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LINGUÍSTICA E SISTEMA DO SABER:

PROBLEMAS EPISTEMOLÓGICOS
(OU DE METAFÍSICA DA LINGUAGEM)
AO LONGO DA HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA:
– DE DESCARTES A MERLEAU-PONTY,
PASSANDO POR SAUSSURE.

JOSÉ MANUEL DE ALMEIDA FREITAS


e-mail: pt.atmabahai@gmail.com
FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO
(PORTUGAL)
RESUMO:

Poincaré (1902) na sua obra La Science et l‟hypothèse avançou com o conceito de


pseudo-definições como um tipo de hipóteses que, na Ciência Linguística, veio a provar-se ter
sido utilizado por Saussure, e amplamente disseminada na sua Teoria, nomeadamente no que
concerne à suposta linearidade da linguagem humana; esta, pela primeira vez claramente
explicada como fenómeno da esfera do sujeito por Merleau-Ponty (1945) na sua obra
Phénoménologie de la Perception, o qual propõe que a mesma não se produz linearmente, mas
sequencialmente, por camadas lógicas inter-relacionadas, com uma dialética própria. Merleau-
Ponty (1945) nessa mesma obra descreve uma dialética original de movimento, por meio de um
sistema quaternário, porque com quatro patamares ou instâncias, que são percorridos
necessariamente para a aquisição da linguagem bem como para a sua receção e processamento
humanos básicos, nessa transformação passando entre signo-sentido-significado-significação;
tendo retirado essas conclusões em resultado da sua teoria da perceção, que incorporou todas as
descobertas da psicologia Gestalt das primeiras três décadas do século XX.
Neste Artigo refutam-se vários conceitos linguísticos Saussurianos, por várias ordens de
razões; sendo esses seus conceitos justificadamente atribuídos ao seu cartesianismo tardio e ao
seu positivismo (no sentido pejorativo da palavra), provavelmente por Saussure ter sido
infelizmente fiel a Auguste Comte e às suas ideias; considera-se aqui que o seu trabalho ficou
limitado a ser uma história natural quando poderia ter-se elevado a uma verdadeira filosofia
natural, no sentido que atribuem a estas expressões Noam Chomsky&Morris Halle (1966).

PALAVRAS-CHAVE:
análise dedutiva; camadas lógicas; pseudo-definição; fenomenologia; epistemologia da
linguagem; perceção.

ABSTRACT:

Poincaré (1902) in his work La Science et l‟hypothèse has forwarded the concept of
disguised definitions as one type of hypothesis which, in Linguistic Studies, has come to be
proven to have been used by Saussure and, as such, is largely disseminated by his Theory,
particularly in what the supposed linearity of human language is concerned; the latter having

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been, for the first time, clearly explained as a phenomenon belonging to the sunject‟s domain by
Merleau-Ponty (1945) in his work Phénoménologie de la Perception, who argues that it is not
produced by a linear process, and rather in a sequential manner, constituted by inter-related
logic layers, with it‟s specific dialectics. Merleau-Ponty (1945) describes, in his above
mentioned work, an original dialectic process of movement, by means of a quaternary system,
inasmuch as it includes four steps or instances, which necessarily have to be fulfilled in
language acquisition as well as in it's basic human inner reception and processing, in a dynamic
transforming way from sign-sense-meaning-significance; having reached those views as a result
of his theory of perception, which took into account all the findings of the Gestalt theory in
psychology of the initial three decades of the 20th century.
In this article a certain number of Saussure‟s linguistic concepts are argued against, for
various reasons; being those consepts of his justifiably related to his outdated cartesianism and
to his positivismo (in the most negative sense of the term), probably because unfortunately
Saussure was faithful to Auguste Comte and to his ideas; thus his work remained limited to
being a natural history while it could have reached higher and have succeeded to be a true
natural philosophy, in the sense that Noam Chomsky&Morris Halle (1966) have assigned to
these expressions.

KEYWORDS:
deductive analysis; logic layers; disguised definition; phenomenology; metaphysics of language;
perception.

1. – Introdução – Generalidades sobre o âmbito deste


trabalho e sobre
a Justificação do seu Interesse.

Num breve ensaio de revisão das ideias de uns poucos autores que, para maior

facilidade de referência, podem ser descritos como filósofos da ciência, Frederick

Copleston (1975) diz-nos o seguinte:

Um nome bem conhecido neste grupo é o de Jules Henri Poincaré (1845 –


1912) [primo de Raymond Poincaré que foi Presidente da República Francesa]. (…)
No seu livro “ La Valeur de la Science”, de 1905, Poincaré objeta, contra a noção de
ciência apresentada por Édouard Le Roy, noção essa a que Poincaré chama
“nominalista”, que as leis da ciência não são simplesmente como as regras de um
jogo que podem ser alteradas por comum acordo de tal maneira que as novas regras
sirvam tão bem quanto as velhas. Poder-se-ia, é claro, construir um conjunto de regras
que não servissem o seu propósito por serem mutuamente incompatíveis. Mas, à parte
disso, não se pode com propriedade afirmar acerca das regras de um jogo que elas são
validadas ou invalidadas, enquanto que as leis empíricas da ciência são regras que
regem a ação, na medida em que permitem fazer previsões, e as previsões são
suscetíveis de invalidação. Por outras palavras, as hipóteses empíricas não são
simplesmente convenções ou pseudo-definições: elas têm um valor cognitivo. E embora
a certeza absoluta não seja atingível, na medida em que uma generalização
empírica é sempre revisível, em princípio, a ciência, pelo menos em certos casos, atinge
um alto grau de probabilidade.
(…)
O uso da linguagem por Poincaré [in “ La Science et l‟ Hipothèse” (1902)] é
por vezes suscetível de ser questionado. Por exemplo, ao fazer a distinção entre

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diferentes tipos de hipóteses, inclui nesses tipos o das pseudo-definições, as quais,
segundo ele, se encontram principalmente na matemática e na física teórica. E,
obviamente, pode-se argumentar que ele deveria reservar o nome „hipóteses‟ para as
hipóteses empíricas, que são suscetíveis de invalidação. Seja como for, é perfeitamente
claro que, para Poincaré, as ciências naturais podem incrementar o nosso
conhecimento, e que este incremento é conseguido através da testagem das
generalizações empíricas que permitem fazer previsões (ou que têm valor preditivo). É
verdade que ele considera alguns enunciados empíricos das ciências naturais como
decomponíveis em: um princípio ou convenção mais uma lei provisória; quer dizer,
equivalentes a uma hipótese empírica, que é revisível, em princípio. Mas o mero
facto de [Poincaré] fazer esta distinção, demonstra que ele não considera que a
ciência consista simplesmente em princípios, no sentido de convenções, ou de pseudo-
-definições. O convencionalismo, por conseguinte, é apenas um elemento na sua
filosofia da ciência.
(…)
Contudo, embora a ciência assente em pressuposições, não obstante ela visa
alcançar a verdade.
Frederick Copleston. 1975.
Chapter XIII. Philosophy of Science. In Part III. From Bergson to Sartre.
In Volume IX. Maine de Biran to Sartre. A History of Philosophy: 271 – 273.

Segundo Poincaré, em La Valeur da la Science: 220, “Na minha opinião, é o

conhecimento que é a meta, e a ação que é o meio de o atingir.”

E o que se passa com a Linguística como Ciência? Várias atitudes,

correspondendo a abordagens fundamentalmente distintas, se têm sucedido ao longo de

milénios, no que respeita ao estudo das linguagens humanas.

Será a Linguística mais uma das ciências naturais ? A par com e sucedendo-se

à Física através da Acústica? A par com e sucedendo-se à Acústica através da

Fonologia? A par com e sucedendo-se à Biologia através da Psicologia? A par com e

sucedendo-se à Neurologia através das Ciências Cognitivas? A par com e sucedendo-se

à Paleontologia através da Linguística Diacrónica? A par com e sucedendo-se à História

através da Antropologia? A par com e sucedendo-se à Antropologia através da Socio-

-Linguística? A par com e sucedendo-se à Arqueologia através da Paleontografia? A par

com e sucedendo-se à Paleontografia através da Etimologia?

Segundo Noam Chomsky, na sua obra Cartesian Linguistics: A Chapter in the

History of Rationalist Thought, em 1966 ainda se discutiam várias questões

profundamente difíceis implicadas numa ambicionada elevação da investigação

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linguística do nível de uma “história natural” ao de uma “filosofia natural”. Em

Portugal, no virar da primeira para a segunda década do século XXI, a Linguística e os

Linguistas encontram-se ainda em situação e problemática semelhante. Sendo o livro

acima referido o primeiro de uma série designada „Studies in Language‟, diz o Prefácio

que anuncia essa Série:

O propósito desta série de estudos, (…) é o de aprofundar a nossa compreensão


da natureza da linguagem e dos processos e estruturas mentais que são subjacentes ao
seu uso e aquisição.
Noam Chomsky & Morris Halle
In Cartesian Linguistics: A Chapter in the History of Rationalist Thought: ix.

Logo aqui ficam óbvios vários âmbitos para muitas questões:

1 – Qual a natureza da linguagem ?

2 – Quais as formas de descrever o uso da linguagem, suas lógicas, suas

estruturas, e seus valores ?

3 – Quais estruturas de organização mental pressupõe o uso da linguagem ?

4 – Quais os enquadramentos teóricos e históricos para as várias abordagens no

estudo da linguagem e quais as mais apropriadas ?

Neste ponto, útil e necessário se torna voltar a Copleston (1975), que diz,

continuando a descrever a História das ideias dos filósofos da Ciência:

A ciência, para Poincaré, procura alcançar a verdade acerca do mundo.


Apoia-se, de facto, em conjeturas e hipóteses, sendo as mais básicas de entre essas as
de unidade e simplicidade da Natureza. Quer dizer, parte do pressuposto de que as
partes do Universo estão inter-relacionadas de maneira análoga àquela pela qual os
órgãos de um corpo vivo estão inter-relacionados. E a simplicidade da Natureza é uma
pressuposição, pelo menos no sentido em que, se duas ou mais generalizações são
possíveis, de modo a que tenhamos de escolher entre elas, „a escolha apenas pode ser
guiada por considerações de simplicidade‟ (La Science et l‟ Hypothèse – 1902).
(…)
O conhecimento que nós obtemos através da ciência é o conhecimento das
relações entre as coisas. (…) para ele [Poincaré] a ciência diz-nos da relações entre as
coisas e não das naturezas internas das coisas. (…)
(…)
Vimos que, segundo Poincaré, a ciência está relacionada não com a natureza
das coisas nelas mesmas mas com as relações entre as coisas tal como elas nos
aparecem a nós (…). A mesma espécie de ponto de vista foi proposta por Pierre
Maurice Marie Duhem (1861 – 1916), que era, ao mesmo tempo, físico teórico, filósofo,

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e distinto historiador da ciência. (…) Na opinião de Duhem, o estudo de história da
ciência não será simplesmente um luxo da erudição, por assim dizer, que poderia ser
negligenciado, sem detrimento para qualquer estudo que se queira fazer sobre
problemas científicos efetivos. Segundo a visão que ele tinha deste assunto, não se
poderia compreender completamente uma teoria ou conceito científico sem o
conhecimento sobre as suas origens e desenvolvimento, e sobre os problemas que ela
pretende resolver.
Um dos principais objetivos de Duhem é tornar clara a separação teórica entre
física e metafísica. O metafísico, na opinião de Duhem, trata da explicação, de explicar
o ser, „de despir a realidade das aparências que a cobrem como um véu, a fim de ver a
própria realidade sem disfarces‟. (1906. La Théorie physyque, son objet et sa structure:
:7). (…) Duhem e Poincaré como que se unem a uma só voz, quando insistem em que
aquilo que sabemos são as relações entre fenómenos tangíveis. (…)
Duhem tem consciência, é claro, que as teorias científicas permitem as
previsões. Nós podemos „extrair algumas consequências que não correspondem a
nenhuma das leis experimentais anteriormente conhecidas, e que, simplesmente,
representam [novas] leis experimentais possíveis‟. (La Théorie physique: 28) Algumas
destas consequências são testáveis empiricamente. E, se forem validadas, o valor da
teoria é aumentado. Se, porém, uma previsão que representa uma conclusão legítima
de uma teoria for invalidada, isto mostra que a teoria tem de ser modificada, se não
mesmo abandonada completamente. Por outro lado, se supusermos verdadeira uma
dada hipótese e por isso deduzirmos que, com base nessa pressuposição, um certo
evento deverá ocorrer em certas circunstâncias, a efetiva ocorrência do evento nessas
circunstâncias não prova a verdade da hipótese. Porque essa mesma conclusão,
nomeadamente de que, em certas circunstâncias, um certo evento deverá ocorrer,
poderia também ser deduzível de uma hipótese diferente. No entanto, se o evento que
deveria ocorrer não ocorre, isso mostra que a hipótese é falsa ou que ela se encontra
em carência de ser revista. Por conseguinte, se deixarmos de fora de apreciação outras
razões para mudar ou para modificar teorias, tais como considerações quanto a maior
simplicidade ou quanto a maior economia [formal], podemos dizer que a ciência
avança através da eliminação de hipóteses, mais do que através da verificação no
sentido forte do termo. Uma hipótese científica pode ser conclusivamente invalidada e
por isso eliminada, mas não pode ser provada conclusivamente. (…)
Embora Duhem concorde com Poincaré em numerosas questões, recusa-se a
admitir que existam hipóteses científicas que se encontrem fora do alcance da
refutação experimental, e que tenham que ser consideradas como definições que
permanecem imunes a toda a verificação experimental. Existem de facto hipóteses que,
se tomadas isoladamente, não têm „significado experimental‟ (La Théorie
physique:215), e que não podem, por consequência, ser diretamente confirmadas ou
invalidadas através da experimentação. Mas estas hipóteses, de facto, não existem
isoladamente. Constituem o fundamento de teorias amplamente disseminadas (…); e é
sempre possível que as consequências do sistema como um todo sejam sujeitas à
refutação experimental em tal escala, que o sistema por inteiro se desmorone,
juntamente com aquelas hipóteses básicas que, se consideradas isoladamente, não
podem ser refutadas diretamente.
Frederick Copleston. 1975.
Chapter XIII. Philosophy of Science. In Part III. From Bergson to Sartre.
In Volume IX. Maine de Biran to Sartre. A History of Philosophy: 273 – 277.

Um exemplo deste último tipo de fenómeno, na minha opinião, encontra-se

relativamente à noção linguística Saussuriana de linearidade da linguagem. Saussure,

talvez exagerando as suas competências, ou talvez não tendo o cuidado suficiente com a

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terminologia que empregou, foi induzido em erro, na medida em que aquilo que

observou, efetivamente se desenrola sequencialmente. Mas faltou-lhe transcender a

mera aparência do fenómeno da linguagem, que efetivamente é constituído por

sequências de sons, e por sequência de letras e de palavras, que simbolizam e agrupam

esses sons. A linguagem escrita, também ela, é constituída por sequências de palavras,

mas nem por isso pode ser considerada linear. Umas palavras têm por assim dizer,

preponderância ou força ou valor lógico superior a algumas outras. Nisto, de facto

Saussure demonstrou estar a ensaiar fazer uma incipiente história natural das línguas, e

não uma verdadeira filosofia natural. Tampouco se pode dizer que Saussure estivesse a

fazer ciência linguística. Ou, não conheceria ele o verdadeiro significado lógico e

matemático da palavra e do conceito de linearidade?

Teve isto como consequência que os linguistas que primeiramente orientaram os

programadores de software informático para a produção de tradução maquinal, por

tecnologias computacionais, sendo Saussurianos de formação, os instruíram a criar, a

partir de um texto de uma língua, e gerando palavra a palavra, um pretendido texto

equivalente numa outra língua. Os resultados foram mais do que medíocres. Para uma

qualquer frase mais extensa, ou mais complexa, não era possível obter tradução correta,

e então, no caso de um qualquer texto mais rico, ou mais extenso, ou mais complexo, os

resultados podem mesmo ser considerados catastróficos.

Só pelas razões acima apontadas, a Teoria Linguística de Saussure, uma teoria

amplamente disseminada, mereceria ser considerada como invalidada diretamente

através da experimentação. Isto porque a chamada linearidade da linguagem, uma

hipótese científica de Saussure, que ele considerava não ter significado experimental no

sentido que a expressão adquire com Duhem, era, na verdade, apenas isso – uma

hipótese – e uma hipótese entretanto invalidada, durante as últimas décadas do século

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XX. E, no entanto, aparecia na Linguística Saussuriana como uma DEFINIÇÃO – uma

hipótese mascarada de definição.

E nem assim a Teoria Linguística de Saussure se desmoronou. Persiste ainda, na

chamada Escola Estruturalista da Linguística. Veremos ainda quantos atrasos e

insucessos, quantos prejuízos, essa linha de investigação linguística herdeira de

Saussure, virá ainda a causar ao progresso humano e ao alargamento dos horizontes do

conhecimento humano.

Vejamos ainda e novamente o texto de Copleston (1975):

Segundo Duhem, a sua interpretação da física é „positivista nas suas


conclusões, bem como nas suas origens‟. (La Théorie physique:275). (…) Ele trata de
marcar uma distinção nítida entre física e metafísica, e não de condenar esta última. Se
se pode de facto estabelecer uma tão rígida distinção como Duhem tinha em mente ou
não, isso é, sem dúvida, suscetível de discussão. Mas é obviamente verdade que a
ciência tem desenvolvido progressivamente a sua autonomia; (…). De qualquer modo
Duhem não é um anti-metafísico. (…)
É evidente um certo grau de afinidade com as ideias de Poincaré e Duhem por
parte da filosofia da ciência de Gaston Milhaud (1858-1918). (…) no seu Éssai sur les
conditions et les limites de la certitude logique, de 1894, Milhaud defende que aquilo
que nós sabemos das coisas são as sensações que elas despertam em nós. Ao mesmo
tempo, coincide com Poincaré e com Duhem ao realçar o valor da atividade da mente
quando reflete sobre a experiência e quando desenvolve hipóteses científicas. Milhaud
inclina-se menos a falar sobre convenções; mas insiste, na sua obra Le Rationnel, de
1898, na espontaneidade da razão humana.
Porém, enquanto Duhem se apressava a reivindicar que a sua ideia de ciência
era positivista, com o fim de marcar uma clara distinção entre ciências naturais e
metafísica, Milhaud chama a atenção para as falhas do positivismo, pelo qual se queria
referir às ideias de Auguste Comte em particular. Por exemplo, na introdução à sua
obra Les Philosophes Geomètres de la Grèce, de 1900, ele alude à maneira,
ingenuamente confiante, como Comte tinha enveredado pelo empreendimento de
atribuir limites precisos aos quais o conhecimento podia chegar, e, em relação a este
último, como Comte rejeitava à partida a possibilidade de poder existir qualquer
tentativa capaz de obter com sucesso uma mudança radical nas teorias científicas
vigentes. (…) Segundo [Comte] a ciência tinha já chegado se não ao termo final do seu
avanço, de qualquer modo ao estado de consolidação no qual nenhumas posteriores
transformações radicais seriam de prever, no qual os conceitos fundamentais já tinham
sido definitivamente fixados, e no qual novos conceitos não podiam diferir muito dos
velhos. (Gaston Milhaud. 1906. Études sur la pensée scientifique chez les grecqs et chez
les modernes:230). No entanto, não podemos estabelecer desta maneira limites para a
criatividade da mente humana.
A princípio, Milhaud fez uma distinção muito marcada entre a matemática
pura, que assenta sobre o princípio da não-contradição, e a ciência empírica. Mas logo
a seguir passou a enfatizar o elemento de decisão racional que está presente em todos
os ramos da ciência. Não tinha, na verdade, nenhuma intenção de sugerir que as
hipóteses científicas são construções puramente arbitrárias. Via-as se basearem na ou
sugeridas pela experiência, e como construídas de modo a satisfazerem as exigências

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lógicas de consistência e também os requisitos práticos e estéticos. Mas recusava
admitir que as teorias científicas eram decorrências necessárias da lógica ou da
experiência. Elas expressam a criatividade da mente humana, embora esta atividade
criativa seja guiada na ciência pela decisão racional e não pelo capricho. Além disso,
não podemos nunca dizer que o conhecimento científico atingiu a sua forma final. Não
podemos à partida excluir as transformações radicais. (…) Se considerarmos o
positivismo Comteano como representando o terceiro estadio do pensamento humano,
temos que acrescentar que este estadio tem de ser transcendido, uma vez que constitui
um obstáculo à atividade criativa da mente. (Gaston Milhaud. 1902. Le positivisme et le
progrès de l‟esprit).
Vimos que Duhem fez uma clara distinção entre ciência por um lado, e a
metafísica ou ontologia, por outro. Uma visão um tanto diferente da natureza da
ciência foi a que apresentou Émile Meyerson (1859-1933). (…)
Em primeiro lugar Meyerson opõe-se fortemente à visão positivista da ciência
que a considera como a simplesmente tratar de previsões e do controlo da ação.
Segundo o positivista, a ciência formula leis que representam as relações entre
fenómenos ou entre aparências tangíveis, leis que nos habilitam a fazer previsões, e
assim servem à ação e ao nosso controlo sobre os fenómenos. Porém, embora
Meyerson não queira negar que a ciência de facto nos capacita a prever, e a ampliar a
nossa área de controlo, recusa-se a admitir que seja esse o fim fundamental ou o ideal
operativo da ciência. Não é exato dizer que a ciência tem a ação como seu único alvo,
nem que ela é governada unicamente pelo desejo de economia nessa ação. A ciência
também busca fazer-nos compreender a Natureza. Ela tende de facto, na expressão do
Senhor Le Roy, à progressiva racionalização do real. (Émile Meyerson. 1908. Identité
et Realité: 438) A ciência firma-se na pressuposição de que a realidade é inteligível; e
tem a esperança de que esta inteligibilidade se torne cada vez mais manifesta. O
esforço, a atividade, e a motivação da mente para a compreensão, é o que está na base
de toda a investigação e pesquisa científica. É, portanto, um erro seguir Francis Bacon,
Hobbes e Comte ao definirem a meta da ciência simplesmente em termos de previsão
com vista à ação. A teoria positivista baseia-se, no fundo, num palpável erro em
psicologia. (Émile Meyerson. 1927. De l‟explication dans les sciences: 45).

2. – Em 1945 surge o primeiro autor a contradizer implícita


e explicitamente Ferdinand de Saussure
– Maurice Merleau-Ponty e a sua Fenomenologia

Nascido em 1908 na província francesa da Charente-Maritime, Maurice

Merleau-Ponty é um intelectual de referência ainda para os nossos dias, tanto quanto o

foi na França da sua época. Filósofo, crítico literário, crítico estético, crítico político, os

seus ensaios sobre História contemporânea e sobre Ciência Política são de inestimável

valor e ainda muito relevantes para quem atualmente estuda aprofundadamente esses

temas.

Veremos em que medida o que ele escreveu na sua obra Fenomenologia da

Perceção (1945), será relevante para os estudos linguísticos.

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Antigo aluno da Escola Normal Superior em Paris, Maurice Merleau-Ponty foi

Professor Agregado de Filosofia e Doutorado em Letras. Mestre Conferencista na

Sorbonne e Professor na Faculdade de Letras de Lyon, de 1949 a 1952, foi Professor no

Colégio de França de 1952 a 1961. Morreu precocemente nesse ano, em Paris, num

brutal acidente. Tinha apenas 52 anos de idade.

Para Merleau-Ponty, a Ciência válida será apenas todo aquele universo de

conhecimentos que for construído sobre a nossa vivência do mundo. Tudo o que se pode

saber do mundo, sabe-se a partir de uma visão individual. Sem a experiência individual

do mundo, os símbolos da Ciência nada significariam.

Para Merleau-Ponty – e isto, segundo ele, é o que pretende a Fenomenologia e

aquilo em que consiste – antes de se fazer Ciência, há que descrever as vivências

individuais do ser humano. Só posteriormente se poderá analisá-las e explicá-las. Por

isso insiste em defender, como primeira tarefa da Fenomenologia, a de ser uma

“psicologia descritiva”. Nisto, concorda com a posição de Husserl, porque, para

apreciarmos com exatidão o significado e o alcance da Ciência, é-nos necessário

despertar primeiramente a nossa consciência de como experienciamos o mundo.

Portanto, para este autor, o que explica a Ciência e, mais ainda, o que determina

a Ciência, é a nossa perceção do Mundo.

Segundo Fernando Belo (1987), duas atitudes fundamentais se jogam na tradição

filosófica greco-europeia em relação à linguagem corrente ou quotidiana e à linguagem

poético-narrativa. A primeira é ilustrada pelos nomes de Platão, Descartes e Kant: a

linguagem corrente não é adequada para o conhecimento filosófico, como é a tese do

Crátilo, a que o desinteresse de Descartes e Kant por uma teorização filosófica da

linguagem fará eco; correlativamente, no primeiro a poesia é excluída da República a

que o Filósofo presidirá, e a literatura terá o estatuto do que sobra à Filosofia no último.

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A segunda atitude será nomeadamente a dos filósofos que se opõem claramente a estes

três grandes, respetivamente Aristóteles, Locke, e Hegel: a linguagem como que deverá

ser “domesticada” pela definição monossemizadora, unívoca, instrumentalizada como

um “organon”, em ordem a permitir uma lógica como arte do raciocínio silogístico, bem

como as ciências como “línguas bem feitas”.

Maurice Merleau-Ponty, com o seu pensamento original e muito peculiar, como

veremos, tem uma atitude que não cabe em nenhuma das duas classificações anteriores

propostas pelo nosso filósofo e co-cidadão.

Merleau-Ponty interessa-se por pensar a linguagem e teorizar sobre a linguagem,

no que discorda de Descartes e Kant, mas utiliza a linguagem corrente nos seus ensaios,

que são, muito tipicamente, argumentativos e bem ao estilo de Platão, praticando a arte

Retórica magistralmente. Para provar as suas teses, parte da refutação das teorias e

conceitos contrários, e quanto a isso revelando um completo domínio da dialética

Platónica.

Por outro lado, se bem que grande parte dos seus ensaios se ocupem de definir

inequivocamente o significado lógico de termos e conceitos que lhe são fundamentais,

como perceção, atenção, memória, sentido, consciência, inter-subjectividade, vivência,

e justificando a sua recusa de outros, como por exemplo a de sensação e a de

fisiológico, distancia-se da segunda categoria de filósofos, pois não acredita na

linguagem “domesticada”; tampouco acredita que a ciência não se possa fazer valer da

linguagem do quotidiano.

Também segundo Fernando Belo (1991), o trabalho de todos os Filósofos em

todas as épocas, das mais recuadas até aos dias de hoje, tem-se desenvolvido segundo

três vetores distintos, fundamentalmente. São eles: 1 – o vetor lógico; 2 – o vetor

matemático; 3 – o vetor histórico; sendo esses os três tipos fundamentais de trabalho

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gnosiológico ocidental.

Marx, Nietzche, Freud, Heidegger e Derrida relevam do histórico, com

convergências e irredutibilidades entre si. O vetor matemático foi e é trabalhado por

todos os que se dedicam às ciências modernas que, desde Galileu e Newton, utilizam a

matemática e a mensuração como linguagem e operação decisivas. Quanto ao vetor

lógico, relevam dele dominantemente todos os textos da tradição filosófica que se

iniciou com Sócrates, Platão e Aristóteles, que passa por Kant e Hegel, e vem até

Husserl.

Maurice Merleau-Ponty, não sendo ateu, foi, no entanto, marxista. Um marxista

crítico, que considerava poder a teoria marxista fornecer, nos seus próprios princípios e

conteúdos, os instrumentos que permitiriam a sua própria crítica e renovação. O mesmo

Merleau-Ponty, crente num Deus e dedicado à elaboração de uma Fenomenologia do

espírito, era no entanto materialista, na medida em que centrava no corpo o

conhecimento. Para ele o eu reside no corpo e, um e outro, no mundo. Para ele, um

materialista, o corpo no mundo e um eu votado ao mundo, implicavam que se teria que

considerar o conhecimento como um fenómeno de transcendência. Uma transcendência

concreta, uma vez que o eu apreendia o outro, uma vez que o eu podia tocar o outro,

pela linguagem e por outras formas de expressão, por força da sua intencionalidade.

O trabalho filosófico e a epistemologia de Merleau-Ponty relevam portanto do

vetor histórico da gnosiologia ocidental, na esteira de Hegel, de Marx, de Husserl, e de

todos os autores da psicologia Gestalt.

Vejamos o que ele escreve no primeiro capítulo da I Parte da sua Fenomenologia

da Perceção, intitulado Os Preconceitos Clássicos e o Regresso aos Fenómenos,

publicado em 1945, a sua segunda obra, pois que precedida pelo livro de 1942 A

Estrutura do Comportamento.

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Ao iniciar o estudo da perceção, deparamo-nos, pela linguagem terminológica
inerente, com a noção de sensação, que parece imediata e clara: sinto vermelho, sinto
azul, sinto calor, sinto frio. Vai-se ver, no entanto, que essa noção é a mais confusa que
existe, e que, para a terem admitido, as análises clássicas esqueceram-se do fenómeno
da perceção.
Poderia começar por definir sensação como a maneira pela qual sou afetado e
como a constatação de um estado de mim-mesmo. O cinzento dos olhos cerrados que
me rodeia sem distância, os sons da semi-vigília que vibram “na minha cabeça”,
indicariam aquilo que se poderia considerar como o sentir puro. Sentiria, na exata
medida em que eu pudesse coincidir com aquilo que sinto, na medida em que o que eu
sinto deixa de ter lugar no objetivo, e quando o que eu sinto não significa nada para
mim. Isto equivale a conceder que se deveria procurar a sensação fora (e antes) de todo
e qualquer conteúdo qualificado, uma vez que o vermelho e o verde, para se
distinguirem um do outro como duas cores diferentes, devem já ter-se constituído como
quadro perante mim, mesmo sem localização precisa, e cessam portanto de ser eu-
mesmo. A sensação pura será a vivência de um “choque” indiferenciado, instantâneo e
pontual. Não é necessário demonstrar, uma vez que os autores quanto a isto estão de
acordo, que esta noção de sensação não corresponde a nada de que tenhamos tido a
experiência, e que as perceções factuais mais simples que conhecemos, entre animais
como o macaco e a galinha, repousam sobre relações, e não sobre termos absolutos.
Mas fica a faltar nos interrogarmos sobre por que razão nos julgamos autorizados
legitimamente a distinguir, na experiência percetiva, uma camada de “impressões” .
Maurice Merleau-Ponty. 1945.
Introduction – Les Préjugés Classiques Et Le Retour aux Phénomènes
Chapitre I. - La “Sensation” - Phénomenologie de la Perception : 9

Fundamentando-se nos trabalhos de Psicologia de Wertheimer, a partir de 1912,

seguidos dos de Koehler, de 1913, e logo a seguir de Koffka, a partir de 1922, bem

como de Werner, também a partir desse ano, e também de Hering, de Jaensch, de Gelb,

1926 e 1927, de Stein, de 1928, bem como de Scheller, nesses mesmos três últimos anos

mencionados, até Guillaume e a sua obra A Objetividade em Psicologia , de 1932,

Maurice Merleau-Ponty sabia do que falava.

Repare-se como, mais adiante, Merleau-Ponty clarifica melhor o seu

pensamento: parafraseando-o: A teoria da sensação, que compõe todo o saber por meio

de qualidades determinadas, pretende elaborar, para nosso espanto, objetos limpos de

todo e qualquer equívoco, puros, absolutos, que, mais do que seus temas efetivos, são o

ideal do conhecimento, e apenas apresenta uma explicação de certo modo adequada à

super-estrutura tardia da consciência.

E ainda Merleu-Ponty: “A palavra indica apenas uma direção e não uma função

12
primitiva.”

Sobre conjuntos sequenciais e temporais com extensão espacial e/ou grandeza e

intensidade tangíveis, e dados em “camadas” percetíveis, recai a nossa atenção. E,

assim, penetram a nossa consciência vigilante, genérica, são por ela filtrados, no sentido

de identificados, e remetidos a um nível ainda superior de consciência e aí tratados num

módulo mais central, o da capacidade analítica e crítica, daí resultando um conteúdo já

com sentido, embora equívoco, daquilo a que Merleau-Ponty chama “domínio pré-

-objetivo da perceção”. Aí existem imagens e fantasmas. Nessa medida, nós fabricamos

a perceção com o que é apercebido. É o trabalho analítico que descobre em cada

qualidade do tangível as significações que a habitam. Também todas as qualidades do

tangível são objetos para a consciência, e não objetos da consciência. Sobre elas são

depois exercidas atividades associativas, de comparação de memórias, de comparação

com resultados da aprendizagem, de inserção em contextos, de adesão de conteúdos

emocionais e/ou afetivos, de interesse ou de desinteresse.

Tampouco se pode considerar a qualidade do tangível como uma impressão

“muda”, pois, pelo contrário, ela tem sempre um sentido. Esse sentido e esse objeto, já

no domínio pré-objetivo da perceção, ao nível da qualidade, nem são completos nem

determinados. Pelo contrário, são vagos e indeterminados quanto às suas qualidades.

Aqui reside a genialidade e a originalidade de Merleau-Ponty. Ele aponta para a

necessidade de reconhecer o indeterminado como um fenómeno positivo.

É nesta atmosfera que se apresenta a qualidade. O sentido que ela encerra é um

valor expressivo e não se trata ainda de uma significação lógica. A qualidade

determinada, pela qual o empirismo quis definir a sensação, é um objeto, não um

elemento, da consciência.

E aí volta, para ser tratado por mais um nível ainda superior, ou se quisermos,

13
por um módulo ainda mais central. Aquilo a que Merleau-Ponty chama consciência

científica. Nele, mais do que o fruto de uma educação ou de um trabalho de elaboração

racional sobre dados da experiência, uma verdadeira capacidade inata dos seres

humanos.

Por tudo o que ficou dito, e que espero ter ficado suficientemente claro,

Merleau-Ponty discorda de Saussure em vários pontos importantes. Na verdade, mais do

que discordar, Merleau-Ponty opõe-se a, e contradiz Saussure, quanto ao estudo da

linguagem. Primeiro que tudo quanto ao método. Acusa Saussure de utilizar um método

meramente reflexivo, de nem sequer utilizar a análise nem a indução. A esse método

reflexivo Merleau-Ponty opõe o seu método fenomenológico.

Em segundo lugar discorda de Saussure quando ele diz que a linguagem

apresenta uma linearidade. Merleau-Ponty diz que, em termos lógicos, a linguagem

contém camadas, umas integradoras outras integrantes, com relações complexas entre

si, umas determinadoras e outras determinadas, quanto à sua potência significante, como

quanto à abrangência do seu contexto significativo, e ainda quanto à força com que

influenciam o significado umas das outras, ou não.

Em terceiro lugar, discorda de Saussure quanto à separação ou dualidade

sincronia/diacronia. Merleu-Ponty considera que tal bifurcação nos estudos linguísticos

é redutora e falaciosa. E impossível no âmbito dos estudos semânticos, por exemplo.

Quanto à dualidade sintagma / paradigma Merleau-Ponty não se pronuncia, no

entanto o seu ceticismo relativamente à linguística tal como era praticada na sua época é

o que mais sobressai quando analisamos este problema. Já quanto à dualidade

significante / significado Merleau-Ponty discorda de Saussure também.

Na Fenomenologia impera uma dialética que, tal como Hegel magistralmente a

definiu, trata unificadamente o movimento espontâneo que se verifica entre os seus

14
patamares lógicos, ou elementos, ou instâncias. A dialética explica, descreve, e justifica

o valor lógico dessas instâncias e do tal movimento espontâneo entre elas.

Assim, a Fenomenologia da Perceção de Maurice Merleau-Ponty, quanto ao

problema signo-sentido-significado-significação, estabelece a sua descrição como um

movimento quaternário que, se a mensagem recebida o justifica, teria os seguintes

patamares ou instâncias: 1 – do mundo chegariam os signos da linguagem, que seriam

os tais conjuntos sequenciais, temporais, espaciais, tangíveis, e dados em camadas

percetíveis; 2 – a capacidade analítica e crítica da nossa consciência faria uma primeira

filtragem sumária, e a partir daí o signo passaria a significante com sentido equívoco,

como objeto para a consciência, e num domínio como que pré-cognitivo, o tal a que

Merlaeau-Ponty chamou Domínio Pré-Objetivo da Perceção; 3 – seguidamente, ele e o

seu contexto seriam tratados pela capacidade de perceção, comparada com dados da

memória, etc., e, de um estado com sentido equívoco, passaria a compor uma imagem

com significado vago e indeterminado; seria como que o terceiro patamar ou instância

da linguagem recebida; uma representação interna, como que um duplo, do signo

externo, já percebido como contendo sentido, e mais, já percebido como contendo

significado; 4 – o quarto patamar ou instância seria a significação, em que já todo o

significado lógico é apreendido pela consciência; segundo Merleau-Ponty, pela nossa

“consciência científica”.

3. – Conclusões

Poincaré (1905) coincide com Merleau-Ponty (1945) quando o primeiro afirma

que o conhecimento é a meta e a ação é o meio de a atingir, e o segundo que a fonte do

conhecimento são as vivências do eu no seu corpo, um corpo e um eu devotados ao

Mundo.

Também Poincaré (1902) e Merleau-Ponty (1945) coincidem fortemente quando

15
o primeiro chama a atenção para a existência de pseudo-definições, de hipóteses

empíricas mascaradas de definições, sendo este seu uso da linguagem um tanto peculiar,

como o é o de Merleau-Ponty (1945) ao recusar liminarmente o vocábulo e o conceito

de sensação, como uma pseudo-definição a priori, imposta pelos filósofos idealistas e

não passando de um ideal, forçando-nos a aceitá-la com pretensos argumentos

fisiológicos sem a fazer passar, como hipótese empírica, pelo nosso filtro racional de

análise dedutiva.

Consequentemente, também o conceito, na tradição cartesiana, de que não existe

encontro possível entre consciência e linguagem, não possuindo esta portanto

substância e sendo apenas forma, posição esta anterior a e mantida por Saussure, recai

também, segundo Maurice Merleau-Ponty (1988) na categoria de pseudo-definições,

uma mera hipótese empírica mascarada de definição.

No que concerne à Linguística, Merleau-Ponty (1988) (Lição na Sorbonne de

1949) também está de acordo com Poincaré (1902) quando este defende que as

hipóteses empíricas não são simplesmente ou convenções ou pseudo-definições, mas

que têm valor cognitivo. Daí que Merleu-Ponty (1988) critica Saussure por este

considerar que não existe qualquer laço interior entre consciência e linguagem, e a

linguagem, nesta perspetiva, relevar da ordem das coisas, e não da ordem do sujeito,

sendo por isso as palavras faladas ou escritas fenómenos físicos, um laço acidental,

fortuito e convencional, entre o sentido do vocábulo e o seu aspeto; pelo contrário,

Merleau-Ponty defendia, logo numa sua Lição de 1949, que a linguagem é uma

mensagem emitida com força de comunicação efetiva, e que portanto existe uma

potência intrínseca ao vocábulo. Segundo Merleau-Ponty, a perspetiva cartesiana de

Saussure chega, ao fim e ao cabo, a desvalorizar a linguagem, apenas a considerando

como roupagem da consciência, como revestimento do pensamento.

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O que não é verdade: a linguagem contribui para o pensamento, a potência do

vocábulo existe, o pensamento muito deve ao vocábulo, pois este, após universalizar,

particulariza, especifica as partes e complexidades, as inter-relações entre as partes nas

estruturas e nos fenómenos, e na dialética da Vida e do Mundo.

Pelo que sabemos de Merleau-Ponty, e uma vez que, logo no Avant-Propos da

sua Fenomenologia da Perceção, ele se posiciona como filósofo na esteira de Husserl,

praticando a Fenomenologia como Sistema de Conhecimento, poder-se-á dizer que

Merleau-Ponty (1945) concorda com Duhem (1906) quanto à existência de hipóteses

empíricas que não têm significado experimental – isto considerando logo à partida e

fundamentalmente as verdadeiras definições dos conceitos internos à Fenomenologia.

No entanto, Merleau-Ponty e Duhem distanciam-se no que concerne aos respetivos

conceitos de metafísica, uma vez que, como Filosofia, a Fenomenologia tem noções

ontológicas, acerca do Ser, acerca da Essência, e acerca da Subjetividade, que lhe são

muito próprias, e opera com o conceito de transcendência, pelo que tem uma Metafísica

própria, desconhecida (porque ainda incriada, ao seu tempo) por Duhem.

4. – O Estado da Arte

Necessário se torna para as Ciências da Linguagem, aí incluída a Linguística

com todas as suas sub-disciplinas que se encontrem a formulação de um novo Sistema

do Saber, que diminua as divisões internas de quem se dedica a trabalhos que têm por

campo central a linguagem humana, e favoreça o surgimento de um vocabulário

consensual que revele a ultrapassagem das vicissitudes históricas a que o crescimento

deste novo terreno científico esteve sujeito nos últimos dois ou três séculos. Penso que o

trabalho de Alexandre Kojève, a partir da Lógica de Hegel, por sua vez apoiado no

trabalho anterior de Alexandre Koyré, e continuado na atualidade por Bernard Hesbois e

outros, serão a ter em conta.

17
O facto primordial para o discurso filosófico, é o próprio facto do discurso.
Falar como filósofo, é falar de tudo o que se fala tendo em conta o facto de e
compreendendo que se fala do que se fala. Ou ainda: a filosofia é um discurso que fala
tanto da essência das coisas quanto do significado dos discursos que a ela se
“referem”, e que apenas o pode fazer falando de um “terceiro” que, nem sendo apenas
essência nem apenas significado, pode no entanto aparecer umas vezes como um,
outras vezes como outro: aquilo que Kojève, na esteira de Hegel, designa como
Conceito. (1973. Alexandre Kojève. La Philosophie hellénistique – Les Néo-
Platoniciens. In Éssai d‟une histoire raisonnée de la philosophie païenne – tome III :
:30).
Falar do Conceito como da unidade singular da essência e do significado, é
falar da verdade. E falar da verdade, é necessariamente falar do tempo. “Com efeito [a
verdade], no sentido próprio da palavra, é qualquer coisa que é reputada não poder ser
nem modificada nem negada: ela é válida “universal e necessariamente”, como se diz.
Quer dizer que ela não está sujeita à mudança; ela é, como também se diz: eterna ou
intemporal. Por outro lado, não há dúvida de que a encontramos num determinado
momento do tempo, e que ela existe no Mundo. A partir do momento em que se coloca
o problema da verdade, mesmo parcial, coloca-se portanto necessariamente o problema
do tempo, ou, mais especificamente, o da relação entre o tempo e o intemporal.” (1962.
A. Kojève. Introduction à la lecture de Hegel: 336). Ora, este problema apenas admite
um número finito de soluções. (obra citada: 337).
Excluamos à partida a solução heracliteana, aquela de todos os cepticismos e
de todos os relativismos. Nesta hipótese, o verdadeiro é exclusivamente temporário e,
por consequência, o discurso não passa de uma verborreia prolixa e difusa, sem fim,
onde é sempre possível e justificado contradizer, a um dado momento, aquilo que se
disse anteriormente. (…) O discurso filosófico torna-se, então, impossível. É por essa
razão que os filósofos acreditaram inicialmente poder salvar a verdade dizendo que ela
é a eternidade ou, pelo menos, eterna. É esta a tese parmenidiana, retomada, à sua
maneira, por Espinosa. Infelizmente, se a solução heracliteana do problema da verdade
conduzia o discurso à verborreia, a solução parmenidiana ou espinosista redu-lo ao
silêncio. Com efeito, se o Conceito é de uma natureza absolutamente outra e distinta da
do tempo do mundo onde vivem e falam os homens em geral e os filósofos em
particular, torna-se então rigorosamente impossível dar notícia da manifestação da
verdade nos discursos cronologicamente situados dos homens (…).
Se a história da filosofia começa com a identificação do Conceito com a
Eternidade, sabe-se que, segundo Kojève, ela acaba com a identificação “hegeliana”
do Conceito com o Tempo, não com o tempo indefinido do cosmos, nem com o tempo
cíclico da vida, mas com o tempo histórico, quer dizer com o tempo em que prima o
futuro. É porque se dá a si mesmo um fim que não está inscrito em nenhuma natureza,
que o homem se “destaca” do ser para o “conceber”. A história da filosofia aparece
assim, como a redução progressiva da transcendência do Conceito.
Bernard Hesbois (1990) In Présentation.
Kojève, A. 1990. Le Concept, Le Temps et Le Discours: 10 – 11.

Estamos presentemente, segundo Bernard Hesbois (1990), portanto, no termo

desse processo de maturação da Filosofia. É por isso que, embora com dificuldade, a

comunidade científica na Linguística, bem como a humanidade em geral, sobretudo

aquela parcela da humanidade que de dedica ao conhecimento, à difusão do

conhecimento, e à produção de conhecimento, tem agora de compreender que:

18
(…) o discurso filosófico compreende que não pode falar do Conceito sem se
contradizer, e portanto não pode apresentar o seu trabalho, a menos que diga que o
Conceito, que não é nem essência nem significado, se revela tornando-se essência
primeiro e significado em seguida. Dizendo de outro modo, o Conceito não é mais do
que o processo histórico da transformação do universo dos objetos em universo do
discurso (…). Discorrer, com efeito, é “romper o silêncio”: durante um certo tempo.
(…)
Segundo Kojève, o discurso filosófico apenas se desenvolve manifestando uma
triplicidade estrutural que aparece historicamente pela primeira vez com Platão. É que
Platão apercebeu-se de que, para poder falar sem se contradizer, era necessário expor
discursivamente não somente o caráter dado do ser comum a tudo aquilo que se revela
enquanto fenómeno na duração-extensão da Existência-empírica de que se fala, mas
também da realidade-objetiva destes fenómenos, na medida em que estes não só
diferem do Nada, como também se distinguem uns dos outros, opondo-se uns aos outros
de uma maneira irredutível. É assim que, na esteira de Platão, a filosofia completa o seu
discurso fenomenológico (que descreve o Mundo onde vivem os filósofos, que dele
falam falando também daquilo que dele dizem), já não apenas por meio de um discurso
onto-lógico (que diz o que é necessário dizer do Ser-dado enquanto tal, para poder falar
sem se contra-dizer daquilo que se diz da Existência-empírica no seu conjunto), como
também através de um discurso energo-lógico (que indica o que deve ser a Realidade-
-objetiva para que tudo aquilo de que se fala possa simultaneamente ser aquilo que se
diz e ser percebido (ou aparecer) tal como é dito (…) (Alexandre Kojève. 1972. Platon-
-Aristote. In Éssai d‟une Histoire raisonnée de la Philosophie Païenne . Tome II: 47).
Bernard Hesbois (1990) In Présentation.
Kojève, A. 1990. Le Concept, Le Temps et Le Discours: 12 - 13.

Contém 1 Anexo :
A Fenomenologia da Percepção segundo Maurice Merleau-Ponty.
Autoria: Fluxograma – José Manuel de Almeida Freitas
Design Gráfico – Marta Calejo
Realizado com recurso a aplicação „Free-Hand‟ em Dezembro 2010.

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__________________________

Disciplina de “Métodos e Técnicas de Pesquisa”, trabalho orientado por Prof. João


Veloso.

José Manuel de Almeida Freitas – Aluno 100731022 – Licenciatura em Ciências da


Linguagem.

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