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AUTÔMATO.
aproxima dos personagens através da dinâmica ficcional e confere sentido a trama. Esta
2004).
teoria dos sonhos, o pai da psicanálise abre espaço à outra cena, onde o indivíduo é
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Bacharel em Psicologia e aluno do curso de Formação de Psicólogo da Universidade Federal do Pará. E-
mail: henriquemmonteiro@hotmail.com
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Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Pós-Doutor em
Sociologia na Université René Descartes, Paris V e professor na Faculdade de Psicologia da Universidade
Federal do Pará. E-mail: andrebar@amazon.com.br
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Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo e Professor Adjunto na Faculdade de Psicologia e
na Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará. E-mail: souza.mr@oi.com.br
A referência a idéias, personagens e situações presentes na literatura acabou por
sonhos (1900) até textos diretamente voltados a análises de obras literárias e artísticas
cultura, a literatura, enquanto produto desta relação, também merece espaço em sua
através de uma oposição simples, pois a psicanálise “é capaz de ler, nas maiúsculas da
cultura, coisas que podem ter validade também nas minúsculas da vida psíquica
Segundo Naomi Kon (1996), não foi à toa que Freud caracterizou como seu
como uma espécie de duplo da psicanálise. Porém, com a ressalva de vislumbrar nesta
relação entre uma parte aparente e outra oculta. O enredo corresponderia à parte
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Arthur Schnitzler (1862-1931) foi um famoso e polêmico escritor austríaco contemporâneo de Freud.
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Renato Mezan (2002, p.375) pondera que “talvez o melhor modelo não seja o sonho, mas, como sugeriu
Ernest Gombrich, o chiste, feito para ser comunicado e no qual, portanto, a forma é mais determinante na
constituição do conteúdo do que no ambiente do sonho. Em qualquer dos casos, porém, a análise sempre
parte da percepção de uma nota dissonante, que chama a atenção do analista”.
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Esta investigação é viabilizada na medida em que se entende a literatura
Freud discute em O Inquietante uma perspectiva que vai de encontro aos valores
da estética vigente. Neste trabalho, ele rompe com o paradigma do belo e leva em
que, atravessado pelo inconsciente, vai se chocar, se estranhar com o que lhe parece
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Utilizaremos aqui a opção de tradução do “Das Unheimliche” como “O Inquietante” seguindo as
argumentações de Luiz A. Hanns (1996), em detrimento de “O Estranho”, usual tradução para o
português, encontrada na Edição Standard Brasileira. Ver HANNS, 1996, p.231-239.
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mais íntimo e familiar: ele próprio. Esta inquietante estranheza parte de uma perspectiva
aglomerado de exemplos das mais diversas fontes, Freud nos conduz ao estranhamente
repetição – pode ser permeada pelo inquietante. Segundo o pai da psicanálise, esta
sonhos, atos falhos, chistes e sintomas) são o palco cotidiano para o enlaçamento entre o
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diante de relatos verídicos (ou próximos da realidade) ou diante de um conto de fadas.
Assim, se a percepção da situação segue a linha das leis que regem a realidade, “tudo o
vivacidade da boneca Olímpia, assim como o clima ambíguo criado quanto à veracidade
dos fatos no conto, contribuem para a percepção estranha da trama de maneira geral,
mas o elemento principal responsável pelo efeito inquietante seria o “homem de areia”,
uma vez que este seria o responsável por roubar os olhos das crianças.
são as responsáveis por assombrar Natanael com insígnia do “homem de areia”. A perda
dos olhos, considerada enquanto terror em estado bruto, faria referência ao complexo de
[1919]1996).
Driblando a pouca ênfase dada por Freud, mas ainda baseando-se em suas
paixão por Olímpia pode ser vista como representação do amor narcísico projetado por
nossa investigação é o tema do duplo. Para Otto Rank (apud FREUD, [1919]1996,
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p.252), o duplo se constituiria enquanto “segurança contra a morte” e agiria no sentido
noção do duplo estaria mais presente no pensamento infantil ou primitivo, passando por
reflexão no sentido de pensar o duplo enquanto uma “ânsia de defesa que levou o ego a
Para Freud ([1919]1996, p. 252-53), esta noção mantém clara relação com as
causas infantis. O duplo remontaria à fragilização dos limites do Eu, momento em que o
exterior e do outro. Tal percepção também seria responsável por uma confusão de
concebe esta duplicação como algo de fora, estranho, mas de fato, não sendo nada de
provocar uma sensação de inquietante estranheza, uma vez que aparentemente reside
Unheimliche, da “da estranheza ‘e’ dessa relação de limite entre o mesmo e o diferente”
Marcelo Coelho, esta estranheza tem presença marcante, pois em seus textos os
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íntimo, de um inexplicável familiar. A proximidade com situações perturbadoras que
análise dos personagens até aspectos que apontem para o que pode se mostrar
inquietante na leitura da crônica “Paixão por uma boneca” de Voltaire de Souza. Assim,
questões do que propriamente de respostas últimas para os dramas suscitados pelo texto.
Com isso, buscamos plantar nosso olhar de modo que alimentem questionamentos e
constante inquietude.
Interpretações e inquietações
mesmo não sendo a relação entre autor e sua obra o alvo deste estudo, a discussão
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Silva Junior (2001) realizou um estudo profícuo sobre este assunto ao discutir a heteronímia de
Fernando Pessoa.
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PAIXÃO POR UMA BONECA
no qual somos conduzidos pela fronteira insidiosa entre a realidade material e o mundo
Diríamos, então, que o leitor, após ser golpeado com sentenças curtas e vagas, se
sinta estonteado diante a trama. Esta, inicialmente de cores e tons absurdos, mas
personagens, tentando escutar o que eles teriam a dizer. Inicialmente, sabemos que
Norberto vivia solitário até encontrar o amor plástico de Greice. E esta, vívida na
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Tal como na análise de “O homem de areia” feita por Freud ([1919]1996), alia-
nome e ser concebido como algo capaz de corresponder afetivamente passa então a
habitar a noção do duplo. Através da imaginação, ele acredita que Greice pode ler seus
tenra infância, era minimizada pela dependência absoluta. “Esta ansiedade originária
com quem Norberto pode entrar em simbiose, ao mesmo tempo em que se configura
então como uma espécie de pedido de socorro, uma tentativa de substituir a realidade
não desejada, por uma que congregue seus desejos. Possibilidade ofertada pelo mundo
da fantasia, no qual o indivíduo retira o material que necessita para suas novas
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Com a ressalva de que Norberto, diferentemente de Natanael, inicia seu relacionamento com a boneca
consciente de que esta é desprovida de vida, ou seja, a dúvida se instala a partir da relação com o objeto
inerte.
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fantasiosamente a simbiose materna, onde não há espaço para nada além do amor
(FREUD, [1924]2007).
completo, se faz pertinente uma indagação proposta por Cesarotto (1996, p.123-26).
Afinal, como pode haver o desejo, se o objeto preenche esse espaço da falta? Segundo
ele, se faltasse a falta a satisfação seria penosa e mortificante, pois “se a exaltação
acomete a história de Norberto, pois se interpõe entre ele e sua amada a presença
referência ao pai e da marca ambivalente que este carrega que o objeto passa a adquirir
uma conotação hostil. “Com efeito, a dura verdade que o agir do supereu revela é a
Após isso, a crônica inunda o leitor na incerteza sobre a morte de Norberto. Aqui
abrimos um parêntese para comentar o que entendemos ser uma possível inquietação do
leitor. Quando o autor escreve “nunca ninguém sabe direito...” antecedendo a morte do
nosso protagonista, este abre uma lacuna no texto e implica o leitor às suas próprias
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e sua falta de representação no psiquismo humano sobressaem como pano de fundo para
criminalista para minimamente dar conta deste vácuo, anima a questão: “Quem matou
Considerando que a autonomia de Greice é apenas imaginada por Norberto, assim como
pela falta da amada, reflexo de seu próprio narcisismo, põe fim a própria existência.
representar um ato custoso demais, o que levou Norberto a um surto agressivo que
crônica de Voltaire de Souza, o fim dos protagonistas coincide com a morte. Fatalidade
que vem acompanhada, nos dois casos, de uma distorção da realidade, na qual a fantasia
queda do próprio eu. Segundo Chnaiderman (1997), esta suspensão do sentido está
afetivo indeterminado”.
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Com o intuito de ampliar a discussão, imaginemos agora a alteração de um
elemento da crônica. Suponhamos que Greice, ao invés de uma boneca, fosse uma
amortizado, mas como encararíamos a ira que constrói o cenário para a morte do
próprio personagem?
possibilidade de uma pessoa efetivamente ser tratada como uma “boneca”, ocupar a
completude do outro. Por não ser um “idêntico”, não ser “imediatamente assimilável”.
Com isso, talvez, possamos pensar a figura do autômato como uma possibilidade
animistas e da crença em forças ocultas maléficas, da qual não estamos isentos, por mais
adultos e civilizados.
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Destarte, o autômato, tal qual um espelho, torna-se um parâmetro de
por trazer a baila o desejo do “outro”, o recalcado velho e familiar que toma contornos
Julia Kristeva (1994), como pintaremos este “outro”, se não com nossos próprios
fantasmas?
coincide com a obtida e vice-versa. Assim, o mais próximo e íntimo é o mais longínquo
e inacessível, restando a nós tentar nos aproximar do que ocultamos, entendendo que
este material está sempre retornando e causando estranhamento, por mais que
REFERÊNCIAS
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CHNAIDERMAN, Mirian. Rasgando a fantasia para outras tantas mil e uma noites.
In: ALONSO, Sílvia Leonor e LEAL, Ana Maria Siqueira. (orgs). Freud: Um ciclo de
leituras. São Paulo, Escuta, FAPESP, 1997.
DROGUETT, Juan. Sonhar de olhos abertos. São Paulo: Arte & Ciência, 2004.
KON, Noemi Moritz. Freud e seu Duplo. São Paulo: EDUSP, FAPESP, 1996.
KRISTEVA, Júlia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
MEZAN, Renato. Interfaces da Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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SOUZA, Maurício Rodrigues de. Experiência do outro, estranhamento de si:
dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise. Tese de doutorado – Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.
SOUZA, Voltaire de. Vida Bandida. 1ª edição – São Paulo: Escuta, 1995.
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