Cultura: um conceito antropológico – Geertz e além
Itamar Teodoro de Faria1
Resumo:
Palavras-chave:
1 Mestre em História, Professor na Fundação de Ensino Superior de Passos.
Cultura: um conceito antropológico – Geertz e além
Itamar Teodoro de Faria
Definir cultura como um substantivo polissêmico afasta, desde o princípio,
qualquer tentativa de aprisionamento do termo em um sentido único e universal (PAIVA, M. de & MOREIRA, m. é.(ORG.) P.7, 1996).
Essa primeira delimitação que já se faz – cultura como conceito
antropológico – não intenciona de modo algum afirmar que a cultura só é conhecimento, nem fazer a defesa de uma única definição válida de cultura (a definição antropológica) tampouco sugerir que existe uma unidade radical com relação aos discursos produzidos no seio da Antropologia no tocante à formulação de um conceito de cultura aceito indistintamente e sem maiores reservas. Em Verdade, cultura é um conceito polissêmico e multidisciplinar. E assume, sempre que se lhe faz referência, mesmo dentro de uma disciplina específica, matizes diferenciados se considerar a problemática geral, interesses particulares ou os fundamentos paradigmáticos a partir dos quais tal conceito é abordado. No entanto não se pode ignorar um certa identificação entre cultura e a abordagem antropológica. Conforme Thompson,
O conceito de cultura tem estado tão intimamente ligado ao
desenvolvimento da disciplina da antropologia que, algumas vezes estes dois conceitos têm sido vistos virtualmente como co-extensivos: a antropologia. Ou pelo menos um dos principais ramos da antropologia, é o estudo comparativo da cultura.
Cultura é uma construção histórica. E tal afirmação é válida quer se entenda
cultura como concepção quer como dimensão do processo social, como dimensão da vida de uma sociedade e produto coletiva da vida humana. Etimologicamente, cultura vem do latim e tem o sentido de cultivar, habitar. Com esse sentido ligado à agricultura o termo já aparece em inglês em 1420 (SILVA, B., p.290, 1986). No início do período moderno o termo apresentou largo uso em idiomas europeus, preservando algo do sentido original – o de cultivo ou cuidado de algo. A partir de começos do século XVI estendeu-se o sentido inicial, que extrapolou a referência agrícola e passou a englobar o processo de desenvolvimento humano. Entretanto, o uso independente do substantivo ‘cultura’, referindo-se a um processo geral ou ao produto deste processo não era comum até o final do século XVIII e início do século XIX. O substantivo, como independente, apareceu primeiro na França e na Inglaterra; e, no fim do século XVIII, a palavra francesa estava incorporada ao alemão, grafada primeiramente como Cultur, mais tarde, como Kultur. O termo técnico foi introduzido em Antropologia por E. B. Tylor (1832- 1917), em 1865, e definido:
Cultura ou Civilização (o autor usa esses dois termos como sinônimos),
tomada em seu sentido etnográfico amplo, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes e todas as demais capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade. A condição da cultura, entre as diversas sociedades da espécie humana, na medida em que é passível de ser investigada nos princípios gerais, é um tema apropriado para o estudo do pensamento e da ação humanos (TYLOR, E. B., p.1, 1903).
Na França, como também na Inglaterra, houve uma forte freqüência em
utilizar o termo social para significar tanto o social como o cultural. Fato devido à forte influência de E. Durkhein (1858-1917) e sua “escola”, que embasaram a orientação de seus trabalhos no conceito totalizador de sociedade. Na América do Norte (EUA), o termo cultura teve precedência ao de sociedade. A escola culturalista (ou difusionista ou, ainda, histórico-cultural norte americana), que vai se utilizar largamente deste termo, irá toma-lo numa acepção que ultrapassa o aspecto puramente lexicológico para constituir-se em um conteúdo distintivo com relação à tradição antropológica inglesa ou a de inspiração durkheimiana (e também maussiana). Cultura fará, então, mais referência aos valores de um determinado povo do que aos laços sociais concretos que lhe dão consistência orgânica enquanto tal. Isso faz com que por cultura se entenda o modo de viver e conceber a existência de um determinado grupo a partir do que podemos chamar seu nível de consciência “cada cultura é um ensaio único e irrepetível de vivência do mundo”.
Antropologia e cultura
Na década de 1950, Kroeber & Kluckohn, preocupados com uma definição
de cultura abrangente o suficiente para abarcar as diversas entonações presentes nos textos antropológicos, apresentaram a seguinte definição:
A cultura consiste em padrões explícitos e implícitos de comportamento e para o
comportamento, adquiridos e transmitidos por meio de símbolos, e que constituem as realizações características de grupos humanos, inclusive suas materializações em artefatos; a essência mesma da cultura consiste em idéias tradicionais (isto é, derivadas e selecionadas historicamente) e especialmente nos valores vinculados a elas; os sistemas culturais podem, por um lado, ser considerados produtos de ação e, por outro, elementos condicionadores de ação posterior (KROEBER, A. L., & KLUCKOHN, C., p.290, 1952).
No entanto, se se pode apontar a importância da cultura como central nas
preocupações da Antropologia, a centralidade do conceito cultura na literatura antropológica não é acompanhada pela centralidade de um teoria/metodologia. O conceito foi usado de diferentes maneiras e foi ligado a diferentes pressupostos e métodos. Sumamente interessante seria fazer um sobrevôo sobre a diversidade de formulações e tratamentos da cultura no universo antropológico. Como tal empreendimento demanda mais do que me proponho e redunda numa extrapolação em que questiono a essencialidade, atenho-me um pouco em Geertz, a partir de quem estabeleço reflexões e operacionalizações. Quer seja do ponto de vista da prática antropológica, que seja da História da Cultura, a contribuição geertziana é fundamental. Influenciado pelo pensamento hermenêutico de pensadores como Dilthey, Ricoeur, Gadamer, Geertz vai reintroduzir o tempo nos estudos de cultura operados no seio da Antropologia, inaugurando uma corrente denominada Antropologia Interpretativa. Essa interiorização do tempo vem significar a aceitação, pelo pesquisador, “de que sua posição histórica jamais é anulada; ao contrário, ela é resgatada como condição de conhecimento. Conhecimento que, abdicando de toda objetividade positivista, realiza-se no próprio ato de ‘tradução’”. (OLIVEIRA, R. C., p.199, 1985) A cultura pode ser lida e traduzida porque Geertz a vê como um texto, “não como um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade” (GEERTZ, C., p.24, 1978). Essa análise que implica em uma descrição densa, não materialmente densa, mas semanticamente densa, “consiste em sua capacidade de diferenciar um reflexo insignificante, uma leve contração muscular ou um relance de olhos, por exemplo, de um recurso comunicativo conscientemente empregado, a piscadela” (BIERSACK, A., p.105, 1992). Com Geertz, que “recupera a concepção de que (1º) o sentido é sempre um sentido-para e, portanto, (2º) compreende-lo pe compreender aquele para quem o sentido se faz”, temos uma busca de reelaboração do próprio sujeito a partir do objeto. A realização da leitura, sua compreensão, “pressupõe que um campo semântico seja partilhado”, numa partilha em que “o intérprete precisa compreender já dentro do universo significativo do outro” (AZZAN Jr., p.16-7, 1993). A relação de conhecimento supõe uma fusão do eu na alteridade com vistas a alcançar, em um exercício comum, os mais íntimos e sutis sentidos que a cultura do outro assume. O mergulho que Geertz propõe é um modo de entranhar-se do sentido que a cultura assume no objeto, de enxergar por dentro. Isso difere da forma como um sujeito não participe dessa “teia de significados” vê a cultura. O próprio fundamento racional se relativiza; estará ele mesmo inserido dentro de um ponto de vista, existirá se houver sentido, é racionalidade-para. O sujeito cognoscente não apreende o objeto sob um fundamento universalmente válido, ele o lê, capta-lhe, pela partilha, o seu pulsar e o traduz na ótica do eu que busca situar-se ao nível do universo de conhecimento e de sentido do outro. O que define o empreendimento da leitura não são as técnicas e os processos determinados, “o que o define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco, elaborado para uma ‘descrição densa’ (...) (GEERTZ, C., p.15). O caráter relativo da leitura não pode ser perdido de vista, porque “(...) os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um ‘nativo’ faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura). Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modelado’ – o sentido original de fictio – não que sejam falsas, não factuais ou apenas experimentos de pensamento”. (GEERTZ, C., p.15) A ciência proposta por Geertz assume-se enquanto intersubjetiva. Não é uma ciência do objeto por ele mesmo, tampouco uma do sujeito cognoscente possuidor de princípios universais válidos para a compreensão de qualquer complexo cultural. É, antes, um conhecimento surgido da relação do eu que conhece com o outro que se dá a conhecer, é um conhecer partilhado. É a ciência do sujeito que se enxerga enquanto modo de compreensão, é ele o tradutor do outro. A ciência geertziana não é “pura” no sentido de ser apreendida unilateralmente pela da revelação do objeto, é o conhecimento extraído da co-autoria eu/outro, erigidos ambos em sujeitos da compreensão. A densidade que a descrição/tradução da cultura comporta é, além de uma densidade semântica, e por isso mesmo, uma densidade histórica. O sentido da ação cultural é elaborado, concretizado e represenciado historicamente. A densidade da leitura está, então, também em dar conta de todo esse caráter remissivo das ações culturais. Não é a ação ta somente aquilo que externamente se mostra ser. Todo ato cultural remete a um universo de significação, no âmago do qual se produz o seu sentido; sentido para os seus atores. A captação do sentido por parte do investigador resulta do processo de tentativa de colocar-se como sujeito da ação. Com Geertz a proposta de conhecimento absoluto dissolve-se na procura de um conhecimento relativo, interativo, e cioso dos limites e condições da sua realização. Pilares do pensamento antropológico, como Lewis Morgan, Franz Boas (‘discípulos’, como Margarete Mead e Ruth Benedict) e Bronislaw Malinowski, respeitadas as diferenças de abordagem, diferentes ênfases e distanciamentos, apresentam uma definição de cultura que John B. Thompson qualifica como concepção descritiva, e que “pode ser rastreada nos escritos dos historiadores culturais do século XIX interessados na descrição etnográfica de sociedades não-européias” (THOMPSON, J. B., p.171, 1995). A concepção descritiva da cultura, cujos elementos chaves estão contidos pela definição de Tylor, pode ser resumida nestes termos:
A cultura de um grupo ou sociedade é o conjunto de crenças, costumes,
idéias e valores, bem como os artefatos e instrumentos materiais, que são adquiridos pelos indivíduos enquanto membros de um grupo ou sociedade; e o estudo da cultura envolve, pelo menos em parte, a compraração, classificação e análise científica desses diversos fenômenos. (THOMPSON, J. B., p.173, 1995).
As dificuldades dessa concepção ligam-se mais aos pressupostos a partir
dos quais se estuda a cultura do que com a concepção de cultura em si. Circunstância que também se estende à concepção estruturalista de cultura: as restrições que se fazem tem mais a ver com questões de ordem epistemológica e metodológicas que com a concepção de cultura utilizada. Outra concepção – uma concepção simbólica – é a de Clifford Geertz, “cuja obra magistral A interpretação das culturas representa uma tentativa para delinear as implicações desta concepção para a natureza da pesquisa antropológica” (THOMPSON, J. B., p.175, 1995). A partir de uma preocupação central com o significado, o simbolismo e a interpretação, esta autor irá definir a cultura como:
Acreditando, com Max Weber, que o homem é um animal suspenso em teias
de significados que ele mesmo teceu, entendo a cultura como sendo essas teias, e sua análise, portanto, como sendo não uma ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa em busca de significados. (GEERTZ, C., p.15)
Ao se proceder à análise da cultura, entranha-se em intrincadas camadas –
teias – de significados, descreve-se e redescreve-se ações e expressões que já são significativas para os próprios agentes que as produzem, percebem e interpretam quotidianamente. As análises da cultura são interpretações das interpretações sobre um mundo que é constantemente descrito e interpretado pelos indivíduos que o compõem. A concepção simbólica da cultura pode, ser entendida como:
Cultura é o padrão de significados incorporados nas formas
simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças... O estudo da cultura, no ponto de vista de Geertz, é uma atividade mais afim com a interpretação de um texto que com a classificação da flora e da fauna. Ela requer não tanto a atitude de um analista que busca classificar e quantificar quanto a sensibilidade de um intérprete que busca discernir os padrões de significado, discriminar entre gradações de sentido e tornar intelegível uma forma de vida que é já significativa para aqueles que a vivem. (THOMPSON, J. B., p.177, 1995)
Pelas diferenciações e especificidades de postura epistemológica e teórico-
metodológicas que podem ser percebidas nos discursos antropológicos sobre a cultura, falar em um conceito antropológico de cultura soa um tanto inconsistente e algo indefinido. O longo e tortuoso caminho percorrido pelos discursos formadores da Antropologia, ela própria constituída no estudo da cultura, denuncia as dificuldades e diversidade de abordagem inerente ao termo e à realidade cultura. Williams, resume o trajeto do conceito:
Começando como nome de um processo – cultura (cultivo) de vegetais ou
(criação e reprodução) de animais e, por extensão, cultura (cultivo ativo) da mente humana – ele se tornou, em fins do século XVIII, particularmente no alemão e no inglês, um nome para configuração ou generalização do “espírito” que informava o “modo de vida global” de determinado povo. (WILLIAMS, R., p.10, 1992)
Os percursos e percalços porque passou o termo e sua definição, oscilam na
sociologia da cultura entre um dimensionamento global e um parcial. A dificuldade do termo, óbvia, pode ser, para Williams, “encarada de mais proveitosa como resultado de formas precursoras de convergência de interesses”. (WILLIAMS, R., p.11, 1992) A convergência final entre sociologia da cultura e a antropologia chega por encarar a cultura “como o sistema de significações mediante o qual necessariamente (se bem que entre outros meios) uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada” (WILLIAMS, R., p.13, 1992). Uma vez que em tal convergência as formulações geertizanas se acomodam sem maiores problemas, optei por tal vinculação.