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março DE 2009 n
PESQUISA FAPESP 157
>
ciência

cardiologia

Fluxo livre
Vista como inflamação,

aterosclerose ganha novas

possibilidades de tratamento

Carlos Fioravanti

D
urante décadas a aterosclerose era de­
finida como o acúmulo gradativo de
gorduras nas paredes das artérias. Um
tipo de gordura, a lipoproteína de baixa
densidade (LDL), ganhou fama como
colesterol ruim e responsável por esse
mecanismo que pode levar a infartos e
doen­ças cardiovasculares, a principal causa de
morte no mundo. Nos últimos anos as explicações
ganharam refinamentos e a aterosclerose começou
a ser vista como um processo inflamatório crôni­
co, que alimenta e é alimentado pela deposição de
gorduras nas paredes das artérias. Essa abordagem
frutifica agora no Brasil na forma de três novas
possibilidades de tratamento que apresentaram
resultados positivos nos testes preliminares rea­
lizados em animais.
SUSUMU NISHINAGA/SCIENCE PHOTO LIBRARY

A que se encontra mais avançada foi desen­


volvida no Instituto do Coração (InCor), ligado
à Universidade de São Paulo (USP), e consiste de
medicamentos antitumorais que devem funcionar
também contra processos inflamatórios, podendo
começar a ser testada em seres humanos ainda
este ano. Outro tratamento experimental, nessa
mesma abordagem – a aterosclerose vista como
inflamação –, emerge de pesquisas da Universi­

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Artérias bloqueadas dade Estadual de Campinas (Unicamp)
que mostraram resultados promissores
Como começa a inflamação que barra o sangue a ponto de atrair uma empresa farma­
cêutica nacional, interessada em par­
ticipar dos testes, cercados por sigilo
contratual. A terceira possibilidade,
também do InCor, adota o pressupos­
to de que a aterosclerose poderia ser
gerada ou agravada por grupos de mi­
crorganismos, com a participação das
arqueas, representantes das primeiras
O LDL ou colesterol
ruim (esferas verdes)
linhagens de microrganismos a surgir
penetra nas paredes na Terra. Essa perspectiva embasou o
das artérias e sofre uso experimental de uma enzima do
uma reação química protozoário Trypanosoma cruzi, cau­
chamada oxidação sador da doença de Chagas, para eli­
minar bactérias e arqueas encontradas
nas placas de gordura que bloqueiam a
circulação do sangue.

À
medida que amadurecerem, es­
sas alternativas poderão comple­
mentar o tratamento atualmente
mais adotado, à base de medicamen­
tos conhecidos como estatinas, que
A oxidação atrai células
de defesa do sangue
reduzem a quantidade de colesterol e
(esferas azuis) e podem ter um efeito extra, ajudando a
desencadeia um controlar inflamações, de acordo com
processo inflamatório estudos recentes. Novos tratamentos
poderão também deter o impacto da
aterosclerose, que pode levar a doen­
ças cardiovasculares, a primeira causa
de mortes no mundo, principalmente
quando associada à hipertensão arterial
e ao tabagismo. As placas de gordura
com células sanguíneas mortas que se
depositam lentamente nas paredes das
artérias podem obstruir a passagem do
Uma placa de gordura sangue que distribui oxigênio às células
e células sanguíneas de todo o corpo. Chamadas de atero­
mortas se forma e mas, essas placas podem prejudicar o
começa a crescer sobre funcionamento de órgãos vitais, como o
a parede da artéria coração, causando infarto, ou o cérebro,
provocando um acidente vascular cere­
bral (AVC), também conhecido como
derrame. De acordo com a Organização
Mundial da Saúde (OMS), as doenças
cardiovasculares matam todo ano cerca
de 15 milhões de pessoas, o equivalente
a 30% do total. Só no Brasil cerca de
350 mil pessoas todo ano sofrem infarto
agudo do miocárdio, o mais grave dos
À medida que cresce, problemas do coração.
a placa (amarela) pode “Faltam medicamentos novos con­
daniel das neves

bloquear o fluxo do tra aterosclerose”, comenta o médico


sangue e causar infarto endocrinologista Raul Maranhão,
e derrames cerebrais pesquisador do InCor e professor das
faculdades de Medicina e Ciências Far­
macêuticas da USP. A possibilidade de

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tratamento a que ele chegou concilia as esferas com um medicamento utiliza­
esferas artificiais de lipídios (gordura) do normalmente contra câncer para
com 20 a 60 nanômetros de diâmetro tratar também aterosclerose.
que ele começou a desenvolver há 15 Maranhão comenta calmamente
anos com medicamentos usados contra em sua sala de trabalho no InCor que
câncer que devem servir também para um tratamento que começou a ser
conter a proliferação de células de defe­ avaliado contra câncer pode agora ser
sa nas paredes inflamadas das artérias. testado contra aterosclerose porque as
Chamadas de LDE, sigla de emulsão duas doenças são igualmente carac­
rica em colesterol, essas esferas simu­ terizadas pela intensa proliferação de
lam o LDL, produzido naturalmente células. Essa aproximação entre duas
pelo organismo. Depois de verificar que enfermidades apoia-se em uma linha
essas partículas de gordura artificial pa­ de pesquisa aberta com um artigo pu­
ravam nos locais onde havia células em blicado em janeiro de 1999 na revista
proliferação acelerada, como tumores New England Journal of Medicine pelo
e tecidos inflamados, Maranhão colo­ médico patologista Russell Ross, pro­
cou nas esferas de gordura um fármaco fessor da Universidade de Washington,
que detém a multiplicação celular, o Estados Unidos. “A aterosclerose é uma
paclitaxel, usado habitual­mente contra doença inflamatória”, afirmava Ross,
câncer. Em seguida as injetou em coe­ único autor desse trabalho. Em seguida
lhos, que durante dois meses comeram ele argumentava: “Por causa das altas
à vontade alimentos ricos em gordu­ concentrações do LDL, visto como um
ra. De acordo com o artigo publicado dos principais fatores de risco para a
em abril de 2008 no ano passado na aterosclerose, o processo de aterogê­
revista Atherosclerosis, a esfera com o nese [formação das placas de gordura]
fármaco reduziu em 60% as lesões nas tem sido considerado como resultado
artérias, geradas por versões alteradas do acúmulo de lipídios na parede das
de colesterol, mesmo que os coelhos artérias; porém é muito mais que isso”.
apresentassem uma concentração de Ross mostrou que a elevação dos níveis > Os Projetos
colesterol no sangue 200 vezes acima do de lipídios e de lipoproteínas alteradas,
normal. A partícula reduziu também além de outras moléculas do sangue 1. Nanopartículas lipídicas:
a migração de células de defesa que como a homocisteína, infecções e hi­ aplicações no estudo da
fisiopatologia, diagnóstico
intensificam o processo inflamatório, pertensão, pode induzir ou promover e terapêutica das doenças
conhecidas como macrófagos, para as inflamações associadas à aterosclerose. degenerativas.
paredes das artérias. “Esse trabalho mudou a visão sobre a 2. Patogênese da hipertrofia
“Consegui a chave para entrar na aterosclerose, hoje considerada como e insuficiência cardíaca:
célula”, comenta Maranhão. Para ava­ uma inflamação crônica”, comenta mecanismos ativados por
liar se as esferas de colesterol artificial Maranhão. estímulo mecânico.
3. Estudo biomolecular de
seguiam realmente para os locais de

R
produtos de Chlamydia
intensa multiplicação celular, ele adi­ oss morreu dois meses depois, aos pneumoniae e Mycoplasma
cionou a elas um elemento químico ra­ 69 anos, sem ver que seu traba­ pneumoniae na progressão das
dioativo chamado tecnécio e as injetou lho motivou também as equipes valvopatias crônicas humanas.
em pessoas. Como esperado, os tumo­ de pesquisa da indústria farmacêuti­
res absorviam mais colesterol que as ca a buscarem novos medicamentos modalidade
1 e 2. Projeto Temático
células normais, em uma proporção até contra aterosclerose. Uma das em­ 3. Auxílio Regular a Projeto de
duas vezes maior. Em 2002 o pesquisa­ presas que entraram nessa corrida, a Pesquisa
dor fez os primeiros testes de segurança norte-americana AtheroGenics, anun­
em 46 pessoas usando as esferas com ciou em março de 2008 o início da Co­or­de­na­dores
antitumorais. Segundo ele, em razão da etapa final dos testes clínicos de seu 1. Raul Cavalcante Maranhão –
afinidade das células em crescimento principal candidato a medicamento, InCor
2. Kleber Gomes Franchini –
acelerado com gordura, de que neces­ o AGI-1067, que pode ajudar a deter Unicamp
sitam intensamente, o fármaco envolto o acúmulo de açúcares e gorduras; 3. Maria de Lourdes Higuchi –
pela cápsula de gordura tornava-se de por essa razão é que esse composto InCor
cinco a oito vezes menos tóxico que deve também ser testado contra dia­
o fármaco isolado. Os testes feitos em betes a partir deste ano. As pesquisas investimento
cerca de cem indivíduos indicaram que conduzidas por empresas correm nor­ 1. R$ 1.401.712,38
2. R$ 996.638,13
se tratava de um procedimento seguro malmente sem alarde, mesmo quando
3. R$ 100.882,40
e os feitos em coelhos reforçaram sua os trabalhos contam com a participa­
argumentação para propor o uso das ção de universidades.

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Esse é também o caso, no Brasil, de A terceira possibilidade de trata­ Medicina da USP, apresenta outra
um composto com uso potencial mento remete a origens mais profundas possibilidade: para ela, a inflamação
contra doenças inflamatórias, como da aterosclerose. O problema começa associada à aterosclerose pode ser ge­
aterosclerose e artrite, que emergiu há quando uma molécula de colesterol se rada por grupos de microrganismos
seis anos da pesquisa de doutorado de infiltra nas paredes das artérias e sofre com a participação das arqueas. Ela
Silvana Rocco na Faculdade de Ciências uma reação química – uma oxidação utilizou essa hipótese, ainda não in­
Médicas da Unicamp. Sintetizado no – que atrai os macrófagos, um tipo teiramente demonstrada, para desen­
Instituto de Química da Unicamp, esse de células de defesa. Os macrófagos volver um tratamento experimental, a
composto atua sobre um grupo especí­ engolfam o colesterol oxidado e for­ partir de uma enzima do protozoário
fico de enzimas que participam do pro­ mam as chamadas células espumosas, Trypanosoma cruzi.
cesso inflamatório. Testes preliminares que atraem mais lipídios. Forma-se

A
atestaram seu potencial terapêutico e assim um corpo estranho dentro do hipótese de associações de mi­
atraíram uma indústria farmacêutica organismo que outras células de defesa crorganismos originando a ate­
nacional, que deve participar das ava­ tentarão desfazer, por meio de proces­ rosclerose emergia quando Maria
liações finais do composto, conduzidas sos inflamatórios que inflam as pare­ de Lourdes procurava entender por
sob sigilo contratual. Segundo o mé­ des das veias e artérias e bloqueiam a que uma mesma pessoa pode ter dois
dico Kleber Franchini, que coordena passagem do sangue. A gordura pode tipos de placas de aterosclerose nas
a equipe da Unicamp, a empresa é que também começar a se acumular como paredes das artérias. Um tipo de pla­
está custeando as solicitações de pa­ resultado de lesões físicas nas paredes ca cresce, se rompe e libera blocos de
tente do composto em outros países dos vasos sanguíneos. gordura que fecham os vasos sanguí­
e deve também financiar os testes em A médica patologista Maria de neos e causam infarto, enquanto outro
seres humanos, que podem começar Lourdes Higuchi, pesquisadora do tipo consiste essencialmente de placas
ainda este ano ou no próximo. InCor e professora da Faculdade de estáveis, com menos gordura e mais fi­

A chave das células


Uma estratégia para desobstruir artérias
2. As apoE conectam o
LDL às células de tecidos
inflamados e ampliam
> O que acontece normalmente a obstrução arterial

1. Proteínas chamadas
apoE cobrem o
colesterol ruim (LDL)

Fonte: Raul Maranhão/InCor, ilustração: daniel das neves

> O que pode ser feito

1. As partículas artificiais de
gordura (LDE) retiram
proteínas apoE do colesterol ruim

2. As LDE aderem às células por meio


das apoE. As células engolfam
as partículas, que se desfazem e
liberam fármacos anti-inflamatórios

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bras, que não se rompem. Examinando ticos não eliminam as arqueas”, observa ção da eficácia de sua abordagem em
fragmentos de 13 artérias coronárias Maria de Lourdes. 40 pessoas, desde que seus planos
com placas que se rompem, Maria de A partir dessas evidências ela criou sejam aprovados pelas comissões do
Lourdes detectou, por meio de análises uma saída inusitada para acabar com InCor. Franchini teve mais sorte e há
de genoma, microrganismos do grupo o clube dos micróbios. Inusitada por­ quatro anos, ao sair em busca de par­
das arqueas vivendo entre bactérias – que implica a utilização de uma enzima ceiros, encontrou colegas e empresas
principalmente Chlamydophila pneu- chamada transialidase, produzida pelo dispostos a ajudar. “Aprendemos o ca­
moniae e Mycoplasma pneumoniae, que protozoário Trypanosoma cruzi. Maria minho”, diz ele. “Hoje temos aqui na
têm esse nome porque podem causar de Lourdes verificou que as artérias das Unicamp um pessoal que faz pesquisa
pneumonia. Outros pesquisadores já pessoas que morreram de doença de e está atento também ao desenvolvi­
haviam encontrado Chlamydophila e Chagas normalmente não apresentam mento de fármacos. Começamos a
Mycoplasma nas placas de gordura, ateromas. Depois de constatar que os mi­ ver que podemos fazer outras coisas
mas não era claro que papel poderiam coplasmas aderem em regiões da parede novas.” Maria de Lourdes, por sua vez,
ter. Maria de Lourdes acredita que arterial ricas em ácido siálico, o mesmo ainda procura interessados.
esses microrganismos, uma vez asso­ que essa enzima transfere para o proto­

M
ciados, podem causar a inflamação ao zoário, ela preparou uma solução com esmo que em alguns anos surjam
interagir com a gordura por meio de a enzima e outros compostos capazes novos anti-inflamatórios capazes
uma reação química conhecida como de inibir também a ação das arqueas e a de deter a aterosclerose, as estati­
oxidação, que leva ao maior acúmulo injetou em coelhos que haviam recebido nas devem continuar a ser usadas. Uma
de gordura. uma alimentação rica em gordura. das razões é que as estatinas, além de
“A transialidase reduziu o número reduzir os níveis de colesterol, podem

R
esistentes a ponto de sobrevive­ de placas de gorduras e, com outros diminuir a quantidade da proteína C
rem em condições ambientais compostos, normalizou os ní­
extremas como águas oceânicas veis de colesterol no sangue”,
muito ácidas ou em meio à lava de diz. Segundo ela, os resultados,
vulcões, as arqueas ainda não haviam detalhados em 2004 na revis­

ml Higuchi/incor
sido associadas a doenças em pessoas. ta Medical Hypotheses, abrem
No entanto, segundo Maria de Lour­ a possibilidade de usar essa
des, elas podem produzir enzimas que estratégia também em outras Arquea
anulam as ações das células de defesa. doen­ças. “Muitas células tumo­
Desse modo, diz ela, “as arqueas conse­ rais parecem ricas em arqueas e
guem sobreviver e também permitem micoplasmas”, comenta Maria
a sobrevivência e a multiplicação de de Lourdes. Outros especialistas
bactérias que estejam ao redor”. As ou­ observam o trabalho dela com
tras também poderiam contribuir com expectativa. “Causas novas não
o bem-estar do grupo, formando um excluem as antigas”, comenta
consórcio de bactérias: as Chlamydo- Maranhão.
phila pneumoniae inibindo a morte Quem descobre novas pos­ Chlamydophila
programada das células hospedeiras sibilidades de tratamento en­ pneumoniae
e as Mycoplasma pneumoniae, por me­ frenta dois desafios: convencer
Associação de bactérias: possível
canismos próprios, também driblando os exigentes colegas de que che­
causa da inflamação das artérias
as defesas do organismo. garam a algo relevante e pro­
O raciocínio que ela e sua equipe duzir os compostos que, eles
do InCor apresentaram em 2006 na acreditam, resolverão muitos
revista científica brasileira Clinics aju­ problemas. Maranhão passou anos reativa, associada a inflamações, de
dava a explicar outras coisas. Maria de em busca de empresas que pudessem acordo com estudo com quase 18 mil
Lourdes acredita que uma das enzimas produzir as esferas artificiais de gor­ pessoas (homens com pelo menos 50
produzidas pelas arqueas, a superóxido dura capazes de levar medicamentos anos e mulheres com pelo menos 60 e
dismutase, pode ser a responsável pe­ contra tumores e inflamações. Diante níveis normais de colesterol), patro­
lo rompimento da camada externa de de acordos infrutíferos, ele concluiu cinado por uma empresa que produz
colágeno da placa, liberando blocos de que ele próprio teria de ampliar a es­ estatinas, a AstraZeneca, e divulgado no
gorduras que podem entupir artérias, cala de produção. ano passado. Altos níveis de colesterol
como as que irrigam o coração, e pro­ Maranhão trabalhou dois anos com continuam a ser o principal fator de
vocar infarto. Tornavam-se um pouco sua equipe para sair do método arte­ risco para a aterosclerose, mas outros
mais claras as razões da movimentação sanal de produção para o atual – um indicadores começam a ganhar atenção.
de células de defesa para o tecido infla­ compressor que em meia hora produz “Níveis elevados de homocisteína no
mado e da baixa eficácia de antibióticos 50 doses da solução com as esferas já sangue estão ligados à aterosclerose”,
para reduzir a incidência de infartos de com os fármacos. É o bastante para diz Franchini, “mas não sabemos se é
pessoas com aterosclerose. “Os antibió­ realizar com relativa folga uma avalia­ causa ou consequência”. n

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