemonia da doutrina positiva) como
matérias meta-jurídicas e pertencentes ao campo da filosofia do Direito.
Pretendeu-se, assim, possibilitar a compreensão do Direito natural, vez que,
como já dito, toda uma geração foi educada no positivismo jurídico e a visão ge-
ralmente atribuída ao Direito natural é aquela dada pelos positivistas, extrema-
mente reduzida, em que se despreza todo o seu conteúdo histórico e enfatiza-se

84) BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 281: “A
idéia de neutralidade do estado, das leis e de seus intérpretes, divulgada pela doutrina liberal-normativista, tomo por
base o status quo. Neutra é a decisão ou a atitude que não afeta nem subverte as distribuições de poder e riqueza
existentes na sociedade, relativamente à propriedade, renda, acesso às informações, à educação, às oportunidades,
etc.. Ora bem: tais distribuições – isto é, o status quo – não são fruto do acaso ou de uma ordem natural. Elas são
produto do direito posto. E, freqüentemente, nada têm de justas. A ordem social vigente é fruto de fatalidades,
disfunções e mesmo perversidades históricas. Usá-la como referência do que seja neutro é evidentemente indesejá-
vel, porque instrumento de perenização da injustiça.” A própria noção de “neutralidade” traduz verdadeiro
paradoxo, já que é clara manifestação de preceito ideológico: “Considerar a economia como apolítica – é ainda Irti
quem o diz – nada mais é do que ‘contrapor uma política a outra política”. Em outras palavras, considerar a
economia como apolítica nada mais exprime do que uma firme e bem determinada orientação política. Tal qual a
economia, também o Direito não é neutro. Consiste na ruptura da neutralidade, é tecido por humana escolha, é
produção de normas e tomada de decisões.” (MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre
‘cosmos’ e ‘taxis’: a boa-fé nas relações de consumo. In: A reconstrução do direito privado. São Paulo, Revista dos
Tribunais. 2002. MARTINS-COSTA, Judith (org.), p. 614-615). Ademais, a dogmática jurídica tem uma missão
ideológica, como explica Paulo Luiz Netto LÔBO: “Pode-se ainda salientar que a dogmática jurídica exerce, ela
própria, uma função ideológica, já que cumpre importantes tarefas de socialização (homogeniza valores sociais e
jurídicos), de silenciamento do papel social e histórico do direito, de projeção (cria uma cosmovisão do mundo
social e do direito) e de legitimação axiológica, ao apresentar, como ética e socialmente necessários, os deveres
jurídicos.” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. O contrato: exigências e concepções atuais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 8).
85) A interdisciplinariedade é uma necessidade atual, já assentada no Direito Civil: “Afirmar que há equacionamento
e solução para temas polêmicos de base parece, à primeira vista, prenunciar as possibilidades de uma factível (ainda que
limitada) interdisciplinariedade, dentro do próprio Direito Civil (no exame conjunto do contrato, da família e do
patrimônio), para além do âmbito juscivilístico (apanhando o Direito Constitucional, por exemplo), e, ainda, do
Direito para com a História, a Sociologia, a Antropologia, e assim por diante”. (FACHIN, Luiz Edson. Teoria..., p. 24)
86) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 45.
87) FACHIN, Luiz Edson. Teoria..., p. 15-16: “Numa expressão, o Direito Civil deve, com efeito, ser concebido como
‘serviço da vida’ a partir de sua raiz antropocêntrica, não para repor em cena individualismo do século XVIII, nem
para retomar a biografia do sujeito jurídico, mas sim para se afastar do tecnicismo e do neutralismo. Não sucumbir,
enfim, ao saber virtual”. A afirmação aplica-se a toda teoria geral do Direito, e não apenas ao Direito Civil.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007 375


unicamente sua pretensão de universalidade e, principalmente, de imutabilidade.
Apresentada essa noção geral e histórica, analisou-se os caminhos que o
Direito natural tomou, especialmente a sua construção racional que desemboca-
ria no desenvolvimento e na consolidação hegemônica do positivismo jurídico.
Pode-se, então, perceber que gradativamente o projeto da modernidade estava
se construindo a partir das concepções jusracionalistas: a razão totalizante, o
surgimento do sujeito que a tudo apreende e transforma, o domínio da natureza.
Tais idéias concretizam uma teoria jurídica centrada na certeza e na ordem, ba-
seada em uma metodologia rígida e precisa.
O Direito, então, é visto de maneira puramente objetiva e neutra, premissas
que levariam a uma abordagem ausente de qualquer sentimentalismo e, por con-
seqüência, certa quanto ao resultado. A hermenêutica reduz-se a uma atividade de
subsunção quase mecânica, traduzida em verdadeira operação lógica (ocorrido o
fato A, tem-se a resposta jurídica B - dada pelo ordenamento -, ou, em termos
mais simples, se ocorrido A deve-se ter B). A precisão da conseqüência jurídica do
fato e a objetividade no trato jurídico atendiam não somente a um interesse meto-
dológico (dar um conteúdo científico ao Direito, nos moldes das demais ciências –
especialmente a física e a matemática), mas principalmente às aspirações econô-
mico-políticas da época: a burguesia em ascensão e o capitalismo emergente.
Como é ressabido, mercado é previsibilidade (previsão de ganhos e per-
das), somente alcançada com segurança e ordem (justamente os postulados ide-
ológicos da doutrina positivista). Assim, a pluralidade jurídica predominante no
medievo e ainda presente na pré-modernidade deveria ser encerrada. As grandes
codificações se encarregaram de por fim a essa incerteza jurídica. O Direito, as-
sim, passava a ser certo, seguro, científico, posto que reduzido à lei, ou mais
precisamente, ao Código.
O final do século XIX e, principalmente, o século XX, demonstraram o quão
perigoso é a redução do Direito à lei. Enquanto a diversidade da vida seguia, com
suas riquezas e mazelas, o Direito permanecia. Duas grandes guerras se passa-
ram, genocídios ocorreram, revoluções e significativos movimentos sociais efe-
tivaram-se, e boa parte da teoria jurídica mantinha-se incólume, presa a seu
legado cientificista do início da era moderna. A lei, que antes libertara o Homem
dos abusos do Estado absolutista e da desigualdade feudal, passara a entrave da
realização da justiça.
A teoria jurídica, então, gradativamente começou a revisar seus postulados
básicos. A absoluta certeza e a precisão conceitual cedem espaço à aceitação dos
valores presentes na sociedade. O ordenamento jurídico, outrora revestido de
completude e auto-suficiência, passa a ser aberto e permanentemente depen-
dente da interação com a sociedade (os conceitos não são mais construídos “a
priori” e sim “a posteriori”, de acordo com a situação concreta). A neutralidade e
a objetividade são deixadas de lado e a participação e a responsabilidade do
intérprete (assim como do aplicador do Direito) é cada vez maior. Não há mais
uma resposta pronta e prévia aos problemas jurídicos; ultrapassa-se o discurso
científico abstrato, a metodologia jurídica exata, e enfrentam-se topicamente os

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casos concretos, construindo-se a solução jurídica a partir da realidade empíri-
ca. Enfim, trata-se de buscar mais a justiça e menos a lei.
Esse processo de revisão dos fundamentos jurídicos de base, ainda muito
disperso em meio a diversas problematizações e teorias, talvez não tenha por
objetivo uma conclusão final e taxativa sobre o que seria o novo Direito, o Direito
do terceiro milênio, a não ser uma: a de que não há uma conclusão final sobre o
que seria o Direito, mas sim um reconhecimento (ou descobrimento) do Direito
revitalizado diuturnamente em um eterno processo de reconstrução, efetuado
por intermédio de um perene diálogo com a sociedade.

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