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Março, 2003
EPÍGRAFE
(Marilena Chauí)
não vomitar”
(Richard Wagner)
DEDICATÓRIA
À meu outro grande amor, Júlia Campinho Retondar, presente divino que a
cada dia me mostra um pouco mais a ser gentil, tolerante e principalmente
orgulhoso de ter tido a oportunidade de ser seu pai.
À meu avô João Retondaro, que tantas vezes passeou comigo no colo em
noite de chuva para saciar um capricho de criança. Sem aquele colo querido hoje
talvez não pudesse falar com tanta intimidade do aconchego das casas de bingo.
Que Deus continue iluminando o seu caminho além vida.
À todos aqueles que entraram pela primeira vez numa casa de bingo e que
hoje têm muita dificuldade de sair dela. Saibam que em situação semelhante sem
encontram milhares de outras pessoas, tão dignas e distintas quanto vocês. O
caminho de saída é o mesmo da entrada. Refaze-lo é tarefa árdua e que
demanda sempre uma mão, real ou imaginária, porém, concreta na luta pela
superação da compulsão. Espero que este singelo trabalho possa lançar uma
nova luz para a compreensão do ato de jogar, mesmo sendo apenas uma centelha
de esperança, acredito que para muitos que estão no fundo do poço, bem como,
para àqueles que estão iniciando nos caminhos da paixão pelo jogo e não
acreditam que um dia poderão ser “sugados” pelos sentidos do ato de jogar, que
possam ler este trabalho não somente com os olhos.
AGRADECIMENTOS
À querida e adorável profa. Nilda, com quem aprendi a ser firme sem ser
indelicado, mas, acima de tudo forte, determinado. Sem suas valiosas indicações,
em especial Lefebvre e Dante, o trabalho não teria assumido este rumo: tradução
da mais lídima felicidade e realização. Estou concluindo um doutorado em
Educação Física e em Nilda Teves que me proporcionou uma formação primorosa
e acima de tudo humana.
Ao Prof. Tubino, que cada vez que o encontro, para mim é motivo de uma
grande festa. Pois quando Vice reitor da UGF, confiou em um menino recém
formado a tarefa de supervisionar a educação física de um grande colégio, onde
cresci muito estando ao lado de grandes profissionais e estando pela primeira
assumindo um cargo de extrema responsabilidade. Nunca esquecerei a
consideração e a oportunidade que me foi dada e que mudou minha vida. Muito
obrigado amigo Tubino. Sem falar, é claro, na sua inconteste contribuição no que
tange ao desenho do trabalho, principalmente ao orientar para que situasse o
bingo como esporte, componente da cultura física e relevante argumento da
inserção do estudo no campo da Educação Física. Só tenho a lhe agradecer.
RESUMO
CAPÍTUL I – INTRODUÇÃO..................................................................1
Metodologia
IMAGINÁRIO........................................................................................37
AMBIÊNCIA...........................................................................................95
Bingo
6.3 – Abstinência
Superação
INTRODUÇÃO
fazer compras, desejo sexual, utilizar o computador, fazer ginástica, jogar, enfim.
grupos de auto ajuda (Associações Anônimas) nos fornece pistas suficientes para
acreditar que este tema encontra-se na ordem do dia como objeto de preocupação
social.1
compulsivo além de não escolher sexo, raça, cultura ou classe social, promove um
profundo sofrimento humano podendo culminar em muitos casos com morte sem
que se tenha uma explicação definitiva sobre sua origem, tratamento e cura.
1
A primeira Irmandade de Jogadores Anônimas foi criada em 1957, em Los Angeles, Califórnia. De lá para
cá as Associações foram se expandido e aqui no Brasil existem grupos de Jogadores Anônimos no Rio de
1
Sabe-se entretanto que as Associações Anônimas possuem uma eficácia
culturais e imaginárias.
não seja um ideal de vida, mas uma prática constante de luta contra um mal
individual.2
Janeiro, Niterói, São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba. Inclusive há um Comitê Nacional de J.A que através
de boletins mensais via internet. Cf.site www.jogadoresanonimoscopa.homestead.com.br
2
Cf. Ethnologie des anciens alcooliques – la liberté ou la mort, de Sylvie Faizang.
2
A pesquisa supracitada, de caráter etnológico, nos mostra que as
se construir uma nova cultura, um novo modo de vida portador de ritos, mitos e
valores próprios.
consegue dialetizar com seus limites, ele perde o controle e adentra na dimensão
compulsiva.
nosso ver, não pode ser explicado e mesmo compreendido em sua totalidade por
produzir cientificamente uma única verdade. Até porque não há ciência isenta de
3
Acredito que não seja possível afirmar tacitamente que o comportamento
indivíduo e seu vício. E isto aponta para o fato de que o comportamento marginal
tensão que o jogador tem em relação a ele mesmo, isto é, ao tormento que o vício
ou patológico, até porque não existe uma concordância acadêmica sobre o que é
3
Para a discussão entre normal e patológico, recomendo a excelente leitura de Canguilhem (1982) onde o
autor, de maneira crítica e responsável, situa a discussão como um contínuo entre normalidade, anomalia e
patologia. No que diz respeito à discussão sobre o tema no campo da saúde pública no Brasil, sugiro a leitura
de Jurandir Freire Costa (1989 e 1999).
4
Meu objetivo é apontar com rigor alguns traços que percebo na realidade do
reflexão teórica que caminha na direção da saúde mental e que visa contribuir
estou trabalhando o desvio, mas antes a ambiência - que, para mim, se apresenta
pensamentos e atividades que a pessoa sabe que não fazem sentido, mas que
4
As casas de bingo da Cidade do Rio de Janeiro são reconhecidas pela Prefeitura como opção de lazer;
portanto, no site wwwriolazer.com.br encontramos 15 casas registradas na programação oficial de lazer da
cidade.
5
bingo na Cidade e no Estado do Rio de Janeiro se apresentam hoje como uma
casas de bingo da Cidade do Rio de Janeiro e num segundo momento será feito
lógica interna, seus signos e símbolos, suas disposições, cores e formas, enredam
que o espaço suscita. Pois o cenário, o ambiente, é parte integrante dos sentidos
cenário feito com um pano preto servindo de fundo, uma ou outra cadeira e atores
teatro – ou, quando muito, era um teatro sem sentido, pois, o teatro perdia seu
6
socialmente desenvolvido. Não é o meu propósito discutir se o homem nasce ou
não compulsivo, quais seriam os ímpetos inatos ou adquiridos. A minha tese é que
indivíduo para esta ou aquela direção, enquanto outros estudos indicam que em
dimensão individual também pode interferir, mas, se não houver ambiência, não
7
de objetos, até porque os objetos não são coisas, antes são produtos da
para o sujeito uma certa mensagem de caráter nitidamente utilitário, como, por
salão principal informando estar fechado para aquela rodada, a escada indicando
que o salão principal fica no segundo pavimento, etc. A ambiência radica no nível
da informação estética. E isto não significa dizer que a informação estética seja
somente a isto.
Não aceitamos a idéia de que a informação estética é inútil porque não tem
por objetivo preparar decisões ou atos. Se, por um lado, a materialidade estética
não se encontra obrigada a preparar decisões ou atos, por outro nada impede
que o faça. Pois a ambiência estética não se apresenta como um texto encerrado
8
como uma tecitura de signos, uma configuração de signos apresentando algo que
indizível, ainda que verificável. É no aconchego das cores, das figuras e das
formas que o jogador se sente acalentado pela poética do espaço. Lugar quente.
próprias, onde o indivíduo não aparece nem como átomo isolado nem como puro
como também não é mero “joguete” social, a sua situação enquanto sujeito se
9
mediação entre o Ser e o Dever Ser, onde o indivíduo, num dado momento,
aderido a outra, e intuitivamente caminhar numa outra, nem ele mesmo sendo
genética, ou apenas como um reflexo do meio do qual ele é parte orgânica, onde
possamos pensar a partir desta lógica uma consideração particular do lugar social
da consciência.
5
Marx (1975), em Formações econômicas pré-capitalistas, admite que a divisão social do trabalho é o
fundamento da luta de classes no interior da sociedade capitalista, pois esta se apresenta como o motor da
10
falta de solidariedade entre os homens, já que nesta lógica produtor e consumidor,
Nesse sentido, os conflitos sociais se dão por falta de normas morais, o que
socialmente.
de uma mudança brusca das relações sociais que não oferece tempo necessário
história. Já para Weber (1985), em A ética protestante e o espírito do capitalismo, a história esta submetida
aos interesses e aos valores produzidos pelos indivíduos em interação, daí dizer que o capitalismo é o
resultado da ação de agentes sociais puritanos que, de um lado, buscam realizar uma vocação e confirmar a
graça divina através do trabalho, e,de outro, não se utilizam dos bens que acumulam para seu prazer pessoal;
da contradição entre essas duas condutas – acumular bens e não os consumir- nasce o mundo industrial
moderno.
11
relações. Daí dizer que é da união das sociedades mais simples que se formarão
sociedade.
12
homogeneidade dos comportamentos sociais. Diferente da solidariedade orgânica,
estrutura social é a presença dos dois tipos de solidariedade, pois elas são
uma sociedade primitiva é visto como transgressão da norma que se estende para
que portanto deverá ser punido com a morte, uma vez que tal comportamento põe
6
Para exemplificar este pensamento, Durkheim emprega uma metáfora química: o bronze, que é um metal
duro, é feito de estanho e cobre, corpos moles e flexíveis. Assim, o bronze não é a soma de estanho e cobre,
mas uma unidade singular que nasceu da fusão de corpos diferentes, formando uma unidade nova.
13
no nível da solidariedade mecânica. No entanto, esta atitude coletiva não poderá
se repetir em nome de uma lei, de uma norma social legal que salvaguarde o
linchadores, ao fazerem justiça com as próprias mãos, poderão ser punidos, pois
ocorrência do suicídio são diversas, portanto, Durkheim (1973) nos diz que é
inclinação que cada uma manifesta em relação a tal comportamento: “Se a mulher
se mata muito menos do que o homem é porque está muito menos integrada na
vida coletiva do que ele; portanto, ressente-se muito menos intensamente da ação
14
fatalista ou anômico - isto significa dizer que tal comportamento só emergiu porque
coercitiva da sociedade que se abate a cima dele, isto é, exterior e superior à sua
ligada às tradições, à cristalização dos costumes, à força dos padrões, com pouca
dinâmica social.
realidade fixa e o seu lugar nesta. Não há lugar para mediação entre indivíduo e
atos.
Não há espaço para a via indireta, que é uma forma própria de consciência do real
que se utiliza de imagens para fazer representar aquilo que não foi possível ser
15
“visualizado” através da sensação, como, por exemplo, determinadas lembranças
muito mais uma deformidade moral, portanto, social, falha de algum segmento ao
qual pertence o indivíduo e que não está funcionando, do que qualquer outra
situação é considerada um fato social, porém está longe de ser um problema para
a sociedade.
e que, por algum motivo, não consegue suportar o “peso” de um erro, de uma
busca de uma realidade ficcional e fantasiosa que se encontra no jogo, mas que
16
Nessa perspectiva, o jogo se apresenta como “tábua de salvação”
vida. Portanto, diferente do que ocorre no suicídio, ele não sai totalmente do
socialmente e busca no jogo um alívio ainda que efêmero, na medida em que vai
adentrando no mundo do vício cada vez mais vai esgarçando as relações sociais.
com a sociedade, mas mesmo assim ele não pára de jogar. Será que o
tragédia humana?
São questões que não querem calar. Não procuro uma resposta definitiva
para elas, apenas pistas que possam me levar a construir argumentos para uma
17
O indivíduo, na perspectiva da sociologia durkheimiana, não existe
impele a agir em uma dada direção como condição necessária para o bom
O homem constrói a casa antes mesmo de tocar no martelo, pois ela já existe em
7
Diferente dos economistas clássicos, como Adam Smith e Ricardo, Marx vai dizer que consumir é criar
meios produtivos que retornarão à produção, isto é, produção- consum0 ao mesmo tempo. Pois para se
produzir um barco é preciso que se consuma prego, madeira, serrote... Assim, o que se consome produzindo é
a força de trabalho, a produção consumidora. O homem destituído dos meios de produção não cria sua
condição de existência. Resta-lhe vender sua força de trabalho como outra mercadoria qualquer, separando-se
de si mesmo para poder comer, morar... O indivíduo alienado no processo de produção não percebe a
totalidade do trabalho que realiza, elaborando fragmentos de idéias dessa relação fragmentada. Mas, além
18
trabalho capitalista exige um quantum de esforço e autonomia mínimas para
refinaria, o que não deixa de ser uma atividade que exige certa autonomia por
parte do indivíduo.
Com isso quero dizer que a alienação ou a liberdade pura são dois grandes
autônomo, criativo, pois dono dos meios de produção e produtor somente daquilo
disso, ele não tem acesso a parte do produto que ele ajuda a construir, ficando assim alienado “na” coisa e
“da” coisa produzida.
19
cultura que se manifesta através das representações coletivas influenciando
do indivíduo, como também acredito que as idéias produzidas por ele encontram-
trabalho. Mas, nem uma nem outra são capazes de determinar na totalidade o
ele diz que o homem estabelece uma relação dialética com o mundo,
influenciando e sendo influenciado por ele. O homem faz a história a partir das
condições objetivas que encontra no mundo. Mas não podemos também deixar de
dizer que esta direção pode ser vislumbrada apenas como hipótese, como
mundo.
20
Nesse sentido, as relações sociais são ao mesmo tempo estruturadas e
indivíduo que vive numa sociedade não necessariamente tem de ser escravo
que povoa o imaginário social e que possui significativa força no que diz respeito à
explicação do vício.
que são substâncias químicas que ocupam os espaços entre os neurônios. Estes
8
Cf. Iversen (1996); Astrand (1980); Stevens (1980); Kaplan et alii (1993) e Snyder (1986).
9
Stevens (1980), Astrand (1980) e Kaplan et alii (1997) nos mostram que cada célula nervosa se comunica
com as outras através de substâncias transmissoras localizadas nos seus próprios terminais, onde cada célula
produz bioquimicamente um determinado transmissor específico. Para que haja a conexão entre as células é
preciso então que o transmissor seja reconhecido bioquimicamente pelo receptor para se combinarem.
Existem mais de 50 neurotransmissores, entretanto apenas alguns, como a dopamina, são capazes de produzir
a dependência. A dopamina é um neurotransmissor que transmite prazer e euforia. Já a serotonina está
associada aos sentimentos de tristeza e de bem –estar; a noradrenalina, à excitação e à tensão.
21
Além da existência de receptores especializados a se associarem com
as pessoas que são acometidas pelo vício são em geral pessoas que nasceram
22
com carência genética de dopamina no cérebro, ou pessoas que possuem a
acaso, excitação permanente entre uma aposta e outra, seria capaz de produzir a
ordem provocada por substâncias exógenas que são consumidas pelo indivíduo e
de excitação e compulsão.
23
práticas como o álcool, o fumo, o jogo para obter sensações de prazer, euforia e
bem-estar.10 Mas será que tal situação não acaba por substituir um determinado
que tem como signatários todos os países do mundo. O Capítulo V do CID-X, que
como patológico.
de maneira que este comportamento passa a fazer parte de sua vida para além de
10
Em matéria publicada em 1995 no jornal O Globo, um estudo feito pelo pesquisador Ernest Noble, da
Universidade da Califórnia, apontou que o uso da droga bromocriptina em pessoas que apresentam uma
24
b) A fase de perda progressiva. É o momento em que o indivíduo
pode levar até quinze (15) anos para atingir esta fase.
jogadores de alto risco. Pois existem pessoas que são apaixonadas pelo jogo mas
não preenchem estes itens; jogam “socialmente”, ou fazem uma “fezinha” de vez
em quando, ou mesmo jogam com uma certa frequência e depois param. Ou não
obrigações e deveres.
comercializada pelo narcotráfico. Por isso quando uma pessoa consome morfina
predisposição genética para o vício do álcool, na medida em que aciona a produção de dopamina, é capaz de
proporcionar prazer e bem-estar que venha desvirtuar a necessidade de se buscar no álcool tais sensações.
25
específicos no cérebro que estimulam o bem-estar, diminuem o estresse,
dor; são um tipo específico de analgésico com grande poder de atuação. Desde
toxicômoca de maneira muito rápida. Pois, além de aliviar a dor, o ópio é capaz de
11
Cf. em Snyder, “Los receptores de los opiáceos y sustancias opiáceas endógenas”
12
Em entrevista ao Médico peruano e Dr. em psiquiatria, Ector, ele disse-me que em 1993 foi publicado um
artigo na revista Nature que identificou a existência de receptores específicos a maconha no cérebro. Um dos
fortes argumentos para tal descoberta procura postular que a filogênese dos mamíferos e o cerébro em geral
precisava de mecanismos de adaptação adversos do meio ambiente. Toda espécie dentro da evolução está
suscetível ao perigo, a dor, ao estresse, a sensação de cansaço, de perigo, de fome e tinha que neuro-
biologicamente que criar mecanismos de compensação. Por que um cérebro que esteja muito abalado,
“bombardeado”por drogas externas ou internas poderia atingir um perigo iminente. Simplesmente ser
destruído pela natureza. Daí os fatores de compensação se apresentarem como um mecanismo de defesa de
regulação da homeostase interna do organismo humano. Esta é uma hipótese de trabalho explicativa.
26
Os répteis não sabem o que é o afeto propriamente dito. Se um pássaro
invade uma cova e começa a comer seus ovos, o réptil não age como se tivesse
um programa de defesa de sua prole: ele simplesmente passa pelos ovos e afasta
societária de organização.
integração): o cérebro límbico que tem a ver com os afetos dos animais em geral,
pré-frontal.
cérebro límbico, que tem a função primeira de, quando os estímulos externos
sobem pela medula espinhal e chegam aos núcleos de base (e são muitos
estímulo de dor poderia provocar o coma, através de uma queda sensorial, se não
fosse filtrado, minimizado. Assim, esta filtragem produz uma diminuição das
13
Cf. Confissões de um Comedor de Ópio, de Thomas Quincey.
27
nervosos que iniciam e comandam os movimentos voluntários, que estão
químicas que produzissem tais reações, é neste sentido que é possível, dentro da
incidindo numa relação de dependência do indivíduo face aàação que detonou tal
outros não?
14
Cf. Machado, 1987.
28
Creio que todas estas indagações, por si sós, já apontam para a dificuldade
neste campo. Tão somente fazemos questão de situar esses achados no plano
das relações sociais concretas enquanto uma possibilidade explicativa parcial, isto
Europa, que se dizia capaz de identificar nas prisões européias o tipo de criminoso
15
Cf. Lombroso, C. “L’uomo delinquente”, v. I,II,III e IV. Principalmente no v. I onde Lombroso apresenta
uma série de fotos dos mais variados tipos de prisioneiros italianos onde através de uma análise comparativa
fisionômica entre elas identifica os traços de semelhanças, criando assim uma tipologia do delinquente.
Lombroso identifica o homem como uma raça superior aos símios, aos primatas, mas argumenta que há
aqueles que pela força da natureza trazem algum tipo de defeito ou de insuficiência congênita: Uns que não
trazem perigo para a sociedade, estes são os anômalos, como os esquizofrênicos. Por outro lado, há aqueles
cuja falha genética é exrtemamente nociva a vida societária, estes são os delinquentes que precisam ser
identificados e banidos do convívio social. A teoria do hommem delinquente foi construída no universo dos
presídios, portanto, todos os exames e comparações fisionômicas dentre outras investigações, procurava
explicar a natueza genética daqueles indivíduos que lá se encontravam. Entretanto, facilmente esta teoria vem
por terra quando se pede para que se explique por que é que um indivíduo bem sucedido socialmente e
portador de uma codificação genética ou fisionômica igual ao “delinquente nato”, na realidade social não
adquirira nenhum comportamento deste último. E mais, Lombroso ao comparar fisionomicamente os
“delinquentes prisioneiros”, constrói uma tipologia somática de inferioridade, de uma sub raça. Mas na
realidade Lombroso desconhece que a cor amarela, o rosto alongado, o formato palmar e outros traços
fisionômicos tem a ver com a influência de grupos étnicos que viveram por um longo tempo na europa, como
29
O perigo das pesquisas genéticas é a apropriação que se pode fazer delas,
rigorosa uma série pressupostos de ordem ética e moral, pode-se correr o risco de
humana.16
Por outro lado, não podemos deixar de mencionar que, uma vez
para jogar;
os lapônios e os esquimós. Nessa lógica, muito provavelmente ele talvez identificasse todo povo chinês como
delinquente.
16
Cf. sobre o tema “A condição humana”, de Hanna Arendt.
30
3) Necessidade de aumentar o tamanho ou a frequência das apostas,
recuperar as perdas;
ocupacionais;
jogo.
como referências e não como verdade última dos fatos. Pois, se na tabela
31
Nem todo compulsivo é patológico, até porque a patologia não é uma
para ele só pode ser visto sob o ponto de vista orgânico, onde
constante fisiológica.18
indivíduo responder “SIM” a pelo menos sete das perguntas listadas abaixo,
jogo?
ao jogo?
17
Proferida na Universidade Católica de Petrópolis, em agosto de 2002 na Semana de Psicologia.
18
Em relação a esse aspecto, além da obra já citada de Canguilhem, 1982, sugiro também um excelente
trabalho de reflexão de Leonidas Hegenber, 1998.
32
6) O jogo causou alguma diminuição na sua ambição,
capacidade e eficiência?
perdas?
planejado?
preocupações e problemas?
33
16) Alguma vez você cometeu algum ato
jogo?
se às desilusões e frustrações?
neste momento, que as vinte perguntas formuladas nasceram das angústias, dos
compulsivos. Mas, ainda assim, não podemos tomar como definitivo e como
verdade absoluta este quadro de perguntas, pois é possível que muitas pessoas
digam “SIM” para sete ou mais questões face ao jogo (ou a outros tipos de
34
intervenção médica e ajuda, das associações anônimas. A base de sustentação
tanto da psiquiatria clássica quanto dos grupos de auto-ajuda, ainda que estes
de alguma maneira há indivíduos que possuem uma pré- disposição para jogar
também não o é pela sua constituição biológica, genética. Ele possui autonomia
manifestando organicamente em todo o seu corpo, até que ele definhe por
completo.19
indivíduo, não podemos deixar também de considerar que todo indivíduo possui
19
Cf. o exemplo da morte denominada de banzo, descrita por Roque Laraia em seu livro Cultura – um
conceito antropológico, onde mostra que a força dos sentidos produzido pelos indivíduos é capaz de interferir
significativamente em seu aparato biológico.
35
vontades, também não pode ser esquecido, pois quando diz “EU QUERO”, “EU
DESEJO”, nesse instante ele também é força instauradora de seu modo de ser no
medida em que, por um lado, encontra-se alinhada com um tema que perpassa a
cultura física, pois percebe que a realide do bingo enquanto manifestação de jogo
Zico), de 06/07/93. Logo após, o bingo foi ratificado pela Lei n. 9615 (Lei Pelé), de
24/03/1998, e pela Lei n. 9981 (Lei Maguito Vilela), de 14/07/200. Por outro lado, o
conflitos legais e sociais que norteiam o bingo, ainda não foram objeto de análise
20
A paixão ou, melhor dizendo, as paixões, dentro do campo da filosofia da vontade se apresentam
como movimento da alma, são um dado da natureza humana. “Um homem não escolhe as paixões. Ele não é,
então, responsável por elas, mas somente pelo modo como faz com que elas se submetam à sua ação”
(Lebrun, 1987, p.19).
36
METODOLOGIA
imaginário social.
condicionantes das formas de pensar e agir dos indivíduos, e é nesse sentido que
37
o imaginário social aparece como lugar de destaque da produção do pensamento
individual.
problemas inerente a questões de fundo moral e social, não seria tão incomum
parte dos jogadores face ao valor absoluto das regras, já dadas previamente, bem
movimento inerente ao jogo, que redundaria em uma forma de alienação por parte
38
objetivamente destituí-los de subjetividade. Mas, antes disto deveríamos
perguntar: Por que é que o jogo de bingo se apresenta tão envolvente para os
que a adesão emocional provocada pelo jogo acomete somente um grupo, uma
pessoas que jogam pelo simples prazer de jogar? E aquelas outras pessoas que
dizem procurar o jogo para obterem uma ascenção econômica e social ráppida e
racional é capaz de justificar tudo aquilo que o jogador sente diante do barulho dos
jogada?
Creio que estas e muitas outras questões não podem ser explicadas
engrenagem. A realidade social não é uma máquina. O jogo não é uma “coisa”
e finalista das ações humanas não passa de uma crença na razão absoluta, isto é,
39
uma forma de conceber a ciência como estando muito mais aproxima da fé do que
propriamente da razão.
entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo, situada nos intervalos entre o interior
sua totalidade nem pelas condições objetivas de sua produção, nem pelas
simbólica.
40
específico, a sociedade do consumo, com cores e formas próprias estruturando
uma lógica dos objetos que permeia uma concepção de homem e de sociedade
41
que o espaço é, ao mesmo tempo, produtivo e produtor, pois intervém tanto na
categoria ambiência no universo restrito das casas de bingo. Para tal, realizamos
desenvolvida no estudo.
Nesse sentido, tivemos que discutir, ainda que de maneira pontual, sobre o
um apelo incisivo às cores, sons, formas, texturas e odores que irá compõem a
construção da ambiência.
42
No Capítulo IV discutimos a relação entre jogo e ambiência. Procuramos
geral das casas de bingo da cidade do Rio de Janeiro com seu simbolismo, e a
psicológica pecepção.
idéia de que o ato de jogar é puro deleite irresponsável e que sua função básica é
muitas vezes é apropriado por um olhar racionalizante que acaba por desvirtuar o
43
sofrimentos e angústias que o ato de jogar compulsivo pode provocar. O objetivo
uma certa autonomia, isto é, ela não é transparente, porém possui uma ordem
própria.
social.
referentes.
44
Os sentidos por nós interpretados não se encontram nas palavras, mas nas
cadeias semânticas em que elas se inserem. Dizer que se “precisava jogar para
fugir da vida”, não é a mesma coisa sob o ponto de vista do universo do lugar da
produção de sentido do que dizer que “o jogo era fuga da realidade e falsa
esperança”.
do processo interativo, demarca o acesso que tem ao que foi dito e ao como foi
dito, e que, por sua vez, encontra-se intimamente ligado a uma certa maneira de
relação de acordo de fala: o indivíduo fala do lugar social que acredita que o outro
45
muito mais como preconceito do que como compreensão concreta da realidade
inferida.
Michel Pêcheux (1988) nos diz que não se descobre o real, mas se depara
com ele. Da mesma forma que não há um único real, mas sim diversas
recuperação, ele também fala do lugar da classe a qual pertence e do modo como
ele se apropria dos “objetos” da cultura a qual ele se encontra. Pois os múltiplos
um dado lugar social. Daí se dizer que produzir sentido é, antes de tudo, situar-se
Eni Pulcinelli Orlandi (1993), em Discurso e Leitura, diz-nos que não existe
um grau único e absoluto que seja capaz de classificar um dado texto como
“legível”. Pois quem escreve sempre escreve para alguém ou a algum público em
46
Nesse sentido, o leitor interage com o texto, esta unidade significativa, ou
seja, é também produtor do texto. Daí admitir-se que não há um autor onipotente,
aquele que ele conscientemente quer dar. Por que ao dizer ele afirma com força o
O que não está dito, de alguma forma sustenta o que está sendo dito, pois
ao dizer, o sujeito do discurso oculta algo. Ou, utiliza outras maneiras de se dizer o
que se disse anteriormente, onde o dito passa a significar formas bem diferentes.
situação específica; portanto, são considerados como texto. O texto não é a soma
de frases, muito menos significação fechada informativa, mas antes espaço aberto
sendo exclusivamente desta ou daquela natureza. Não há como afirmar que num
47
que num outro possa-se dizer que há um equilíbrio perfeito entre paráfrase e
pode remeter para esta ou aquela natureza, já que todo discurso se relaciona
Um discurso é perpassado por diversas marcas, e não por uma única, pois há
Orlandi (1992) nos diz também que o texto é tranversal por várias posições
é preciso que se teorize sobre as marcas, que são pistas encontradas em função
significados se dá por vias indiretas, e não como uma relação de causa e efeito
No caso dos depoimentos dos jogadores anônimos, ainda que seja claro,
que não só fala para o “outro’, mas que fala de si mesmo de maneira profunda
48
produtos, mas sim nos processos de sua produção. Ratificando, não é o que o
texto diz, mas sim o modo como as palavras que aparecem com recorrência
funcionando.
linearidade. Ou seja, não concebe dicotomias como, por exemplo, entre sujeito e
dada direção, direção esta contruída a partir da relação entre linguagem e história:
49
mecanismo ideológico que o fundamenta nos depoimentos dos jogadores
auto-superação”.
50
CAPÍTULO II
1975, teve sua primeira publicação como livro na França. O opúsculo que temos
tal forma que os sete capítulos contidos no livro possam aparecer pontualmente
como teoria e como prática social. Sem perder de vista a história, argumenta que
em algumas de suas fases ela foi corretamente apropriada, mas em muitas outras
51
classe trabalhadora enquanto realidade que também elabora verdades sobre o
ser perseguida.
dada realidade não são outra coisa que não o fruto da produção do mundo de
possível de ser pensada a partir dos sentidos criados e acolhidos por este mesmo
sociedade cujas relações de trabalho são significadas socialmente como tal. Nada
significação.
método do conteúdo. A teoria, para iluminar a aurora de uma nova sociedade, tem
52
de dialogar permanentemente com o real, e não se sufocar - como que numa
contrário, houve e continua havendo uma aceleração que não pára de crescer. Da
não se pode ignorar o papel das classes sociais em criar formas e sentidos
53
e do mundo que o cerca, isto é, ele é transformado em coisa pelo movimento
tornam a única e mesma coisa. De fato, isto ocorre, porém tal ocorrência se dá de
total, o funcionamento de uma indústria, por exemplo, não seria possível nem por
trabalho, mas que esteja vendendo a sua força de trabalho, isto é, a capacidade
totalmente. Aquilo que lhe é mais caro (sua humanidade) não pode ser “sugado”,
mas a força para trabalhar por um período contratado de tempo. Para tal, é
preciso que ele possa usar seu potencial criativo - ainda que sufocado- para
produzir mais do que consumir; é preciso que ele tenha “mobilidade”, isto é,
mecânica do saber-fazer.
54
O fato, entretanto, é que Castoriadis não concorda com a premissa de que
relações sociais que pode ser superado ou não a partir da construção de novas
mesmo deste processo, que pode incidir em várias direções. E não uma relação
técnica ou forças produtivas que possuiriam uma atividade própria, e o resto das
55
cultura permanece. A multiplicidade de técnicas contemporâneas para fins
toda vida possui consciência do vivido, mesmo na mais alta forma de manipulação
e condicionamento.
relação de causa e efeito que não pode ser concebida a não ser pelo viés mais
idealista possível do que se entende por realidade. Este esquematismo nada mais
considerado compulsivo, que estabelece uma relação com o bingo, no fim das
mecânico-causal apriorística.
56
A realidade social não é um epifenômeno do econômico. A sociedade é
mesmo da unidade que lhe é inerente. Não é possível qualificar um fato técnico
tribos que se utilizam dos mesmos instrumentos para caçar e pescar, distadas a
hábitos, costumes, crenças, é que se poderá compreender, até certo ponto, como
duas sociedades tão próximas, e fazendo uso dos mesmos instrumentos, são tão
diferentes.
Castoriadis (1982) nos diz que a idéia de que o desenvolvimento das forças
que esta seria suficiente para poder explicar o modo de produção da China
riqueza. Se assim fosse, como pensar no caso da Índia, cuja população não
57
estoca alimento lá não existe supermercado. A etnologia nos oferece um sem
econômicas.
pode perder de vista, entretanto, é que o homem é muito mais que uma coisa, ou
o reflexo de alguma coisa, mas antes se constitui como totalidade que se constrói
existência no mundo da vida, onde esta não pode ser explicada em sua totalidade
por um único viés, seja ele qual for, sob pena de fragmentá-lo, de abstraí-lo, no
cultuar seus deuses, re-atualizar sua ligação com o mistério, reatualizar o convívio
com os seus, expressar seus desejos e paixões profundas, dançar, jogar... como
58
sentidos, isto é, fazendo “acordar” algumas imagens que poderão potencializar a
desejos, paixões e sonhos mais secretos possam vigorar sem qualquer ameaça
moral.
organizar o mundo. Para um nativo que pela primeira vez teve contato com um
relógio não seria absurdo que ele o colocasse em uma árvore ornado com penas e
homem branco, que utiliza este instrumento como forma de medição do tempo. Da
mesma forma, não é absurdo para o homem branco transformar o arco e a flecha
em objetos de decoração de seu quarto, o que, para o índio, que utiliza tais
procedimento e inconcebível.
história da luta de classes”. Face a tal crença, argumenta Castoriadis (1982) que
59
imprevisível, para o imponderável das relações sociais emergir, para o inusitado
será inevitavelmente gerada pela luta de classe, a ser concluída na sua “última”
para fazer a revolução, custe o que custar. Entretanto, qualquer outra hipótese
proletariado em sua busca pela “liberdade”. Liberdade esta, por mais paradoxal
determinado e determinante.
de serem pensadas como uma realidade onde possam emergir outros interesses
que não somente o da revolução, não será mais possível pensar no seu papel
escritos admite que não se pode pensar as categorias históricas fora de seu
60
momento e de seu contexto, Castoriadis projeta algumas delas para toda a história
melhor compreendê-lo como grande teórico que foi. Não é possível pensar as
da realidade que, haja o que houver, não se desviará de seu objetivo ou causa
pois a história tem demonstrado que a “massa”, que deveria ser crítica e
61
A filosofia da história marxista, enquanto racionalismo objetivista, se
utilitária e submissa à lei “objetiva” da grande tarefa histórica. Mas, como produzir
uma objetividade do mundo sem que esta não passe também pela construção
Não significa dizer que Castoriadis esteja dizendo que as leis históricas não
tensão é imprevisível sob vários aspectos, pois os indivíduos e grupos sociais não
pensam suas vidas e ações na ordem da totalidade dos fenômenos, isto é, com
não significa afirmar que tal explicação seja suficiente para compreender as várias
62
e social. Não é possível uma explicação fechada de mundo que abarque todas as
preciso “virar de cabeça para baixo” a dialética hegeliana para modificar seu modo
dialética cumpre o mesmo papel. A diferença é que para este último autor o saber
63
Para que a dialética não seja “espiritualista” ela deve ser também “não-
baixo”. É preciso, como diz Castoriadis, cortar-lhe a cabeça, para que possa
possíveis. Pois, se não se fizer isto, curiosamente estar-se-á operando com uma
número certo, na pista que lhe foi oferecida pelos “deuses” para fazer sua opção
ficção.
necessidade que emerja impulsionada por forças internas de motivação, mas por
história, estão sendo feitos por ela. Não se trata de transformar o mundo ao invés
64
onde a práxis revolucionária nada mais é do que a operacionalização de um
intimamente ligado ao saber, e este precisa ser elucidado para que não se deixe
Entende-se por fazer reflexo aquele tipo de ação humana que não depende
desejados.
essencial da atividade humana não pode ser apreendido em sua totalidade nem
como reflexo (ato mecânico), nem como técnica (saber-fazer utilitário). O primeiro,
65
segundo, pela impossibilidade mesma de um saber exaustivo sobre a realidade,
pois, em última instância, todo saber sobre o real é sempre um fragmento desse
pensar no engenheiro que constrói uma ponte: ele não tem necessidade de
resistência dos materiais, pois estes são os fatores que irão determinar
concretamente seu fazer, ainda que a garantia de segurança deste engenho não
são pontos de vistas ou, de maneira caricatural, vistas de um ponto dentre muitos
outros pontos possíveis. Qualquer teoria sobre a natureza, sobre o real, é sempre
algo por fazer-se. E isto não tem nada a ver com uma ação cega e irresponsável
pautado numa teoria absoluta da realidade. Pois se assim for, a ação política não
será nada mais nada menos do que uma técnica utilizada por indivíduos com o
66
a aplicabilidade de gestos técnicos, mas antes práxis, isto é, um outro modo
por natureza, é sempre fragmentário e sempre provisório, pois sua ação produz
na práxis. Assim, se por um lado não pode haver teoria perfeita da história, e a
idéia de uma racionalidade total é absurda, isto não significa que a sociedade seja
irracional, mas sim que ela se expressa através da tensão entre o racional e o
como expressão parcial de um sistema racional mais amplo que, por sua vez, não
direção.
67
antes mostrar coerência em sua ação e remeter esta à concretude da sociedade
Significa dizer que a sociedade atual, para realizar os fins que se propõe, só
pode fazê-lo usando meios que a contradigam: se pede aos homens (seja como
68
produtores ou como “cidadãos”) que permaneçam passivos, ela mesma não
questionar a própria ordem vigente. Daí ela viver uma dupla realidade, uma
possui fórmulas prontas. Se alimenta das crises, pois crise é contestação daquilo
termos que Castoriadis propõe, passa pela compreensão das estruturas mentais
propostas pela psicanálise através de três categorias básicas, a saber: Id, Ego e
SuperEgo.
69
a razão. A autonomia de que fala Castoriadis adviria então do domínio do
(inconsciente), mas sim uma nova relação que se estabelece com esse outro. O
asséptico em relação aos outros. Antes, é a instância ativa e lúcida que constrói e
70
Ratificando, a autonomia não é a eliminação do discurso do outro, é a elaboração
com o imaginário social encarnado nas instituições, e como tal ela deve ser
aquilo que, ao mesmo tempo que o torna inteligível, torna-o também um mistério.
“alguma coisa” que põe na ordem do dia o fazer humano, a re-invenção sobre o
social.
71
Nesse sentido, a alienação não pode ser concebida como um componente
inerente à história, mas antes como uma modalidade da relação com a instituição.
necessidade.
social a cumprir dentro do organismo vivo que é a sociedade. Mas daí a afirmar
72
Numa outra perspectiva, temos a dimensão simbólica da existência como
realidade instauradora de uma lógica própria que pode ser apreendida em sua
totalidade pela razão, já que o símbolo sempre traz consigo uma lógica racional
subjacente.
instrumental, sob pena de reduzi-lo a signo. “O simbolismo não pode ser neutro,
nem totalmente adequado, primeiro porque não pode tomar seus signos em
qualquer lugar, nem pode tomar quaisquer signos” (Castoriadis, 1982, p.146). Ou
seja, o significante produzido por uma cultura pode remeter a vários significados,
são mero efeitos da infra-estrutura econômica, pois se assim fosse teríamos que
perguntar: Como ela pode estar estruturada se não está instituída? O simbolismo
73
tácita daquilo que deveria determinar. Além disso, encontra-se perpassado de
74
Parafraseando Edgard Morin (1989) o homem não possui somente
difícil convencer o homem a lutar pelo supérflo, muito mais até do que pelo
compreendidas como uma rede simbólica, pois se assim fosse, deveriam ter
como símbolos, e não outros, e de eles possuírem relativa autonomia social. Não
re-significar-se.
75
significação que transcende a percepção imediata do mundo (real) e do
no mundo.
por padrões racionalmente construídos por uma lógica intencional. Ela é também
isto, mas está muito longe de eliminar seus fantasmas, medos, inseguranças,
classes sociais, mas não é possível dizer como nasceram e onde nasceram.
76
porque na sociedade que a gerou a divisão de classe sempre foi uma realidade,
dizer que muitos lutam pela supressão da opressão para se tornarem opressores:
nas sociedades são as formas que elas manifestam, sua plasticidade histórica.
Nesse sentido, o que se faz necessário é uma análise institucional que está ao
mercado.
elas.
77
Na tradição ocidental, a construção ontológica do Ser (e, carreando esta
como instrumento menor utilizado por ela para cumprir um fim determinado a
priori.
componente particular e sem muita importância no que diz respeito a seu papel
relevância.
78
Do ponto de vista histórico e social (e o conectivo E não é mero recurso de
quando argumenta que, em função de tal lógica, toda discussão que se travou até
então sobre o social e o histórico jamais conseguiu romper com esta herança
ontologia de mundo.
partes mantêm-se por necessidade interligadas entre si, e, por consequência, seu
como fim último, não podemos, de fato, identificar tal lógica na realidade se
79
profundidade, isto é, esquematicamente definidor de uma lógica interna de
organismo vivo - sobre o que é o social, pois não há referência análoga a esta
foi a posição subreptícia como sentido de Ser, do modo de ser dessas categorias
determinado”( Castoriadis, 1982, p.217). O que não significa que isso tenha
80
Castoriadis propõe então que pensemos o social não mais como um
“conjuntizável”, que não pode ser ilustrada pelo social, pelo imaginário ou pelo
inconsciente.
A história, por seu turno, não pode mais ser vista apenas como sucessão
Timeu de Platão, fica claro que para o filósofo grego não é possível de separar o
tempo do espaço, pois o que existe sempre é o sendo (aeion) e o devindo sempre
contrário, ele tão somente o toma como um modo de reflexão que participa do
81
O tempo como dimensão do imaginário é uma constante de emergência de
segundo exemplo citado pelo autor: “Os dois ‘1’ do número ‘11’ adquirem sua
identidário e histórico, uma sucessão de eventos onde cada qual possui uma
para o fazer criativo, para a ação humana original, inventiva. No máximo, o que
modifique, isto não tem nada a ver com criação na acepção profunda do termo,
pois esta é a invenção de uma nova forma de conceber o todo através de um ato,
como aquele que inventou a roda, que, antes de qualquer coisa, inventou uma
82
diversos dentro do campo mágico-religioso, nas festas, nas artes, nos diversos
tempo é uma realidade infinita, isto é, que cresce sem fim, em muitas outras
precedidos de toda uma ritualística com configuração própria no seu modo de ser,
análise da realidade social, tal artifício é uma construção social própria para
forma particular de se olhar a realidade que, em última instância, acaba por ocultar
organização, por outro lado, sob o ponto de vista da linguagem, não é possível
significação jamais pode ser vista como realidade fechada de significações fixas,
83
O “presente” histórico compreende “em si
(eina ti), que remete à idéia de que necessariamente, quando se diz alguma coisa,
esta coisa é sempre por natureza uma referência determinada (ti legein).
84
“Como coleção num todo, o conjunto é unidade
acionar a lógica conjuntista que remete à idéia de que um conjunto define uma
onde podem e devem ir; o que e como distinguir e juntar, nos atos e nos discursos
85
Significa dizer que a sociedade encontra-se estruturada desde seu início.
de classificar, taxionomizar, dividir... Mas podemos dizer que nem tudo no mundo
conjuntos.
A idéia da natureza não pode ser pensada como organização dada, pronta,
sim como uma realidade que traz em seu interior uma série de distorções e
contradições. Pois seria o mesmo que dizer que o homem, enquanto simples ser
vivo, fazendo parte desta lógica naturalmente organizada, nada mais é que mais
natural significa que ela não o reproduz, não o reflete, não é determinada por ele
86
Se há uma grande dificuldade em se tentar explicar a lacuna entre o estrato
totalidade seria capaz de desvendar, iluminar para o homem aquilo que ele
Assim, qualquer forma de compreensão do real que não passe pelo racional ou
Esquecem-se entretanto os crentes de tal verdade que esta nada mais é do que
um singelo ponto de vista, e que todo ponto de vista é também vista de um ponto,
pensamento mítico somente classifica é o mesmo que dizer que ele só o faz
porque não possui outra alternativa; porque não possui outros critérios de
organização do mundo.
figuras que lhe dão o suporte necessário para sua concretude. As significações
fecha sobre si mesmo, aquilo que amarra os sentidos, é o código, o léxico dos
permanente movimento.
87
O imaginário não é um esquema, um dado social, antes é criação e
que fundamentam tudo que é real. O imaginário social, nos termos de Castoriadis,
deles, pois ambos são instituições sociais. “O imaginário social existe como fazer
1982, p.289).
nem fechada nem infinita, mas indefinida, podemos pensar no uso de uma palavra
88
Já o teukheim significa juntar-ajustar-fabricar-construir: é fazer ser como...
a partir de... de maneira apropriada a ...e com vistas a ... A técnica, assim como o
teukheim.
teukheim, tal como a construção das posturas, dos gestos, dos comportamentos
referindo-se àquilo que é, o que não é, e o que poderia ser - o que não aparece no
legein. Entretanto, o valor do teukheim transcende o simples valor de uso, daí não
89
social efetivo antes de ser, e para poder ser, ‘real’. A sua contrapartida individual é
se fortemente ativa, tanto como legein quanto como teukheim. E todo teukheim se
apóia num instrumento que se ordena como ação, pois a fabricação já pressupõe
mesma forma que não é possível pensá-la sem a presença do teukheim, isto é,
90
separados-procurados-reunidos para fazer ser... de
1982, 308).
indivíduos, signos, instrumentos, que, por sua vez, devem ser reunidos,
A sociedade não pode instituir-se sem se instituir como “algo”, e este “algo”
O legein e o teukheim do ser vivo são o próprio ser vivo, determinado com
sociais. Daí dizermos que, ao mesmo tempo que são compatíveis com a história,
fluxo representativo-afetivo-intencional.
91
provisório, toda imposição de esquemas separadores -
mundo, isto é, tipos, imagens, que ao mesmo tempo são uma e várias outras.
que aquilo que falamos sobre o representado se apresenta de fato como verdade
caminhos que o cavalo irá seguir em sua jornada. Da mesma forma, através das
mesma forma que o Ser da loucura também não poderia, pois, se isso fosse
92
lógica identidária, na medida em que não consegue absorver os fragmentos
dos sonhos só é lógica dentro deste contexto específico, com seus sentidos,
formas e cores próprias face à realidade do paciente. O sonho pode ser o mesmo
repetidas vezes, porém pode assumir sentidos múltiplos desde que consideremos
complementação: algo que está sempre para ser preenchido, mas que jamais o
93
psique, que em Castoriadis assume o sentido de imaginário radical, isto é, do
mundo criado por desejos, sonhos, paixões, fincados em raízes bem profundas. O
impulsionadora que levaria a fins que poderíam ser logicamente descritos pela
lógica racional.
fantasiar é uma grande descoberta feita até então ao longo da história, pois coloca
imaginária, ficcional, do mundo. Não significa dizer que a pulsão, seja ela
Nesse sentido, a psique pode ser compreendida como um formante. Se, por
um lado, ela é uma receptora de impressão, por outro lado é também emergência
sempre a falta de um objeto (que falta ou pode faltar), como pode a psique desejar
94
um objeto que não existia como tal? E, se não existia como tal, como pode um dia
O fato é que aquilo que a psique faz existir não é ditado pela realidade
todo lugar igual. A criatividade da psique enquanto movimento aberto é que faz
emergir a representação. Então, não não o seio, o ânus... mas antes a psique,
parte de uma criança não pode determinar o conteúdo explicativo de seus atos,
pois o próprio ato de descobrir o faltoso remete a sentidos outros que não
Assim, “no nível originário, não somente não pode haver distinção da
simplesmente são modos de ser próprios. O ponto nodal da psique é que nada
95
guiada pelo princípio do prazer. A origem da representação sustenta-se a partir de
origem imaginária, que são representações não ditadas pelo “real” ou pelo
Seguindo este raciocínio, o homem não é um ser relacional, como afirmava Marx;
também não é um animal doente, mas antes um animal louco, que aos poucos vai
1982, p.344).
Nesse sentido, o objeto só pode ser concebido como objeto parcial, pois
projeção da “própria imagem” do sujeito para si. Para o sujeito identificar-se como
sujeitos, ao que tudo indica, é uma interação profundamente imaginária, daí advir
sua concretude. O concreto é o imaginário, e não aquilo que é possível captar com
96
os olhos e com os demais sentidos imediatos. Inverte-se a lógica positivista que
sempre afirmou que o concreto é aquilo que pode ser captado através dos
sentidos, e o abstrato aquilo que lhes escapa. Assim, o outro só pode ser
pulsão anal é uma criação histórica. Não tem nada a ver com a função de
eliminação (por que não uma pulsão respiratória?). Se existe pulsão anal, não é
porque existe uma zona de prazer explicada por si mesma, mas antes porque há
uma rede de relações que se tece em cada cultura em relação à mãe, onde as
posso também pensá-la como mundo, como círculo, como lugar sem saída...
97
perpétua, o fluxo incessante no e pelo qual se dá. Ela não pertence ao sujeito, ela
infinidade de determinações.
98
contexto não linguístico, o universo inteiro. Aqueles que acreditam em uma análise
magmas. Não há nada que passe pela psique que não seja representação.
sociais, donde não é possível que se depreenda uma separação entre o magma e
capitalismo se apropriou para utilizá-las com fins capitalísticos, elas são como tal
porque são significadas socialmente desta maneira, e não de outra. Dizer que as
relações sociais são mediatizadas por coisas no mundo capitalista só tem sentido
99
se apresenta na linguagem que ao mesmo tempo é código e língua, já que
Assim como Deus não é uma significação ligada a algo, pois se o fosse
teríamos que perguntar que algo é este, a economia também é uma significação
imaginária que não se refere a algo, mas a partir da qual quantidades inumeráveis
possíveis. Dizer que um objeto ou conjunto deles é uma mercadoria não explica
nada sobre eles, tão somente os faz existirem como tal no interior de uma lógica
insuficientes para uma reflexão mais acurada face àquilo que nós nos propomos.
100
representam papéis sociais, no fim das contas diz muito pouco ou quase nada
face aos próprios indivíduos. Pois o que importa saber sobre os papéis sociais
desenvolvido pelos indivíduos sem saber a peça que eles estão representando?
das visões subjetivas concretas como possíveis. A diferença reside no fato de que,
em relação aos “tipos ideias”, estes são o produto de um reflexo daquilo que a
à sociedade cada vez que são consideradas. Só é possível haver um sentido para
101
conceitualização prévia sobre as burocracias de um modo geral, que, certamente,
do que é universal e do transcultural desta instituição, o que não tem nada a ver
o que não é, o que vale e o que não vale, e assim por diante.
p.414).
102
Na medida em que a sociedade é ao mesmo tempo instituída e instituinte, a
(1983) que procura contribuir para a discussão sobre a teoria das representações
sociais.
acaba por afirmar, a partir de sua crítica arguta ao marxismo, sua predileção pela
concepção dialética de Marx, bem como pela filosofia trágica, criadora e não
do estudo da representação.
103
Inicialmente, Lefebvre nos diz que a representação não é a sombra de uma
como deuses. Da mesma forma que não é uma etapa do conhecimento, isto é,
suporte de significação ideológica. Ela não é nem verdadeira nem falsa. Ela se
justifica pelos múltiplos efeitos que suscita, e não pelo grau de coerência ou
que ele. Mas, por outro lado, está longe de explicar a permanência e a adesão
104
explicar os sentidos que pululam no seio das relações de trabalho, que envolvem
e do “natural”, emergem sentidos outros que tecem a trama dessa relação e que
consciência enganada.
sujeito e o objeto.
105
Nesta perspectiva, não é possível falar de um sujeito que seja plenamente
paixões na direção do possível, mas não sem riscos, pois constrói um objeto
vislumbra é o inatingível.
qual grupo, classe, povo, organização. Elas podem ampliar, diminuir, não
imaginária que, uma vez trabalhada, desenvolvida, pode ganhar corpo em utopias
106
mobilizador no homem, impulsionador de seus desejos, crenças, fantasias e
paixões.
classe. Como, por exemplo, explicar somente pelo viés economico as tensões
Ao contrário, é uma presença, pois se enreda numa relação com a vivência, com
enriquecendo-a ou desprezando-a.
107
flutuando e se imiscuindo na superfície da consciência social, ora estabilizadas em
Esse mundo das representações, com sua superfície e o que dela emerge e o que
oculta, com o que se descobre ao desgarrá-la, este mundo pode durar” (Lefebvre,
1983, p.88).
ideologia, pois não possuem uma lei mecânica, um funcionamento definido a priori
108
Pelo seu caráter móvel e infinito, nascem perpetuamente no seio da vida
reduzem nem a uma explicação subjetiva, nem às coisas, aos “objetos” sociais
que produzem. Portanto, produzem imagens, formas, mas estas não prescindem
como algo finito, inteligível, manipulável é a decretação de sua morte, pois não é
outro lado tal realidade é sempre incompleta, devido aos novos sentidos que irão
algo a ser preenchido, a ser vivido no jogo, que as palavras não conseguem
significar na totalidade.
109
entre o sujeito e o objeto, entre a presença e a ausência, não significa dizer que
elas sejam fruto da apreensão imediata do sujeito em contato direto com o mundo,
da mesma forma que não são simples relações sociais. O seu mundo não é
uma existência social, mas não são redutíveis a uma dada consistência que
pudesse permitir serem tratadas como “coisas” ou como “formas”. Por exemplo,
uma representação religiosa qualquer não pode ser medida pelo grau de verdade
ou de falsidade que suscita; antes, só pode ser apreendida pelos efeitos sociais
que produz, isto é, os efeitos que remetem a outros efeitos, formando cadeias e
a partir dos sentidos construídos dentro de seu tempo, de sua cultura. Mas estes
são apenas pontos de partida e não de chegada, pois no contato com o mundo os
110
as, enfraquecendo-as ou inaugurando novos pontos de partida e apoio para sua
existência.
afirmar que toda presença pressupõe necessariamente uma ausência. Não do que
foi, do perdido, mas do imediato, do presente que não se manifesta mas vibra,
pelo lugar social que ocupa, pelas relações que trava com o mundo, com o seu
corpo, com o espaço, com o tempo, com o dinheiro, com o trabalho, com a dor e
com a alegria. “O espaço e o tempo, tanto no corpo vivo quanto nas coisas
mistura de fantasmas e de imaginário, mas que não são por definitivo suficientes
111
origem ou o fim dos tempos, sobre o movimento nesta ou naquela direção de
pessoas, povos, crenças ou teorias, não pode ser considerada como verdadeira
sentido.
produção tensa entre afeto e razão, sensível e inteligível, desejo e lógica. E o uso
esquizofrênica.
112
A sexualidade não se justifica em função da fecundidade e da procriação,
temas que rondam a sexualidade humana ao longo dos tempos e que em nada se
incerto e o concebido elaborado. Portanto, não são “coisas”, pois não são eixos
que não se apresentam como eixos psíquicos, isto é, como fruto da subjetividade
pura, pois nascem justamente das relações travadas com o “outro”. Não são
interiores ao sujeito sob a forma de uma essência, pois elas atravessam o sujeito,
É uma abstração de uma aparência sensível, mas tal abstração não tem
113
sensível e modificada continuamente em a imagem, em símbolo. “O percebido
mas adquire nesse jogo densidade e força. Naquilo que a psicologia clássica
vivido como verdade por ele, portanto, é uma representação significativa por
não radica também na sua funcionalidade, isto é, no papel imediato e prático que
relações sociais. Concreta, porque é a partir dela e através dela que o homem se
perseguidos.
114
consolidar ou modificar este vivido e este concebido. Na vivência, na ação do
representações, pois para o artista não basta limitar-se a diminuir ou aumentar sua
produto.
pressupõe e procura realizá-las, pois a lógica da criação não radica na lei binária
criadora. Quem cria a obra não se encontra fora do mundo, não deixa de viver seu
tempo com suas representações, mas, por outro lado, não se submete a elas
de tudo uma atitude crítica, não um saber crítico face ao sentido do poder, da
115
verdade, da vida, da morte, mas crítica no sentido de distanciamento, de
conhecimento trágico.
116
pesado, cerimonial. O momento da seriedade implica a
identificada, comparada, analisada. Mas, por outro lado, ela jamais se reduzirá a
Aquele que cria a obra, que joga, não se encontra fora do mundo, isto é,
117
foram evidenciadas por Adorno (1975), mas não se compõe tal sinfonia através de
um saber e de uma técnica, por mais apuradas que sejam. Para compor ou criar
qualquer coisa é preciso que haja uma profunda convergência entre saberes e
do mundo, e que não brinda necessidade outra que não a vontade de criar. Daí
construir algo, tem-se que “ir ao encontro de”, sair, projetar-se, transcender o
presença.
A presença traz em si mesma sua origem e seu fim, pois não tem história, nasce
118
presença é a materialização do encontro entre sujeito e objeto, uma unidade viva
mundo que fazem brotar o inusitado e que possuem curta duração. São os
medido formalmente, mas pelo enraizamento que penetra nas entranhas devido à
desejar e deseja a razão, e é através desta contradição que ele vai se construindo
119
fugidios e enraizadores, mas que necessita materializar-se em formas para não se
sentidoembora indizível por meio das palavras, e aproximado por imagens que
uma vez”.
uma presença do herói vitorioso até seu fim. A tragédia não dissimula a morte.
provém daquilo que aparece como o mais débil, contando com a aparência, com a
construção ousada, corajosa, que não tem medo de arriscar, que busca o
acontecimento.
120
contradições, os pontos de rupturas, os dissensos e consensos, enfim, o lugar por
É no cotidiano que Lefebvre nos diz que a produção da verdade não vem
nem do sujeito enquanto ato, nem do objeto enquanto obra, mas da linguagem.
Uma linguagem que afirma e nega ao mesmo tempo, que possui ao mesmo tempo
passa na vida cotidiana, no fim das contas acaba por abrir um fosso
segundo Lefebvre, é possível mostrar sua força e sua fraqueza. Pois, acredita o
já que ambos acreditam em suas verdades e balizam o seu mundo a partir delas.
verdade.
121
desconstrução-reconstrução dos imaginários na sociedade, por outro lado há,
entre a lógica do vir-a-ser e a teoria do mesmo, pode ser vista de uma maneira
forma que é possível dizer que a cotidianidade se apresenta como um dos lugares
desenrola o “mundo da vida”, possui uma relativa autonomia frente aos valores e
122
tempo, movimento integrador de novos valores, crenças e desejos que emergem
teoria de Marx, Lefebvre procura dialogar com Marx considerando sua obra
que desmistifica a idéia tão recorrente e tão cara aos crentes do deus Marx, que
natural, o comunismo.
123
divisão e o seu caráter de exploração; há uma base estrutural, que são as
aproximam e se afastam uma das outras, ora reproduzindo ora construindo novas
vira cultura de massas. Diz o autor que uma revolução social não se faz pelo plano
estilo confere um sentido, uma percepção sensível aos mínimos objetos, atos e
124
em normal, o normal pela força do padrão que evoca e que alimenta a vida
tempo de lazer. “Que as pessoas pensem nas suas férias durante todo o ano, isso
não quer dizer que um ‘estilo’ tenha surgido dessa situação e que esse estilo
tenha dado um sentido novo ao lazer. Talvez estilo esteja sendo procurado no
trabalho, pois no fim das contas os lazeres da modernidade estão muito longe de
expressão por parte dos sujeitos sociais. Antes, lazer aparece como um
125
espetáculo, como uma forma de trabalho transfigurado sobre uma aura caduca e
de consumir, espetacularizando-se.
que fica, então, são as verdades, as satisfações e funções tidas como imutáveis e
como possível objeto de análise científica pelo fato de ser uma realidade pouco
não é a divisão dos objetos, mas a satisfação criada por eles, o jogo que se
126
estabelece entre objeto-sujeito e representação. Daí ser possível afirmar,
sorte e o azar, nos demais jogos ditos de azar ou acaso, produzindo um mundo
imaginário singular.
seus desejos em objetos ou em “coisas”, e tal investimento passa a ter uma dupla
“qualidade” do discurso.
127
Nesse sentido, o ato de consumo é antes de tudo um ato imaginário, mas
tão real quanto a própria realidade, pois esta encontra-se dividida entre pressões e
apropriações. A prática social busca construir sentidos locais que orientam a ação
realidade.
tipo específico de jogo de azar e sua relação com a cotidianidade) acaba por reger
128
tempo previsto na rotina cotidiana; o gasto mensal do jogo interfere no
esforço para sair, para se romper com o cotidiano, reintegrando a este o risco, o
129
das pessoas. É fato que numa sociedade cujo modo de produção é o capitalismo
produz mitos, símbolos, desejos, elas tão somente os evoca. A publicidade não
real e imaginária.
indústria. Se o sentido da vista até então era diminuído face à referência auditiva,
do contato do homem com a realidade. Mas não é só por uma questão técnica,
130
O consumo não cria, ele apenas devora, destrói. Ainda que o consumo seja
faz é aciona uma massa de solitários que caminham lado a lado, mas que não se
vêem.
O desejo não é; o desejo quer. Quer o seu fim, seu desaparecimento num
satisfação. Mas uma satisfação que não se esgota, que seja capaz de dar conta
na totalidade de sua força - por isso o “mais uma vez” das compras, do mesmo e
Mais uma vez, não basta examinar a lógica das relações de troca, isto é,
preciso que além de demarcar suas possibilidades, seus limites e sua linguagem,
131
dialeticamente a submetamos ao contexto na qual foi produzida e onde encontra-
envolvem e desenvolvem.
pois não é um valor em si mesma, mas sim aquilo que circula ao seu redor, isto é,
132
inconcebível. Mas, para as pessoas que não seguem a moda, ela se apresenta
Da mesma forma o indivíduo, na juventude, por mais que lute não deixa de
do não-mercado.
realidade substancial (isto sempre será assim, não tem jeito, desde que o mundo é
sensível, aquela vivida pelo sujeito, mas na qual ele não acredita e, por
vem nem do alto nem do lado, mas dele mesmo, sujeito, que carrega consigo a
proibição sob a forma de medo, pavor, terror. Diria que é o modelo panóptico de
133
não visa nenhum tipo de institucionalização nova, antes busca criar um estilo de
vida. Pois é sabido que a consciência da infelicidade supõe (ainda que não
134
CAPÍTULO III
partir das múltiplas interações sociais circundadas pelos objetos, que acaba por
trama.
de recolhimento, ou seja, valores que podem se modificar com o tempo e que são
135
manifestação. Mas, por outro lado, também é possível dimensionar os objetos
achar que o chocalho é apenas uma armação oca contendo guisos em seu interior
maneira como estes compreendem o mundo e a vida. Não é muito difícil, ao nos
dizemos que naquele momento a criança era concebida como uma miniatura do
adulto.
aqueles que têm e aqueles que não têm poder, capital cultural, econômico e
social.
Por outro lado, numa perspectiva simbólica, sabemos também que o terno
qual o manto aparece como um emblema. Remete também à idéia de que aquele
136
que o usa possui poder, portanto, é uma via de identificação daquele que o veste,
como acontecia com os mestres do sufismo que, sob a proteção de seus mantos,
seus poderes.
mesmo tempo.
Rio de Janeiro, que, com seus arranjos, disposições, cores e formas de objetos,
emergência da compulsividade.
137
Enquanto categoria sócio-antropológica e filosófica de análise, a ambiência
funcionar. Dessa forma, podemos dizer também que a liberdade do homem neste
contexto se manifesta através do uso que faz desses objetos; ou seja, sua
de uma “alma” e de um veio simbólico, isto é, já não figuram por seu valor de uso
altamente organizado, onde a realidade tem que funcionar bem. Nesse caso, os
a valer pela tática, pela ordem e pela disposição que ocupam e o local onde
ocupam. Assim, se num dado momento histórico as paredes de uma casa definia
casas de bingo) há uma liberalização dos espaços fundidos num único centro.
vê. A janela já não é mais tida como abertura de acesso à ventilação. A luz que
138
penetrava intimamente no ambiente e iluminava os objetos já não possui mais
esta função particular. A luz agora penetra em todo o espaço, tornando os objetos
espaço torna-se função universal das relações e dos “valores” construídos pelos
homens.
objetos com a intenção de destacá-los, pois a luz tem de ser uniforme, seja
penetrado pela claridade para apresentar a totalidade dos objetos aos olhos dos
indivíduos, isto é, para fundar o espaço do movimento livre das trocas, de coisas,
olhares, gestos, todos medidos pela sua funcionalidade, pela sua eficácia. Na
indiferenciação dos objetos e do espaço enquanto local que agrega tudo e todos,
Da mesma forma, a pintura cede lugar à gravura, pois esta última permite
movimento, mas não um movimento qualquer, e sem orientado para uma forma
139
múltiplas, intercambiáveis e efêmeras; a pintura ensina o homem a ter um olhar
vivo, similar ao sentido do espelho enquanto objeto que suscita um reflexo e que
torna audível para nós os outros ritmos que nos perpassam: os ritmos da natureza
reflexão.
objetos e mesmo o formato de alguns deles e sua relação com os espaços que se
140
avançar um pouco mais na proposta de reflexão de Baudrillard a fim de melhor
modernidade, mas processos cada vez mais complexos e rápidos dos meios de
objetivo, diria, resumido, enxugado, reduzido que figuram como algumas das
um discurso lógico da combinação disto com aquilo, com aquilo outro, numa
141
Os argumentos do uso de determinados móveis sob a perspectiva dos
sentido que radica o sentido de liberdade espacial, isto é, lugar onde o indivíduo
usa e abusa das coisas e destitui delas qualquer valor representativo do objeto,
142
das contas, o seu papel é tornar-se tão volúvel quanto as “coisas” que se
Na medida em que passa a ser possível discursar sobre a lógica tática dos
abertura para a produção ficcional, para a história, para a eficácia simbólica das
centro da sala, encontra-se alocado agora num “canto” discreto, quase que
o arranjo da ambiência. Mas esta tentativa é tão falsa quanto aquela que procura
imaginário.
é muito difícil, por exemplo, relacionarmos a cor vermelha com a idéia de sangue,
143
Assim, é possível falar numa dada ambiência considerando também o jogo
das cores. É fato que um dos papéis das cores é dar evidência aos objetos e
ambiência moderna as cores fortes, vivas, são substituídas pelos tons: valor
abstrato que procura harmonizar o conflito de cores fortes sem evidenciar seus
branco, a luta entre a morte, o luto, aquilo que não se vê, contra a vida, a pureza,
a limpidez da realidade.
tons “frios”, que acaba por enredar outros objetos como, por exemplo, a luta entre
a madeira e o plástico.
que remete, pela vida substancializada como elemento da terra que respira e se
daqueles que vivem em torno dela, e cede lugar ao plástico como equivalente
desses materiais.
144
sistemáticas, a produção “sintética” desloca o simbolismo “natural” da madeira
para um polimorfismo, onde não se faz mais diferença significativa entre o natural
função.
não evolui com o tempo em função de seu conteúdo, e não faz mistério de seu
acesso do que pode ser visto, mas abstrato porque impede o contato, a superação
dos frascos nas prateleiras dos supermercados esconde o acesso precário dos
145
nas suas amplitudes e deslocamentos. Não é absurdo hoje pensarmos que a
sem terem sequer que dar um passo para o lado. O ganho cada vez maior de
dos isqueiros em forma de seixo (fragmento de rocha), que, muito mais do que
produzir fogo como outros similares, se ajusta perfeitamente à mão, quer dizer, é
funcionalmente maleável.
desordem. É o espaço topológico, do viver aqui estando “colado” com a forma que
funcionalidade definida. Mas o fato dos objetos possuírem um valor “funcional” não
significa que eles tenham que se adaptar a um fim; antes, eles são funcionais
146
funcional dos objetos se dá não porque eles possuem um valor próprio, mas por
uma dada realidade, lugar, espaço, enfim, uma ambiência. Da mesma forma,
podemos nos referir aos mesmos objetos pensando-os a partir de suas possíveis
conotações. Pois, em última instância, o que se procura hoje nos objetos não é
sua funcionalidade, sua utilidade, mas sim sua “personalidade”, sua forma viva.
Significa dizer que não são os objetos e produtos materiais que são objetos
sistemáticos de signos.
preciso que antes ele se torne signo de alguma coisa, isto é, que remeta
significados.
147
Depreende-se do exposto que na relação com os objetos o homem, no fim
das contas, não os consome. O que o homem consome é a própria relação que
p.207).
encontra em descrever este vazio, este “buraco”, fazendo com que os indivíduos
148
Alguns termos como alma e espírito gravitam como panos de fundo de uma
seu possível controle sobre ele. É como se fosse possível dizer que a força de
por outros.
poética através de uma relação direta e causal acaba por desvirtuar sua própria
alma e seus múltiplos sentidos, não como realidade definidora da imagem poética,
149
maneira profunda mas não menos causal. A imagem poética não é um produto
com o passado da imagem poética; pelo contrário, sua atenção única é com o
imaginação é a faculdade de produzir imagens é a mesma coisa que dizer que foi
essência da noção de casa. Uma vez que o sujeito se sinta pertencente a uma
150
Assim, a imagem da casa natal não só abriga os valores positivos de
quando a casa já não mais existe. Tédio, devaneios, solidão se amalgamam para
natal.
A casa, fruto do devaneio poético que não dorme jamais, não é uma figura
A fixação da casa no solo remete à sua ligação estreita com a terra, com
tudo aquilo que é mundano por excelência. Mas, por outro lado, suas aberturas
enraizada gosta de Ter uma ramificação sensível ao vento, um sótão que tem
151
Nesse sentido, não é possível falar da imagem da casa considerando
comunicação com o externo e o cuidado de tal ligação com o interno que devem
Diferente daquela outra que não possui maçaneta, hermeticamente fechada, rígida
primeira procura dar uma forma, uma idéia mais concreta a algo difícil de se
152
A metáfora, como diz Bachelard, é uma falsa imagem. É uma imagem
Quando se ama uma imagem, ela há muito deixou de ser apenas um fato,
imaginação criadora.
indica que é possível falar em uma poética do espaço, por outro lado não se pode
sobre a intimidade. Pois, como diz Bachelard (1988), “todo canto de uma casa,
153
O canto é um lugar seguro da imobilidade. Na medida em que consegue se
iluminando do alto o centro de uma mesa familiar, tal qual o sol, princípio da
sonhos coletivos.
imagens, isto é, re-criá-las, trazê-las à luz, ter-se-á apenas figuras sem vida, sem
que ouve de outra maneira quando fecha os olhos... Escuta bem, contudo. Não as
minhas palavras, mas o tumulto que se eleva em teu corpo quando me escutas”
(p.186).
sendo muito mais um ser social do que um ser natural, o autor parte deste
154
Para Bachelard (1994), o respeito ao fogo é um tipo de respeito ensinado,
experiência natural. Desde tenra idade a criança aprende a temer o fogo. Ainda
meramente visível e verificável. Os perigos que o fogo suscita não são somente
concretude não se baseia nas estatísticas, mas naquilo que o homem, enquanto
animal simbólico, traz em sua história através de sua profunda ligação com aquilo
através dos sonhos, mas, para Bachelard, há que se procurar numa camada
nos remete.
devaneio opera como uma estrela: à medida que cresce, que avança, retorna ao
155
O fogo, para aquele que o contempla, é sempre um convite ao repouso.
dizer que o fogo advém da fricção, pois é o mesmo que dizer que a água veio da
bomba, e o ar do catavento.
qualquer necessidade externa à sua própria realização. Tudo indica que o fogo
tenha nascido mais como um sabor de devaneio festivo, como pura manifestação
órgão dos cantos. Portanto, o homem que fricciona os gravetos manifesta no seu
156
A fricção é a carícia simbolizada que, ao produzir calor, alegra e contenta a
mas somente o calor é capaz de penetrar, de se enraizar. Talvez seja por isso que
lá, onde a luz não chega e não torna visível, o calor se insinue. Onde há calor há
Nesse sentido, Bachelard (1994) vai nos dizer que a conquista do fogo é
forma que toda luta contra os impulsos sexuais é uma luta contra o fogo.
bacherladiana do fogo mostra que a relação do homem com o fogo não é uma
partir do enredo no qual se encontra. Os sentidos que ele vai tecendo caminham
157
3.3 - Sentidos da Estética da Ambiência em Teixeira Coelho
em refletir com rigor e seriedade sobre o sentido da arquitetura, seu papel, sua
função e sua identidade. Uma das causas desse descaso e, ao mesmo tempo,
pergunta: O que é o espaço? tem como uma de suas respostas mais comuns a
idéia de que o espaço é “isso” que nos cerca, que nos envolve. Mas, indo mais
além, podemos ainda indagar: Mas o que é “isso”? E por que esse “isso” nos
cerca?
espaço, acabam por colocar o homem como aquele que se encontra ilhado no
meio de um espaço que o envolve e o domina. Mas, será que é de fato que é
antemão?
de expressão que acaba por informar ao homem, consciente ou não, dos limites
158
ou não de seu agir. Ou seja, o espaço não é apenas uma forma morta e sem vida;
somente um lugar oco, um envoltório, uma geometria estática, mas sim uma
que muito poderá nos ajudar a compreender o espaço das casas de bingo.
interação com o mundo. Esta noção, de estar dentro e de estar fora, constitui uma
objeto de culto e celebração. Não é à toa que os cantos, os porões e os forros das
misteriosos acontecimentos.
159
Se é possível detectar uma luta entre o espaço interno e o espaço externo
catedral aparece como retrato fiel de seu interior. Nesse momento a preocupação
maior dos desenhos e das projeções arquitetônicas não se centra mais como
Mas, de qualquer forma, isto não significa uma abolição da discussão entre
espaço interno e espaço externo. Haja visto que hoje a arquitetura se apresenta
forma geral, a disposição interna das paredes é fixa, nas casas japoneses
tradicionais elas são semifixas. Da mesma forma, num aposento ocidental o centro
do espaço é raramente ocupado, salvo por pequenos objetos como uma mesa, um
jarro de flor, e a periferia é organizada e povoada por objetos dos mais diversos;
sala ocidental é sempre uma sala vazia, por mais objetos que ela contenha em
160
Os sentidos a que o espaço pode remeter, principalmente a partir do
binômio interno-externo, acaba variando de cultura para cultura. Pois sem esta
para que possam demarcar bem sua área de trabalho, lugar de concentração e
americana, que com a supressão das portas e de todo tipo de “lugar refúgio”
onde não há uma especificação muito clara dos limites territoriais é visto como um
incomunicáveis aos olhos dos “outros” se apresenta como um lugar que sugere
Isto nos indica que o modo de distribuição e de atribuição dos objetos e signos no
alguém que morou por vários anos em um apartamento muda para uma casa, tal
porta enquanto abertura para a continuação da casa; onde estar fora de casa é
161
estar fora da área total que envolve o espaço interno e o externo construído, isto
lado, o apartamento (em se tratando de classe média ou baixa) pode suscitar uma
física que ele vai construindo, aos poucos, sentidos pregnantes face ao novo
comportamento assumido.
espaço físico em relação aos indivíduos, muito menos afirmar que esta influência
acontecerá numa ou noutra direção. Mas isso não significa dizer que é o indivíduo,
travar um diálogo com ele. Como nos diz Schiller (1990), viver no mundo não
162
significa ser filho dele, mas, acrescento, também não é possível alienar-se de seu
parentesco.
discussão do espaço e dos objetos que nele se encontram, para além de um traço
de manifestação dos indivíduos de uma dada sociedade. Haja visto que a tensão
entre espaço privado e espaço público é, antes de tudo, uma tensão que possui
Significa dizer que nesta categoria de análise que estamos construindo não
há uma tensão entre o interior e o exterior. Aquele que está dentro pode estar
163
aprisionado ou protegido, como aquele que se encontra fora pode estar livre ou
vulnerável.
terreno balido, lugar de qualquer um. No primeiro caso, estar fora significa se
significa a ruptura com este núcleo, onde estar fora significa não pertencer àquela
natureza.
O espaço ocupado pode ser visto como um abrigo, um refúgio, assim como
o útero materno que abriga e protege ao mesmo tempo. Mas, por outro lado, o
mesmo útero que protege cerceia, limita e impede a autonomia. Daí podermos
necessária.
164
grandiosidade que se apresenta a ele, onde se reconhece apenas como parcela
realidade, mas para dar-lhe vida é preciso que se pinte com as cores próprias da
165
conjunto de coisas situado na lógica euclidiana do vertical, do horizontal e da
profundidade.
interno tende a vigorar, isto é, o espaço restrito é aquele que nos restringe, nos
demarcados dentro da casa. Daí Bachelard (1988) já ter dito anteriormente que a
casa e o canto, depois do universo, são outros úteros que envolvem o homem.
que este tem verdadeiro pavor de ver as paredes vazias e lisas, reflexo do vazio
não posso deixar de pensar em minha própria casa) como um lugar repletamente
habitado. Tudo tem de ser preenchido, ocupado, seja através das mesas de
166
cabeceira, as mesas de canto, os abajures, os vasos, os espelhos, o que, em
neste local transita mais na ponta dos pés e driblando um ou outro objeto do que
e sua relação com um maior número de plantas. O mesmo acontece nos arranjos
internos, uma mesa de centro em uma sala já é suficiente para povoar aquele
diz Baudrillard (1993), o sentido dos objetos remetem a uma lógica de consumo,
de funcionalidade como elemento que para nós torna-se pregnante mas não
história milenar.
167
ampliação do espaço, o aumento da sensação de enormidade. A amplidão sugere
possuidor também de tal atributo. Mas, por outro lado, a amplidão também
espaço físico significa e remete os indivíduos a um diálogo com ele. Tal diálogo
visível e inverificável.
168
Como nos diz Bachelard (1988) sobre a dialética entre a dimensão racional
apreendida pela racionalidade, pois mesmo que se ouça barulho no sótão este é
mais fácil de ser racionalizado. Já no porão, que é a parte mais inferior da casa,
domínio da imaginação.
investigadas, a sala de bingo sempre fica localizada no andar acima dos caça
Esta tensão entre aquilo que está acima e aquilo que está abaixo remete
entre o bem e o mal, entre o céu e a terra. O poder divino e as forças do bem vêm
do alto, voando, através dos diversos anjos e das vozes proferidas por eles.
o traidor, aquele que arde no inferno das privações e dos sofrimentos, capaz de
de maneira implacável.
169
espaço não deixa de ser o tempo vivido; o tempo de manifestação, de movimento,
que se sempre se dá em algum lugar, em algum ponto demarcado, mas que deixa
tempo, um tempo vivido físico e imaginário. Daí o porão, enquanto realidade física,
sociais travadas nesse meio suscitam uma projeção imaginária capaz de sustentá-
los, mantê-los em sua realidade física. Ou seja, em nosso processo de busca não
pessoas a estarem aqui ou ali, desta ou daquela forma, ainda que possamos
ambiência.
todo lugar é sempre o lugar de alguma coisa, seja a mais elaborada ou a mais
170
simples. E, mesmo na ausência de qualquer coisa em um dado espaço, sua
semantização ainda vigora como espaço vazio, a ser ocupado, ou até já ocupado
por fantasmas, por lendas e superstições. Pois o espaço para ser totalmente
dessemantizado é preciso que ele morra juntamente com aquele que o produziu: o
homem.
sua quarta edição francesa, nos fornece uma fecunda reflexão sobre alguns
enquanto produto. Pois é fruto das relações sociais travadas pelos homens no
sentidos de espaços como a vila, a cidade, o bairro, a casa, as ruas, as vielas, que
171
A relação espaço-tempo é um efeito das ações sobre a “natureza primeira”,
Pois o espaço não é uma coisa, um objeto, mas sim um conjunto de relações onde
devido a seu caráter simbólico. Não é um lugar passivo, inerte, frio, onde uma vez
produtor. Ele se dialetiza nessa relação tensa entre lugar de produção de sentidos
dentro de uma prática precisa, amalgamada, fundida numa forma e numa duração.
172
Pois, segundo Lefebvre, se é possível falar sobre uma história do corpo, da
espaço social dentro de sua história e sua gênese. O local, o regional, o mundial
para este autor se imbricam, isto é, os conflitos atuais ou virtuais não são
“Estrutura e conjuntura” de outra obra sua: Lógica formal e lógica dialética, 1979.
173
Não é possível falar em espaço de maneira absoluta, substancial, se antes
E é justamente neste sentido que Lefebvre (2000) nos mostra que, tanto no
direito, um plano alto e outro baixo, ou ainda, uma simetria de rotação que, juntos,
compõem os elementos que não são exteriores ao nosso corpo. Ou seja, todas as
produzido por ele, isto é, movendo-se segundo suas as leis e seus limites.
Nesse sentido, Lefebvre vai dizer que este mesmo percurso do intrínseco-
espaço ser algo que suscita uma reflexão mais acurada, pois enreda um nível
um sujeito que o habite. Assim, esquerda e direita, alto e baixo, frente e atrás,
rápido e lento, perto e distante, dentro e fora são noções que perfazem uma
174
relação e um movimento inerente ao que se denomina espaço. Um espaço com
corpo e movimento.
de morada. Sentido este que vai sendo sedimentado na medida em que o espaço
moradores.
175
O ser vivo vive no espaço porque faz parte dele. Seja como elemento
interativa com seu meio. Especialmente falando, os humanos não são receptores
realidade.21
O espaço é real porque há homens que criam - com seus olhares, seus
este mesmo mundo. “Tudo se passa como se cada contorno, cada plano do
p.213).
21
A este respeito, tanto Nietzsche quanto Georges Bataille vão afirmar que dentro da espécie humana há
sempre um excesso de energia desmesurada, que se manifesta também sob a forma da erotização, da festa, do
jogo, do sagrado. Mas este excesso de energia não significa que necessariamente os humanos tendem por
necessidade a criar as realidades supracitadas, ao contrário, pois a autodestruição, a violência e o suicídio
também emanam dessa mesma energia impulsionando tais movimentos. George Bataille (1987) nos apresenta
uma passagem que considero lapidar : “A experiência leva à transgressão realizada, à transgressão bem
sucedida que, sustentando o interdito, sustenta-o para dele tirar prazer. A experiência interior do erotismo
exige de quem a pratica uma sensibilidade bem maior ao desejo que leva a infringir o interdito que à angústia
que o funda. É a sensibilidade religiosa, que liga sempre estreitamente o desejo e o medo, o prazer intenso e a
angústia”(p.35-36).
176
Ainda segundo Lefebvre (2000), este movimento tenso e perpétuo de
elementos que são fundamentais, pois constitutivos dessa lógica, qual seja, a
ligação imediata com o repetitivo, o diferencial; o espaço, enfim, com sua dupla
Neste jogo da ambiência, o sujeito não vive nem o espaço cênico nem o
espaço público, mas sim o espaço teatral no sentido clássico do termo. Por sua
vez, não podemos dizer que a cena criada seja uma representação do espaço, ou
ambas. Pois para que mudemos o rumo de nossa vidas, seja no campo material,
177
O espaço social não é necessariamente um espaço socializado. Todo
espaço, para ser como tal, tem de ser apropriado, significado ou mesmo
capacidade de criar e recriar formas e sentidos diversos em seu interior; mas, por
aqueles que momentaneamente se encontram com o tempo livre, por outro lado
há todo um jogo de sedução no interior dessas casas convidando para que estes e
fácil e pela boa aparência dos atendentes sempre gentis e rápidos em sugerir uma
nova cartela ou cafezinho para que o tempo entre uma jogada e a reflexão sobre a
próxima se da de maneira mais curta possível. Isto para que aquele que aposta
tanto possa saciar sua excitação imediata a uma nova tentativa, quanto para
minimizar seu poder de reflexão diante de seu impulso para o ato de jogar.
178
ambiente que construirá, junto com ele, o sentido da ambiência, isto é, do sentido
indiretamente passam a ser revestidos de uma aura de afetividade, que mais tarde
mundo – e, por que não dizer também, o universo dos jogadores que frequentam
as casas de bingo.
bingo no interior de uma casa de bingo, se relaciona com tal realidade acionando
179
tridimensional, em espaço físico povoado por objetos, imagens, cores,
encontram. A visão capta cores douradas, por uma questão óbvia; o vermelho da
esperança necessária para o jogador, diante de uma derrota e face a uma nova
Nas salas de bingo não há relógio na parede. A quantidade de fortes luzes, tanto
para facilitar a visão dos números e da cartela como também para evocar a
para um outro mundo que não deve ser evocado neste templo.
ou direito, tem a ver também com a dominância auditiva. A audição situa o corpo
criando uma ritmicidade própria. Não se imagina uma casa de bingo onde os
180
silêncio fúnebre durante a contagem dos números dá o tom da atenção profunda e
absorta do sujeito face àquilo que ele ouve. Nenhum barulho externo é capaz de,
de forma estridente para publicamente mostrar aos demais que todos são capazes
de vencer.
alheia, com seus vinhos, canetas Mont Blanc e a presença das cores opacas nas
paredes.
181
textura, alinhá-la (isto se for mais de uma) em forma horizontalizada ou
todo o número, também faz parte desse grande jogo entre a sorte e o azar. A mão,
que espera marcar o próximo número, não se contenta somente em ficar parada,
cartela, à espera do número que não vem. Mas se a mão é o foco principal, isto é,
porque na realidade não é só a mão que “coça”, mas todo o corpo. São os trejeitos
muito pouco, as pernas que se trançam por debaixo das cadeiras, ora acariciando-
as, ora afastando-as numa verdadeira dança. Enfim, o corpo todo vibra, se excita,
ainda que sua presença seja inegável diante dos compulsivos cigarros e cafés de
que muitos fazem uso no decorrer da excitação. Entretanto, não podemos também
desprezar a imagem do senso comum, que diz que a vitória tem um gosto doce, e
182
vencemos, tenho observado assistematicamente que quase sempre se comemora
com comida e bebida. Diante da vitória, como se diz também no vulgo, a comida
se fragmenta em função de uma prática, que inclui o discurso mas não se reduz a
interações e interferências não deverão ser tão importantes” (p.236). Nesse caso,
encontram.
22
Cf. “A dialética da duração”, de Gaston Bachelard, 1988. O autor procura discutir, diferente da tese
bergnosiana de continuidade, de que a única realidade temporal é a do instante, isto é, de que o tempo é
essencialmente descontínuo. Influenciado pela leitura dos estudos de Pinheiro dos Santos, Bachelard vai
adotar um método para analisar o ritmo desse sistema: a ritmanálise.
183
significar a realidade, pois cada indivíduo situa seu corpo no espaço e percebe o
espaço que se encontra em torno de seu corpo. Daí não ser possível falar de
O que podemos dizer é que há todo um jogo dos sentidos que circulam no
interior dos espaços, evocando sua natureza, seu glamour, sua pregnância de
sentido construído pelos objetos, com os tons, cores, formas e disposições que lá
diferenciada.
produzir isto ou aquilo, mas produzir espaços, isto é, espaços de sentidos. Não é à
toa que todo espaço monumental, como uma catedral, um estádio de futebol, uma
arena antiga ou mesmo algumas casas de bingo que na sua arquitetura procuram
resistência, de a-temporalidade.
184
Coo diz muito bem lefebvre (2000), uma obra monumental (e aí
185
186
CAPÍTULO IV
AMBIÊNCIA E JOGO
podendo ainda ser intuído. Porém, estes registros ficam apenas sob o domínio da
aberturas para o indizível. Não pode ser apreendida em sua totalidade pela razão.
análise.
enreda em uma lógica própria de sentidos. É uma realidade que mapeia, inscreve,
situa e projeta no homem ao mundo dos sonhos, desejos e paixões mais íntimas.
O jogo é a palavra que não pode ser dita oralmente, que significa profundamente,
mas que não é capaz de dizer tudo, pois há sempre alguma coisa a ser dita. É
187
abertura ao mistério, inteligível e ininteligível, tensão permanente, luta incessante
ser de mão dupla ou de mão única. Por metáfora, espécie de mergulho batismal
não saber nadar ou por não ter ajuda para tirá-lo da água.
Aquele que “mergulha” em outro mundo, mesmo que seja em alguns lapsos
porta de acesso a uma nova possibilidade de ser ou daquilo que gostaria de ser. O
jogador joga e é jogado pelo movimento inicial que detonou. Ele controla e se
instantes como se fossem os últimos de sua vida. O jogo é tão orgástico quanto
um orgasmo. Por isso a necessidade do “mais uma vez”, que para alguns pode se
23
Esta tensão entre o riso e o choro é discutida de maneira singular pelo professor João Batista Freire, em seu
livro O jogo: entre o riso e o choro (2002). Vale a pena conferir este belíssimo trabalho de investigação de
uma das maiores autoridades capazes de discutir o tema para além de uma visão funcionalista e acessória.
188
O jogo é muito sério para quem joga. E tal seriedade decorre do fato de, no
medos e suas ousadias, sua coragem e sua covardia, enfim, estes e tantos outros
Nesse sentido, criar condições objetivas e subjetivas para que o jogo possa
humanidade do homem.24
prazer e de realização, dos movimentos mais simples aos mais complexos, nas
atitudes mais imediatas e mais utópicas, eis algumas marcas indeléveis do jogo.
deleite. Uma vez que se crie uma rede de sentidos em um ambiente acolhedor,
24
A categoria humanidade que utilizo aqui não possue qualquer outra conotação que não seja a expressão de
valores fundamentais movimentados pelo homem em sua mundanidade, quais sejam, o prazer, o desprazer, o
189
jogo, mas, antes de tudo, de uma grande possibilidade de alguns indivíduos serem
superação do acaso, pela luta incessante em controlar a lógica do jogo, e por fim,
“As bacantes”. Inicialmente, argumenta que a peça, a seu ver, contém toda a
um conflito simples, mas antes de uma interação mais ampla que envolve dois
sentimento de vitória, o sentimento de perda, a liberdade, a falta dela, enfim. Valores que perpassam os
homens e que se encontram presentes e aprofundados nas várias manifestações do movimento do jogar.
190
Significa dizer que quando a razão de um sujeito é influenciada
da razão louca.
provoca a heteronomia, isto é, faz com que ele passe a agir acreditando que há
algo maior que ele mesmo capaz de fazer com que sua ação seja representante
regrada diante dos preceitos sociais e morais fundantes da vida societária. Assim,
a razão sábia produz o saber no plano cognitivo, permitindo que o indivíduo seja
capaz de ver para além das aparências, enquanto no plano moral vivencia a
convivência possível.
tensão entre a razão e a paixão, quando argumenta que as pulsões de vida (Eros)
191
como as pulsões, “as paixões encontram-se no limite do somático e do psíquico”
(p.450).
que se deixa dominar pela paixão, perdendo assim seu caráter objetivo e racional,
impulso de jogar.
mundo, não o faz de maneira completa com a realidade, como ocorre com o
pelas paixões; portanto, ainda que tolhida em sua autonomia, não deixa de ser
presença.
192
de forma muito bem calculada, premeditada; e realizam todo tipo de artimanha
inteligentemente construída para saciar seu desejo pelo jogo. Ou seja, “dialogam”
com o mundo real para extrair dele o necessário para alimentar o mundo
imaginário do jogo.
medido pelo fluxo de prazer e de excitação que se espera extrair do vivido. Daí a
Pensa que raciocina, mas no fim das contas esta crença não passa de um grande
A razão louca não admite que tem que se libertar de nada, pois no seu
delírio, embalado pela profunda adesão emocional, ela acredita ser a expressão
fazer uma dieta compulsivamente... a liberdade de jogar quantas vezes ela quiser.
193
Em um determinado momento da história do Ocidente podemos visualizar
dá através da relação tensa e constante entre o Id, o Ego e o Super Ego, como já
sociedade.26
25
Cf. Nietzsche, em Genealogia da Moral
26
Segundo Rouanet “Marcuse criou o conceito de sublimação repressiva, pelo qual o sistema social existente
encoraja uma liberação administrada das paixões, com vistas à preservação do status quo. Mas, muito antes
disso, o fascínio já havia estimulado uma exteriorização parcial das paixões destrutivas, para gerar nas massas
a agressividade anti-semita”(p. 456).
194
Ego aparece ao mesmo tempo como agente de defesa e como agente de
pensamento.
emerja, isto é, para que o pensamento possa funcionar como pensamento e não
como intuição ou pura imaginação, é preciso que ele não se deixe perturbar pelas
ações propulsivas e repulsivas do desejo e da aversão. Até porque, por mais que
direção do saber e do conhecer há um desejo de..., uma paixão à... Diria que a
Do exposto, podemos dizer que não é a razão louca ou a razão sábia que
está em jogo, mas sim o uso que o homem faz da razão em cada circunstância de
sua vida. O dado novo inaugurado por Freud é dizer que tal uso não depende
195
inconsciente capaz de impelir o homem a uma dada direção, independente de sua
conhecimento do senso comum, a doxa. Por que, no fim das contas, sempre há
uma subjacência que “ fala mais alto” que a própria fala do sujeito, que se
profundo do que outro vai depender das categorias que se usa para tal
quando se quer afirmar a razão científica, através de seus métodos e técnicas não
só como a forma mais clara de produzir conhecimento, mas como a única forma.
Entretanto, para um povo que estrutura sua vida a partir de alguns mitos, não é
196
possível explicá-los em sua totalidade de maneira lógica, racional, coerente, até
por quenão há necessidade, basta apenas vivê-los. Longe de ser uma deficiência
do pensamento, o pensamento mítico pode ser visto como uma força positiva de
em uma única direção imaginária e não retorna dela, o que acaba por remeter o
louca regula a vida moral pela defesa inconsciente; a razão sábia, pelo julgamento
27
Cassirer (1994), em Ensaio sobre o homem, e especificamente no capítulo que trata sobre a ciência, irá
mostrar que o pensamento científico, enquanto modo racional de classificar, de separar e de buscar uma
ordem, isto é, uma certa regularidade nos fenômenos, se movimenta, neste último caso, muito próximo do
pensamento mítico. Já que na “lógica” mítica a realidade se apresenta conectada integralmente a tudo e a
todos, pois sua verdade tem a ver com a beleza do encadeamento e da idéia de totalidade dos fenômenos,
traço fundamental da realidade onde não há distinção clara entre símbolo e objeto, pois o símbolo não só
explicava o objeto mas assumia o seu lugar. “O cientista age com base no princípio que até nos casos mais
complicados acabará conseguindo encontrar um simbolismo adequado que lhe permita descrever suas
observações em uma linguagem universal e de compreensão geral” (p.357). Ou seja, o conhecimento
científico, na proposição freudiana, acredita que é capaz de deslindar através de leis estritas e regras
numéricas exatas o campo dos fenômenos psíquicos. Ele parte da crença de que a natureza em sua totalidade é
um conjunto de números harmonicamente organizados. Ou seja, no pensamento mítico, assim como no
pensamento religioso, artístico, do senso comum e no científico, o homem constrói um universo simbólico
próprio que lhe permite interpretar, articular e organizar a realidade, e universalizar sua experiência humana.
Nem melhor nem pior que qualquer outra forma de conhecimento, apenas diferente no uso que se faz dos
caminhos e na sua intencionalidade de se relacionar com o mundo.
197
compulsivos que chegaram ao “ fundo do poço”, o que será discutido mais à
razão sábia não escraviza e não se deixa escravizar pelas paixões; quando diz
não às paixões esta negativa é de ordem consciente, voluntariosa, pois ela sabe
que certos impulsos devem ser inibidos, não como mecanismo de defesas mas
loucura.28
28
Erasmo em “Elogio da Loucura”, diz que as paixões são sustentadas pela loucura, isto é, pelo amor próprio,
pelo auto-elogio. Argumenta que as paixões são indispensáveis a vida, pois sem elas não é possível falar em
humanidade Entretanto, as paixões destrutivas como a gula, a cobiça, a avareza, a inveja fazem com que o
indivíduo fique mais convencido de sua própria importância confundindo seus desejos com a própria
realidade. Como é o caso também do jogador, “ Sinto certo escrúpulo em introduzir em nossa sociedade os
jogadores de profissão. Mas decerto que é uma loucura, oferecendo um espetáculo ridículo os que, de tão
apaixonados pelo jogo, sentem bater e saltar o coração dentro do peito, sempre que vêem cartas na mesa ou
quando ouvem o barulho dos dados. Então, quando a enganosa esperança de recuperar o que perderam faz
com que percam o resto de seus bens e quando sua nau se quebra contra o escolho do jogo, ainda se julgam
muito felizes por se terem salvo nuzinho em pêlo desse naufrágio. E o mais bonito é que essa espécie de gente
prefere roubar a quem quer que seja, exceto ao que a despojou, pelo receio de passar à conta de pouco
honesta. Que deveria eu dizer desses velhos que, quase cegos de tanta idade, chegam a pôr os óculos para
jogar e, tendo as mãos atacadas pela gota, pagam a alguém para que joguem os dados por eles? São tão loucos
pelo jogo, e nele experimentam tão extremo prazer, que sou levado a considerá-los como de minha atribuição.
Mas, muitas vezes, o jogo se transforma em raiva, em furor, e então, me inclino a atribuí-lo mais às fúrias do
que a mim”(p.71).
198
mundo próprio através da evasão da vida real, e ao retornar não consegue se
de convivência, ele se torna um autista. Daí, muitas das vezes, o prazer intenso, a
fundada pelas paixões, uma vez vividos como a única coisa que importa, podem
degradação.29
29
Por outro lado, a paixão vivida imaginariamente como uma realidade de extrema relevância para o
indivíduo, isto é, vivida radicalmente e não sectariamente, alimenta-o para a vida. Pois é neste sentido que
Erasmo diz que nem toda paixão é capaz de provocar a infelicidade humana. O autor cita uma passagem em
que um cidadão grego que passava várias horas sozinho no teatro imaginando que estava assistindo a uma
belíssima representação. Este homem para os amigos era tido como uma pessoa querida, assim como sempre
se mostrou solicito; fiel à esposa, educado para os demais, enfim, uma pessoa que não causava mal a
ninguém. Mas, um belo dia, a família, julgando seu comportamento como de um louco, pensou poder curá-lo
dando-lhe um remédio. Ele acabou voltando ao estado denominado de “bom senso” perante os seus, mas não
hesitou em dirigir-lhes a seguinte observação: “Meus caros amigos, que fizeram vocês? Pretendem ter- me
curado e, no entanto, mataram-me. Para mim acabaram-se os prazeres: vocês me tiraram uma ilusão que
constituía toda a minha felicidade” (p.69).
199
A razão sábia, a razão louca ou a des-razão são movimentos da alma
do desfiguramento quase sem volta da razão, que ocorre nos casos de demência,
nome do mundo imaginário criado por ele e que independe dos momentos de
intensidade, sempre vive no mundo imaginário. Ele imagina ser um super homem,
seus prórpios limites racionais age de forma parecida, só que não se joga pela
janela porque assim fazendo não poderá jogar mais; quando decide se atirar é
200
Dizer em que momento acontece a passagem da razão sábia para a razão
realidade cotidiana, não é tarefa que nos compete neste trabalho. Até porque julgo
e controlável.
procura jogar. Pois neste espaço o jogo assume sentidos diversos. É um espaço
é jogar. O normal é que se passe muitas horas dentro da casa de jogo. Que se
aposte o que se tem e o que não se tem. O fato é que haverá sempre um
atendente bem vestido e com boa aparência física, falando baixo e firme, à sua
201
A casa de bingo é o templo dionisíaco da modernidade. Lá se brinca, se
joga, se bebe, se fuma, fala-se alto, dá-se socos contidos na mesa. Dezenas, até
risos e choros, expressões de alegria, angústia, tristeza e raiva fazem desse lugar
um palco de emoções externadas dos mais sutis aos mais evidentes movimentos.
Diria que a casa de bingo acolhe a expressividade humana em seus dramas mais
profundos.
Mas, para se chegar à sala de bingo, geralmente tem que se passar pelo
caça níquel, lugar com luz indireta onde o brilho que vigora é o multicolorido das
bolas numeradas, laranjas, limões, peixes e toda sorte de imagens que possam
inigualável para aquele que joga. É um tilintar que pede o “mais uma vez”. Quanto
mais moedas são ganhas, mais se prolonga o som das fichas caindo, doce música
jogador vai recolhendo o prêmio como se fosse a última coisa que fizesse na vida.
pequeno, sem cor e com uma forma somente funcional, isto é, sem música, sem
cores e sem bandeja; sem possibilidade para o outro ver o sucesso ou o fracasso
daquele que lhe está próximo, pois as moedas ganhas seriam pagas no caixa, por
202
intermédio de uma leitora ótica na saída. Imagine um caça-níquel do tamanho de
carteado é verde; a questão é: por que ele sempre aparece como verde? Por que
não outra cor? Por que é que o caça níquel emite sons e cores em profusão e
possui bandeja de metal, se em vez disso poderia ser de veludo, esponja ou outro
compõe e dão sentido à casa de bingo, tornando-a ser o que ela, é e não outra
qualidade, o fato é que pudemos identificar um fio condutor nas casas de bingo,
203
desde a mais simples, localizada no centro da cidade, à mais sofisticada, situada
Como nos diz Lefebvre (2000), o espaço é sempre um lugar produtivo e produtor,
através do eco que estes poderão ter em diferentes escalas ou até em nenhuma
delas, com o espaço, mas capaz, também, de incitar a significação. O que nos
204
interage. Pois, seguindo o raciocíneo da psicologia gestaltista30, a sensação se
contemplação na medida em que esta última remete à idéia de olhar devagar para
incide sempre em uma tomada de decisão, portanto, remete à ação. Uma vez que
percepção quando se fala naquele que percebe, isto é, no sujeito que percebe e
30
Antonio Gomes Penna, 1997, cita James J. Gibson em seu livro, The Perception of The Visual World, como
importante referência da Psicologia Contemporânea influenciado pela vertente gestaltista sobre o conceito de
percepção e sensação como instâncias profundamente interligadas na forma com que o mundo é apreendido
pelo sujeito.
205
qualquer tipo de separação entre o magma e o indivíduo que ele faz ser ao se
manifestar. Ninguém percebe o mundo de um lugar que esteja fora dele mesmo,
Entretanto, isto não significa dizer que há uma pulverização dos significados
dos objetos, reais ou ideais, à luz do particularismo explícito daquele que percebe.
Não se trata de dizer que cada indivíduo possui uma percepção tão singular a
ponto de dizermos que cada um percebe o mundo como convém. Nâo é bem
assim, pois se fosse não seria possível tratar da unidade, das interações sociais e
objeto de sua percepção, mas, por outro lado, ele não se encontra descolado do
206
A heterogeneidade põe em relevo o fato de que as durações do tempo
podem ser mais ou menos longas, conforme a experiência que se está vivendo. Já
devo cumprir” (Penna, 1997, p.109), enfim, as perdas e ganhos que se passa a
observação estão tão intimamente ligados que, quando olhamos a face de uma
1997, p.136).
esses estímulos, nos seus arranjos, em suas táticas organizacionais. Como nos
207
do sujeito no mundo. Na medida em que os estímulos se ofereçam a distâncias
incide sobre elas, daí não ser menor o papel das gradações de luz e sombra, de
31
intensidade e opacidade que caracterizam as cores . Pois as propriedades
de onda luminosa. Dito de outra maneira, perceber a cor é ver como o objeto
modifica a luz.
31
Pedrosa (2002), aponta o pensamento de Goeth dizendo que as cores são divididas em três categorias:
estímulos fisiológicos. Físicos e físico-químicos. O que caracteriza o estímulo fisiológico é sua integração
com a sensação. Há uma excitação mecânica saturando parte da retina com uma cor, forçando a outra parte da
retina a produzir fisiologicamente a cor complementar do que foi excitada. Há tambéma a excitação subjetiva,
que se dá em função da própria retina, ou do cérebro (sensação colorida no escuro, manipulação de cores
realizada pelos pintores, mentalização colorida dos místicos, visão causada por alucinógenos, sonhos...) e por
disfunções orgânicas (cores patológicas). Já o estímulo físico é aquele que é emitido por uma fonte energética
direta (luz colorida), ou por dispersão dos raios luminosos da luz branca. E nos estímulos físico-químicos, a
natureza e a organização dos átomos das moléculas é que determinam a cor percebida nas substâncias, como
exmeplo, o níquel, o cobalto, o cromo etc.
208
A capacidade de discrimimação das cores é amplamente variável para os
saturação” (p.150-151).
branca. Ao nos referirmos à cor pura, estamos dizendo que há uma tonalidade
Para Pedrosa (2002), a referência que fazemos às cores está muito mais
relacionada aos aspectos emotivos do que aos aspectos de ordem lógica, estes
últimos ligados mais estreitamente às formas, ainda que haja uma relação muito
íntima entre cor e forma ou extensão, pois uma determinada forma, dependendo
da cor, pode sugerir ser maior ou menor do que de fato é, ou ainda ser mais ou
209
Ainda Pedrosa (2002) acredita em uma possibilidade de classificação das
medida em que se caracteriza pela influência que certo matiz exerce na percepção
imediata.
da luz nos objetos, alterando seu cromatismo e podendo fazer com que aquilo que
arquitetural pode ser modificado, tornando-se maior ou menor, mais baixo ou mais
alto, mais estreito ou mais largo, quente ou frio, aconchegante e disperso, apenas
pelo efeito da cor. Mas cabe ressaltar que estamos tratando da influência da cor
210
uma cor desta ou daquela maneira, sua reação não será diante da cor em si, mas
relação à cor têm sido usadas tanto pela educação quanto pela terapêutica de
maneira geral, ainda que não tenha sido possível encontrar evidências
azul, esta cor irá produzir no indivíduo uma diminuição do ritmo cardíaco e da
pressão.
indivíduo frente às cores. O objeto não é capaz de dizer para o sujeito como ele
deve responder a tal estímulo, ainda que todo objeto seja portador de uma cor.
211
Não há objeto sem cor, isto na medida em que ser objeto significa ser uma
especiais. Farina (2002) nos diz que no campo da neurologia há estudos que
indicam, por exemplo, que um paciente que possuía lesão cerebral ao se vestir de
óleo. Com um grupo amostra de catorze latas de óleo, cada aluno envolvido na
32
Farina (2002) elabora um pensamento de síntese sobre a relação luz colorida e medicina, indicando que a
luz vermelha influencia nas refeições, produzindo irritação devido à fermentação provocada pela luz e,
consequentemente, úlcera estomacal e desordens gastrointestinais; estimula as funções orgânicas do homem;
favorece a marcha da catapora, do sarampo e da escarlatina. A vibração azul é indicada contra histeria
nervosa. A luz verde e a cor verde têm efeito tranquilizante, etc.
212
seiscentas pessoas no total. As cores predominantes nas latas foram: verde, 5;
Decorre que não houve uma grande variedade quanto às cores da lata,
p180).
213
Farina ainda indica que o grau de atenção dedicado aos anúncios em
se ainda que há uma tendência das classes mais pobres de optarem por cores
mais vivas e vibrantes, enquanto que as classes mais abastadas prefeririam tons
humano a partir do viés fisiológico, mas é difícil que tais pesquisas possam ser
feitas considerando um único aspecto do ser humano, bem como que tais
mistério.
214
amarelo do desfalecimento, o vermelho claro do sinal de saúde e o vermelho
imagens como “a situação está preta”, “fulano ficou vermelho de raiva”, “ciclano
a cor ser ao mesmo tempo bio, ético, cultural e imaginária. Há estudos no Brasil e
em outros países que têm procurado se debruçar de maneira muito séria sobre a
na promoção de vendas.
bola, que, em sua dialética entre o branco da vida e o preto da morte, verdadeira
215
tensão mítica e ancestral entre o positivo e o negativo, o Yin e o Yang, sugere a
216
4.2 – O Universo Simbólico das Casas de Bingo
porte físico semi-atlético, e alguns bem atléticos, com barba e cabelos feitos,
primeiro pensamento que nos ocorre é que a figura masculina tende a vigorar em
nossa sociedade como expressão de froça física, sobriedade e poder. Ainda que
imaginário social nos outdoors, nos anúncios de televisão e nas capas de revistas,
Não podemos esquecer que jogar é muito sério para quem joga. E a casa
que você quiser. E, ao abrir a carteira, não terá que se preocupar com um possível
ladrão à sua volta. Você está seguro. Sinta-se seguro para jogar.
Apesar de o local onde ocorre o bingo ser chamado de casa, esta se funda,
217
espaço e espaço de representação, diferenciado da casa onde reside o jogador.
constitutiva, amalgamando sentidos diversos deste novo mundo que se abre para
o sujeito.
nem ele nem ela se reduzem a epifenômenos deste mundo. A relação entre
sujeito e a casa de bingo vai sendo construída e resignificada a cada nova jogada.
No início, é apenas uma casa de jogo, de diversão; mas, através das idas e
o frio, entre o alto e o baixo, pois é uma cor que se situa entre o azul e o amarelo.
É uma cor tranquilizante. Após o inferno branco e árido que remete o homem à
218
bandeira do Islã, que constitui para o muçulmano a salvação e o símbolo das mais
e olhos verdes.
princípio vital, o lugar sagrado que guarda o segredo dos segredos, aparece
O verde, por oscilar entre o dia e a noite, entre o mais profano e o mais
síntese a cor que acalma, uma cor sem alegria, sem tristeza, sem paixão, que
nada exige.
219
O verde-escuro acalma, o verde claro faz predominar o sentido de
destino.
símbolo da ressurreição. E Van Gogh certa vez disse: “Eu procurei exprimir com o
entre o risco e a incerteza, embalado por sua luta contra o indeterminado, o verde
bingo. É em relação a isto que Lefebvre (2000) irá dizer que há um perpétuo e
espaço. Uma comunicação que não pode ser desvendada em sua totalidade pela
lógica formal, pois estar dentro da casa de bingo, jogando, é perceber ao mesmo
220
quase estáticos; gestualidade global, parcial ou somente através dos trejeitos dos
Entretanto, não basta apontar alguns sentidos simbólicos da cor verde para
conhecimento, por que é que os tapetes das casas de bingo luxuosos não sâo
bingo não são amarelas? Esta é a questão principal. Não basta apontar o objeto; é
partir da sua interação com outros objetos, que o fará vigorar com mais força para
uma ou para outra direção. Não esqueçamos: o mesmo verde que remete à
do mofo e da putrefação.
221
A presença da cor verde se dá em locais estratégicos nas casas de bingo.
ficam espalhada. Geralmente são ocupadas por pessoas de meia idade e idosos,
espaço onde um dos detalhes principais é não haver relógio, pois, como já foi
constrói a cada jogada, não estabelece com esta realidade uma mimicry (Caillois,
1980), isto é, uma representação do ato de jogar. Por outro lado, os sentidos que
33
A este respeito Cf. “ Da cor à cor inexixtente”, de Israel Pedrosa, 8ªed., 2002. Comenta a este respeito o fato
do verde na medida em que remete simbolicamente a idéia de esperança, se encontrar na antiga toga dos
222
ele atribui ao espaço da casa de bingo, a cada movimento seu no interior desse
local, não traduzem também o movimento que ele realiza no espaço público, pois
se dá, ao mesmo tempo, como fuga e como projeto da realidade. Isto é muito bem
ilustrado por Jean Chateau (1987), quando se utiliza da metáfora do arquiteto que,
para pensar a casa, tem de se afastar do terreno para poder vê-la melhor.
uma rodada e outra for longa isto pode gerar uma certa consciência por parte do
do jogo acontecer sem rupturas com o prazer lúdico de jogar. E, além dessa
médicos. Pela mesma razão, acredita o autor que se justifica ainda hoje a cor verde dos anéis de grau, como
também, ser a cor preferida para a ornamentação das farmácias e da indústria farmacêutica.
223
continuar neste espaço: são cafezinhos, drinques, balas e alguns petiscos, que em
outras não conseguiam nem olhar para os petiscos, enquanto uma outra
petiscos que ali estavam se apresentavam muito mais como um objeto de catarse
Voltando à cor verde, seu uso, seja na parede, nas poltronas, nas mesas de
para que o jogador não se desespere de maneira tão rápida. É preciso que a
tensão e o nível de excitação vividos pelo jogador a cada jogada, a cada número
que é sorteado em voz alta e passível de ser visualizado pelas telas das
televisões e telões espalhados pelo salão, possa ser controlado, dialetizado com a
próxima cartela, ele será bem-sucedido. Para tal, ele tem que ter tranquilidade,
224
para continuar no jogo, mesmo após a turbulência vivida segundos antes. Ele tem
de acreditar que na próxima rodada aquele último número que faltou ser sorteado
na cartela anterior será sorteado nesta nova cartela. E o verde é a cor que está
necessário para que o jogador possa agir livremente através de seu imaginário,
que ao mesmo tempo é neutro e também fonte de sabedoria, dos segredos mais
secretos. Pois é a partir daí que o jogador alavanca a sua produção imaginária,
mistério da vida. O mesmo vermelho que seduz, encoraja e provoca pode remeter
Mas, se por um lado o verde é a cor por excelência que figura no interior do
salão do bingo de maneira mais ou menos evidente, por outro lado, quando está
adentrando a casa de bingo o jogador não pode ser acolhido com neutralidade e
paz; ao contrário, ele tem de se sentir forte, poderoso, otimista, motivado para o
sucesso, para a luta que irá enfrentar. Daí identificarmos no hall de entrada a cor
225
vermelha dos tapetes, o aconchego e a preparação para os enfrentamentos que a
do amor divino para os cristãos. Era a cor distintiva dos generais romanos e da
nobreza patrícia, tornando-se a cor dos imperadores. Nos jogos de cartas, é a cor
226
Na tradição irlandesa, o vermelho é símbolo da guerra. Orgiástico e
libertação e opressão, prazer e desprazer, vitória e derrota. É uma cor forte, não é
através da ação.
irá jogar com a sorte, contra o acaso, contra o indeterminado, o vermelho tende
227
simbolicamente a “inspirá-lo” para a decifração dos códigos divinos, das
mensagens secretas que terá de fazer uso para escolher a cartela ideal, a cartela
vencedora.
grandes telões (que em algumas casas de bingo são pintados com esta cor) tende
suscitada pelo verde na hora da cartada decisiva, da espera pelo número a ser
é uma cor que não pode dominar o campo visual no que diz respeito ao entorno
Se o tempo das casas de bingo não é medido pelos relógios, mas pela
força imaginária que a evasão do ato de jogar provoca, o retorno de cada jogada,
228
remeteria ao não-movimento pelo excesso. Significa dizer que na conduta de jogo
níqueis e mesmo nas imagens digitalizadas dos números que aparecem nas telas
sua relação misteriosa com o jogo, há, por outro lado, necessidade dele se
perceber forte para iniciar seu mergulho na própria produção imaginária sem
O azul é a mais profunda das cores, pois ao mergulhar nela o olhar não
necessário àquele que joga, que aposta o que tem e o que não tem; que não se
229
cansa de criar situações imaginárias compensatórias e motivadoras para a nova
Pedrosa (2002) nos diz que as mais antigas referências sobre a produção e
Não há contradição que não possa ser resolvida pelo azul. “Um ambiente
apenas oferece uma evasão sem sustentação do real, apenas uma fuga que, a
entrada, através dos trajes dos recepcionistas. Pois, quando não portam o preto,
cor absoluta, síntese de todas as cores, estes encontram-se trajados com o azul-
230
“guardiões” do templo onde constantemente se opera a luta entre o céu e a terra,
suficiente para ele se sentir à vontade em sua evasão da vida real. O mundo
imaginário é representado nas poltronas como o lugar seguro, com seu devido
acolhimento, que deve ser explorado pelo jogador. Da mesma forma, quadros e
apliques em tom azul fazem contantemente lembrar que o infinito é o objeto a ser
perseguido. O limite é não ter limites neste lugar onde a imaginação é provocada e
verde, pois é preciso que o jogador não entre em surto em sua evasão, e retorne à
mergulho ficcional. O jogador tem de ir e vir. Não pode ir e ficar no seu mundo
imaginal. A casa de bingo necessita do jogador, pois é ele que justifica, alimenta e
Mas sem dúvida a cor mais forte e marcante que se apresenta como traço
dourado.
231
cores. Pois os raios de sol, atravessando o azul do céu, manifestam o poder das
divindades do além.
Pedrosa (2002) nos mostra que, assim como o azul, o amarelo era uma cor
amarelo aparecia nos livros dos mortos, nas decorações de palácios, templos e
recorrentemente nas casas de bingo nos corrimãos das escadas, nos detalhes dos
das divindades.
princípes, reis e imperadores. Não é concebível o trono de um rei, seja ele real ou
232
esperança, da vida, e também da morte como uma possibilidade de nova vida, se
pelo azul.
atletas. Diferente da Grécia antiga, onde deuses e homens possuíam lugares bem
divindades; daí a premiação não ser com ouro, mas com o verde dos ciprestes,
conhecimento do atleta, da vida potencializada, mas não do ouro que pudesse dar
sólido para o líquido ou vice-versa, sem perder suas propriedades. Sua força
é uma cor forte, aqueles que a possuir passam a ser representados como homens
inquebrantável.
233
Por outro lado, o amarelo, sendo também a cor da terra fértil, é utilizado
como cor que aparece na China nas vestes e nas cobertas dos recém-casados,
daquele que é enganado, pois é a imagem dos laços sagrados rompidos por
Lúcifer. Ainda que a linguagem comum tenha invertido este sentido e passado
considerar não mais o traído, mas o traidor como aquele que deve portar o
mais terrestre das cores, pois mergulha nas profundezas da alma humana tal qual
objetos de metais, pois a idéia é fazer com que tudo que reluza seja de fato ouro.
234
Pois não se pode deixar de dizer que o dinheiro, o ganho “fácil”, é uma importante
detalhes dourados do elevador (objeto de ascensão que leva aos andares do jogo,
conhecimento divino, o diálogo que o simples mortal terá que estabelecer com os
autoperceber como divindade ou como pretenso neófito que irá atingir o nível da
perfeição, nem que seja por frações de segundos durante uma grande jogada,
próxima jogada, para “chamar a sorte” , o amarelo ouro é a cor que melhor
representa esta comunicação, esta mediação entre o mundo dos mortais e dos
deuses. Portanto, ela está em toda parte, mas não de forma berrante e
grande volume. Pois seu excesso pode também gerar a falta, gerar a comodidade,
235
a covardia, a impotência. Daí o amarelo-ouro aparecer nos detalhes físicos do
mais detalhada, mais misteriosa, sutil, de acordo com o olhar crítico e acurado do
jogador.
isso, na ambiência das casas de bingo o “troféu” para o ganhador do “bingo” não
tons claros aparecem também como mediadores das cores quentes em objetos
luz muito clara, nas escadas e elevadores, no formato redondo das mesas, nas
236
Nesta seção, destaquei particularmente a recorrência e a posição tática das
cores nas casas de bingo. Como trata-se de uma pesquisa sobre a relevância da
semiológico, creio que os exemplos das cores são suficientes para ilustrar o vetor
237
CAPÍTULO V
JOGO E IMAGINÁRIO
de discutir o jogo como realidade simbólica, epifânica por natureza e, por que não
dizer, fenômeno que reatualiza com muita força a tensão entre o real e o
imaginário.
cantar... mas que são impelidos ao máximo de eficácia sob o olhar dos deuses.
como jogo de pelota, que se mostra como uma prática globalizante que une a
238
dos deuses e ao sacrifício que estabelece a união com o sobrenatural. A
propósito, cada vez mais me convenço de que o ato sacrificial é uma forma
assinalava que, no grande ano de 52, o povo perderia a energia, não havendo
da vida real, abolindo a história por meio de um retorno contínuo, pela repetição
(Brougére,1998, p.43).
34
Cf. Jean Marie Lhôthe, 1994.
239
O sacrificado não é necessariamente aquele que perde, pode ser todos os
(1978), o jogo não é uma atividade frívola. Argumenta o autor que os múltiplos
A história dos jogos está marcada, ao que tudo indica, pela tensão entre o
sério e o frívolo, não sendo o sério somente o lugar do trabalho, mas também o
jogo que até então se fixavam sob o signo grego, isto é, sob o signo da
240
Instala-se então o sistema de representações que herdamos, marcado pela
Daí decorre que o jogo de azar se tornou o vício mais temível, arruinando
241
que não se pode deixar de buscar as causas de um
bingo, mas que jogam com certa regularidade os diversos jogos disponíveis em
seu ambiente, que o fazem por razões de divertimento, como mero passatempo,
apenas vão brincar um pouco, isto é, jogar pelo simples prazer de jogar.
que constrói e destrói seu castelo de areia pelo simples prazer de construir-
um espaço onde seu prazer passa também pelo prazer do outro, através da
242
bingo como elemento significativo de seu viver, e que assume o compromisso de
gastar uma determinada quantia, de sentar sempre que possível num mesmo
se excitar de uma maneira que o tom da voz, o enrubescer do rosto e todo seu
alterados.
passagem. É uma idéia que estarei desenvolvendo ao longo deste capítulo. Mas
continuemos.
primeira vez nos termos proposto por Heráclito (citado por Leão, 1991), como um
destruíam repetidas vezes os castelos de areia por elas montados, acabou vendo
forças contrárias, que no seu fazer criavam o sempre novo, o sempre renovado.
243
Daí advém um dos seus célebres aforismos, que diz que um homem jamais
atravessará o mesmo rio duas vezes. Isto porque o movimento do mundo não
pára, não se cristaliza e não se repete de forma circular. Ao contrário: aquele que
mesmo, assim como as águas que corriam naquele momento já não correm mais,
pois são novas águas, novos ventos, enfim, uma mesma e diferente realidade,
tensão de contrários que estruturam uma unidade viva. Ou seja, é a partir da luta
harmonia que nasce da tensão permanente entre forças que se opõem e que, ao
A unidade do mundo não é a soma dos diferentes, mas antes a luta tensa e
desvinculado da realidade que o gerou. Todo Ser das coisas é o Não-Ser que
244
morte que se encontra adormecida pela vitória momentânea da vida em sua
realização.
renovador, mas antes transformador da ordem das coisas, dos rumos do mundo,
trazer tal movimento, mas, ao repetir o “mais uma vez” do jogo, o ato de
reconstruir e destruir o castelo tantas vezes quanto lhe convenha faz com que ela
245
Assim, o movimento lúdico instaura o jogo de forças contrárias do mundo. A
criança que joga aprende sempre um pouco mais sobre si e sobre o mundo que a
circunda; pois permanente é aquilo que é construído no e pelo movimento que ela,
aproximação do homem com o mundo e com ele mesmo de forma cada vez mais
misteriosamente.
derrota, forma a unidade viva que não cessa nunca. Vencer, superar, se auto-
por fazer-se diferente. Daí o “mais uma vez”, o movimento do mesmo, do retorno
ao jogo que sempre se abre como mistério a ser desbravado: novos sentidos,
mesmo ato.
246
O movimento lúdico é o movimento que fundamenta o jogar-brincar. Mas
suficiente definir o homem como ser racional (sapiens), muito menos como aquele
que tem uma disposição para o trabalho (faber), isto é, fabricador de cultura. Ele
natureza em mundo da vida, o homem possui também uma outra dimensão que
247
inerente ao movimento do “entrar” em jogo e na brincadeira, é a materialização da
ameaçador.
voluntariedade e do prazer de viver aquilo que não vive ou que gostaria de viver.
utilizado pelo autor), se manifesta na vida humana sob diferentes formas – como,
descompromisso com tudo que é utilitário e funcional. Daí, para Huizinga, advir a
necessidade do homem de jogar (que por hora também não distingo do vocábulo
brincar), pois, acossado por uma realidade que lhe é brutalizante, entediante,
prejudique, e muito menos que traga qualquer tipo de prejuízo social a terceiros.
248
Segundo Huizinga, o jogo se apresenta como uma realidade que possui
real do que o próprio real para aquele que joga. A absorção e a adesão emocional
do jogador em relação ao jogo faz desta realidade uma hiper realidade. Daí,
particularmente falando, eu considerar o jogo uma atividade muito séria para quem
joga.
tensões contidas e liberadas de forma segura. Daí o lúdico poder ser apropriado
como função terapêutica, isto é, como escape seguro e eficaz para fazer o homem
retornar ao mundo da vida mais aliviado, calmo, compensado para o “mais uma
249
Significa dizer que o lúdico é uma dimensão humana por excelência. O
sua liberdade, nem que seja por lapsos de segundos; momentos fugidios que se
secretas.
Na medida em que não nos cabe aqui fazer qualquer tipo de análise crítica
frente à proposta idealista e conciliadora de Schiller, mas antes nos atermos à sua
contribuição para o estudo do lúdico, ou melhor, sobre o impulso lúdico, é que nos
250
materializar a beleza através da concretização de obras, de feitos onde não há
torna-se escravo de seus instintos, de seus impulsos sensíveis, isto é, faz deles
sua conduta. Torna-se escravo de algo que se encontra acima dele (a sociedade),
proporcionarem um bem ou não. Para tal, necessita alienar sua dimensão sensível
251
formalmente considerados úteis e funcionais para a sociedade. Criar, inventar, se
vida, pois sugerem a presença dos desejos e paixões como motivadores de uma
Para Schiller, somente uma educação que concilie estas duas dimensões
será capaz de permitir ao homem vibrar com o mundo sem destruí-lo e se auto-
destruir.
sensível e o impulso formal, que o homem será capaz de materializar o belo, isto
é, aquilo que brilha mais, e, por brilhar mais, é capaz de irradiar o bem.
vive a experiência da liberdade. Daí Schiller dizer que o objeto do impulso sensível
252
propósito, Schiller nos ensina que é possível viver em um tempo histórico sem
necessariamente ser filho deste, isto é, manter-se com relativa autonomia diante
brincadeira.
uma relação com o mundo onde o inteligível possa vibrar no sensível, ao mesmo
tempo que o sensível mobiliza e envolve o inteligível, sem que uma dessas
direção ao jogo enquanto experiência estética, isto é, na busca de uma forma viva
ou forma livre.
253
tempo sagrado. É o tempo da suspensão momentânea do real para a afirmação
Nesse sentido, cabe refletir também sobre uma outra possível apropriação
como luta.
aqueles que são arbitrários, isto é, que remetem a uma realidade significada, pois
pluralidade de sentidos que não se esgotam e que não podem ser apreendidos em
sua totalidade pela razão. Isto porque o “símbolo exprime o mundo percebido e
vivido tal como o sujeito o experimenta, não em função de uma razão crítica ou de
1994, p.xxvii).
254
simulacro ou da vertigem, o jogo se abre como um lugar onde a aventura e o risco
utilizada por Ingmar Bergman, no filme “O sétimo selo”, onde a figura da morte
Em um rico inventário sobre jogos escrito por Jean Marie Lhôthe (1991),
História dos jogos de sociedade, o autor descreve inúmeros jogos que em seus
primórdios eram ricos em simbolismos, o que, com o passar dos tempos, foi se
perdendo. É o caso, por exemplo, do já citado jogo de xadrez, muito anterior à sua
que está ligado aos mitos da conquista do céu; o pião, que representa o mundo
255
significativo foi encontrado em um pote de 2000 a.C., que é uma representação
raríssima dos jogadores de senet, onde cada um parece se divertir no mais alto
grau de satisfação.
adversário incomum, não conhecido (o destino), numa partida que dentro de seus
é composto de três fileiras de dez casas, todas marcadas por signos, figuras ou
motivos. Quatro palitos de madeira, ornados cada um com três pequenas linhas
um pequeno cofre, onde ficam duas séries de piões - sete pequenos e sete
jogo de gamão. Através das sucessivas tiragens da sorte nos dados, o jogador vai
avançando com suas peças, que devem percorrer todas as casas do tabuleiro
256
um pouco de prática, pois o percurso percorrido pelo jogador depende em grande
algumas variantes deste jogo: jogo de serpente; jogo de mehen; jogo dos trinta
pontos; jogo das vinte casas; o mancala; jogo do disco de Phaistos, todos jogos
traçados. Até se chegar ao final há uma versão do jogo de labirinto, muito comum
cumprido, impulsionado pelo avançar das peças de acordo com os números dos
mundo invisível, impulsionado pelo percurso que o homem deveria fazer na Terra
com o mínimo de risco e de problemas possíveis. Daí sua ligação com os deuses,
257
Quando o sentido de ritual do senet começa a dar lugar ao sentido mais
lúdico, isto não significa uma abolição por completa de seu sentido originário. Ao
determinada meta; e o percurso, por mais claro que possa estar para o indivíduo,
só se fará como tal no instante em que for percorrido de fato, nem antes nem
caminhos pelos deuses. Se a crença do jogador é de que nada existe por obra do
acaso, ele lança os dados e assume os passos que os dados lhe determinaram
acaso, roga aos deuses para que seu lance seja sempre positivo, a seu favor.
258
Ou seja, tanto numa quanto em outra direção o jogo de percurso aciona
não produz coisas, produz sentidos múltiplos do mundo, da mesma forma que
absorve e é profundamente absorvido pela ação que realiza. Daí acionar sentidos
potencializa a liberdade.
Podemos dizer que os jogos que predominam numa época dizem muito dos
que não se esgote neles uma forma explicativa e mesmo definidora de sua
natureza, isto é, do que eles são e por que eles se apresentam como necessidade
tempos históricos.
259
O que venho discutindo pontualmente diz respeito à luta entre o visível e o
um dos jogadores, não podemos dizer com clareza o porquê de o sentido primeiro
existência nessa realidade. E por que tais perguntas não cessam de ser repetidas
corajosa, aventureira de qualquer indivíduo. E ainda, por mais que alguém possa
não consegue justificar para si mesmo uma vida que seja enredada em sua
260
totalidade nesta perspectiva. Pois, na medida em que se estabelece a relação com
o outro, tudo ou quase tudo é possível, até o inimaginável, já que o outro sempre
homem com outros homens e com o mundo, só se fazem na própria ação, nem
antes nem depois dela. Significa que todo cálculo, toda previsibilidade, toda
defesa contra a presença do acaso, afinal, não passa de uma profunda crença do
homem em achar que pode controlar o domínio da vida. O que tanto o aflige?
Talvez seja aquilo que esteja posto para ele como verdade absoluta e derradeira,
morte. E, no jogo, o acaso talvez seja o elemento que simbolize com força a idéia
poder ser controlada por qualquer parte. O acaso ronda o jogo. A morte ronda a
vida.
analogia, também podemos dizer que enquanto houver jogo há espaço para o
aleatório, para o imponderável se manifestar. E talvez seja por isso que o jogo
261
Aquele que joga um singelo jogo no fundo aciona uma profunda crença em
deuses. Aquele que joga, isto é, que se envolve com o movimento do jogado,
realizou. O “mais uma vez” no jogo se dá muito menos pelo benefício material que
este pode proporcionar ao jogador e muito mais pelo fascínio que provoca pela
novidade, pelo diferente, pelo mistério de uma nova jogada que pode se
descortinar. Pois se assim não fosse, como explicar as diversas pessoas que
iniciam o jogo com o argumento de querer ganhar uma determinada quantia e que,
luta silenciosa e constante contra o acaso, motivo suficiente para querer vencer,
superar e viver.
sua presença gera tensão e incerteza em níveis variados, podendo até levar o
jogador a um estado de excitação desfigurada, por outro lado, sem a sua presença
não há jogo, pois não há, verdadeiramente falando, com o que e com quem jogar;
262
Do que foi exposto até o momento, depreende-se que os limites
partilhada com o “outro”, mas que sempre encontra-se mediada por uma realidade
apresentando uma realidade cujo compromisso nasce e morre nela mesma. Isto é,
moral para que ela ocorra, tal ação não pressupõe a comunicabilidade com
ninguém, a não ser com o próprio sujeito da ação. Há, portanto, uma formação
263
Na brincadeira o sujeito torna-se momentaneamente um autista. Cria seu
próprio mundo com tinturas que lhe convêm e que se esgotam nele mesmo.
invade e que pode cessar a qualquer momento sem qualquer justificativa prévia.
brincadeira quantas vezes lhe convier, pois a única coisa que está em jogo é
“lógica” de seu mundo. O outro, como disse certa vez Sartre (1986), é um inferno
para nós. E é nesse sentido que o sujeito reina absoluto num movimento íntimo de
isto ocorre o que era brincadeira se transforma em jogo, pois no jogo, ao contrário
forma plena. Quando dissemos que ele é arrastado pela emoção estamos dizendo
que o impulso que o anima e que o motiva a continuar em seu mundo é o impulso
264
sensível por excelência. Não que na brincadeira o inteligível desapareça, pois se
assim fosse não estaríamos falando de seres humanos, mas antes de máquinas.
O que se dá, entretanto, é que a dimensão inteligível não é o ponto de apoio, nem
mesmo aquilo que ancora os sentidos produzidos por aquele que brinca. Há,
sensível para que este possa vigorar da maneira mais plena possível.
pensamento schilleriano, tal movimento não cria uma oposição do homem com ele
mesmo, pois entendemos que em tal ação não há tirania de uma dimensão face à
Marx (1974) disse certa vez que Robinson Crusoé não passava de uma
portanto, se constrói como tal sempre a partir das relações que estabelece com
outros homens. Mas, pensando no ato de brincar, eu diria que Robinson Crusoé é
árvore na fogueira ou mesmo com o seu corpo saltitando de um lado a outro, mas
265
dificilmente poderemos pensá-lo jogando algum tipo de jogo, ou melhor,
mínimo duas pessoas, Crusoé deve ter brincado muito em sua ilha, mas não
começa a descobrir sua mão, ela a leva à sua boca, isto é, brinca com ela; vai
descobrindo-a sempre um pouco mais a cada novo contato que estabelece com
esta parte de seu corpo. Assim, levar a mão à boca, para a criança, é motivo de
maior conhecimento de si, isto é, de sua possibilidade no mundo, que está sendo
mundo do outro.
35
A este respeito, sugiro a leitura da excelente obra de Michel Tournier, Sexta Feira ou os limbos do Pacífico
(2001), que analisa o perfil psicológico de Crusoé revestido de um poder absoluto, pois único habitante da
ilha, até a chegada de Sexta-Feira. É emblemática a idéia contida nesta obra de que a crença do indivíduo no
poder absoluto diante da vida permite a emergência da vontade profunda de manifestação.
266
Na medida em que não é possível o sujeito social se forjar somente através
de sua subjetividade plena, como se fosse um átomo social, da mesma forma ele
seja, se ele não é nem autonomia plena, como também não é escravidão
absoluta do social; antes, é a tensão entre o Ser e o Dever Ser que o constitui
enquanto tal.
Ele brinca e joga. Aquele que brinca necessita dar forma aos sentidos mais
profundos que o motivam a brincar; é preciso que ele transforme o seu mundo em
mundo possível para o outro, para que, através dessa relação possa construir
solitária da brincadeira.
solitariamente em seu mundo, e joga para tornar parte de seu mundo, aquele
forma que de uma nota só não se faz música, é preciso que a expressão dos
sentimentos não absorva o sujeito de tal maneira que impeça a comunicação com
o outro.
267
No jogo, o mergulho em si mesmo também é profundo, mas
socialmente formalizado.
passa também pelo compromisso com o outro, mediatizado através das regras.
porque ela é efêmera, é uma passagem, uma parada necessária para o mergulho
do sujeito nele mesmo. Enquanto que é possível conceber o jogo como fenômeno
existência sobre o solo da liberdade, como, por exemplo, nas relações amorosas,
ele saiba se movimentar nela; que ele possa dar vazão à sua expressividade sem
36
Cf. Schiller. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras,1990. Especificamente no que se
refere ao exposto a cima sugiro a leitura da Carta IV.
268
sentidos que motivam os jogadores a jogar necessariamente passam pela relação
e pelo compromisso instituído por ele junto com os outros. Ele não vive sua
Daí o “tudo pode” no jogo vigorar com muita força, mas sempre apesar de alguns
companheiro, muito menos como árbitro. Nesse caso, o céu não é mais o limite.
jogo, mas certamente não explica essas nuanças em sua totalidade. Pois o que
37
Cf. Huizinga. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1982.
269
dizer daquela criança que solitariamente brinca de boneca e que, ao mesmo
cotidiano? Será que neste gesto solitário não há um compromisso e uma intenção
nitidamente social? E aquela outra que “joga” um jogo coletivo, mas que em seu
íntimo está alheia à coletividade de tal maneira que a única coisa que importa é o
seu prazer e satisfação, independente dos outros? Para tentar responder a estas e
outras questões, acredito que o sociólogo Max Weber possa nos ajudar, através
270
subjetividade na modernidade, bem como apropriá-la para o âmbito daquilo que
de fato nos interessa neste momento: os limites entre a ação do jogar e do brincar.
orientação para sua própria ação. A ação social é sempre significativa, pois é no
âmbito das relações sociais que o sujeito se defronta com seus limites e
socialmente construídas e legitimadas por eles no seu fazer repetitivo, pode haver
socialmente.
outros, e isto significa que, além da reflexividade, o sujeito age principalmente por
em relação ao mesmo.
271
do acaso e nele se fundamenta. O exemplo clássico que ilustra bem esta noção é
o choque de dois ciclistas em uma via pública. No ato do choque ocasional, ainda
que tal ação tenha acontecido no contato com o outro, este outro não foi
através de uma forma abrupta e inconsciente para o ciclista que foi interrompido
ciclistas começam a dialogar sobre o ocorrido, a ação que daí por diante os
orienta é tipicamente social, pois mediatizada por valores e sentidos que cada um
e movimento do jogo.
Nesse sentido, para o ato de jogar acontecer ele tem de estar vinculado
para ratificar, que o jogo não pode ser explicado somente por este contrato.
272
Vejamos: uma criança que brinca de boneca e simula uma relação imaginária de
mãe e filha, ainda que esteja agindo solitariamente ao incorporar o valor de mãe e
de filha, está se relacionando de uma maneira informal com o “outro”, isto é, com
Mas pode ser também que no decorrer do jogo ela reinvente uma nova
concepção de mãe e filha, com uma história própria, singular, por exemplo, a
representação de uma mãe que ela não tem e que gostaria de ter, a tal ponto que
outra coisa que não perdure, que nasça e morra sem qualquer conexão com
se poder definir um sentido que possa ser classificado desta ou daquela natureza
pelo observador. Ou seja, as bonecas que antes eram mãe e filha no jogo, no
mundo da brincadeira, não possuem mais identidades como tais, pois não há
um mínimo de permanência: a boneca é ora filha, ora mãe real, mãe ideal,
monstro, martelo, “coisa” que voa, “coisa” que anda, “coisa” que morre e
reaparece em algum lugar, com algum sentido somente para quem brinca.
273
Se no jogo com as bonecas o mundo construído pelo Sujeito possui uma
abrupta e ao acaso que impulsiona o agir que nasce e morre nele mesmo.
e para todos, atribui vida ao que não tem vida, destitui vida daquilo que é vivente,
Deus sem ter fiéis, ele necessita do jogo para retornar à realidade social, e assim
brinca e joga como sendo Deus dentro do possível e dos limites estabelecidos
lugar onde o Sujeito cria uma nova ordem sem perder de vista que a criação é
274
sempre uma manifestação do possível, isto é, em acordo com o mundo dos
mesmo num singelo jogo de dados, tais movimentos pressupõem uma certa
videogame, ou mesmo na contagem dos números do dado que rola, dos números
dimensionar sua paixão plena, sua gratuidade absoluta dentro de certos limites
possui uma forma passível de ser comunicável aos outros. Daí seu caráter
elemento da cultura. Por exemplo, como falar de uma cultura lúdica das
brincadeira com corda, com bastão, com arcos, com bola, sem cair no infinito das
bola dentro do arco ou os jogos de queimado e de futebol, dentre outros, pois tais
manifestações remetem a uma certa ordem, a uma certa regularidade que insitui
conhecimento e acordo mínimo com as regras do jogo, isto é, com a sua cultura,
275
Todo jogo pressupõe repetição. Imagine-se um jogo de cartas, de bola, de
mágica, de roleta, de bingo. Tão logo termina, para recomeçá-lo o jogador tem de
repetir os mesmos gestos, tem de suportar a mesma lógica, ainda que não se
escravize nela, já que o jogo é muito mais libertador do que cerceador. Mas o fato
jogo pode assumir múltiplos sentidos na medida em que quem joga joga sempre
com ou contra alguma coisa que desconhece na totalidade. Daí dificilmente o jogo
se tornar algo sem importância para os humanos, já que faz parte da própria vida
acaso.
que cotidiana em relação à frequência. Algumas delas até possuem a hora exata
de ir ao bingo; para outras, vir vestida com a roupa do dia anterior vitorioso é
contra a presença do acaso. Não é possível jogar sem criar um mundo imaginário,
276
um mundo ficcional de expectativas, associações e projeções mínimas do ato de
jogar.
bolinhas de gude onde há equilíbrio de forças entre os jogadores que lutam para
jogador diretamente, poderá decidir a própria jogada. Diferente quando existe uma
nítida desigualdade de forças, pois os detalhes já não são suficientes para decidir
Nesse sentido, Roger Caillois (1980), vai dizer que tanto o agôn
forma simétricas, mas obedecem ambos a uma mesma lei: a criação artificial entre
homens. Ou seja, para que o jogo possa já iniciar com um nível elevado de
excitação, ele tem de ter em seu “desenho” uma suposta igualdade de condições
não deve ser passível de ser controlado, dominado, isto é, de ser vencido pelo
277
crenças e superstições que o jogador acredita ser garantia para a obtenção de
sucesso no jogo.
Eis, a meu ver, uma das grandes ambiguidades dos jogos de azar, ou alea.
Da mesma forma que o jogador luta imaginariamente contra o acaso, ele também
toda a força. Na medida em que o acaso passa a ser o foco central das atenções
Isso não significa dizer que somente nos jogos de superação ou auto-
marcante, ora predominando, como nos jogos de azar, ora aparecendo em graus
e onde, no seu “mais uma vez”, pode também sofrer influência do imponderável
278
Significa dizer que para que o acaso seja percebido pelo jogador, seja de
inconsciente (quando fundamenta seu fazer na crença absoluta de que nada dará
anos de idade que a criança estará praticando o jogo simbólico, que é uma forma
mesmo tempo que lhe possibilita dar vazão a seu mundo imaginário, da fantasia,
dos desejos, permitindo que ela pinte com cores próprias o universo miniaturizado
realidade do jogo, o seu mundo, que, ao se deparar com o inusitado, com o acaso,
do inesperado.
mais consciente, menos mecânica, menos automática, ela acaba por se deparar
com sua fragilidade diante de sua atuação no mundo. Começa a perceber sua
279
precariedade enquanto fonte de controle absoluto sobre o mundo, e aí se
decepciona diante de sua impotência para lutar contra o élan misterioso da vida.
Por outro lado, é através desse embate constante entre o controle e o não-
controle, a certeza e o acaso, a crença e a realidade, que ela, aos poucos, vai
Daí acreditarmos que antes dos três anos de idade, ou melhor, enquanto a
criança estiver vivendo seu estado pleno de egocentrismo, onde seus movimentos
e com a realidade sob a forma de jogo. Em vez disso, a brincadeira é que irá
vigorar com toda força e se tornará indispensável em seu mundo, para, aos
relação de jogo com a vida, isto é, para aprender a dialogar com o mistério, com
Nesse sentido, os limites entre brincadeira e jogo são muito tênues, pois
do homem. O lúdico não é uma substância, uma “coisa”, antes é uma disposição
280
Não é possível falar sobre jogo ou brincadeira lúdicas sem cair em uma
tautologia. Pois tanto o jogo quanto a brincadeira são, por extensão, um tipo
liberdade de expressão dos sentimentos mais lídimos fazem parte, sob diversas
nasce e morre com o próprio Sujeito, onde não há qualquer compromisso daquele
281
que vive em alguns momentos a gratuidade, a liberdade e a espontaneidade em
interpõe, porque aquele que brinca não reconhece em sua manifestação uma
relação com o mundo da vida misteriosa, simbólica; ele se relaciona apenas com
seu mundo pessoal, de forma visceral. Daí não permitir chance para a vivência
dentro de um enredo. Pode até criar um, mas o ato de criar já lhe basta. Ou seja, a
pois quando começa a se tornar inteligível para o outro ela se modifica. Por isso
uma das dificuldades no âmbito das pesquisas empíricas é qualificar onde começa
jogo e vice-versa.
282
No jogo, ao contrário da brincadeira, o prazer orgástico ganha forma, é
dimensão lúdica da existência também aparece com toda a força, mas o ato de
sua forma, com sua identidade, pois jogar é se relacionar com o “outro”, esteja
283
Na medida em que o jogo enreda uma lógica própria, sempre guardando as
anteriormente, aquele que joga não é um ET, mas antes um sujeito socialmente
Daí não ser incomum, em muitos jogos tradicionais, observarmos toda uma
ritualística que antecede o jogo ou algumas jogadas (se benzer, evocar palavras
superadas.
outras - se apresentam como uma necessidade vital para o homem desde a tenra
idade. Não uma necessidade qualquer, mas aquela que prepara, aperfeiçoa,
impulsiona e projeta o homem na direção dos sonhos, das crenças, das fantasias
da realidade.
manifesta em sua prática uma relação com o jogo como mero passatempo,
284
fotografar, dissecar este momento. Mas, quando ele passa a estabelecer uma
com nomes e nomes com nomes. Ou seja, o poder da razão apresenta-se como
Isso não significa dizer que a faculdade racional do homem deve ser
285
razão o atributo por excelência da condição humana, quando ela é vista como
imaginativa e projetiva desse mesmo homem que sonha, joga, luta, se arrisca,
ousa, cria e recria formas múltiplas de ser e de se relacionar com os outros, com a
Se não for apenas como grosseiro artifício didático que separa e mesmo
define o homem como ser racional, estamos diante de um grande problema. Pois,
crente daquele que realiza a obra; sua fé em bancar o projeto inicial que, em
não é a soma da dimensão racional com a imaginária, mas antes uma unidade
viva que jamais pode ser explicada em sua totalidade, seja pela razão, seja pela
286
próprio processo de criação, num jogo permanente de tensão entre o sapiens, o
demens e o ludens.
as leis do funcionamento do universo, a sua lógica, mas antes constrói com seu
que a razão põe uma certa ordem no caos que ocorreria se vivêssemos
objetivo no mundo (leis, “fatos”, teorias...) que antes não tenha passado pela
subjetividade humana.
queremos é exaltá-la. Não como um mito, mas como fecunda faculdade humana,
desse mundo.
287
arrogância, é através da sua consciência de limite diante do mundo que a
razão numa crença maior que ela mesma, isto é, que desvirtuam as verdades
são proferidos por messias, e não mais por cientistas. Nesse momento a
universal. Tudo que lhe escapa de imediato a uma resposta pronta e conclusiva é
relegado como coisa menor, sem importância, uma vez que dificilmente aceita
288
racionalidade olha sempre com desconfiança suas próprias proposições, e ao
formular suas verdades, nunca se esquece de dizer: é uma verdade, apesar de...
e sempre procura um melhor lugar para se distanciar, para poder ver e se ver
maravilhamento, como é praxe no ato da criação. Daí não ser difícil explicar
porque conhecimentos como filosofia, artes, jogos e outros não figuram como
289
Na perspectiva da racionalidade, o jogo se apresenta como importante
fundamentais que sustentam essa sociedade, pois através das regras do jogo –
Assim, a racionalidade do jogo nos ensina que ele é muito mais do que um
acioná-lo, isto é, jogá-lo. Ao contrário, este fenômeno social nos ajuda a pensar
das relações sociais macroscópicas da sociedade. Até porque quem joga é quem
290
constrói, reconstrói e atualiza constantemente a sua circunstância sociocultural
equilibração das relações sociais. Seu mais relevante papel reside na falta de
prejuízo social para terceiros (pois no jogo se colocam todos os problemas “para
fora”, para se retornar mais aliviado para o cotidiano), ele serve como importante
291
que nasce de uma condição externa ao próprio jogo: status, dinheiro, fama,
ascensão social...
social de retorno imediato de sua ação. Seja no domínio mais individual, como
estranhas àquelas que emergem no interior do próprio jogado; ou, ainda, como
desenfreada. Competição que não nasce do movimento do jogo, mas já está dada
como condição sine qua non de se jogar, pois o alvo, a meta e objetivo do jogo é
sempre algo externo a ele mesmo. Daí seu caráter utilitário, pragmático, que se
coisifica.
apreendidos como sendo, se não o único, o sentido mais importante do jogo. Ou,
292
oposição à brincadeira irresponsável que não traz nenhum lucro, nenhum ganho
social imediato.
pois elaboram discursos sobre ele, refletem sobre sua importância social,
como a outra não são capazes de dizer verdadeiramente o que é o jogo. Não que
jogo. Mesmo que quiséssemos, isto seria impossível, pois radica, a nosso ver, no
domínio do mistério da própria vida. Por outro lado, acreditamos ser possível
ampliar o olhar sobre o jogo numa dimensão que nos ajude a melhor compreender
Uma criança que constrói e destrói seu castelo de areia pelo simples prazer
que não o próprio jogar, e aos poucos vai se envolvendo de tal maneira que o que
antes era puro deleite passa a ser uma questão de honra, de tensão profunda,
enfim, será que podemos dizer que há um jogo puramente lúdico, competitivo, de
293
azar, de vertigem, tal qual podemos afirmar que o sol é o astro que ilumina, e a
Acredito que o relato que se segue lance algumas dúvidas quanto à pureza
do sentido que o jogo, tomado aqui como noção que engloba a brincadeira e os
esportes, pode adquirir para ser explicado em sua totalidade como sendo desta ou
festivos, pois o papel do jogo parece ser o de mediar a intensa felicidade, o prazer
medida que o jogo vai avançando, os jogadores estando mais envolvidos nessa
o sentido inicial do jogo aos poucos foi se modificando, transformando o que antes
crenças, prestígio, auto-estima etc. Por que será que o jogo mudou de sentido?
Será que o sentido do jogo é dado a ele antes deste se realizar, ou melhor, será
que o sentido escolhido para um determinado jogo pode ser fielmente vivenciado
forma conclusiva, mas, certamente, iremos nos esforçar para nos aproximarmos
294
de uma verdade sobre tal questão. Pois se a paixão só pode ser vencida por uma
paixão mais forte, se a felicidade é uma luta permanente com seu contrário, a
alienação, é no jogo das tensões que provavelmente encontraremos uma luz que
racional. Assim, pode-se ficar jogando uma bola repetidas vezes para o alto, e isso
não significa que o indivíduo está jogando, pois pode estar somente se
musculatura ou coisa do gênero, isto é, agindo com uma finalidade externa à sua
própria realização. Mas, por outro lado, este mesmo exercício pode se transformar
não ela mesma, isto é, representá-la como objeto de desafio, de teste, de deleite.
movimento de ir e vir.
natural de uma gangorra que, ao subir, pela necessidade física do peso que a
relógio, ou o balanço das ondas do mar, que por uma condição física própria vão e
295
Ao contrário, o movimento de ir e vir do jogo tomado como produção
partida no interior do jogo é sempre uma decisão muito séria para quem joga, pois
como marca e o seu repetir-se como busca incessante de preencher alguma coisa
mistério que se abatia sobre eles, mas na medida em que a vitória se impunha
enquanto impossível, a convivência com as Moiras teve que ser mediada por um
296
ensurdecedora, o transe através de movimentos contínuos e de mudanças
dionisíaco, que, segundo Nietzsche, são instintos impulsivos que caminham lado a
experiência estética.
297
Apolo é o Deus que representa o espírito da individuação, isto é, que fala
de si, de sua aparência através dos gestos e olhares; que põe ordem no caos dos
aquele que através do êxtase destrói a individuação, que faz o homem se perder
mais calmo.
entre dois “espíritos” que, na sua luta incessante, são capazes de fazer emergir a
misteriosamente criado. Não por um deus com formas e forças, mas por um deus
mistério.
298
artifício didático para apresentar alguns pares de opostos em permanente tensão,
do que como uma radical separação onde cada um possui uma identidade
experiência de criação que emerge dessa luta. Daí estarmos tentados a crer que o
para dar-lhe novas texturas, cores, sons, ritmos e gostos. O jogo não pára, porque
a vida exige misteriosamente o movimento sempre para além daquilo que está
ser sério; o drible mágico, o gol arrebatador, longe das determinações táticas e
299
superação das regras fundadoras de um novo jogo dentro do jogo; enfim, é o
das palavras, com tudo aquilo que se quer significar. É a vitória de Dioniso sobre
Mas, como o jogo não pára, e como não estou propondo uma discussão
sociológica sobre jogo e sociedade, mas antes discutindo o jogo dentro do campo
simbólica, fica apenas registrado que, muito mais do que catarse social, o jogo
como objeto de estudo pode ser capaz de desvelar as próprias raízes que
300
Quando se pensa de forma assistemática e imediata sobre a possível
grega, cabe-nos agora apresentar com um pouco mais de rigor o deus Dioniso e o
Segundo Brandão (1992), Apolo nasceu no dia sete do mês délfico Bísico,
metade de abril. Conta-se que, quando nasceu, os cisnes brancos deram sete
voltas em torno da ilha de Delfos. Daí que as festas principais em sua homenagem
em Delfos, representa também a sua lira, com 7 cordas, e sua doutrina, resumida
301
Apolo é reconhecido como aquele que realiza a harmonia entre as partes, o
que protege as sementes e as lavouras das pragas, dos espíritos malignos e dos
ambiguidade. Desde o século VIII a.C. Apolo era tido como mestre do canto, da
ilumina o caminho. Amou e foi objeto de desejo de diversas ninfas, e com algumas
teve filhos, cada qual trazendo um traço marcante de sua personalidade. Mas nem
Após matar Píton, Apolo ficou um ano no Vale de Tempe a fim de purificar-
se das manchas de sangue deixadas pelo dragão, as quais deveriam ser limpas
302
para não contaminar o próprio deus. “Para perpetuar a memória do triunfo de
Apolo sobre Píton e para se ter o dragão in bono animo (e este é o sentido dos
ser feita com uma coroa de louros. Em um dos amores malsucedidos de Apolo,
conta-se que o deus da beleza zombou do poder divino das flechas de Eros, filho
amor; e, por seu turno flechou Dáfne com a flecha da aversão, da repulsa, da
seu pai, Pereu, o deus-rio, que a transformasse em alguma coisa para se livrar do
apaixonado. E foi tranformada em uma árvore de louros (em grego dáphene), que
para conciliar as tensões existentes entre as pólis gregas, bem como erradicar a
Lei de Talião (“olho por olho, dente por dente”), substituindo-a pela justiça dos
tribunais. Com isso, Apolo reforça o seu valor de mediador, de equilibrador das
303
conhecimento, enquanto dominação da razão utilitária) torna-se para o homem
Dos três filhos de Zeus (Hermes de Trismegisto, Apolo e Dioniso), foi Apolo
que se reservou o direito de ser o mais fiel intérprete do pai. Hermes caracteriza-
dos imortais.
Nascido da coxa de Zeus após ter sido arrancado do ventre de sua mãe,
Sêmele, por um raio enviado pelo próprio Zeus, que a fulminou. Dioniso tornou-se
tão poderoso, em função da sua estreita proximidade com Zeus, que desceu até o
Dioniso, tão logo nasce, é levado para o monte Nise e entregue aos
cuidados das Ninfas e dos Sátiros, que cuidavam dele numa sombria gruta com
304
intensa vegetação e parreiras de uva maduras. Certa vez, já na sua adolescência,
Dioniso colhe alguns desses cachos, espreme as frutas em sua taça de ouro e
bebe o suco em companhia de seus protetores. Daí nasce o vinho, que, ao ser
entusiasmo remete ao sentido de ator, isto é, daquele que emerge sendo capaz de
da vida real, há uma abolição momentânea entre ser mortal e imortal. Ou seja, a
distância entre estes reduz-se e, em função disso, Dioniso é exorcizado por Apolo.
305
divino, através da celebração dos mistérios, a partir das orgias, do transe, do
com toda força a liberdade que se segue pela transformação, pela liberação de
passa a ser reconhecido como tal, isto é, um deus universal. Surge com a mesma
maneira, Brandão (1992) nos diz que antes de Dioniso o mundo grego era dividido
306
Aprofundando o aspecto do movimento, da metamorfose, Marcel Detienne
(1988) nos oferece uma rica contribuição a respeito de Dioniso, a qual fazemos
Grécia que vive itinerando. Ou seja, é o deus que em parte alguma sente-se
definitivamente em casa. Sua casa é o mundo. O ponto fixo ameaça sua liberdade
de vagar por Argo, Lesbo, Elêuteras, Olímpia, Taso, Delfos, Orcômero, até as
O rei Preto, da Argólia, tinha três filhas. Todas elas se recusavam a prestar
culto a Dioniso. De início, somente essas três foram punidas com a mania da
loucura, mas logo em seguida todas as mulheres de Argólia foram atacadas pelo
mesmo mal, e passaram a matar seus próprios filhos, abandonaram suas casas e
sacrifício coletivo. Daí Dioniso poder ser considerado também como um deus
307
Uma outra marca caracterizadora de Dioniso é sua condição de
permanente estrangeiro, não tanto pela sua vida nômade, mas principalmente por
deus identificável pela sua aparência, ao contrário, “Dioniso afirma sua natureza
o que inventou o néctar dos deuses - a bebida extraída da uva que tem o poder de
coragem daqueles que nunca o foram em sua vida normal; enfim, bebida mágica
festa nos altares e templos para ele levantados, acontece da vinha crescer várias
beleza.
frenéticos do dançar, girar, rodar, pular e saltar têm seu início através dos pés. Isto
segundo, não menos marcante, é praticado por todos os que participam dessas
308
“Essas estorvantes criaturas de quatro braços e quatro pernas começam a ser
disciplinadas pelos deuses, que se partem ao meio. Mas se, porventura, elas
poderíam caminhar com uma única perna, como sacis (askôliázein)” (Platão,
Da mesma forma como nas festas dionisíacas o vinho jorra da terra e das
dadas nos simples mortais, que fazem uns serem objeto de riso de outros; é o
impiedosamente.
Isto porque Dioniso escolhe, seleciona o “palco” onde pode ser reconhecido como
deus, ainda que nas suas várias formas e manifestações muito de humano ele
apresente.
transformar-se. Daí não possuir lugar fixo, destino cego e finalidade a atingir. Sua
309
Se Apolo personifica o ponderado, o equilibrado, o autêntico jogador de
movimento; é aquele que constrói e destrói o castelo de areia pelo simples fato de
enquanto produção humana. Sua apropriação ao longo das épocas pode fazê-lo
acredito que esta seja a primeira forma de apropriação do jogo para se poder
da sociedade, muito pelo contrário. O que temos discutido até agora é justamente
o oposto, isto é, que os jogos podem ser apropriados pela cultura e que as suas
apropriação social não se faz suficiente para dizer o que o jogo é, nem para
310
explicar o profundo significado desse fenômeno como eficaz instrumento de
de trabalho, como, por exemplo, o fato de que o homem, por ser um animal
da vida real, o indivíduo cria um mundo imaginário onde o real é percebido numa
“dialogar” com uma realidade que sempre lhe escapa na totalidade de sua razão,
mas que, contraditoriamente, pode levá-lo a perseguir cada vez mais esse mundo,
fundamentais que são cololocados até hoje como um desafio para a convivência
311
é uma necessidade que vem desde a construção do mundo mítico, na Grécia
do trabalho, seja na divisão sexual dos papéis social, entre outros aspectos.
greco-romana.
trabalho. Ora, essa divisão é uma construção social da realidade, não é um dado,
personificação da própria condição humana, isto não significa dizer que no próprio
312
política da pólis grega a figura de Apolo se apresentava mais apropriada para
contrário, como mau exemplo, desagregação. Entretanto, a nosso ver, isso não
significa dizer que Apolo e Dioniso são realidades separadas que de vez em
permanente tensão.
los como fazendo parte de uma mesma unidade que se chama homem. Afinal,
não podemos esquecer que Apolo, Dioniso e Hermes são gerados por Zeus, isto
análise, concebo o jogo como dimensão que traz em seu interior a presença de
mas isso não significa que essa direção vá se dar de forma plena, na sua
313
totalidade, do início ao fim. Na medida em que se apresenta como movimento, o
O fato de Zeus, o pai supremo, ter tido Apolo, Dioniso e Hermes como filhos
formando então não mais uma díade, mas uma tríade tensionante: Dioniso-Apolo-
Hermes.
som da lira é preciso haver diferença das notas musicais. Agora, o movimento que
mas, construção/desconstrução/reconstrução.
areia assume um novo sentido para mim, qual seja, a de que construir e
com o mundo de forma simbólica. Tal movimento não pode ser visto mais como
fim em si mesmo, pois ele é, ao mesmo tempo, fim e meio em si mesmo: fim
porque não deseja ser reconhecido moralmente; meio porque, ao não desejar ser
314
reconhecido, se apropria do mundo com a máxima liberdade e gratuidade, para
dos deuses. Daí eu acreditar que quem joga aciona ao mesmo tempo a pilhéria, a
três mundos - céu, inferno e terra -, significa dizer que não há nada que aconteça
que não se torne inteligível a ele. Assim, podemos dizer que no mundo de Hermes
não há lugar para o acaso. Mas será que no mundo dos simples mortais o acaso
não nos ronda como um fantasma que ora nos atormenta e ora nos felicita,
fazendo com que recorramos aos deuses para nos salvar do imprevisível?
315
Em entrevista a Emile Noel (1993), o linguista Jean Claude Milner diz que a
alguém que arbitre alguma coisa, mesmo que seja um legislador fictício.
representa em cada uma delas, não conseguem evitar algumas observações bem
não, alguns representantes das áreas supra citadas procuram negar a existência
Jean Marc Levy Leblond (citado por Noel, 1993), assinala que é possível
localização de um objeto e saber sua velocidade para poder dizer onde se iria
316
encontrá-lo ulteriormente, já que é impossível, nessa nova realidade, dizer com
evocar a noção de acaso pode-se dizer que o objeto que partiu de um ponto
seja, o interesse maior agora não é mais saber o local preciso onde se encontrará,
sua velocidade, quiçá seu ponto de chegada, está ligada ao fato de que o objeto
nunca fica, mas sempre está em algum ponto. Assim, cada vez que se tenta
com isso a precisão de sua posição, vice-versa. Ao passo que na física clássica,
para se saber qual o estado de um elétron, basta saber sua posição e velocidade.
ser apreendida. Já na física quântica a posição real de um objeto não existe, pois
ele permanentemente se movimenta. Assim, como seria possível dizer onde é que
outro? Não significa, no entanto, dizer que na teoria quântica o acaso intervém
sempre e em toda parte, pois não se trata de uma teoria totalmente entregue ao
aleatório. Até por que, segundo Leblond (citado por Noel, 1993), o reinado do
aleatório não é destituído de leis, pois há leis que governam o acaso, cabe apenas
descobri-las.
317
Dito de outra maneira, ainda que a teoria quântica reconheça e trabalhe
com o acaso, no fundo, ao que nos parece, a idéia é sempre a de que no mundo
da ciência e da vida como um todo o acaso não existe, pois há sempre uma causa
para nós. Mas o fato é que é extremamente difícil não conceber a realidade - seja
acaso.
318
Hoje, o sentido daquilo a que nos referimos acima sob o nome de verdade nada
isto é, encerra uma verdade enquanto cumpridora dessa função, da mesma forma
verdade das coisas como evidente, “natural” , pois, óbvia por demais.
realidade das coisas no mundo que, diga-se de passagem, não garante de fato
319
Na medida em que há um sujeito que cria a idéia do objeto e sofistica essa
Posto isto, a verdade da realidade é sempre alguma coisa que pode ser
conseguida através do “caminhar” por caminhos seguros que irão levar o indivíduo
com o auxílio do computador) para fazer o sistema se realizar com a mais perfeita
320
Nesse sentido, estou tentado a crer que a globalidade do capitalismo na
aperfeiçoa cada vez mais através dos modelos sistêmicos de organização social.
Contando com a legitimação dos sujeitos sociais, que, diante de uma realidade
face aos disco voadores, a depressão, o estresse, psicoses e neuroses das mais
rápida das verdades e da forma como os indivíduos interagem com estas. Mas,
321
paradoxalmente, se a sociedade do espetáculo cria o sujeito que velozmente se
322
Entretanto, podemos perceber, por exemplo, no cerne dos espetáculos
esportivos, das grandes competições e torneios, uma luta meio que “neurótica”
previsível e o imprevisível.
suscitar o “mais uma vez”. Ou seja, é o elan misterioso do jogo que garante a sua
não for assim, torna-se exercício, realidade enfadonha tal qual a própria realidade
racionalmente exacerbada.
originária do acaso, pois existir, para ele, é “estar aí”, na vida. Com isso, Sartre
323
realidade, ou melhor, dos sentidos que projetam o homem no mundo. Distante de
frente.
O acaso é uma realidade no jogo, quer se apresente sob a forma mais pura
(através dos jogos ditos de azar) ou das demais categorias de jogos onde o acaso
jogo não é uma questão de nível, mas de gênero. Ou seja, em todo jogo o acaso é
outros elementos que aparecem na esfera do jogo. O que não significa que tais
324
elementos não estejam também atrelados a uma compreensão mais ampla, isto é,
que os sentidos construídos na esfera do jogo nada tenham a ver com a realidade,
minimizar o acaso, e não da sofisticação ou não das regras. É claro que a maior
próprio jogo e do jogado. Entretanto, não são as regras que tornam os jogos mais
termo quando o jogo vive sob o predomínio do acaso. Pois Dioniso, como vimos, é
325
Creio que antes da década de 1980, no Brasil, nada ou muito pouco se
já era uma realidade dada, pronta, acabada, principalmente em suas regras, que o
principalmente por parte dos professores de Educação Física. Quando muito, sua
outras atividades dentro e fora de sala de aula, como por exemplo, o seu papel
catártico que até hoje impera como justificativa para sua incorporação nos
moderna, não foi à toa que sobressaiu enormemente em relação ao jogo que não
teorias críticas, como por exemplo, o marxismo. Mas também não podemos dizer
326
Essa questão sociologicamente é tão óbvia, que para nós basta ilustrar
acionados pela sociedade de consumo. E, de uma forma não tão menor, porém
a nível nacional ou regional, explorados por empresas privadas das mais diversas
ordens, onde o fim último é o retorno financeiro, o lucro. Daí, cada vez mais, se
o acaso como realidade, ainda que ele esteja presente, um pouco adormecido. O
que é possível vê-lo jogado com toda a sua força, pois destituído de certezas e de
327
Mas, se há um predomínio visível dos jogos intitucionalizados em relação
significa dizer que jogo (movimento com predomínio do o lúdico) seja a antítese do
dissociando Apolo-Dioniso-Hermes.
partida.
enquanto produto construído socialmente, ainda que não explicado de todo pela
própria sociedade.
328
Aquele que joga não possui somente necessidades materiais
sonhos, das utopias, das crenças, das ideologias, dos desejos que, em última
e de si.
suporte dessa vida. É uma relação do objeto com a nossa sensibilidade por meio
329
pela emoção que o remete ao mundo imaginário, vibra e tenta a jogada
controle “mágico” com a bola, o porquê daquela jogada arriscada que tinha mais
chance de dar errado e deu certo, enfim, o que justifica a atitude imprevisível e
provavelmente ouvirá dele: “Não sei. A única coisa que sei é que senti um ímpeto
estão além das palavras e que são extremamente concretos para quem joga, pois
Significa dizer que o mito apresenta-se mais como uma fonte de emoção
se menos por uma busca de explicação do que por uma necessidade humana de
evasão e de liberdade.
romances, poesias, mas uma realidade viva que se julga ter acontecido nos
330
o mundo e sobre o destino dos homens. A propósito, “Não há nenhum fenômeno
natural, e nenhum fenômeno da vida humana, que não seja passível de uma
interpretação mítica, e que não peça uma tal interpretação” (Cassirer, 1994,
p.123).
fundamentais de pensamento. Sua lógica - se é que tem uma lógica - não pode
objetos que desde sua origem foram objetos de culto e de profundo valor
Mas o jogo não se esgota nesses sentidos, pois o mito, sendo uma espécie de
projeção da vida social do homem, não tem na natureza o seu foco de maior
razão. O fato é que sua coerência depende muito mais de uma unidade de
331
sistematização, isto é, a realidade passa a ser dividida em reinos, classes,
mente primitiva ignora e rejeita essa forma de pensamento analítico, pois sua
mitos, é sentida como um todo contínuo e ininterrupto que não admite distinções
com o mundo.
externa a ele mesmo. Ou seja, enquanto quadro de referência que pode orientar,
conta desse fenômeno universal que é o jogo, mas em grande medida nos ajuda
homem.
aparece em algumas gravuras jogando contra a lua, isto é, contra ele mesmo. O
sentido deste jogo é o de completar os cinco dias que faltam para a formação do
332
calendário egípcio: demarcação e referência do tempo da vida mundana. Daí
jogo.
aquele que conduz mensagens entre o mundo dos mortais e dos imortais.
sandálias aladas de ouro o levam para o infinito das águas, da terra e do ar. Com
“cegando-os” para suas escolhas próprias em favor daquelas que ele julgar mais
dos profundos sentidos do jogo, qual seja, de realidade que flutua e vibra dentro
que vão sair, isto é, contrariar o destino para conhecer sua sorte, sua lógica? Ou
simplesmente o prazer de estar junto com outro colega? Perguntas muito atuais,
e que estão longe de serem respondidas de uma forma absoluta e definidora dos
sentidos que o jogo assume para o jogador. Mas o fato é que tal inquietação, por
não ser nova, ganha um escopo maior de significância e nos incita a adentrar cada
333
vez mais no mundo antigo para apreendermos algumas pistas que nos possam
pois início e fim se encerram nele mesmo. A forma circular, em sua simbologia,
de todas, pois concentrada em si mesmo, sem princípio nem fim, ele representa
de um ganho, de uma vitória sobre si mesmo - enfim, tal qual jogava Thot contra a
Não significa dizer que uma criança que joga despreendidamente algum
jogo com uma bola esteja ritualizando o encontro profundo consigo mesma
334
etc. Entretanto, não se pode negar a concreta relação que ainda se estabelece
simbólica, e que foram de certa forma impostos aos indivíduos pelas tradições
335
Na Grécia antiga havia um tipo de jogo (cottabe) que consistia em lançar
um esguicho, uma cusparada de vinho dentro de uma bacia. Era preciso ter
bebido para jogar, e o começo desse jogo se dava através de sorteio para saber
quem primeiro lançaria o vinho. O vencedor era premiado com mais vinho, ou tão
jogador não está preocupado com a natureza da premiação. Isto é o que menos
viver uma vida toda em alguns segundos ou minutos. Pois os prazeres que se
extraem dos jogos são rápidos demais para proporcionar desgosto ao jogador, e
Talvez seja por isso que cada vez mais convenço-me de que há, em
qualquer jogo, alguma coisa inexplicável através das palavras. Se assim não
jogo não pára. Seu movimento irradia-se e provoca outros ( por exemplo, os
336
poderes destes últimos são solicitados ardorosamente e ritualizados em níveis
uma ordem cultural imaterial, isto é, profundamente vinculada a sentidos que não
se esgotam em uma dada materialidade (dinheiro, prêmio, status...), ainda que tal
jogo. Entretanto, estou convencido de que o ato de jogar não se esgota e não se
indeterminado, o invisível.
muda em nada o destino do jogador quando “chegar a sua hora”. O jogo como
metáfora do lugar onde se pode estabelecer contato com o mistério, com Deus e
337
com a morte, leva o jogador a retardar jogadas, a desmanchar o jogo para ganhar
mais tempo, mesmo sabendo que seu fim já está dado antes mesmo de uma
nova jogada. De qualquer maneira, ele joga um jogo que está perdido de antemão,
mas assim mesmo joga. Luta angustiadamente contra o acaso, contra o mistério
mesmo tempo, sabe que jamais será possível superá-lo. No filme, ironicamente ou
citado, até porque, no sentido de símbolo utilizado por nós, ele se apresenta como
mas, por outro lado, nunca deixou de representar uma luta entre as sombras
tempo que é a ocupação de novo território, é também uma vitória sobre si mesmo;
Lhôthe (1994) nos diz que há uma alegoria olimpiana que conta o enlace da deusa
Fortuna com o deus da Guerra. Desta união foi gerado o Jogo: uma criança
338
diferentes origens, o Jogo se acomoda num determinado momento na companhia
Ao que tudo indica, metáfora da paixão que pode transformar-se em loucura, fúria
destino que se cumpre cegamente. Mas agora o deus não joga mais com o
homem, como Zeus jogava com Ganymede; é o homem que vive sobre a terra e
jogo.
Aristóteles coloca a questão nos termos de que muitas coisas se fazem e existem
pelo efeito da fortuna e do acaso. Ou seja, ainda que oficialmente a Fortuna não
seja a deusa protetora do jogo, sem dúvida ela em grande medida reina soberana.
E sua imagem é a de uma mulher que leva uma roda em uma das mãos e possui
339
uma venda tapando os olhos. E se o círculo (a roda) é uma figura perfeita,
celestial, pois não possui início nem fim, tudo começando e terminando nele
mesmo, o jogo, mais uma vez, se apresenta através da imagem da Fortuna, como
uma autoposse indivisível e sustentável por si própria; já a venda nos olhos pode
ser interpretada como a não distinção de raça, sexo, idade e cultura dos
jogadores, pois o jogo absorve qualquer um que queira adentrar nesse mundo
em geral, nos quais as regras não são recíprocas entre ator e público, e as
O jogo de bilboquê, datado do século XVII, e o ioiô dos anos 1930 podem
340
segundo a filosofia indiana, constitui uma das acepções profundas da palavra
fim. Mais uma vez, o círculo, a bola ou a roda aparecem como símbolos da auto-
nele mesmo.
e por isto mantinham-se em estreita comunicação com eles; muitos eram a figura
amorosos de Krishna, pois os textos dizem que ele se agrada em jogar o jogo das
encarnações parciais.
poema extraído dos Vedas diz: “Dados, sejais bons para nós e nos trateis como
341
amigos. Não venhais com uma cor implacável. Reservai vossa cólera para nossos
inimigos ou para um outro que não esteja nesta dependência desses negros
são um instrumento possível de comunicação com eles. O jogo dá-lhes fala, toma-
dados são criação do grande Vibhâdaca, palavra que remete à distribuição das
literalmente encantados; cinquenta e três combinações podem ser obtidas, nos diz
isto é, com vida própria, comandam e tornam os homens escravos, pois vêm do
animais, das crianças, dos adultos, das ondas, do vento; Divyata, jogos de dados,
significa ter, possuir o jogo. Buda foi jogador, numa vida passada. Daí os homens
estamos vendo, da Índia. Não é surpreendente que para tentar a sorte seja
342
utilizado este instrumento, pois quando certos povos da África nomeam os dados
Aliás, no curso da história da Pérsia os oficiais que deveríam ser supliciados são
implica uma noção de partilha. Se todos os poetas, desde muitos séculos, fazem
Mas, segundo Lhôthe (1994), não foi a mitologia grega, egípcia ou indiana
que melhor propôs uma divindade do jogo, mas antes a azteca, através de duas
jogo.
filhos de Adão e Eva, Caim e Abel. Com a diferença de que “os filhos” da origem
da criação azteca são lúdicos, floridos, amigos, e não irmãos inimigos, como
é a deusa do jogo, dos atos marginais. Sua figura é a de uma mulher nua, com
uma coroa de flores na cabeça. Num primeiro momento ela nos aparece como
343
uma musa que evoca em nós o desejo, mas na realidade ela se apresenta como
estrito parentesco. O céu bíblico não tem nada a ver com o Olimpo greco-romano,
muito menos com as divindades da Índia, e ainda menos com aquelas do México,
com certa dose de prudência, tanto pelas crianças quanto pelos adultos. A
propósito, dizia Heródoto: “Anima teu filho, ele te causará surpresas; jogue com
No jogo, se diz: “eu jogo com alguém, contra alguém ou alguma coisa”;
formas de ser no próprio agir. O agir do indivíduo remete a algo que está sempre
344
relação aos procedimentos, nem mesmo em relação ao uso, mas somente no
se intimamente ligados. Pois até Thot joga com a lua, que é ele mesmo, e seria
passatempo. Da mesma forma, muitos outros jogos, assim como as danças, estão
deus, o jogo é a marca da relação com o diabo? Para muitas pessoas, acredito
identificação, por parte dessas pessoas, dos jogos com o sagrado, isto é, com
forças estranhas, misteriosas, que impelem o jogador a jogar e que, muitas vezes,
Mas, em todo caso, o jogo pode ser visto a partir da pergunta acima como
começar com o encontro com ele mesmo. Neste retorno sobre si (e, mais uma
vez, a figura circular aparece com muita força) se enraíza toda paixão, e aquela do
Lhôthe (1994) nos mostra, através de uma bela gravura, Gengis Khan,
ilustrar que o uso dessas consultas (búzios, cartas, tarôt, cara ou coroa...) é uma
345
de ser uma manifestação atual. O que mudou de lá para cá foi, em grande
Alguns jogos antiquíssimos, como por exemplo o tarôt, têm sido apropriados como
Hoje em dia verifica-se um grande retorno aos deuses e diabos como temas
“empacotada” que se vende através de jogos como o “Lancelot”, “Os senhores dos
crenças profundas que ainda sobrevivem no imaginário ocidental. Daí, talvez, uma
dessa natureza, o que, cada vez mais, reforça a idéia do jogo enquanto um
fenômeno universal.
346
Da mesma forma, os discursos que remetem à possessão demoníaca
humana e o mistério da vida, ser e devir, vida e morte, real e imaginário, razão e
347
CAPÍTULO VI
desesperanças que enredam o jogador que não consegue controlar seu impulso
diante do jogo, mas que admite a necessidade e solicita ajuda, seja na figura de
as associações anônimas.
compulsivos a não se perceberem sozinhos e sem saída, bem como para impactar
compulsão e que não admitem tal fato os discursos veiculados pela AJA
38
Inicialmente fomos à Associação de Jogadores Anônimos, situada no centro do Rio de Janeiro. Quando
expus para o coordenador dos trabalhos o motivo pelo qual gostaria de participar das reuniões, isto é, ouvir os
depoimentos e posteriormente fazer algumas entrevistas, ele me disse que a reunião da AJA era fechada para
qualquer tipo de pesosa “curiosa”, mídia e mesmo para pesquisadores. Como insisti argumentando a
relevância social e o compromisso ético da pesquisa, o responsável pelos trabalhos disse-me para entrar no
site da internet dos Jogadores Anônimos, pois lá eu teria depoimentos concretos e verdadeiros de muitas
pessoas que se auto intitulam jogadores compulsivos. E de fato, ainda que tivesse feito outras investidas na
Associação de Jogadores Anônimas, a desconfiança e ao mesmo tempo zelo e sentido de preservação por
parte da Instituição aos seus membros, me fez buscar os relatos no site www.aja.com.br
348
apontaram para as seguintes marcas linguísticas: Força Superior; Fundo do Poço
e Abstinência.
o divino.
aquele que foi capaz de orientar seu caminho, de fazê-lo ver uma “luz no fim do
“Agradeço a meu Deus superior por ter conseguido alcançar esta graça”.
de uma nova possibilidade de vida, isto é, de uma vida que não esteja pautada
somente pelo jogo, o indivíduo afirma que através da ajuda piedosa e caridosa de
atesta sua impossibilidade de lutar contra algo que sempre considerou externo a
349
ele mesmo e misterioso. Daí, somente uma ajuda externa e também misteriosa,
compreender a compulsividade pelo jogo como algo interno, isto é, produzido por
nietzschiana, que este indivíduo não age, reage. E, enquanto reagente, encontra-
sociedade, as pessoas que estão ao seu redor, não conseguem ajudá-lo a superar
A compulsão, o seu vício, não é um problema que possa ser resolvido por
humanos, por mais lógicos e coerentes que seus “pares” possam parecer. Até
quando apontam para ele os prejuízos que tal comportamento está provocando
imaginária para superar a paixão pelo jogo só poderá ser superada por uma
paixão ou crença mais forte: a de que Deus está a seu lado, iluminando os seus
350
passos e ajudando-o a controlar o impulso de jogar. E tal despertar é tão
Se, por algum motivo, aquele que se encontra em abstinência tem uma
natureza humana ou “falha do caráter” que pode ser corrigida novamente através
com tal Força, ela poderá novamente colocar o homem à mercê dele mesmo.
de cura de mulheres grávidas que tinham seus fetos virados, isto é, localizados
pertence e do novo sentido construído, que explica a situação do feto virado como
351
rituais de expulsão, realiza simbolicamente o movimento inverso à penetração do
através dos movimentos e palavras do xamã, acaba por produzir uma lógica de
sentidos que adere integralmente a seu universo particular, explicando com toda
a força as “causas” de seu mal. E, uma vez que “descobre”, que se revela a
“espírito” e se cura.
mal não se apresenta como certa ou errada, pelo resultado que promove, pela
mágicas do qual ele participou com o xamã. Esta condição está presente em
352
“Um grupo de pessoas a quem Deus deu a benção...”
remetendo a idéia de Deus enquanto fonte única de sua cura, produzindo assim o
deslocamento de sentido.
do compulsivo, para que ele possa superar o seu mal. E esta iluminação vem da
salvação, que não tem hora nem data para chegar; se o indivíduo for agraciado
Deus como único capaz de conduzi-lo para a senda da verdade, acabando com o
seu sofrimento.
353
O indivíduo confere a algo externo e superior a ele o papel precípuo de
que o assola fazem com que crie imaginariamente a figura do “outro”, de alguém
que está fora e acima dele, como o responsável único pela sua superação.
precisa acreditar que não tem mais controle da situação, precisa alienar-se de si
força e de autonomia para a vida enquanto ato de liberdade, que ele precisa
atribuir a algo externo a ele mesmo o poder de... encontra-se capaz de superar o
seu drama. Sua existência enquanto jogador compulsivo é um peso que ele não
consegue mais “carregar” e assumir como sendo somente seu; portanto, cria
indispensável e única.
daquela realidade, não impora que isso ocorra através da imagem de um “outro”
354
que não ele mesmo, que isso seja certo ou errado, justo ou injusto, moralmente
adequado ou não, mas sim a eficácia dessa produção ficcional. O fato é que, uma
vez que o indivíduo passa a acreditar em sua superação pelos sinais oferecidos a
ele por Deus, ele transforma a sua desgraça em vantagem, a paixão pela morte
real imaginário, onde a evasão momentânea do real não é somente fuga, mas
também projeto. Tal qual o arquiteto que, ao projetar uma casa, pensa-a a partir
solo. Mas também se afasta dela, para poder vê-la melhor face à posição do sol,
sua salvação. Mas, no final das contas, ainda que de maneira ambígua, talvez o
próprio indivíduo saiba que a força que o impulsiona a superar seu sofrimento
sentido entre Deus e ele mesmo, pois sabe que não poderia superar seu vício sem
Deus, mas quem assume seguir Deus e lutar contra o jogo é ele mesmo.
355
Assim, a superação do vício se dá para o jogador compulsivo na arena
por outro lado, uma vez guiado e sabendo que alguém superior e misterioso
vício.
maior
Nesse sentido, não podemos deixar de dizer que esta luta entre se assumir
apresenta como um grande tormento, uma angústia que na medida em que não
356
“Aspirávamos em nosso imaginários sonhos de olhos abertos”
problema que se apresenta aos seus olhos como insolúvel (o vício, a dependência
explicação, se afasta dele para poder “dialogar” com ele, ritualizando formas
emocional, e não consegue encontrar respostas plausíveis para tal situação. Daí
perguntar a Deus pelo seu problema, de se ver estarrecido com o que fez de si
próprio, isto aponta para o lampejo de consciência de sua situação real. Pois ele
nunca poderia imaginar que vivenciaria tal situação. Talvez tivesse imaginado
muitas outras coisas que o ato de jogar poderia lhe trazer, mas, na medida em que
357
fazia um caminho sem volta, isto é, ampliava o espaço imaginativo e não
retornava ao mundo da vida, ele fazia da sua produção imaginária o único local
e profunda auto-reflexão.
maneira indireta e a resposta talvez seja o que menos importa. O que importa é
no mundo da vida. Pois, ao fazer repetidas vezes a pergunta, ele reatualiza o seu
O curioso, entretanto, é que ele faz tal pergunta a Deus, e não a alguém
mais próximo de seu universo real - parentes, amigos, cônjuge. O que indica que
seu problema não é objeto de trato e de possíveis respostas pelos humanos, pelo
pode ser respondida por uma Força Superior detentora de poder incomensurável e
misteriosa, pois misterioso foi o arrastar-se para esta situação, misterioso é ele ter
358
consciência de que tem que parar e, ao mesmo tempo, não conseguir fazê-lo. O
aqui como mistério, onde o humano procura explicação sobre-humana para seu
mal. Isto remete a um traço marcante que Mircea Eliade (1991) chama de
“alguém” que se encontra em uma dimensão que seja superior a ele e que se
encontra num plano diferenciado dos demais humanos, que é o plano do sagrado.
Isto aponta, por outro lado, a sua dificuldade de ter “ouvido”, e talvez ainda
situação. Pois acredita que o mistério daquilo que o tornou o que é só pode ser
resolvido através de uma outra força misteriosa, que é Deus. Seu campo de
profano, podendo ser qualquer coisa ou situação. Daí, além de Deus como fonte
359
dele, fazem parte também de um profícuo canal de comunicação e troca, pois são
jogar.
360
Com relação a esta outra marca linguística encontrada, é interessante
vida. Para os hebreus, por exemplo, Jesus bebeu água do poço oferecida pela
samaritana; Moisés, descrito por São Martinho, parou diante de um poço, fonte de
profundidade, silêncio.
sartreana que diz que “o outro é o meu inferno”, neste caso específico o “outro” é
o próprio sujeito que, ao se deparar com seu estado de degradação moral e social,
361
“No fundo do poço, xingando a nós mesmos.”
“Fiquei possuída por alguém que não se identificava quando tomava meu
corpo”
entidade ou força fez uso dele de maneira possessa e o colocou em uma situação
para fazer uso de sua força e poder, a possessão, no caso do jogador, é algo que
que passa a possuí-lo de maneira cruel e, após repetidas investidas em seu corpo,
362
“Fiquei possuído por alguém que não se identificava quando tomava meu
corpo”
sujeito, jogador, que é a manifestação de uma entidade que está incorporada nele.
É nesse sentido que o uso do corpo como mercadoria referida em outro dos
Isto silencia para o fato de que em grande medida dentro da lógica mágico-
também através da crença em uma força superior àquela que o levou ao fundo é
que ele poderá retornar ao alto. Este movimento de ascensão indica a tomada de
363
Antes ele talvez nem visse o poço, agora já o vê. E quando identifica seu lugar
nesta realidade ele fornece pistas de que, para sair do fundo, necessita do divino,
da Força Superior.
apossou de seu corpo, só poderá ser vencida se ele fizer o caminho inverso, isto
é, o de subida. Mas, para tal, os rituais de ascensão deverão passar pelo seu
corpo.
dele. E é através de seu corpo que ele que irá se colocar à disposição das forças
subida aos céus também passa pela apropriação de seu corpo, só que uma
espíritos o levarão para o céu, para o mundo da claridade, e não mais para o
apresenta como uma tensão diametralmente oposta, tal qual o sentido entre
sagrado e profano.
situações para poder se erguer para o plano do sagrado depurado, como exemplo
364
vivo de superação de uma vida dramática que agora está entregue às suas mãos
e às de Deus.
Estar além do limite daquilo que não se consegue mais explicar e não
utilizar metáforas para ilustrar uma situação vivida significa estar à beira do
suicídio.
fato social, pois tende a se repetir estatisticamente nas sociedades, fazendo parte
365
tendência suicida. Pois “As causas da morte estão fora e não dentro de nós e são
morte simbólica.
pode ser escolhida, independente do sentido que possa vir a ter para este ou
“o impulso para a morte não precisa ser concebido como um movimento contrário
à vida; pode ser a exigência para um encontro com a realidade absoluta, uma
exigência para uma vida mais completa através da experiência da morte” (p.77).
366
estar em vias de renascer para uma outra esfera da realidade, uma nova vida e
sofrimento vivido, uma confusão do estado interior com o exterior, porém, muitas
de dependência do indivíduo.
por outro lado pode remeter também para a concretização do ato. Pois não
367
podemos deixar de assinalar que, se a experiência suicida remete à
específico de ação onde o fazer do indivíduo nasce e morre com ele mesmo, com
condição biofuncional.
hiato estabelecido por ele entre a dimensão psíquica e cultural, pois a única coisa
confusa onde a saída mais fácil é “dar cabo” de si mesmo. Pois o pensamento que
vigora é sobre seu próprio sofrimento, que julga não ter alternativa de superação.
Opta por sucumbir em vez de lutar. Ou opta para dar fim à sua luta.
368
Ao contrário do movimento simbólico do batismo enquanto realidade de
6.3 - Abstinência
enfrentamento e de luta sem tréguas, pois a qualquer momento pode-se ter uma
recaída. Abster-se é realizar uma vitória contra algo externo e, ao mesmo tempo,
atitude:
369
“Evitando a primeira aposta e vivendo vinte e quatro horas”
cada passo, a cada nova rodada do jogo que ele se propôs visceralmente a jogar
que impele o jogador, esta só poderá ser vencida por uma outra força, uma força
maior, mais violenta, mais potente, uma força que além de dialetizar com a força
370
externa, necessita de um complemento interno, intuitivo, sensível, para se fazer
uma força, só que é um tipo de força reativa, a força da subserviência, a força que
impede a superação, a força que puxa para baixo, para a falta de controle face ao
Assim, entre a ação e a afirmação, entre a ação e a reação, existe uma afinidade
profunda, uma cumplicidade, mas não há qualquer confusão. Pois, como afirma
Deleuze (s.d.),
371
negação, como de qualquer coisa que as ultrapassa, mas que é
disposição para um devir ativo que remete ao sentido de vitória da ação sobre a
reação.
372
“Com um ano e meio de abstinência, posso dizer que sou feliz porque estou
viva”
significa a felicidade, a alegria de poder estar vivendo sem ser impelido pelo
novo, de superação do vivido até o momento. É uma ação ousada e corajosa que
se abre para o imponderável, pois a única certeza que se tem é que se deve
caminhar para a frente. Como? É seguro? Durante quanto tempo? Estas são
perguntas que não podem ser respondidas, muito menos que devam ser feitas
para uma tomada de atitude inauguradora do sujeito que está lutando por uma
com as forças ativas que as dominam. São os hábitos, a força dos costumes, das
que tende para o poder. Daí Nietzsche dizer que o poder dionisíaco, a
373
Estar feliz é manter sob controle o comportamento compulsivo. Motivo de
antes era teoricamente incontrolável pode ser dominado, controlado pelo próprio
indivíduo, basta ele ter disciplina, persistência e uma vontade muito grande de
vencer.
uma regra social ou moral requer uma justificação, uma garantia de antiguidade,
mito.
374
A Abstinência enquanto rito da felicidade reatualiza a força do sujeito
incontroláveis.
pois o fato de não se curvar diante do impulso pelo jogo significa manter-se no
sua história de vida, o que fica silenciado é que o fato d e o indivíduo não
dominado pelo impulso incontrolável do ato de jogar, ele é mais objeto do que
375
Não ritualizar o cotidiano através da Abstinência significa viver à margem
propósito, ao não demarcar sua vida através deste rito, o indivíduo fica
sujeito contra ele mesmo. São os rituais que o fazem lembrar constantemente
como realidade categórica. Ter que correr risco significa apostar, jogar, lutar
contra algo que você domina e, ao mesmo tempo, desconhece. Portanto, assumir
376
o risco significa enfrentar a realidade tal qual ela se apresenta, isto é, como
presença do acaso, e quanto maior for a sua presença maior será a tensão e a
risco merece ser vivido; nos demais momentos da vida, fora do instante escolhido
situações que lhe permitem calcular os riscos e lhe dão condições de controlar o
377
cálculo mínimo, de ponderação para assegurar a possibilidade de vitória, de
Abstinência.
378
6.4 - O Espaço Medieval Cristão e a Fé do Jogador na Busca da Auto-Superação.
já dissemos, uma nítida presença do viés religioso cristão. Não que seja um ato
intencional e consciente por parte do jogador tentar justificar o seu drama através
Jogadores Anônimos.
extraordinária que até hoje, passados 2000 mil anos, ainda figura com muita força
379
hierárquica da condição humana cristã, isto é, uma escada com três níveis
medieval, pois inclui em um mesmo mapa o mundo dos vivos (os jogadores em
E isso nos evoca a Diniva Comédia de Dante Alighieri (1957), que descreve
mundo, o nível mais baixo por oposição ao céu; o purgatório representado por
mundo dos pecadores, mas que, por outro lado, aponta com seu cume o sentido
380
Nesse sentido, estar no “fundo do poço” significa habitar um lugar sem luz,
recuperar a esperança na vida. Mas é preciso contar com a “força superior” para
abandonar por completo o vício, obter total autocontrole diante do ato de jogar e
compulsivamente.
pecado original da compulsão. É o primeiro passo dado pelo jogador para sair do
O purgatório é a região dos tormentos das almas. É alí que se testa, que se
avalia, que se luta internamente com os próprios demônios, com as recaídas, com
de se manter sempre de frente para elas, pois qualquer descuído é suficiente para
381
Na montanha do purgatório, ou na Associação de Jogadores Anônimos, as
almas são purgadas do pecado, e assim vão sendo purificadas até que atinjam o
pico da montanha. Ao atingir o cume, a alma, leve dos pecados que deixou para
novamente não é um discurso evasivo, que busca fugir da realidade ao fazer uso
tentando dar conta de uma situação que as palavras e a consciência racional dos
fatos não é capaz de traduzir. Toda criação ficcional, imaginária, dos jogadores
inferno como um lugar medonho, com pouquíssimo ar puro, escuro, negro por
382
A mensagem poética de Dante, parece-me, é mostrar que o pecado
para sempre.
para um local onde é possível respirar melhor, onde há capim verde sob os pés,
formas coloridas e vivas, um lugar finito, mas onde o tempo cessou. Lugar que
383
de Dante quanto na realidade dos jogadores anônimos, a ajuda se dá até o
tem de trilhar sozinho. Não há fórmula ou tempo especificado para que isto se dê,
ou mesmo garantia de que um dia irá acontecer de maneira geral, isto é, enquanto
nível mais elevado do purgatório, a alma, leve dos pecados, deixa a ajuda para se
tornar aquela que irá ajudar, aquela que irá conduzir novas almas.
384
CAPÍTULO VII
PARAÍSO
Todo desejo, seja ele de que natureza for, pode se tornar um impulso
sexos e de hábitos bem distintos. Atear fogo em objetos, roubar, consumir, fazer
quer ligado diretamente ao esporte, quer não. Isto porque qualquer atividade
385
Esta tese, portanto, recobre todo o universo da prática dos professores de
psicossomática.
386
outras pessoas; uma fonte de trabalho direta e indireta para milhares de
caso do bingo.
especial ao jogo de bingo merece significativa atenção, e muito tem sido discutido
sobre a natureza moral das casas de bingo. Neste estudo, optamos por caminhar
que, via internet, anonimamente seus depoimentos. Uma vez mapeado o universo
387
manifestação de fuga momentânea através de uma realidade social brutalizante e
imaginário social, pois é a produção imaginária dos jogadores que sustenta sua
prática com o jogo. Para tanto, apoiamo-nos em Castoriadis (1982), para quem o
mas não se reduz a ele. O imaginário é aquilo que ultrapassa o próprio sujeito,
motivado também pelos desejos, afetos, sonhos e fantasias. Daí não ser possível
388
representação não se reduz à ideologia, ao contrário, incorpora-a, podendo
imagens que não são se reduzem nem a uma explicação subjetiva, nem às coisas
social e individual, num jogo tenso e perpétuo entre o ser e o dever ser, entre o
presente e o futuro que está sendo feito, entre o real e o imaginário, entre o factual
e o projeto.
se encontram.
389
A ambiência possui uma funcionalidade, mas não se reduz a ela. Cores,
nesse sentido que Bachelard (1989) declara que o canto remete à imobilidade,
humano, daí não ser um lugar frio e inerte, pois o sujeito interage e se indaga
sobre si e sobre suas circunstâncias como vimos com Teixeira Coelho (1999),
dessemantizado, pois todo lugar é sempre o lugar de alguma coisa, seja real ou
causal.
390
à prática da inclusão social, à ampliação da sociabilidade através da diversidade
significativas.
que ele frequenta, que é capaz de acionar a paixão incontrolável pelo ato de jogar.
Costumo brincar com meus alunos dizendo que a genialidade de Mozart só pôde
porque ele tinha a sua disposição um piano. Embora nem o ambiente nem o
para afirmarmos que o indivíduo diante do jogo não possui somente necessidades
ele possui também necessidades afetivas e mitológicas que dialogam com a razão
de se jogar.
391
A razão do indivíduo encontra-se em diálogo permanente com a paixão. A
razão louca tende a alienar o sujeito da própria realidade, tornando-o “cego” para
como um empecilho à sua liberdade, pois jogar é a única coisa que importa. Já a
razão sábia é aquela que predomina no jogador que, mesmo sendo sistemático
em suas ações em jogar, não perde os vínculos com a realidade e não faz do jogo
a única coisa de sua vida; possui autocontrole suficiente para obter prazer,
razão, onde o mergulho no imaginário acontece sem retorno à razão. Neste nível
provocada.
Nesta trama entre razão e paixão não há uma fórmula a ser seguida pelo
indivíduo para obter prazer, excitação e adesão emocional ao jogo sem ser
sugado por estes sentimentos. Não há como dizer em que momento o indivíduo
392
podemos dizer é que o jogo é uma realidade simbólica capaz de mobilizar e
absorver os indivíduos de maneira muito séria. Jogar é muito sério para quem
de odores e de sons que, no seu conjunto, são capazes de produzir uma excitação
através de um mapeamento dos objetos, das cores e das formas pregnantes que
azul e amarelo figuraram como cores emblemáticas. Não só pela força simbólica a
que cada uma delas remete, mas também considerando cada uma delas em sua
em suas poltronas para lhe assegurar uma evasão duradoura da realidade; e, por
393
elevadores, sendo também representado na cor do troféu para quem ganha o
bingo.
ideal.
brincante se enreda em uma lógica própria e torna o seu ato incomunicável com o
outro; vive solitariamente a sua prática, que nasce e morre com ele. Já no jogo, o
também pelo compromisso com o outro39, mediatizado através das regras. Assim,
39
Esse “outro” é real ou imaginário.
394
pode-se iniciar um jogo de bingo apenas no sentido da gratuita brincadeira, isto é,
esbarrar nas “pedras” da cartela, deixando-a sem marcar simplesmente por puro
deleite. Mas, quando se começa a aguçar a percepção para o som que está sendo
“cantado”, a ficar tenso com o último número que falta para ser sorteado e que
ainda não saiu, a olhar para a cartela com o sentido de desafio, de superação, daí
Tudo leva crer que quanto maior for a presença do acaso no jogo, maior
395
matemática do jogo, pela lógica dos sorteios, pela recorrência das jogadas
relação com o jogo, pois é preciso que possamos também conceber essa trama
mito do herói, a luta entre a vida e a morte através das peças brancas e pretas do
396
possessão demoníaca, enfim, verdadeiros ritos de celebração e de demarcação
da vida humana.
e de maneira vigorosa. Mas não há jogo sem jogador. Não há sentidos sobre o ato
realidade.
vivem.
consciência por parte do jogador de que só através de uma ajuda poderosa ele
controle para parar de jogar é tão forte e absorvente que o jogador acredita que
397
reconhece a necessidade de ajuda, seja ela real ou imaginária. O fato é que o
indivíduo toma consciência de que não pode realizar sozinho a luta para vencer a
batalha contra a compulsão. Ele não se considera forte o bastante para enfrentar o
exército do mundo imaginário que o “empurra” para o jogo, pois sabe que ter
úmido, sem luz e sem esperança; é estar no limite entre a vida e a morte; é
suicídio se apresenta como uma saída possível para dar cabo de todo o
sofrimento que causou a si próprio e aos outros. Mas se o indivíduo que está no
fundo do poço conseguir erguer um pouco a cabeça e olhar para cima, verá a luz
da abertura. Mas ele necessita, dentre outras coisas, de uma “corda” para ajudá-lo
a sair de lá. Sua força e habilidade não são suficientes para escalar as paredes
frias e estreitas do poço. E aqueles que conseguem chegar à terra firme sabem
que superaram uma etapa mas têm que se manter muito atentos para não cairem
novamente no buraco.
398
Talvez seja por isso que a Abstinência tenha aparecido como outra marca
fundante nos discursos dos jogadores, pois remete aos sentidos de atitude, de rito
fundo do poço. Estar em terra firme não significa estar totalmente seguro, significa
atitude corajosa e firme; é experimentar e resgatar, a cada dia que se passas sem
o paraíso.
399
simbólico das casas de bingo, aos poucos, vai sendo ressignificado e dá lugar a
compulsivos.
400
A fé no jogo dá lugar à fé na cura ou na recuperação. No jogo, o objeto da
sejam revividos constantemente para que seja possível adquirir segurança cada
Como foi visto, a ambiência das casas de bingo, alinhada com a produção
compulsividade. Ainda que tal química não possa ser definida através de uma
universo das casas de bingo tendem a potencializar o seu valor simbólico mais
do patológico e do pecado.
401
há de mais profano, perceptível nos apliques, nos quadros decorativos, nas
o céu e a terra, esta luta, para o compulsivo, se apresenta vencida pela terra. O
mergulho que o azul sugere é para o compulsivo um mergulho sem volta, ou com
de seus contrários para aqueles que estão tentando sair do Fundo do Poço ou do
402
imagem sagrada dos laços rompidos por Lúcifer. Amarelo da crueldade, do
cinismo, que, ao se apresentar nas casas de bingo nos metais, nos corrimãos e
sociedade capitalista que não mede esforços para que a compulsividade pelo
Quando o indivíduo não consegue mais dialetizar com seus limites ele perde o
formal.
momento no jogo que se tornou emblemático em sua vida e que inaugurou a sua
403
pelos olhares do cassino se voltando para a sua mesa, pelo montante de dinheiro
à sua frente, pelos aplausos e falatório referendando a sua pessoa, ele entra em
transe, não conseguindo mais perceber nada à sua frente ou ao seu redor,
somente sentindo uma sensação de paz profunda e o bem que aquele estado lhe
jogador.
arquitetados pela ambiência do espaço do jogo, com suas cores, formas, texturas,
pelo indivíduo, faz com que ele entre em um estado de plenitude, de êxtase e de
prazer indescritíveis.
ou azar, em especial no jogo de bingo. A cabeça está sempre voltada para cima
404
Assim, não basta apontar para o jogador compulsivo classificando-o de
afetivos e morais. Paralelamente, apontar uma luz, isto é, uma “mão” amiga, real
(pessoa ou grupo de pessoas) ou imaginária (Deus), para que ele possa canalizar
toda a sua fé e excitação nesta nova direção que se apresenta a ele. É preciso
mostrar para ele e fazer com que ele fale ou expresse de alguma outra maneira o
caminho que trilhou na senda do jogo: o jogador tem que fazer o caminho de
descida tantas vezes quanto for necessário para que ele possa ressignificá-lo em
caminho de subida.
Toda ajuda e sentimento sincero de ajuda, com suporte técnico ou não, é muito
405
mesma “lingua”, isto é, acionam os mesmos medos, angústias, símbolos, crenças
repetir as cores, formas, sons, odores e gustação vividos nas casas de bingo, sob
possa ser apropriado, por exemplo, com o sentido do verde das matas,
406
c) o azul do infinito e da liberdade desmedida, dê lugar à ascensão do
capacidade de se auto-controlar;
407
f) não esqueça de que o inferno pelo qual passou, ascendendo até o
purgatório, foi um caminho feito e refeito por ele, com ajuda ou não de
pelo jogo, nas casas de bingo da Cidade do Rio de Janeiro, queremos ressaltar
que quem constrói uma casa de bingo não arquiteta os arranjos simbólicos de
objetos e chamadas.
Isto não significa dizer que aqueles que constroem esses espaços sejam
verde acalma, que o vermelho excita, que o azul liberta, que o amarelo remete a
dinheiro diz muito pouco dessas cores, de seus simbolismos, de seus arranjos em
408
relação a outros objetos e da sua influência na produção imaginária dos
indivíduos.
indivíduo. O sentido inicial que o motivou a adentrar este espaço não é o mesmo
que o mantém dentro dele, e irá variar conforme a sistemática de suas idas e
vindas.
profano. Diria que em uma casa de bingo, ou em qualquer outra casa de jogos de
diálogo permanente com tudo que pode ser apropriado como pista dos deuses
para uma nova jogada, para a vitória, para a superação do acaso. Vivencia-se ali
409
A casa de bingo não é o inferno, o purgatório ou o céu. Ela é isto tudo e, ao
mesmo tempo, não é nada. Mas não um nada que não significa, que não
seduzir, convidar e acolher o indivíduo para que jogue e retorne à ela; Por outro
lado, nem todo indivíduo se sente seduzido, acolhido e pertencente a este espaço
alma humana, talvez seja porque Deus de fato joga dados no espaço celeste.
410
CAPÍTULO VIII
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CAPÍTULO X
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