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ENTRE DOMINADORES E DOMINADOS: O CONCEITO DE JUSTIÇA

EM SANTO AGOSTINHO

Dennys Santana Ferreira*

Resumo: O presente artigo visa à compreensão semântica de Justiça dentro do


pensamento ontológico de Santo Agostinho. De maneira sistemática propõe um
caminho para elucidar o conceito de justiça no conjunto das relações humanas, que
é marcada pelo poder e a dominação. Visto que, existem dominadores e dominados.
A fonte epistemológica é o livro De Civitate Dei (Cidade de Deus), escrito
apologético contra os pagãos. O artigo se desenvolve em três subtemas, a saber: O
afastamento do Bem corrompeu a “dominação”; À volta para a Justiça: no caminho
místico da Cidade Terrestre; A Justiça reside em Deus. Para Agostinho a Justiça é
Deus.

Palavras – chave: Dominadores; Dominados; Justiça; Cidade Terrestre; Cidade


Celeste; Santo Agostinho.

Abstract: This paper aims to understand semantics of Justice within the ontological
thought of St. Augustine. Systematically proposes a way to elucidate the concept of
justice in all human relations, which is marked by power and domination. Since there
are dominant and dominated. The epistemological source is the book De Civitate Dei
(City of God), written apologetic against the pagans. The article is divided into three
sub-themes, namely: The removal of corrupt Well "domination"; Around for Justice:
the mystical path of City Land; Justice lies with God. For Augustine Justice is God.

Key - words: Dominators; Dominated; Justice, City Road, Heavenly City, St.
Augustine.

1 INTRODUÇÃO

Ao lançar um olhar sobre a nossa realidade existencial vamos perceber a


gama de injustiça. A guerra, a fome e a miséria assolam a humanidade. Antes com
muitos gritos, hoje de maneira silenciosa. Agostinho inquietou-se, enquanto, não
repousou seu coração em Deus, na busca pela Justiça, a Verdadeira Justiça. Na
cidade de Deus é possível ter uma visão do entendimento de Justiça no pensamento
agostiniano, porém, a grande questão que surge: entre dominados e dominadores é
possível compreender a Justiça?

*
Graduando do curso de licenciatura em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – INSAF. E-
mail: dennyssf@yahoo.com.br
2 O AFASTAMENTO DO BEM CORROMPEU A “DOMINAÇÃO”

No início dos tempos o homem em real estado de natureza e regido pela


lei natural contemplava o Sumo Bem. O homem que até então não era inclinado
para o mal, habitava o Paraíso, com bem descreve o autor sagrado no livro dos
Gênesis: “após Deus formar o homem à sua imagem e semelhança colocou no
jardim do Éden para o cultivar e o guardar 1. Na inocência primitiva2 não havia
qualquer forma de coação do homem sobre o homem, mas pela lei natural ao
homem só era permitido a dominação dos seres irracionais.
Ao criar o homem o Criador proporcionou-lhe o necessário para bem
viver, abençoando-lhe e dizendo que fosse fecundo, enche-se a terra e domina-se
os seres que habita os céus e a terra. E para não viver na ociosidade e ter o que
comer, deu-lhe a sementes e as ervas, assim como, as feras, as aves do céu e tudo
o que na terra é animado pela vida3 incitando-lhe para o trabalho.
Santo Agostinho em De Civitate Dei nos proporciona uma intuição da
relação do homem com os irracionais, efetivando tal relação na figura do pastor. O
pastor que cuida e guarda o seu rebanho, realizando por assim dizer a ordem na
criação.
O Paraíso tornou-se perdido ao homem pelo seu afastamento da lei
natural, ou seja, da expressão da razão e vontade divinas. A ordem natural foi
destruída pela desordem do pecado, ao mesmo tempo com o seu castigo e com o
seu remédio. O que era comum a todo o gênero humano deu lugar a propriedade
privada e as relações humanas que tinha unidade no bem, foi desfigurada pela
relação de poder e dominação, a servidão.
O autor da Cidade de Deus elucida a etimologia da palavra servo. O servo
é aquele que serve, no entanto, serve não por sua natureza, mas pela sua culpa. A
guerra torna os dominados servos dos dominadores e conserva-ser como tal,
embora pudessem matar os dominadores no intuito de torná-los servos. Não existe
guerra justa, pois antes mesmo de materializar a guerra, o coração do homem já

1
Gn 2, 15.
2
Inocência primitiva ou estado de natureza. Esses foram temas retomados por Santo Agostinho.
Temas de acento estóico tendo como seguidores desta Filosofia Natural, um Cícero e um Sêneca.
Agostinho deu conotação a esses temas incorporando-os a Filosofia Cristã, no que diz respeito à
concepção sobrenatural e escatológica.
3
Cf. Gn 1, 28ss
esta corrompido pelo desejo de dominar os homens. Os dominados, que são
humilhados por juízo divino, reconhecem seus pecados e os pecados do seu povo,
ratificando a razão do seu cativeiro. Ora, o juízo divino permiti tal danação, pois
torna-se uma disciplina necessária e por isso desejada por Deus. Não porque o
próprio Deus quisesse a guerra, a fome e a miséria no seio da vida humana, mas
porque Deus ama tanto o homem, que deseja ardentemente a sua volta para o
Sumo Bem. Digo isto, visto que a natureza humana estava desviada e decaída, pois
era serva do pecado. Pecado que submetia um homem sobre outro homem pelo
vínculo da posição social.
Vale salientar, que a lei natural já prescrevia a escravidão, portanto, para
conservar a ordem natural o homem não poderia perturbá-la. Na narrativa da
Criação, o Criador proíbe o homem dizendo: “dele não comereis, nele não tocareis,
sob pena de morte”4. É sabido que o preço da servidão ao pecado é a morte.
A dominação é uma conseqüência do afastamento do homem do Sumo
Bem. Visto que, a dominação contraria a razão e a vontade Divina como lemos no
relato sagrado:
“Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim à
brisa do dia e o homem e sua mulher se esconderam da presença de
Iahweh Deus, entre as árvores do jardim. Iahweh Deus chamou o
homem: ‘Onde estás?’ disse ele. ‘Ouvi teu passo no jardim,’
respondeu o homem; ‘tive medo porque estou nu, e me escondi.’ Ele
retomou: ‘E quem te fez saber que tu estavas nu? Comeste, então,
da árvore que te proibir comer!”5

O homem, agora versado no bem e no mal 6 entende o ato de dominar


como um meio de propiciar a paz nas relações sociais. Porém, ao longo da História
da Salvação percebemos que nem sempre os homens foram felizes nessa
harmonização entre eles. Se o homem foi corrompido, logo, seus juízos são
contrários ao juízo divino. A “paz” do homem pelo domínio é a paz doméstica. A
medida desta “paz” são os bens temporais, então, poderíamos compreender a
justiça humana, enquanto, um ato de obediência àqueles que administram os bens
temporais. Agostinho desenvolve este juízo humano no capítulo XVI da De Civitate
Dei, sob o tema a “justiça no domínio, dizendo:

4
Gn 3, 3
5
Gn 3, 8ss
6
Cf.: Gn 3, 5
“É por isso, claro e lógico deva a paz doméstica redundar em
proveito da paz cívica, quer dizer, deva a ordenada concórdia entre
os que mandam e os que obedecem relacionar-se com ordenada
concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem.
Donde se segue que o pai de família deve dirigir sua casa pelas leis
da cidade, de tal forma que se acomode à paz da cidade”7.

Sociais são os homens e as mulheres que obedecem aqueles que


administram os bens temporais, constituindo por assim dizer, o estado. Então, a
justiça temporal consiste em dar juízo de valor aos administradores. Os
administradores são entendidos desde os membros da casa até o chefe das nações.
Por um homem entrou a danação no mundo, mas também por um homem
Deus propiciou a Salvação. Ao criar o homem Deus compartilhou com ele a virtude e
prometeu a imortalidade. Diante desta danação a “paz temporal” tornou-se um bem,
e ao mesmo tempo, uma intuição para desejar o gozo eterno, ou seja, a paz eterna.
Lá não haverá, mas perturbação e nem injustiças. É na pessoa de Cristo que é
devolvido ao homem decaído, desviado, oprimido a vinculação a Deus, tornando-se
com Ele um corpo místico. A sabedoria divina constitui uma nova sociedade que não
esta no cosmo, mas nos céus. Um novo Reino que não é deste mundo 8. Nessa nova
sociedade não existe dominação do homem ao outro. Em Jesus restaurou-se o valor
infinito de dominar pensado por Deus. O servo, que até então era sinônimo daquele
que submetia ao pecado passa a ter um novo significado. Neste novo reino sábio é
aquele que serve, significado este expresso na linguagem da cruz que é loucura da
cruz, logo, tornou-se a loucura dos pagãos.
A dominação existe, mas agora só aplicada ao corpo. O dominador pode
ser superior ao seu Senhor pelo seu caráter, pela virtude. A dominação é o pecado,
a volta ao estado de natureza é liberdade. Rompe com a dominação aquele que não
é dominado pelo amor ao mundo, logo é livre. Eleito para lograr as bem –
aventuranças o homem cristão não se limita em expressar a glória de Deus9. Os
homens cidadãos desta terra redimidos pela cruz do Filho, por amor a Deus o serve
já aqui na terra de seres mortais erguendo a cidade celeste. Numa Teologia

7
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus – Parte II. Trad. Oscar Paes Leme. 2. ed. Petrópolis – RJ:
Vozes, 1990. p. 407.
8
João um dos autores do livro sagrado narra nos seus escritos a Paixão de Jesus, assim como
encontramos outros Evangelhos. Neste versículo o próprio Cristo afirma não ser deste mundo numa
conversa com Pilatos antes da crucificação. (Cf.: Jô 18, 36)
9
No capitulo IV do livro Espírito da Filosofia Medieval, Étienne Gilson ao flara do mundo cristão
escreve que o mundo cristão não cessa de dar gloria a Deus. (Cf.: GILSON, Étienne. O Espírito da
Filosofia Medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 98.)
complexa o grande representante da Patrística Latina desenvolve em seus escritos
como se dá a construção das duas cidades.
Santo Agostinho,

“(...) dois amores construíram duas cidades: o amor de si levado até


ao desprezo de Deus edificou a cidade terretre, civitas terren; o amor
de Deus levado até ao desprezo de si próprio ergueu a cidade
celeste; uma rende glória a si, a outra ao Senhor; uma busca uma
glória vinda dos homens; para a outra, Deus, testemunha da
consciência, é a maior glória” 10.

Pelo batismo os cristãos são incorporados ao corpo místico de Cristo, ao


mesmo em que pelas as suas ações constroem o novo Reino e espera ansiosos
nele morar definitivamente.

3 À VOLTA PARA A JUSTIÇA: NO CAMINHO MÍSTICO DA CIDADE


TERRESTRE

Os cidadãos cristãos incorporados no corpo místico de Cristo vivem na


cidade terrestre. Partindo das premissas da antecipação do novo Reino e a
incorporação definitiva neste mesmo Reino faz dos cidadãos cristãos serem
estrangeiros na cidade terrestre. Num manuscrito antigo intitulado por Carta a
Diogneto percebemos a singular condição dos cristãos:

“Eles habitavam suas próprias pátria, mas como ali se domiciliam


como estrangeiros, em tudo participavam como cidadãos, e de tudo
permanecem afastados como estrangeiros. Toda pátria estrangeira
lhes é uma pátria, e toda pátria lhes é estrangeira. Em suma, o que a
alma é no corpo, os cristãos o são no mundo. A alma habita o corpo
e, no entanto, ela não é do corpo; da mesma forma, os cristãos
habitam o mundo, e, no entanto, não são do mundo” 11.

É aqui na cidade terrestre que os cristãos receberam a promessa da


redenção e como penhor dela o dom espiritual, não dúvida em obedecer às leis
regulamentadoras das coisas necessárias e do sustento da vida mortal12. Ora, os
cidadãos chamados pela cidade celeste por questão de ordem obedecem às leis da
10
CHEVALLIER, Jacques. História do pensamento político - Tomo I. Trad. Roberto Cortes de
Lacerda. Rio de Janeiro – RJ: Guanabara koogan, 1979. p. 176.
11
Id. Ibid; p. 175.
12
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus – Parte II. Trad. Oscar Paes Leme. 2. ed. Petrópolis – RJ:
Vozes, 1990. p. 408.
nação a qual estão inseridos. Desta maneira Agostinho fundamenta sua critica aos
pagãos, que encomenda seu corpo e sua alma aos deuses. Portanto, a cidade
celeste só conhece um só Deus, único a que os cidadãos, mesmo aqui na cidade
terrestre devem o culto e servidão.
A servidão consiste em fazer o bom uso dos bens necessários, seja do
corpo como da alma, para alcançar os bens futuros e eternos. O homem cristão vive
da fé, entretanto os homens que não vivem da fé buscam os bens e as comodidades
deste mundo. Porém, a vida na fé não pode ser sinônimo de ociosidade. Augustinho
afirma; “ninguém deve, com efeito, entregar-se de tal maneira ao ócio que se
esqueça de ser útil ao próximo, nem de tal maneira à ação, que se esqueça da
contemplação de Deus”13. O trabalho da dignidade ao homem, pois se propõe a
justiça e a utilidade, tendo em vista a construção do Reino. O peregrinar sem
esperança é felicidade falsa e autentica miséria, porque não usa dos verdadeiros
bens do espírito. Por fim, só o Amor a Deus propicia ao homem nutrir a fé e a
esperança. São Paulo já salientará em sua Epístola aos Coríntios: “Agora, portanto,
permanecem a fé, a esperança e a caridade, essas três coisas a maior delas,
porém, é a caridade”14

4 A JUSTIÇA RESIDE EM DEUS

O autor sagrado já salmodiava: “Iahweh é reto; meu Rochedo, nele não


há injustiça”15. Ora a justiça, ou melhor, a verdadeira Justiça não se pode ser
comparada com a justiça natural dos filósofos pagãos, a exemplo de um Cícero.
Justiça em sua totalidade só existe unicamente em Deus. Os homens atribuem à
justiça na cidade terrestre pela ordem das relações sociais. Entretanto, a Justiça
procede de Deus. Em Jesus Cristo fomos justificados, então, pelo mesmo Cristo a
graça foi derramada sobre os homens. Antes, porém, do cume da justificação na
cruz, o Filho de Deus ensinou aos homens estrangeiros e peregrinos neste mundo a
caridade. A caridade é sinal da justiça, logo escreve Agostinho: “Dessa maneira
como um só vive da fé, assim também o conjunto e o povo de justos viverão dessa

13
AGOSTINHO, Op. cit. p. 410.
14
I Cor 13, 13
15
Sl 92(91), 16
fé que age pela caridade, que leva o homem a amar a Deus como deve e ao
próximo como a si mesmo”16.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo visou apresentar a conceituação de justiça no pensamento de


Santo Agostinho, ao passo que de maneira sistemática foi elucidado, ao menos em
parte pelos meios próprios de encontrá-la. Em Santo Agostinho viver é sinônimo de
virtude, que em melhor estância poderia ser elucidada pelos termos a arte de viver.
Portanto, a justiça encontra lugar no pensamento agostiniano, pelo fato do homem,
ter desconfigurado o valor semântico da palavra dominação. A esta escolha do
homem vinculou-se a todas as injustiças. A principal foi de dominar o outro. Por fim,
o retorno da verdadeira justiça é possível se nos abrirmos à graça de Deus, onde
reside a Justiça.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus – Parte II. Trad. Oscar Paes Leme. 2. ed.
Petrópolis – RJ: Vozes, 1990.

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

CHEVALLIER, Jacques. História do pensamento político - Tomo I. Trad. Roberto


Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro – RJ: Guanabara koogan, 1979.

GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Tradução de Eduardo Brandão.


São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MARROU, Henri. Santo Agostinho e o agostinismo. Trad. Ruy Flores Lopes. Rio de
Janeiro: Agir, 1957. Título original: Saint Augustin et I´augustinisme.

16
AGOSTINHO, Op. cit. p. 418.

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