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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 3
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4 António Fernando Cascais
aceitável” (Archer, 1996:20); e enfim, “a gizante (Hottois, 1984; Hottois, 1992), dos
percepção da insuficiência dos referenci- problemas levantados pelos avanços das tec-
ais éticos tradicionais” (Archer, 1996:20). nociências biomédicas a uma questão de
Archer refere que a incapacidade para dar desumanização é essencialmente equívoca e
resposta a tais questões, é tanto do código pobre, sem com isto pretendermos negar a
hipocrático, com o paternalismo médico nele percepção comum e generalizada que está
consagrado, posto em causa pelo crescente por trás dela. Albert Jonsen, por sua vez,
reconhecimento do direito à autonomia do aponta cinco tópicos principais que merece-
paciente, como da ética filosófica, sobre- ram atenção preferencial nas primeiras dé-
tudo com a crise das correntes que substi- cadas da bioética, a experimentação humana,
tuíram uma racionalidade especulativa por a genética, os transplantes, a reprodução
outra meramente processual, mas também da e a morte e o morrer (Jonsen, 1998:125),
teologia moral, tradicionalmente baseada no e para quem “foi uma lenta acumulação
conceito de lei natural, e a consequente di- de preocupações respeitantes à ambiguidade
ficuldade de adaptação às novas ciências do do progresso científico que virou a velha
artificial, assim como da renúncia da ciên- ética médica no sentido dos novos camin-
cia à pretensão de fundamentar uma ética, hos da bioética” (Jonsen, 1998:3). Nesta
após ter abandonado os conceitos de final- conformidade, a bioética distinguir-se-ia da
idade ou intencionalidade da vida, o que ética médica tradicional, concentrada nas re-
a fêz desistir de buscar a verdade e, logo, lações médico-doente, por se haver com as
o bem. Archer, que assim pensa, sus- repercussões das tecnociências da vida sobre
tenta, não obstante, que a bioética tem uma a natureza e a sociedade em geral, como o
origem científica, porquanto “foi sobretudo propugnavam desde a década de 70 os amer-
dos homens de ciência que proveio o apelo icanos Van Rensselaer Potter e André Hel-
e o impulso para a nova bioética, talvez legers, ambos médicos e pioneiros da teoria e
por reacção vivencial ao rápido desenvolvi- da prática bioética, mas que envolvem numa
mento de um tecnologismo desumanizante” mesma preocupação assuntos tais como o
(Archer, 1996:21), podendo concluir-se, em crescimento demográfico e a regulação da
sua opinião, que “a bioética surgiu, há cerca natalidade, a preservação do meio ambiente
de um quarto de século, como um conjunto e a qualidade de vida das gerações futuras,
de preocupações éticas levantadas por cien- as relações entre países ricos e países po-
tistas” (Archer, 1996:31). Não é por acaso bres, que já não apenas o universo restrito
que a percebida “desumanização” da medic- dos dilemas que irrompem à cabeceira do pa-
ina contemporânea tenha presidido ao im- ciente.
pulso inicial da bioética: “Aquilo que hoje se Daniel Callahan, um dos nomes tutelares
conhece como ‘bioética’ teve pois início uma da bioética, assevera que: “A bioética repre-
década e meia após o fim da Segunda Guerra senta uma transformação radical do domínio
Mundial como um movimento, latamente mais antigo e tradicional da ética médica
entendido, para ‘humanizar’ a educação e a (...) A palavra ‘bioética’, de colheita re-
prática médica” (Pellegrino, 1999:75). No cente, veio a denotar não apenas um campo
entanto, a redução, humanista e antropolo- particular de estudo – a intersecção da ética
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e das ciências da vida – mas também uma cionais em três grandes aspectos, primeiro
disciplina académica; uma força política no no respeitante à natureza e ao domínio da
interior da medicina, da biologia e dos es- medicina, depois ao âmbito e ao sentido da
tudos do ambiente; e uma perspectiva cul- saúde humana e enfim ao entendimento so-
tural de algum relevo. Entendida de modo cial e cultural do significado de viver uma
estrito, a bioética é simplesmente mais um vida verdadeiramente humana, de tal modo
novo campo que emergiu em face de grandes que “(o) advento da bioética pode ser visto
mudanças científicas e técnicas. Entendida como a principal resposta social a essas
de modo mais alargado, porém, é um campo grandes mudanças” (Callahan, 1995:249). A
que se estendeu, e que em muitos lugares presciência de Callahan revela-se particu-
alterou, outros campos bem mais antigos. larmente quando afirma que “(q)uando um
Atingiu o direito e a política pública; os es- problema moral é objecto de viva controvér-
tudos literários, culturais e históricos; a im- sia, pode-se razoavelmente pensar que está
prensa popular; as disciplinas da filosofia, da em curso um processo cultural mais vasto,
religião, e da literatura; e os campos cien- não passando a preocupação com a moral-
tíficos da medicina, da biologia, da ecolo- idade de um sintoma deste último” (Calla-
gia e do ambiente, da demografia e das ciên- han, 1986:45). Deste modo, o ressurgir do
cias sociais” (Callahan, 1995:248). Callahan interesse pela ética biomédica não seria “as-
aponta como condição de primeiro plano da sunto de filósofos ou teólogos moralistas,
sociogénese da bioética a confluência, na dé- imperialistas ou que presumissem a sua com-
cada de sessenta, do extraordinário desen- petência, nem de um corpo médico inqui-
volvimento tecnológico que se avolumava eto e atingido por um complexo de culpa”
desde a Segunda Guerra Mundial e das pro- (Callahan, 1986:44). Pelo contrário, ele
postas de vastas e profundas reformas sociais resultaria da convergência de razões exter-
e políticas e mudanças culturais (Callahan, nas e internas à medicina. Entre as razões
1999:54): “Essa década juntou os avanços externas, haveria que nomear: o interesse
médicos que pareciam insinuar a conquista crescente que o público atribui aos factos e
final da natureza e as mudanças culturais gestos de todos os profissionais de saúde, in-
que confeririam aos indivíduos recentemente cluindo médicos e cientistas dedicados à in-
emancipados o poder de assumirem o cont- vestigação biomédica; a atenção acrescida
role total dos seus próprio destinos. Nesse dos meios de comunicação, sobretudo em
progresso havia ao mesmo tempo grande es- relação a situações de conflito ou contro-
perança e ambição, e talvez uma grande hy- vérsia; a amplitude e a vastidão de um sis-
bris, a crença cheia de soberba que os seres tema médico em larga medida público e fi-
humanos podiam transcender radicalmente a nanciado pelo Estado e que por isso concen-
sua condição natural” (Callahan, 1995:249). tra inevitavelmente a atenção do público, dos
Assim, segundo Callahan, os efeitos dos pro- tribunais e da lei; o sentimento geral de in-
gressos das ciências biomédicas e das re- quietude e perplexidade em face dos avanços
spectivas aplicações tecnológicas ter-se-iam tecnológicos; o descontentamento suscitado
tornado patentes nos anos sessenta, com a pela desumanização e a fala de qualidade
transformação de muitas concepções tradi- da prestação de cuidados de saúde; e en-
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fim a pressão a que se encontra sujeito o a discórdia num domínio que durante muito
sistema médico que tem de se encarregar tempo consideraram seu território reservado,
de todos os males humanos que dantes não tanto mais quanto a tradição positivista e em-
teriam sido encarados como relevantes para pirista dominante na medicina, que sempre
a medicina. Entre as razões internas, dev- exibiu um certo desprezo em relação às dis-
eriam citar-se os avanços das tecnociências ciplinas tidas por não científicas, mais não
biomédicas e os novos dilemas éticos a que fez que reforçar as dúvidas sobre o valor
dão origem. No entanto, sublinha Callahan, do discurso moral. Pior ainda: “O facto de
há que não menosprezar o contexto cultural se confundir continuamente a moral com a
mais vasto que intensificou e alterou o im- moralização, o endoutrinamento, a penaliza-
pacto das pressões internas à ética biomédica ção ou simplesmente o ‘bom gosto’ não fa-
(Callahan, 1986: 44-45). Nesta conformi- cilitou as coisas” (Callahan, 1986:46). A
dade, Callahan acrescenta que: “Após um principal razão da resistência de médicos e
longo período de progressos médicos rápidos cientistas ficaria porém a dever-se, acredita
marcados pelo advento dos antibióticos e o Callahan, ao facto de que todo o reconheci-
tratamento das doenças infecciosas, a medic- mento do valor moral tornar inevitável uma
ina passa agora por uma evolução ligeira- redefinição das hipóteses e dos objectivos
mente diferente, caracterizada por progres- fundamentais, o que faz acrescer aos proble-
sos terapêuticos menos rápidos, um orça- mas de ordem moral a incerteza quanto aos
mento mais elevado, um sistema médico objectivos profissionais que há que perseguir
mais complexo e uma interacção mais forte (Callahan, 1986:46). Mas, além da in-
entre a medicina e as demais esferas da so- certeza crescente no seio da medicina, o in-
ciedade” (Callahan, 1986:45). E prossegue: teresse pela ética biomédica também se ex-
“Os problemas de ética da ‘biomedicina’ plica por um fenómeno até certo ponto par-
de hoje favoreceram o questionamento dos alelo do lado da filosofia e dos filósofos
objectivos fundamentais da medicina e são quanto aos fins últimos da sua disciplina:
ao mesmo tempo o reflexo desse question- “Neste contexto, os problemas biomédicos
amento. Seria fazer prova de uma certa in- forneceram um bom critério de apreciação
genuidade acreditar que os objectivos tradi- da proposição segundo a qual a filosofia
cionais da medicina, de um ponto de vista moral, mau grado os seus detractores, tem
moral, podem não ser postos em causa” algo de pertinente a dizer sobre a vida hu-
(Callahan, 1986:45). Ora o carácter in- mana. Assim, a medicina encontra-se su-
evitável destas transformações não deixaria jeita à prova da moral e a própria moral
de suscitar fenómenos de resistência no seio fica sujeita à prova da medicina” (Callahan,
das comunidades médicas e científicas. Diz 1986:46). Precisamente, cita-se entre os arti-
ainda Callahan que médicos e cientistas se gos seminais da reflexão bioética um com o
deram conta que as novas pressões a que se sugestivo título de “Como a medicina salvou
viam submetidos se deviam em grande parte a vida da ética”, de Stephen Toulmin. Toul-
à intervenção do público nos debates da ética min explica que, nas últimas décadas, se as-
médica e nunca gostaram de ver juristas e es- sistiu a uma interacção da medicina, da lei
pecialistas em ética imiscuir-se e até semear e de outras disciplinas que teve efeitos es-
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dos estreitos limites dos problemas inerentes científica e social, como a ecologia e a
à prática médica e que eram discutidos saúde ambiental, a engenharia genética e as
entre pares à luz de princípios e segundo biotecnologias, o crescimento demográfico,
procedimentos há muito estabelecidos. A a manipulação tecnológica do comporta-
nosso ver, a crise irreversível da regulação mento, a medicina da reprodução, etc.;
paritária, não só da profissão médica em
particular, mas da actividade científica em 4) a irrupção de novos movimentos
geral, deve ser de facto tomada como a mais sociais que levantam questões de recorte
fundamental das condições de emergência biomédico;
da bioética. Porém, o sentido mais vasto
deste fenómeno só poderá ser apreendido 5) a contestação de paradigmas médicos
se formos para além das considerações dominantes e do sentido e fins últimos da
a que se vota o conjunto destes autores. prestação de cuidados de saúde;
Trata-se de um fenómeno que nos seria
grato desdobrar, analiticamente e tão só por 6) a necessidade de uma ética para a era
mor de uma frutífera discussão, em seis da tecnociência e, simultaneamente, a crise
grandes alíneas, a seguir discriminadas, já da fundamentação de toda a ética.
que, historicamente, elas surgem de facto
entrecruzadas. Além disso, e sempre que a 1) Crimes contra a humanidade na
tal houver lugar, este inquérito genealógico experimentação com seres humanos.
abordará as condições de emergência da
bioética em três estádios evolutivos: as O campo da experimentação biomédica
condições remotas, as condições próximas, em seres humanos constituiu a condição
constituindo estas duas a fase de pré-história primeira de emergência da bioética e con-
ou de gestação da bioética, e as condições tinua a ser o terreno fértil que nela alimenta
contemporâneas que relançam e redefinem a reactivação das interrogações fundamen-
o impulso inicial da bioética. Temos assim, tais acerca do rumo a que o desenvolvimento
como condições gerais de emergência da tecnocientífico vota o mundo em que vive-
bioética: mos (Cascais, 2000b)1 . O desenvolvimento
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(Foucault: 1989:109)2 . Deste modo, o Jul- sua obtenção como requisito primeiro e in-
gamento dos Médicos haveria de constituir o dispensável à prossecução de toda a exper-
primeiro passo num processo de avaliação, imentação médica em seres humanos, emb-
que prossegue ainda, não só da medicina ora, por outro lado, ao aceitar a necessidade
nazi, mas das concepções prevalecentes no da experimentação, o texto do código tenda a
que de mais excelente havia na medicina enfatizar os benefícios que dela podem advir
mundial da época e que com ela partilhava para a sociedade como um todo, mais do que
uma mesma vocação eugenista; este facto, os que dela podem reverter para o paciente
e a recorrência dele em diferentes épocas individual. Com o Julgamento dos Médi-
e tanto em regimes democráticos como to- cos, a prática médica foi pela primeira vez
talitários, viria a consubstanciar uma das sujeita a avaliação por uma instância exte-
questões mais candentes na bioética, a da rior aos mecanismos de auto-regulação par-
analogia nazi para a época contemporânea, itária, a instância jurídico-política. E o facto
ou seja, a de saber se os actos perpetra- de a partir dele se ter emitido um documento,
dos pela medicina nazi se podem hoje repe- o Código de Nuremberga, que, juntamente
tir nas condições e com a legitimidade dos com a Declaração Universal dos Direitos do
Estados de direito democráticos. Não ob- Homem, emitida pela ONU em 1948, viria a
stante, a importância maior do Julgamento constituir o modelo de toda a posterior reg-
dos Médicos é o facto de a parte final do ulação ética, não apenas da experimentação,
seu acórdão ter dado origem ao Código de mas de todas as actividades biomédicas, des-
Nuremberga, publicado em 1947, que, re- mente a tese, já sustentada pela própria de-
conhecendo a necessidade e legitimidade da fesa dos médicos nazis no decorrer do jul-
experimentação médica em seres humanos, gamento e frequentemente retomada depois
estabelece as condições a que ela deve obe- pelas teses revisionistas, de que tanto o jul-
decer para poder ser científica e eticamente gamento como o código se dirigiam exclu-
validada. À cabeça, avulta o consentimento sivamente à medicina nazi, ou seja, mais
informado, então e pela primeira vez explic- ao regime totalitário do que à medicina
itado de modo categórico, pois estabelece a em si. Tal tese sustenta que a medicina
nazi não é representativa da genuína ciência
2
Sobre a bio-história e a biopolítica em Michel médica, quer por ser marginal e medíocre do
Foucault, ver, nomeadamente os textos inseridos na ponto de vista científico, quer por ser ide-
colecção: Michel Foucault (1994), Dits et écrits. 4 ologicamente comprometida, e compreen-
vols.: I - 1954-1969, II - 1970-1975, II - 1976-1979, sível apenas como aberração histórica resul-
IV - 1980-1988. Paris: Éditions Gallimard; e o ab-
solutamente seminal Vigiar e punir. Petrópolis: Edi-
tante da cooptação forçada da comunidade
tora Vozes, 1984, 3a ed.; estão em vias de publicação médica por um regime totalitário, o que faria
os textos dos seus cursos no Collège de France, mas dela “má ciência”, e dos médicos peões e
o volume referente ao desenvolvimento do conceito não pioneiros. Ao obrigar toda a activi-
de biopolítica ainda não saiu a público; no entanto, dade de experimentação médica à obtenção
do conjunto já publicado, podem encontrar-se já al-
gumas referências à biopolítica em: Michel Foucault do consentimento informado, o Código de
(1997), Il faut défendre la société. Cours au Collège Nuremberga consagra a primazia da instân-
de France - 1976. Paris: Gallimard/Seuil. cia jurídico-política na defesa dos interesses
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do indivíduo por sobre a regulação paritária para orientar os médicos na pesquisa clínica
da medicina que, ao assimilar benefício da e que aponta para a supremacia da revisão
humanidade ao rigor científico que só os por pares sobre o consentimento do sujeito
pares se encontram em condições de avaliar, individual, uma vez que à qualidade cientí-
identifica os interesses da ciência com os in- fica da investigação, que só pode ser avali-
teresses da sociedade. O que o Código de ada pela própria comunidade de médicos-
Nuremberga põe em causa será pois, em úl- investigadores, com recurso a comités de re-
tima análise, a pretensão de uma “boa ciên- visão do protocolo inicial, é dada clara prior-
cia” valorativamente neutral a eximir-se a idade sobre o consentimento informado. En-
um juízo exterior ao dos seus próprios pares. contramos aqui uma fractura de primeira or-
O facto de o Código de Nuremberga con- dem que pode ser traçada através da história,
stituir o modelo para todos os posteriores não só da experimentação humana, mas da
documentos de regulação ética da experi- medicina moderna em geral: a que, grosso
mentação humana de modo algum significa modo, opõe o avanço dos poderes e dos
que eles lhe tenham sido escrupulosamente saberes científico-tecnológicos em nome do
fiéis, quer à letra, quer ao espírito. A benefício da sociedade como um todo à de-
Declaração de Helsínquia, promulgada pela fesa dos interesses individuais, implícita ou
Associação Médica Mundial na sua 18a As- explicitamente tidos por sacrificáveis. É mis-
sembleia Geral em Junho de 1964, é o ter sublinhar, porém, que uma oposição tão
primeiro desses documentos. Mais do que nítida ocorre só se - mas sempre que - o
filiar-se no que de mais essencial veiculava discurso e a prática científicos fazem assim-
o Código de Nuremberga, a Declaração de ilar bondade ética a rigor científico, cuja
Helsínquia pode ser entendida como uma avaliação cabe em exclusivo à comunidade
resposta alternativa àquilo que os médicos- de pares. Ora esta linha de argumentação
investigadores, e ainda mais as organizações equivale à apologia da auto-regulação par-
científicas, encaravam como limitador e in- itária da actividade médica e ela ocorre mais
aplicável às suas práticas, visto que tinha sistematicamente do que se poderia crer. A
sido promulgado por juízes, na sequência de Declaração de Helsínquia seria emendada e
um acórdão de um tribunal criminal, como revista na 29a Assembleia Geral da Associ-
um documento de direitos humanos e era, as- ação Médica Mundial, em Tóquio, em 1975,
sim, uma peça jurídica demasiado rígida de dando lugar à Declaração de Tóquio, tam-
exigências legais, circunstancialmente rela- bém conhecida como Helsínquia II, sendo
cionada com os crimes nazis. Em contra- esta a revisão mais profunda e a que constitui
partida, a Declaração de Helsínquia tinha de facto o modelo que desde então prevalece,
por finalidade substituir à agenda legal do com posteriores alterações de menor en-
Código de Nuremberga, baseada nos dire- vergadura nas 35a , 41a e 48a Assembleias
itos humanos, um modelo de ética médica Gerais da Associação Médica Mundial, re-
de algum modo mais lassa que permite o spectivamente em Veneza, em 1983 (Hel-
paternalismo, na medida em que constitui sínquia III), Hong Kong, 1989 (Helsínquia
um conjunto de recomendações, feitas por IV) e Sommerset West, África do Sul, 1996
médicos e dirigidas a médicos, concebido (Helsínquia V). Há a notar, da versão inicial
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como os núcleos de confluência de todo o imentação humana, seu berço, a todas as de-
universo dos valores. Não é que não exis- mais actividades biomédicas4 .
tam muitos outros valores, o que acontece é Teríamos assim que a regulação ética da
que todos saturam em torno a estes quatro experimentação humana é uma das maiores
eixos ou pontos. Dito de outra maneira, to- responsáveis pela deslocação do âmbito
das as questões de valor podem ordenar-se à da ética biomédica tradicional, de matriz
volta destes quatro princípios. A linguagem hipocrática, para o âmbito da bioética, que
dos valores pode-se reduzir a estas quatro não coincide com aquele, o extravaza e
palavras” (Gracia, 1995:40). Isto mesmo inclusivamente é de molde a pôr-lhe em
corrobora Daniel Callahan: “Chamarei a isto causa os principais pressupostos e preten-
o movimento da autonomia, que enfatiza sões. A experimentação biomédica em seres
a necessidade de proteger os que são vul- humanos ocupa uma posição chave na tec-
neráveis, de dar poder aos que são com- nociência moderna e torna patente o que
petentes e de encontrar um melhor equi- significa os homens disporem e ao mesmo
líbrio entre médico e paciente do que aquele tempo estarem à mercê de uma ciência cuja
que representou o clássico paternalismo da natureza é experimental; a experimentação
tradição hipocrática. A sua plena expressão, biomédica em seres humanos trata da prosse-
suspeito eu, pode ser encontrada na teoria cução de possibilidades tecnocientíficas di-
moral do principialismo, na qual os princí- rectamente investigadas e aplicadas em seres
pios, quando são sopesados, revertem to- humanos concretos; experimentar em seres
dos à autonomia, o mais poderoso e dom- humanos é, por isso, a todos os títulos,
inador dos princípios. Tal era a bioética alçar-se do nível do laboratório às alturas
como filha natural do individualismo amer- de um autêntico experimentum mundi: re-
icanop” (Callahan, 1999:65). Tanto consti- criar seres humanos encontra-se pois no cen-
tui a primeira formulação histórica - deliber- tro de um projecto mais vasto de recriação
ada, porque implicitamente já o era o Código tecnocientífica, demiúrgica, do mundo. Con-
de Nuremberga - de uma regulação da ac- tudo, a multiplicação previsível de possi-
tividade da investigação biomédica alterna- bilidades experimentais proporcionadas pelo
tiva à estrita regulação paritária. E tanto avanço tecnológico não constituiu o único
constituirá justificação suficiente para que se centro de preocupações nos anos contem-
possa afirmar que a condição essencial da porâneos da emergência da bioética. Uma
emergência da bioética é, em última análise, reavaliação geral, mais ampla e profunda, di-
a crise da regulação paritária das actividades
biomédicas, que não só as de investigação, 4
Sobre a crise da auto-regulação paritária como
ideia de resto cara a Diego Gracia, atrás condição de emergência da bioética, ver, nomeada-
citado, pois os princípios de Beauchamp e mente: Diego Gracia, (1987), “La bioética, una nueva
Childress almejaram, e efectivamente con- disciplina académica”, Jano, XXXIII (781): 69-73;
seguiram, expandir-se do domínio da exper- (1988), “Historia de la ética médica”, in Francisco
Vilardell, coord. et al.: Ética y medicina. Madrid:
Espasa Calpe: 25-65 e (1995), “El qué y porqué de
la bioética”, Cuadernos del Programa Regional de
Bioética. Santiago: O.P.S./O.M.S.,1: 35-53.
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rigida não apenas para o discernimento das tamento humano, nomeadamente com re-
condições do presente, mas também retro- curso ao LSD, empreendidos pela Central
spectivamente, da necessidade, da legitimi- Intelligence Agency (CIA) ao abrigo de ob-
dade, da natureza e fins últimos da experi- scuros programas como o MKULTRA, tanto
mentação biomédica enquanto projecto tec- em civis como militares, que conjugavam
nocientífico da era moderna, acompanhou a o imperativo da salvaguarda dos interesses
evolução dos códigos concebidos para a reg- nacionais dos EUA e o avanço do conhec-
ulamentar. Precipitada pelo conhecimento imento médico no quadro da guerra fria.
público de algumas experiências em seres Alguns destes experimentos, e muitos out-
humanos ostensivamente anti-éticas, essa ros mais, foram mencionados por Henry
reavaliação foi inclusivamente prosseguida a Knowles Beecher no seu artigo “Ethics and
nível institucional, num processo de “fact- Clinical Research”, publicado em 1966 no
finding” conduzido nos EUA por comissões New England Journal of Medicine4 [?], um
governamentais que se haveria de prolon- marco na história da denúncia de experimen-
gar e intensificar até ao presente. As mais tação criminosa com um imenso impacto
notórias dessas experiências foram as de na comunidade médico-científica da época
Tuskegee, no Estado americano do Alabama, (Jonsen, 1998:144-146; Reich, 1996a:83-
onde, entre 1932 e 1972, cerca de seiscen- 87). Não obstante ser um defensor da
tos afro-americanos pobres foram privados Declaração de Helsínquia como alterna-
de tratamento para a sífilis que os afectava, tiva necessária ao Código de Nuremberga,
recebendo apenas placebos, para se estu- Beecher não se abstém de afirmar, porém,
darem os efeitos do curso natural da doença, que a obtenção do consentimento informado
sem que disso fossem informados e apesar é um imperativo sociológico, ético e legal,
da descoberta da cura através da penicilina dado o sistemático desrespeito dos exper-
em 1954 (Jonsen, 1998:146-148). Outras imentadores pelos próprios documentos de
experiências chegaram igualmente ao con- regulação - e a Declaração de Helsínquia
hecimento público, porém: as efectuadas datava de dois anos antes deste seu artigo
entre 1956 e 1971 em crianças diminuí- que cita os exemplos a prová-lo. De resto,
das mentais da Escola Estadual de Willow- Beecher haveria de ser um dos primeiros
brook, em Nova York, a quem foi injectado colaboradores activos da nova disciplina da
o vírus da hepatite para pesquisa de uma bioética (Callahan, 1999:59). Jay Katz, um
vacina eficaz; as experiências de imunoter- doa mais proeminentes e influentes autores
apia, patrocinadas pelo Serviço de Saúde que se dedicou à ética da experimentação
Pública dos Estados Unidos, realizadas em biomédica, afirma a sua dívida, e de uma
1963 em idosos internados no Hospital e geração inteira anterior à bioética, em re-
Centro Médico Judaico para doenças cróni- lação a Beecher (Katz, 1994:88). As reve-
cas de Brooklyn, a quem foram injectadas lações de Beecher, assim como das atroci-
células cancerosas (Jonsen, 1998:143); os dades da medicina nazi, tiveram um impor-
ensaios de drogas psicotrópicas em mil- tantíssimo papel de “consciousness raising”
itares americanos e vários outras experimen- na época que precedeu de perto a emergên-
tos de manipulação bioquímica do compor- cia da bioética enquanto disciplina e discurso
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(Katz, 1994:89). Já não como condição re- dioactivo às populações das ilhas do Pací-
mota de emergência da bioética, que as an- fico onde se realizaram explosões experi-
teriores são, mas como facto que relança a mentais, ao pessoal civil e militar das bases e
interpelação fundamental que ela endereça à aos habitantes das imediações, e, enfim, aos
tecnociência biomédica, encontramos o mais pacientes a quem eram administrados isóto-
recente instrumento de denúncia e avali- pos radioactivos como meio de diagnóstico.
ação de experimentação criminosa, o Comité As instituições envolvidas, desde bases mil-
Consultivo Sobre a Experimentação de Ra- itares a hospitais e laboratórios, o número
diações em Seres Humanos (Advisory Com- de pessoas, desde as muitas centenas de in-
mittee on Human Radiation Experiments), vestigadores às dezenas de milhares de víti-
nomeado em 1994 pelo presidente Clinton, mas que de algum modo sofreram os efeitos
com o fim de investigar a experimentação da experimentação, os astronómicos finan-
dos efeitos da radioactividade em seres hu- ciamentos e a sofisticação do aparato ex-
manos realizada por iniciativa dos Depar- perimental, fazem deste conjunto de exper-
tamentos da Energia e da Defesa do gov- imentos porventura o de maiores proporções
erno federal norte-americano desde a Se- de sempre, desde o Projecto Manhattan até
gunda Guerra Mundial. Facto a notar, como ao actual Programa Genoma Humano. En-
indício da plena instalação da bioética ao tre as conclusões a que chega o Relatório
mais alto nível das instâncias de consultoria Final, avultam: a improbabilidade de uma
e decisão, é o de, à frente deste comité, se instituição ou indivíduo poder oferecer al-
encontrar a bioeticista Ruth Faden, escolhida guma forma de resistência eficaz à sua in-
exclusivamente pela sua qualidade de rep- strumentalização por um organismo de Es-
resentante prestigiada da disciplina. Dado tado, em nome dos imperativos da segurança
a público em 1995, o Relatório Final do nacional, ou outra qualquer instituição igual-
Comité revela que, entre 1944 e 1974, foi mente poderosa, que o fizesse em nome do
empreendido um gigantesco programa de in- bem comum - exactamente o que foi in-
vestigação dos efeitos da radioactividade em vocado, tanto para legitimar a experimen-
seres humanos. Teve início ainda durante a tação como para lhe manter o secretismo
Segunda Guerra Mundial, no âmbito do Pro- durante décadas, até à primeira presidência
jecto Manhattan que criou as primeiras bom- americana, a de Clinton, que decorre in-
bas atómicas e tratava inicialmente de inda- teiramente fora do quadro da guerra fria;
gar os efeitos da radioactividade na popu- a persistência da experimentação criminosa
lação civil e militar exposta acidentalmente fora do quadro de regimes totalitários, como
às deflagrações (Cascais, 2000b:147-187). o tinha sido a Alemanha nazi, e como o
Prosseguida pelas instituições herdeiras do era a então União Soviética que empreendia
Projecto Manhattan, primeiro a Comissão idênticos programas experimentais; e, en-
da Energia Atómica e, depois, o Departa- fim, a impossibilidade, senão mesmo a re-
mento de Energia, a experimentação passou lutância, da comunidade médico-científica
também pela exposição deliberada de indi- resistir quer ao poder e à influência do Es-
víduos singulares e de grupos inteiros a ra- tado, sobretudo quando legitimado com o
diações, dos mineiros índios do urânio ra- imperativo da segurança nacional, quer às
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18 António Fernando Cascais
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hattan, contesta a bondade da física nuclear própria natureza, avessa a qualquer ética
aplicada a fins bélicos. Em termos porven- e de modo nenhum possui as condições
tura mais públicos, aquela consciência ganha necessárias à fundamentação de uma ética
impulso sobretudo a partir do momento em para a tecnociência. Na época do surg-
que começaram a notar-se os efeitos biológi- imento da bioética, a problematização da
cos a longo prazo da radioactividade nos responsabilidade científica tinha já percor-
sobreviventes do bombardeamento atómico rido um longo caminho e havia-se entretanto
de Hiroxima e Nagasaki, facto que marca cruzado com a preocupação ambientalista.
o nascimento do movimento anti-nuclear Episódios relevantes desse cruzamento e que
(Hens e Susanne, 1998:100) e não cessa de fazem parte da pré-história da bioética foram
se desenvolver na senda da competição tec- a catástrofe do smog de Londres, que em
nocientífica entre as grandes potências, no 1952 causou 4000 mortes (Hens e Susanne,
quadro da corrida ao armamento na época 1998:99) e a tragédia da chamada “doença
da guerra fria, mas também com o conheci- de Minamata” que afectava uma população
mento das devastações ambientais causadas de pescadores habitantes da baía com mesmo
pelas armas convencionais, como as bom- nome, no Japão, entre 1959 e 1965, e cuja
bas de napalm. Os desastres nucleares de contaminação maciça por resíduos industri-
grandes proporções, desde o de Three Mile ais de mercúrio esteve na origem de grande
Island, em Harrisburg, nos Estados Unidos, número de mortes e malformações congéni-
em 1979, ao de Chernobyl, na antiga União tas. Este caso deu também origem a uma
Soviética, em 1986, mais não fazem que iconografia fotográfica de extraordinária ex-
transformar a preocupação de sectores in- pressividade que muito contribuiu para a
formados e intervenientes na tragédia impo- dramatização de um dos maiores problemas
tente de muitos e na generalizada consciên- com que se confronta a humanidade contem-
cia pública dos perigos da tecnociência. Em- porânea. Em 1962, a publicação do livro
bora o tema da responsabilidade científica já Silent Spring, da bióloga americana Rachel
fosse esgrimido desde o século XIX pelas Carson, constitui um marco7 . Torna-se mod-
correntes religiosas num tom fundamental- elar das preocupações ecológicas a denún-
ista, anti-científico e anti-moderno, o caso cia aí feita do lento mas irreversível enve-
Oppenheimer constitui o episódio inaugu- nenamento ambiental por pesticidas como
ral da problematização da responsabilidade o DDT, então de uso generalizado e pos-
científica pelos próprios cientistas. O outro teriormente interdito nos países desenvolvi-
momento alto da consciência da responsabil- dos (Hens e Susanne, 1998:100; Soromenho-
idade científica surgiria com a moratória de Marques, 1998:31-32), isto bem antes de
Paul Berg, já na década de setenta. No o movimento ecológico adquirir expressão
entanto, e ao contrário do que entre nós política e social tão significativa como o
sustenta Luís Archer, não só o papel dos movimento “Verde” na República Federal da
próprios cientistas no questionamento ético Alemanha das décadas de setenta e oitenta,
da ciência teve um papel consideravelmente
modesto na emergência da bioética, como 7
Rachel Carson (1964), Silent Spring. London:
a racionalidade tecnocientífica é, pela sua Readers Union/Hamish Hamilton (ed. or.: 1962).
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24 António Fernando Cascais
até ao mais recente Greenpeace. Os termos gar e generalizar o processo até o transfor-
em que Rachel Carson se exprimia contin- mar numa questão pública de primeiro plano,
uam a ser aqueles com que se abordam ca- como o da encefalopatia espongiforme bov-
sos tão espectaculares como os dos gigan- ina e da sua contrapartida humana, a doença
tescos derrames de petróleo, desde o do Tor- de Creutzfeld-Jacob, e da sua relação causal
rey Canyon em 1967 e do Amoco Cadiz, em com aquilo que é a transformação de her-
1978, na costa da Bretanha francesa até ao do bívoros em autênticos carnívoros alimenta-
Exxon Valdez, já na década de 90, ao largo dos com rações feitas com base em produ-
da costa do Alasca, mas também os inúmeros tos provindos da sua própria espécie. Ao
exemplos comezinhos com que hoje nos con- mesmo tempo que o elo entre os comporta-
frontamos quotidianamente ao pé da porta. mentos colectivos - a poluição química e in-
Pode efectivamente dizer-se que a bioética dustrial - e os desiquilíbrios ambientais e a
e o ambientalismo contemporâneo nascem doença humana ficou bem estabelecido, uma
de um mesmo chão. Pelo menos três cam- relação semelhante entre o comportamento
pos podem mostrar-nos como estas duas pre- individual e as alterações do estado de saúde
ocupações confluem a determinados níveis: - o cancro, as malformações congénitas e
a saúde ambiental, as biotecnologias e a certas doenças degenerativas - principiava a
demografia. Com o avanço do tempo, a dar uma renovada legitimidade ao esboço de
preocupação com o ambiente per se, sem políticas de saúde pública voltadas para a
perder nenhum do seu vigor, viria a ser re- avaliação e o controle da manipulação bio-
tematizada em termos de saúde ambiental, química ou genética de produtos para con-
englobando os seres humanos enquanto seres sumo humano. O caso presente dos alimen-
vivos dependentes de um nicho ecológico, o tos transgénicos constitui o exemplo mais
que não deixa de constituir um certo deslo- significativo disto mesmo, assim como é em-
camento epistemológico de consequências blemático do outro campo em que as con-
não negligenciáveis. Pontos chave nesta cepções originárias da bioética e do ambien-
transformação são os acidentes de Seveso, talismo inicialmente se fundiam, isto é, o da
em Itália, em 1976, o primeiro grande aci- preocupação com as biotecnologias.
dente industrial com a libertação de diox- Na sequência da descrição da dupla hélice
ina, num complexo fabril da Hoffman-La do ácido desoxirribonucleico em 1953 por
Roche, e isto numa altura em que o mecan- James D. Watson e Francis H. Crick, as
ismo da acção biológica no organismo ainda potencialidades biotecnológicas da biologia
não tinha sido descrito, e da fábrica da molecular no controle sem precedentes da
multinacional Union Carbide, em Bhopal, moldura genética dos seres vivos, vegetais,
na União Indiana, em 1984, com a liber- animais e humanos, em breve se tornou si-
tação de isocianato de metilo que causou a multaneamente fonte de grandes expectati-
morte por gaseamento a pelo menos 3000 vas e não menores receios: a terapia génica,
pessoas. Casos mais recentes, que periodica- o reforço de traços genéticos desejáveis ou
mente dão origem às mais desencontradas até o melhoramento de espécies vegetais e
opiniões científicas e preocupações públi- animais para uso humano, senão mesmo o da
cas e privadas, mais não fazem que prolon- própria espécie humana, até culminar com
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 25
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mento”, surge em 1972 (Hens e Susanne, natalidade. E com isto se retomava, decerto
1998:100; Soromenho-Marques, 1998:30) que noutros termos, mas à escala global,
Um pouco antes, em 1968, tinha apare- um problema que fêz escola no princípio do
cido o livro The Population Bomb, de Paul século e para o qual o darwinismo social em
Ehrlich8 , que em tom apocalíptico augura a geral e a higiene racial nazi propuseram uma
catástrofe a que inevitavelmente conduzirá solução cuja monstruosidade não se pode
um crescimento demográfico inestancável e deixar de ter em mente no modo como hoje
cuja republicação, em 1991, revela, mais se re-problematiza o assunto e há que lhe dar
do que a permanência, o agravamento do respostas que não repitam a inumanidade de
problema, agora ligado a fenómenos como outrora: “A dimensão ambiental da presente
o aquecimento global, a destruição das flo- crise social global significa, nesta viragem
restas equatoriais, a fome e a poluição (Hens de milénio, que as relações de poder entre
e Susanne, 1998:100), e que já na década grupos, sexos, etnias, classes, povos, Esta-
de noventa virá a tornar-se enfim tema pri- dos e gerações dependem da mediação que
oritário com a Conferência do Cairo. Al- os nossos modelos científicos, técnicos, cul-
iás, o tema da explosão demográfica foi turais e económicos estabelecem com a ‘Na-
caro a bioeticistas como Van Rensselaer Pot- tureza”’ (Soromenho-Marques, 1998:24). É
ter, que fez dele cavalo-de-batalha, e An- nestas águas que navega Van Rensselaer Pot-
dré Hellegers, que era mesmo especialista ter, quando afirma, na sua proposta originária
na área (Jonsen, 1998:302). Desde a dé- para a bioética: “a finalidade última (da
cada de sessenta, o acesso aos níveis ociden- bioética) deveria ser, não enriquecer as vi-
tais de bem-estar económico e de padrões de das individuais, mas prolongar a sobrevivên-
prestação de cuidados de saúde estavam na cia da espécie humana numa forma aceitável
ordem do dia e começavam a ser patentes de sociedade” (Potter, 1992:5). Embora a
as contradições dos modelos de desenvolvi- relação entre a preocupação (bio)ética, no
mento, ou seja, uma população afluente cada domínio da clínica e da prestação de cuida-
vez mais idosa que padece sobretudo de dos de saúde, e a preocupação ecológica es-
doenças de comportamento, no Norte de- tivesse já claramente estabelecida na origem
senvolvido, por oposição às massas do Sul, da bioética - como o atestam as obras não só
jovens e famintas, devastadas por doenças de Potter como de Hans Jonas - depressa elas
de ambiente, e um Norte onde prevalece a haveriam de divergir, do ponto de vista em
baixa mortalidade associada à baixa natali- que nos situamos, entre, por um lado, uma
dade, contra um Sul onde a elevada mortal- concepção reducionista da bioética e, por
idade não compensa, nem estatísticamente outro, a ecologia; aquela ligação só muito re-
nem de nenhuma outra maneira, a elevada centemente voltaria a ser recuperada por via
de uma reconstruída afinidade entre aquilo
8
Paul Ehrlich (1968), The population Bomb. New que Potter chamará a bioética global e a
York: Ballantine Books. A republicação do livro ecoética ou a ecofilosofia.
é feita em colaboração com a sua mulher; ed.
ut.: Paul R. Ehrlich e Anne H. Ehrlich (1993), A convergência entre ecologia e bioética,
La explosión demográfica. El principal problema em campos e a níveis discriminados, coloca
ecológico. Barcelona: Salvat Editores porém outro tipo de problemas e que tam-
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 27
bém têm que ver com as características orig- de comunidade a ser protegida à terra, com
inárias da preocupação ambiental. Tal como os seus recursos minerais, vegetais e an-
acontecia com as origens remotas do tema imais, para além dos seres humanos. O
da responsabilidade científica, numa atitude ideário conservacionista acaba por ser es-
anti-científica e anti-moderna de pendor re- pecífico de alguns traços culturais do mundo
ligioso, também o ambientalismo moderno anglo-saxónico, e também germânico, o que
enraíza no conservacionismo do século XIX, torna compreensível que a sua influência per-
cujas correntes dominantes preconizavam dure nas correntes contemporâneas da ecolo-
uma forma de respeito quase religioso pelo gia profunda do americano Arne Naess, nos
mundo natural e veiculavam uma desconfi- anos oitenta do século XX, ou na “Deep
ança profunda em relação à técnica enquanto Green Theory” dos australianos Richard Syl-
empresa humana de conquista da natureza. van e Val Plumwood (Hens e Susanne,
O ideário conservacionista remonta a mea- 1998:109). Não é também por acaso que os
dos do século XIX norte-americano e inglês, “Grüne” alemães tiveram uma pujança sem
com a atribuição do estatuto de protecção ao igual em qualquer outro país, assim como
vale do Yosemite, na Califórnia, em 1864, e reuniram no seu seio tanto os jovens univer-
a criação do primeiro parque natural, o Par- sitários urbanos pós-modernos como os últi-
que Nacional de Yellowstone (Soromenho- mos representantes da agricultura tradicional
Marques, 1998:25). A Manchester Associ- da antiga Prússia de sentimentos fortemente
ation for the Prevention of Smoke, criada pré e mesmo anti-modernos. Por outro lado,
em 1843, e as célebres Audubon Society, em a definição originária de ecologia parece re-
1886, e o Sierra Club, em 1892, nos Esta- montar a Ernst Haeckel, eminente biólogo
dos Unidos, foram as primeiras organizações alemão de século XIX, no seu discurso inau-
não governamentais de defesa do ambiente gural como docente de Botânica da Univer-
(Soromenho-Marques, 1998:27). O período sidade de Iena (Hens e Susanne, 1998:98).
entre 1902 e 1910 é frequentemente apon- Haeckel foi também um dos grandes inspi-
tado como o da fundação do actual movi- radores do eugenismo que dominou as ciên-
mento ecológico, com as mais representa- cias biomédicas de finais do século XIX e
tivas instituições a surgirem logo após, a que perdurou mesmo para além da medicina
British Ecological Society, em 1913, e a Eco- nazi e da Segunda Guerra Mundial. Neste
logical Society of America, em 1916 (Hens e caso, o passadismo religioso reconverte-se
Susanne, 1998:98). Uma das vozes mais in- na tecnociência biomédica que recupera em
fluentes no mundo norte-americano foi Aldo termos seculares as funções de controle so-
Leopold, com o seu célebre A Sand County cial dantes a cargo da religião.
Almanac9 , de 1949, no qual apregoa uma O que há de comum, por um lado, ao dar-
“land ethic” de retorno romântico a um ru- winismo social que culmina com a higiene
ralismo pré-mecanizado que alarga a noção racial nazi e o holocausto e a ideologia do
“sangue e terra” que lhes correspondem,
9
Aldo Leopold (1968), A Sand County Almanac. e, por outro lado, as correntes da ecologia
And Sketches Here and There. Oxford: Oxford Uni- profunda é o anti-humanismo. Algumas
versity Press (ed. ut.). correntes que pugnavam pelo regresso à
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medicalização da sociedade, e, por outro, na Wade, que, em 1973, esteve na origem da al-
exploração das possibilidades tecnocientífi- teração legislativa que deu início à liberaliza-
cas no sentido do desenvolvimento de novos ção da prática da interrupção voluntária da
estilos de vida que exercem pressão con- gravidez (Callahan, 1986:49). Alvos perma-
stante sobre os limites de tolerância social no nentes da crítica feminista continuam a ser,
quadro das sociedades abertas em que vive- por exemplo, os critérios economicistas de
mos. Os movimentos feministas, gays e lés- selecção de candidatos a ensaios clínicos, as
bicos foram aqueles que de forma mais pro- políticas totalitárias de limitação da natali-
funda, duradoura e consequente se empen- dade, com recurso a práticas como a ester-
haram na crítica do poder e do saber médi- ilização compulsiva e a interrupção forçada
cos, e da tecnociência em geral, como in- da gravidez, mas também a educação e a in-
strumentos de controle social, e que no seu formação sexual como forma de combate à
seio deram corpo a um número substancial prática da mutilação feminina em certas cul-
de estratégias de resistência a ele. Desde os turas. A progressiva feminilização da profis-
tempos mais heróicos do sufragismo nove- são médica, assim como da ciência e do en-
centista que, em paralelo com a luta pelos sino médicos, teve também enormes conse-
direitos cívicos, se desenvolvia um trabalho quências na abordagem biomédica do corpo
e um combate mais lentos, mais morosos e e da saúde da mulher. Em contrapartida,
talvez mais discretos, no campo da saúde das novas tecnologias biomédicas, sobretudo no
mulheres, dos seus direitos reprodutivos e da campo da medicina da reprodução, foram
sua sexualidade, mas também da informação apropriadas pelos movimentos feministas no
e da educação sexual dirigida a toda a so- sentido de servirem móbeis emancipatórios
ciedade, e isto de um modo já então alterna- da condição feminina, tais como a satis-
tivo ao higienismo que na época se ocupava fação da reivindicação da livre disposição do
das mesmas questões mas num sentido bem próprio corpo pela separação entre sexuali-
diferente. Segundo Reich, os acesos debates dade e reprodução, com todas as decorrentes
em torno do controle da fertilidade, longa consequências na vida individual e social. O
batalha da célebre Margaret Sanger (Jonsen, caso exemplar sempre citado a este respeito
1998:298-299), desempenharam um papel é o da pílula contraceptiva, a qual constituiu,
crucial na emergência da bioética: “e num desde a década de sessenta, a realização téc-
sentido bem real, muita da enorme energia nica, concreta e eficaz, de uma reivindicação
que foi canalizada para a bioética por volta antiga, até então apenas possível de ser satis-
de 1970/71 era energia desviada dos debates feita a nível simbólico. No entanto, a pílula
religiosos então cada vez mais fúteis acerca contraceptiva foi apenas o ponto de partida
do controle da fertilidade” (Reich, 1999:37). da canalização das possibilidades tecnocien-
Por outro lado, todo o debate contemporâneo tíficas no campo da medicina da reprodução
à volta do aborto, que continua a ser ponto para a persecução de modos de vida alter-
central nas discussões bioéticas, teve um mo- nativos à família heterossexual nuclear tradi-
mento alto nos Estados Unidos ao mesmo cional. Pense-se apenas no caminho percor-
tempo que surgia a bioética enquanto dis- rido pela fertilização in vitro, que permitiu
ciplina e discurso, com o caso Roe contra o nascimento do primeiro “bebé-proveta”,
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 31
Louise Brown, em 1978, no Reino Unido Americana, no início dos anos setenta e
(Jonsen, 1998:308), até aos actuais e futuros pouco depois da revolta de Stonewall que
préstimos da inseminação artificial para os marca o começo dos movimentos gays e
casais de mulheres lésbicas. lésbicos contemporâneos. Assistia-se então
A repercussão da fortíssima tradição ao advento de uma ciência pós-normal -
de associativismo e de participação cívica não necessariamente no sentido que Kuhn
norte-americana na emergência da bioética poderia atribuir ao termo - que a pouco
de modo algum se resume aos movimentos e pouco deixava de observar as minorias
feministas. Associações cívicas como as sociais sob o prisma do desvio e da normal-
de doentes e de consumidores remontam ização, ou seja, como objectos indefesos e
pelo menos às primeiras décadas do século vulneráveis de experimentação biomédica
XX, como a Associação Americana de compulsiva com o móbil da promoção de
Consumidores, onde, já na década de cin- um superior bem colectivo. Recordemos que
quenta, pontifica Ralph Nader, advogado as experiências de Tuskegee se realizaram
novaiorquino que se notabilizou pela feroz sobre negros pobres e que boa parte da
defesa dos direitos dos consumidores (Hens população institucionalizada sempre se
e Susanne, 1998:99). Estes movimentos recrutou entre os grupos sociais minoritários
deram um contributo decisivo para o afina- e de algum modo discriminados, à parte
mento dos critérios da qualidade, e a prática a sua condição de pacientes. Com efeito,
efectiva da sua exigência, na prestação como anteriormente vimos, os indivíduos
de cuidados de saúde, assim como para a e grupos de algum modo discriminados
criação de um público informado e atento e vulneráveis por razões não necessaria-
de “concerned citizens”. Os direitos dos mente médicas, mas também por elas e por
pacientes constituíram, por outro lado, acréscimo, sempre constituíram fonte de
uma preocupação central no pensamento recrutamento para experimentação humana
de Daniel Callahan, na época em que em virtude da sua disponibilidade, e que,
fundou o Hastings Center. Comum a estes neste sentido, boa parte da literatura ref-
movimentos sociais é a sua ênfase, de erente à regulação da experimentação se
resto afim do espírito de Nuremberga, na debruça sobre a protecção destes indivíduos
autodeterminação e na autonomia como e grupos específicos. Melhor, estamos hoje
pressupostos fundadores da defesa dos em condições de saber que foi nas pessoas e
direitos civis, o que teve um impacto directo nos corpos deles que os regimes e as institu-
na tradicional relação entre médico e doente ições totalitárias sempre ensaiaram os seus
e entre a profissão e a ciência médicas mais altos vôos de controle de sociedades
e a sociedade em geral, com contributos ou populações inteiras. Neste contexto
essenciais na superação do paternalismo alargado de mudança social e de desafio à
médico e das funções de controle social medicalização global da sociedade moderna
da biomedicina. É neste sentido que devem também entender-se movimentos
constituiu um marco histórico a exclusão como a anti-psiquiatria e a crítica global
da homossexualidade da lista de doenças da institucionalização, que se encontrava
mentais, pela Associação Psiquiátrica já in nuce nas controvérsias suscitadas
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32 António Fernando Cascais
pela leucotomia pré-frontal de Egas Moniz dos próprios pacientes, na época da fun-
e o seu posterior desenvolvimento como dação dos primeiros centros de investigação
lobotomia, por Watts e Freeman nos Estados em bioética e pela mesma altura em que o
Unidos, uma das discussões com maior uso político da psiquiatria contra dissidentes
impacto na consciência pública antes dos da União Soviética se começava a divulgar
anos sessenta e que regista uma viragem ab- e a discutir. Com o tempo, as ciências do
solutamente essencial na história do controle comportamento haveriam de tomar o rumo
social medicalizado (Jonsen, 1998:100, 102, da abordagem biográfica da saúde e da
105)13 . No movimento anti-psiquiátrico doença e de serem percebidas e utilizadas
pontificavam entretanto as obras de Thomas como instrumento de (re)construção de
Szasz, David Cooper e Ronald Laing, com identidades individuais e colectivas, como
influência no mundo anglo-saxónico, ao acontece actualmente com as correntes da
mesmo tempo que em França surgiam as teoria queer e da psicoterapia afirmativa.
teses doravante clássicas de Robert Castel e Com efeito, foi no âmbito da psicologia
de Michel Foucault14 , além de associações e da psicoterapia contemporâneas que se
recompôs de modo mais espectacular um
13
Sobre a psicocirurgia de Egas Moniz, Walter paradigma científico em que outrora imper-
Freeman e James Watts e as controvérsias científicas aram a psiquiatria e a antropologia biológica.
e ético-políticas por ela suscitadas, V. A. Fernando
Cascais (2001), “A cabeça entre as mãos. Egas Mo-
niz, a Psicocirurgia e o Prémio Nobel”, in João Ar- 5) A contestação de paradigmas médi-
riscado Nunes e Maria Eduarda Gonçalves, orgs. et cos dominantes e do sentido e fins últimos
al., Enteados de Galileu? A semiperiferia no sistema da prestação de cuidados de saúde.
mundial da ciência. Porto: Edições Afrontamento:
291-359.
14
V. nomeadamente: Thomas Szazs (1978), Es- Na verdade, o Julgamento dos Médicos
quizofrenia. O símbolo sagrado da psiquiatria. Lis- e o Código de Nuremberga constituem o
boa: Publicações Dom Quixote – ed. or.: 1977 maior golpe jamais desferido na antiquís-
e (1988), The Theology of Medicine. The Political sima tradição do paternalismo hipocrático
Foundations of Medical Ethics. Syracuse: Syracuse
University Press – ed. or.: 1977; David Cooper
que consagrava uma relação carismática en-
(1983), A linguagem da loucura. Lisboa: Edito- tre o médico que decide a sós, sem o con-
rial Presença – ed. or.: 1978; David Cooper e curso do seu paciente e por ele, a beneficên-
al. (1977), Psiquiatria e antipsiquiatria em debate. cia da sua intervenção diagnóstica, pre-
Porto: Afrontamento; Ronald D. Laing (1979), A ventiva ou terapêutica. De resto, a ética
psiquiatria em questão. Lisboa: Editorial Presença;
Ronald Laing, J. L. Fabregas e A. Calafat (1978), hipocrática é uma ética da virtude que as-
A política da psiquiatria. Lisboa: Moraes Editores; socia rigor da arte a pureza ritual, equação
Thomas Szazs (1978), Esquizofrenia. O símbolo esta que a antropologia mostra ser um traço
sagrado da psiquiatria. Lisboa: Publicações Dom histórico universal que não se restringe ao
Quixote – ed. or.: 1977 e (1988), The Theology
mundo helénico da Antiguidade, mas que
of Medicine. The Political Foundations of Medical
Ethics. Syracuse: Syracuse University Press – ed. or.: marcaram particularmente toda a tradição
1977; Robert Castel (1978), L’ordre psychiatrique.
L’âge d’or de l’aliénisme. Paris: Éditions de Minuit e déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris:
toda a obra de Michel Foucault desde (1961), Folie et Plon.
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 35
abordagem global das necessidades do pa- artista, pois que a sua liberdade de expressão
ciente. Quando hoje se tem por adquirido é limitada, mas num artesão especializado
que toda a afecção somática é acompan- que produz corpos “ready-made” conformes
hada de conflito psíquico, que por sua vez aos critérios convencionais de beleza do
a experiência da doença é determinada pelo paciente/cliente que lhe encomenda alter-
património cultural do paciente, a relação ações à sua aparência17 . Dois exemplos
deste com o médico pelo seu grau de litera- maiores, mas de sentidos diferentes, deste
cia científica e a capacidade de definir para fenómeno geral, atestam bem a essencial
si próprio e negociar com o clínico o sentido ambiguidade do desenvolvimento das tecno-
biográfico do tratamento pela sua competên- ciências biomédicas. As intervenções para
cia como doente e como cidadão, a especial- mudança de sexo, hoje prática corrente, mas
ização médica torna-se assim um autêntico a primeira das quais data de 1955, com um
obstáculo a uma relação terapêutica que não transsexual dinamarquês, que parecem ex-
seja para ambos, doente e médico, uma fonte tremar o sentido emancipatório das tecno-
de sofrimento e tensão equiparável aos da ciências biomédicas canalizadas para a per-
própria doença16 . secução de estilos de vida alternativos (Mori,
O desenvolvimento tecnocientífico have- 2000:736). E o chamado eugenismo “de
ria de redefinir de outro modo ainda o en- consumo” ou “à la carte”, com a possibili-
tendimento da relação entre o médico e o dade de selecção genética de bebés com as
doente como cliente e como cidadão que for- características desejadas pelos progenitores
mula solicitações que vão muito para além - qualquer espécie de progenitores - sus-
da terapêutica e, por extensão, o valor e a ceptível de repetir, no quadro dos regimes
finalidade da medicina na satisfação de pe- democráticos e com a legitimidade do re-
didos e necessidades inéditas e que não se speito pelos direitos, liberdades e garantias
enquadram nas áreas clássicas da biomedic- dos seus cidadãos-consumidores, as políti-
ina, a prevenção, o diagnóstico e a terapêu- cas eugenistas compulsivas dos Estados to-
tica. Com efeito, um crescente número e talitários passados ou presentes18 .
variedade de solicitações extra-terapêuticas O desafio ao paradigma prevalecente da
foram dirigidas às competências que a classe medicina, vindo quer do interior quer do
médica é vista como a melhor posicionada exterior do domínio biomédico, foi na ver-
para oferecer. Trata-se, obviamente, da ma- dade muito para além do questionamento do
nipulação do comportamento, por meios far- paternalismo médico e do papel da medicina
macológicos ou cirúrgicos, em todos os cam- como meio de controle social. A tal ponto a
pos da vida, desde a melhoria da prestação mudança de paradigma é profunda e extensa
desportiva, à dietética, ao controle do sono
17
e da vigília, do humor e da sensibilidade, V. o esclarecedor artigo de Soren Holm (2000),
à medicina estética que está em vias de “Changes to bodily appearance: the aesthetics of de-
liberate intervention”, Journal of Medical Ethics -
transformar o cirurgião estético, não num Medical Humanities, 26 (1): 43-48.
18
V. especialmente: Jean-Noel Missa e Charles Su-
16
V. Hans-Georg Gadamer (1997), O mistério da sanne, eds. et al. (1999), De l’eugénisme d’État à
saúde. Lisboa: Edições 70. l’eugénisme privé. Bruxelles: De Boeck.
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36 António Fernando Cascais
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 37
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38 António Fernando Cascais
sociedade anómica e decadente constituía sumível progresso que ela acarretaria, é hoje
um dos temas maiores da sociologia da cul- brandido contra os cientistas sobretudo pelas
tura, mas estava longe de ser partilhada pelos correntes imbuídas de misticismo da con-
próprios cientistas, que defendiam uma visão tracultura radical, ou inclusive da ecolo-
essencialmente positiva da ciência e da tec- gia profunda, que defendem uma forma ex-
nologia como instrumentos da persecução de trema de cepticismo e suspeição a respeito
bens humanos, isto é, como instrumentos de da moderna sociedade tecnocientífica e que
progresso. Esta visão sempre foi largamente frequentemente propugnam o retorno a for-
partilhada pelos médicos e a sua concepção mas sociais e modos de vida pré-modernos
de progresso sanitário, cujos principais con- como única alternativa a um futuro apoc-
tendores podiam normalmente encontrar-se alíptico. Na outra ponta do panorama cul-
no campo teológico. Com efeito, o debate tural, as correntes tecnocráticas de pensa-
entre a ciência e a religião marcou várias mento continuaram a sustentar uma visão de
gerações e polarizava-se entre reivindicações progresso mais ou menos indefinido e cumu-
opostas da bondade quer da ciência quer lativo por intermédio de incessantes realiza-
da religião no melhoramento da condição ções científicas e tecnológicas, em obediên-
humana, tanto material como moralmente. cia ao chamado “imperativo técnico”, à luz
Tanto mais quando estavam em jogo con- do qual nada é tecnicamente impossível e
cepções opostas da natureza humana, o que tudo o que é possível é desejável.
acontecia pelo menos desde a época do de- Na verdade, um fenómeno que levou ao
bate entre o evolucionismo darwiniano e o engrossamento das fileiras da bioética foi
criacionismo e que por vezes se radicali- a desilusão dos sectores católicos mais de-
zou entre o mais empedernido positivismo sapontados com as posições da hierarquia
cientista, de um lado, e o mais ultramon- da Igreja na sequência do Concílio Vaticano
tano fundamentalismo religioso, do outro. II. Embora o espírito e a letra conciliares
A história portuguesa moderna fornece ex- tivessem representado uma imensa abertura
emplos sumamente esclarecedores deste úl- nas posições tradicionais da Igreja, as at-
timo tipo de polarização, com um pico na itudes que prevaleceram em relação a al-
Primeira República, mas que ainda hoje tem gumas questões candentes, como a contra-
entre nós um peso para o qual se torna cada cepção e o aborto, e as posições tomadas
vez mais difícil encontrar paralelos nas so- por Paulo VI na Encíclica Humanae Vi-
ciedades ocidentais desenvolvidas. Os fun- tae, foram entendidas como um recuo per-
damentalismos religiosos, sobretudo os das ante a inovação conciliar e deram origem a
religiões monoteístas, concentram-se hoje um movimento de desafecção de certos sec-
quase em exclusivo em questões muito re- tores católicos norte-americanos. De resto,
stritas das tecnociências biomédicas como o a postura permanente de entidades como a
aborto e a eutanásia ou as questões relativas Sagrada Congregação para a Doutrina da
à sexualidade e à reprodução, e a esgrim- Fé e do seu responsável máximo, o cardeal
irem aí com uma truculência que não usam Ratzinger, assim como do Papa João Paulo
em praticamente mais assunto nenhum. O II, cuja intransigência se faz notar exemplar-
tema da falência da tecnociência, e do pre- mente na condenação do uso do preservativo
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 39
como meio de combate à epidemia de Sida, plexo acerca do singnificado da vida moral.
continuam a alimentar hoje o mesmo tipo de Aquilo a que assistimos foi o movimento de
fuga e distanciamento em relação à hierar- muita gente empenhada na bioética rumo a
quia católica que um dia contribuiu para a um tipo diferente de linguagem moral na cor-
sociogénese da bioética. Tal como Daniel rente dominante das políticas públicas, em
Callahan e Warren T. Reich, André Hellegers direcção a uma linguagem de direitos, pre-
foi um dos fundadores do campo da bioética ocupações com questões de pluralismo, es-
que se voltou para esse novo campo em forços para encontrar consensos morais e es-
parte devido à sua desilusão com as posições tratégias morais em face de uma situação
da Igreja Católica nos debates das questões cultural diferente. E em especial, tratava-se
suscitadas pelo progresso das tecnociências da necessidade de encontrar alguma forma
biomédicas, à cabeça das quais a do controle de lidar com a hostilidade em relação à
da fertilidade (Jonsen, 1998:301). André ética em geral” (Callahan, 1993:S8). Cos-
Hellegers foi inclusive um dos altos respon- tumam referir-se a este respeito, dois au-
sáveis da comissão papal sobre o controle da tores e obras marcantes na sua época e como
fertilidade que, nessa sua qualidade, esteve predecessores da literatura bioética: Morals
na origem de um inquérito aos casais católi- and Medicine22 , de 1954, pelo teólogo epis-
cos que veio demonstrar as dificuldades que copal Joseph Fletcher, que terá sido pio-
eles sentiam em seguir a doutrina da Igreja neiro ao propôr uma ética de situação de
sobre a moral sexual e os expedientes a que tipo utilitarista contra o tradicional privilé-
recorriam para a contornar (Reich, 1999:37- gio teológico dos princípios morais absolu-
41). Com a Encíclica Humanae Vitae, de tos e inflexíveis (Callahan, 1990:3; Jonsen,
1968, o Papa Paulo VI rejeitou as conclusões 1993:S3; Kuhse e Singer, 1998:7), e The
da comissão, dando o conteúdo e o tom Patient as Person23 , de 1970, pelo teólogo
às posições desde então defendidas pela hi- metodista Paul Ramsey, o qual tem a posição
erarquia da Igreja. Do lado protestante, diametralmente oposta à de Fletcher, rejei-
assistia-se a idêntico movimento de distan- tando toda a ética de situação e preconizando
ciamento em relação à teologia moral clás- um firme apego aos princípios morais tradi-
sica das igrejas reformadas. Este movimento cionais na linha do mais rígido moral-
de revisão teológica aproximou pensadores ismo teológico (Callahan, 1990:3; Calla-
católicos e protestantes, distanciando-os si- han, 1986:46-47; González, 1998:148; Jon-
multaneamente das respectivas ortodoxias e sen, 1993:S3). Diz Callahan que a bioética
fundamentalismos e encaminhando-os para a nascente abriu caminho – e abriu caminho
bioética nascente (Jonsen, 1998:42-55). Es- à sua própria aceitação pública – na me-
clarece Callahan que, para que a aceitação
da bioética na América fosse possível, “. . . a 22
Joseph Fletcher (1954), Morals and Medicine.
primeira coisa que as pessoas empenhadas The Moral Problems of: the patient right to know the
na bioética tiveram de fazer foi (. . . ) pôr truth, contraception, artificial insemination, steriliza-
tion, euthanasia. Boston: Beacon Press.
de lado a religião. Era igualmente claro 23
Paul Ramsay (1970), The Patient as Person: Ex-
que o modelo do médico como único decisor plorations in Medical Ethics. New Haven: Yale Uni-
teria de dar lugar a um quadro mais com- versity Press.
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40 António Fernando Cascais
dida em que optou por uma via intermé- Medicine and Biomedical e Behavioral Re-
dia entre aqueles dois autores e modos de search, da Presidência dos Estados Unidos,
pensar e adquirindo um carácter predomi- entre 1980 e 1983, que em 1981 have-
nantemente regulatório (Callahan, 1993:S8). ria de produzir o relatório Defining Death,
Além de Fletcher e de Ramsey, teve ainda que definia a morte como a cessação ir-
papel de relevo na emergência da bioética o reversível da função cardio-respiratória ou
teólogo moral jesuíta Richard McCormick, a cessação irreversível de todas as funções
que representava uma atitude moderada en- cerebrais, incluindo as do tronco cerebral
tre as dos outros dois (Jonsen, 1998:41). (Jonsen, 1998:110). Por sua vez, Hans
Também o teólogo Robert Veatch, teólogo Jonas, judeu de origem alemã e refugiado do
metodista, paladino dos direitos dos doentes regime nazi desde 1935, tinha feito a sua for-
na década de sessenta, foi o primeiro fun- mação filosófica com mestres como Edmund
cionário pago do Hastings Center, após ter Husserl, Martin Heidegger e Rudolf Bult-
sido apresentado a Daniel Callahan por Van mann. Em 1967 e 1968, a Academia Amer-
Rensselaer Potter (Jonsen, 1998:57). Na icana de Artes e Ciências promoveu duas
verdade, a filosofia e a teologia constituíam conferências sobre a ética da experimentação
os campos de onde provinha, em exclusivo, humana que constituíram um marco neste
a problematização da biomedicina antes campo de reflexão e para o que Jonas con-
da definição do campo bioético (Callahan, tribuiu com o seu ensaio “Reflexões filosó-
1990:2; González, 1998:148). A influência ficas sobre a experimentação com seres hu-
dos teólogos no início da bioética começa manos”24 , que revolucionou o modo até en-
a declinar em meados da década de se- tão prevalecente de pensar a ética da experi-
tenta, quando os filósofos seculares passam mentação humana a partir da polaridade en-
a predominar (Callahan, 1999:61-63; Pelle- tre os direitos individuais e o bem comum
grino, 1999:74; Reich, 1996a:100; Viafora, e a respectiva legitimidade nos termos do
1996:8). Entre estes, além de Daniel Calla- contrato social; ao invés, Jonas opõe que
han, tiveram papel proeminente Stephen a experimentação só se pode legitimar em
Toulmin e Hans Jonas, de formação clás- termos de fins melhoradores e que por isso
sica europeia, a que posteriormente viriam a submissão dos indivíduos a experimen-
acrescentar-se Samuel Gorovitz e K. Dan- tação transcende os deveres sociais, é antes
ner Clouser. Toulmin e Jonas já se tinham da ordem da absoluta gratuitidade e volun-
distinguido como filósofos antes de se dedi- tariedade, pelo que o mero consentimento
carem a temas de bioética. Toulmin tinha es- não basta. Neste ensaio, Jonas é também o
tudado em Cambridge com Ludwig Wittgen- primeiro filósofo a debruçar-se sobre a re-
stein e integrou a National Commission for definição de morte do relatório da Universi-
Protection of Human Subjects of Biomedi- dade de Harvard, de 1968. A partir daqui, o
cal and Behavioral Research do Congresso empenhamento de Jonas na reflexão bioética
dos Estados Unidos, entre 1974 e 1978, foi
um dos relatores do Belmont Report (Jon- 24
V. tradução portuguesa in Hans Jonas (1994),
sen, 1998:102-104), e depois a Commis- Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega: 117-169,
sion for the Study of Ethical Problems in trad. António Fernando Cascais.
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 41
levá-lo-á a produzir um caudal de literatura a qual toda a atitude expedita falha. Com
entre o qual se destaca o seu entretanto céle- efeito, uma ética para a tecnociência apre-
bre Princípio Responsabilidade. Em busca senta uma dificuldade de princípio que con-
de uma ética para a era da técnica (Jonas, siste numa situação aporética: como formu-
1984) – obra de 1979 que, além de for- lar uma ética para uma tecnociência que ela
mular o princípio que o tornou uma refer- própria é a principal responsável por com-
ência incontornável, formula também pela prometer irremediavelmente a possibilidade
primeira vez a ideia de uma ética para a tec- de fundar toda a ética? Em suma, diríamos
nociência que pairava já no ambiente intelec- que se trata de pensar a crise, mas no interior
tual de então mas que a partir daí se trans- dela e tomando-a como o “estado de coisas”
forma num tema intelectual de primeira or- permanente com que há que viver e que
dem. A tensão que começou por desenhar-se aprender a viver como a própria condição
entre filósofos e teólogos, nos primórdios da de todo o pensamento e o pensamento ético
bioética, haveria de reproduzir-se mais tarde em particular enquanto capacidade de de-
entre bioeticistas e cientistas sociais (Calla- strinça entre possíveis tecnocientíficos dese-
han, 1999:64-65). jáveis e indesejáveis. Assim, a crise não se
A ciência e a medicina, porém, prati- resume de modo nenhum ao facto de o de-
camente nunca foram desafiadas na esfera senvolvimento das tecnociências biomédicas
pública a partir de outros pressupostos que romperem, em actos e casos discriminados,
não os religiosos antes da Segunda Guerra com os valores estabelecidos que há que re-
Mundial, quando os efeitos conhecidos ou por por intermédio de uma regulação ética
previsíveis dos seus crescentes poderes se das práticas e actividades tecnocientíficas, de
tornaram patentes em termos públicos. Só tal modo que essa regulação ética se limitaria
a partir daí é que a necessidade de uma regu- a aplicar aos novos problemas-infracções as
lação ética da tecnociência pôde realmente normas-soluções perenes, como se de uma
deixar de ser apanágio da reflexão privada espécie de nova deontologia geral da técnica
dos filósofos para se metamorfosear em per- se tratasse. Nada disso, e nada de mais alheio
cepção pública largamente difundida. A ex- ao que implica uma ética para a tecnociência
traordinária proliferação de conferências so- ou que faz necessitar uma bioética.
bre os problemas sociais e éticos levanta- Nesta conformidade, temos por feridas de
dos pelo progresso tecnocientífico, nos Esta- um equívoco essencial as ideias, solidárias
dos Unidos, na década de sessenta, que con- aliás, que reduzem a bioética, quer a uma
tribuiu para criar o clima favorável ao surgi- mera ética aplicada, quer a uma deontolo-
mento da bioética como disciplina e discurso gia, mas que deram corpo a práticas efecti-
específicos, é um sintoma claro da suspeita vas que não podemos deixar de olhar como
pública em relação à bondade científica (Jon- um empobrecimento daquilo que a emergên-
sen, 1998:13-19). No entanto, após tudo o cia da bioética originariamente promete, de
que atrás foi dito, é mister reconhecer que que continua a ser portadora e que será dese-
essa percepção exprime uma experiência de jável levar por diante, sob o nome de bioética
crise que nada tem de conjuntural, antes re- ou de outro qualquer. A ideia equívoca
flecte algo de essencial, irreversível e perante que reduz a bioética a uma simples ética
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42 António Fernando Cascais
aplicada, seja ela teológica e com recurso particular, ou seja, qualquer destrinça entre
a um fundamento onto-teológico transcen- o que é desejável e o que não é desejável,
dente, ou filosófica e com recurso a um fun- não pode prescindir de instâncias e pessoas
damento fenomenológico-imanente, reflecte exteriores às comunidades científicas. Deste
ainda o paternalismo esclarecido, pois só modo, a discussão doutrinária e a avaliação
se pode proceder à aplicação a casos práti- de casos concretos obriga à inclusão, para
cos uma ética cuja verdade já tinha previa- além dos elementos da comunidade médica
mente sido constituída a nível doutrinário, de ou científica, de representantes de outras
maneira assertiva e apodítica, por uma co- comunidades de saber igualmente especial-
munidade profissional de pares especializa- izado, como a teologia, a filosofia, o di-
dos, sejam eles teólogos, médicos ou filó- reito e as ciências sociais e humanas, mas
sofos. Eis por que é igualmente equívoca a não só. Efectivamente, só se pode aceder a
ideia da bioética como deontologia, suscep- uma avaliação realmente rigorosa dos peri-
tível de ser fundada na própria racionalidade gos reais que há que evitar, ou dos danos que
tecnocientífica. Ora a racionalidade tecno- há que de algum modo reparar, mediante a
científica possui uma dinâmica imparável de participação activa daqueles sobre quem re-
produção indefinida, ou de autoproliferação, caem os efeitos, benéficos ou prejudiciais da
que o imperativo técnico bem exprime e que actividade científico-tecnológica. Ora a in-
a torna pela sua própria natureza avessa à clusão destes no processo de discussão e de
formulação de qualquer princípio de auto- decisão é uma das vias que tem deslocado,
limitação. O mesmo é dizer que ela não pos- e a nosso ver afortunadamente, a reflexão
sui a capacidade de gerar uma ética com os ético-política sobre a tecnociência para o ter-
mesmíssimos materiais que são os maiores reno das suas consequências e a fazer com
obreiros da erosão da possibilidade de a fun- que sejam elas, ou a previsibilidade delas,
dar. A racionalidade tecnocientífica, com a lançar luz sobre a própria concepção dos
a sua dinâmica imparável, exclui qualquer programas e projectos tecnocientíficos. Com
justa medida e nesse sentido ela representa, efeito, uma ciência - no caso a ciência exper-
por esse simples facto, se não mesmo um imental, como o poderiam ser o saber filosó-
obstáculo à responsabilidade e à boa von- fico ou a scientia teológica - que reconhece
tade do cientista, pelo menos o objecto de- e aceita, ou é levada a reconhecer e a aceitar
las. A racionalidade tecnocientífica é aquilo (Callahan, 1990):
que pode garantir o rigor e a eficácia da in-
a) que os seus limites possam ser deter-
tervenção médica e é com tal promessa e
minados numa discussão em que partic-
compromisso que ele se apresenta perante
ipam em pé de igualdade tanto aqueles
o doente, mas não é a racionalidade tec-
que a fazem como quantos experienciam
nocientífica que pode formular os termos
as suas consequências e nessa qualidade
em que é beneficente a relação deste com
são convocados a participar na discussão
o doente e pode inclusivamente ser inimiga
ou inclusivamente forçam a sua partici-
da beneficência do médico. Deste modo,
pação nela, e
qualquer limitação ética da tecnociência em
geral, e das tecnociências biomédicas em b) que justamente no estabelecimento
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 43
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44 António Fernando Cascais
tural norte-americano e pode sem dificul- fronteiras e fazer jus a exigências contra-
dade ser entendida como um desenvolvi- ditórias de modo a que se perceba o que
mento contemporâneo da Berufsethik de- pode autorizar ou interditar a lei na preser-
scrita por Max Weber, a ética protestante vação da ordem pública ao mesmo tempo
na sua afinidade essencial com o espírito do que se respeitam os imperativos privados de
capitalismo. Segundo Jonsen, a bioética é ordem moral (Callahan, 1986:48). Por essa
afim do ethos americano com fortes pilares mesma razão a bioética norte-americana ten-
no melhorismo e no individualismo morais deu a ser um modelo de exportação univer-
e assinala com toda a razão que as lon- sal cujos limites, no entanto, se tornariam
gas tradições europeias de sistemas públi- patentes à medida do seu confronto com re-
cos de prestação de cuidados de saúde no alidades sociais, culturais e políticas diver-
âmbito do Estado-providência filtram o en- sas daquelas que lhe deram origem. Sobre-
tendimento que na Europa se tem da bioética tudo a partir da década de noventa, começam
(Jonsen, 1998:389-401). Por outro lado, a esboçar-se adaptações e formulações al-
diz ele que, desde os tempos heróicos dos ternativas, com especial relevo nos países
primórdios, com toda a sua excitação int- europeus (Bompiani, 1996; Bondolfi, 1996;
electual, astúcia política e coragem moral, Bourgeault, 1992:32; Gracia, 1996; Mal-
a bioética tornou-se hoje aborrecida (Jonsen, herbe, 1996), onde o desafio que se põe à
2000:690). Terá sido esse o inevitável preço bioética consiste precisamente em “ver se ela
da respeitabilidade entretanto grangeada e a é capaz de recrear as questões bioéticas à luz
bioética só poderá recuperar se empreender das suas próprias tradições e cultura” (Gra-
uma decisiva reflexão sobre o ethos partic- cia, 1996:169). Sintomático da diferença en-
ular da sociedade norte-americana que foi tre o modo de entender e praticar a bioética
seu berço e, para tanto, é necessário que nos Estados Unidos e na Europa é o facto de
deixe o seu pequeno mundo e se aventure o projecto de revisão dos fins da medicina,
por outras paragens disciplinares que tenham tão caro a Daniel Callahan que o inspirou,
a ver com a questão ética e que se abal- ter tido acolhimento bastante mais favorável
ance a uma viagem - filosófica? - pelo es- no continente europeu do que na América,
trangeiro (Jonsen, 2000:694-697). Daniel berço da bioética (Callahan, 1999:66).
Callahan assinala, a este propósito, que a Eis o quadro em que surgem os primeiros
bioética emerge no quadro do debate, aceso centros de investigação em bioética. O In-
desde os anos sessenta, entre o privilégio stitute of Society, Ethics and the Life Sci-
político dos direitos individuais próprio do ences foi fundado em Hastings-on-Hudson,
individualismo norte-americano, com a cor- Nova York, em 1969, pelo filósofo Daniel
respondente ausência de uma linguagem co- Callahan e o psiquiatra Willard Gayling, que
munitária forte e com poderes equivalentes, amadureciam a ideia desde o ano anterior
e a atenção a prestar ao interesse colectivo e (Callahan, 1999:56; Jonsen, 1998:20-22).
ao bem comum, mais próprios da linguagem Tentativas de criar centros similares não pas-
do direito e da moral, a cujo papel regu- saram disso mesmo, nas universidades de
lador se faz apelo - sobretudo nos Estados Yale e da Pennsylvania, pela mesma época
Unidos - sempre que se trata de delimitar (Callahan, 1999:57). A denominação orig-
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 45
inal do centro reflectia o pensamento e as Sargent e Eunice Shriver que Hellegers teve
intenções de Daniel Callahan (que foi pres- acesso à família Kennedy e o que cimentou a
idente do centro até Setembro de 1996), relação terá sido o facto de ambas as famílias
numa época em que o espírito, mas ainda e o próprio Hellegers terem sido profunda-
não o nome de bioética, se encontrava já em mente afectados pela deficiência mental de
pleno desabrochar. O centro haveria pos- que padeciam familiares de todos eles (Re-
teriormente de chamar-se Hastings Center, ich, 1999:29-30). As publicações periódi-
nome por que ficou célebre, a partir da sua cas oficiais de ambos os centros continuam
localização geográfica inicial em Hastings- a ser as de maior prestígio e excelência no
on-Hudson, no Outono de 1970 (Callahan, campo da bioética: o Hastings Center Report
1999:58); após sucessivos deslocamentos, o e o Kennedy Institute of Ethics Journal, que
centro encontra-se actualmente sediado em se publicam, respectivamente, desde 1971 e
Garrison, no Estado de Nova York. Nos desde 1990 (Cascais, 1992).
seus quase trinta anos de existência, adquiriu Na opinião de Edmund Pellegrino, a
renome mundial pela qualidade da sua inves- história da bioética teria atravessado três es-
tigação, que reúne os nomes mais proemi- tádios distintos nas suas três décadas de ex-
nentes neste domínio, entre os quais Hans istência: uma primeira fase, a proto-bioética,
Jonas, e que tem liderado projectos inter- entre 1960 e 1972, uma segunda, a da
nacionais da maior relevância. O Joseph bioética filosófica, de 1972 a 1985, e uma
and Rose Kennedy Institute for the Study of terceira, a da bioética global, de 1985 ao pre-
Human Reproduction and Bioethics foi fun- sente (Pellegrino, 1999:74). Warren T. Re-
dado no primeiro de Outubro de 1971 - ob- ich admite que, nas suas três décadas de ex-
viamente, quando o termo bioética já tinha istência, a bioética passou por dois paradig-
sido forjado - pela iniciativa de André Hel- mas, um baseado nos princípios, outro na
legers, um obstetra, fisiologista e demógrafo experiência (Reich, 1996a:98-106) e “o fu-
de origem holandesa que trabalhava na Uni- turo da bioética será determinado pelos mo-
versidade de Georgetown em Washington, a dos como esses dois paradigmas se desen-
universidade católica de maior prestígio nos volverão separadamente até acabarem por se
EUA, onde o centro sempre esteve sediado e reunir” (Reich, 1996a:98). E os problemas
cuja tendência filosófico-teológica não deixa que dominarão a cena da reflexão e da prática
de reflectir. Mais tarde, o seu nome haveria bioética serão a genética, a alocação de re-
de mudar para Kennedy Institute of Ethics. cursos, a sida e a saúde ambiental (Reich,
André Hellegers foi seu presidente até à sua 1996a:106). Segundo David Roy, além da
morte em 1979, tendo-lhe sucedido Edmund genética e da sida, as áreas donde provirão os
Pellegrino (Jonsen, 1998:22-24). O nasci- maiores desafios para a bioética serão a em-
mento do instituto deve-se aos bons ofícios briologia humana, a medicina fetal, a geria-
da família Kennedy, já então patrocinadora tria e a gerontologia, a imunologia e as neu-
da Fundação Joseph P. Kennedy, cuja vice- rociências (Roy, 1996:54) e a bioética as-
presidente era então Eunice Shriver, com lig- sumirá decisivamente o carácter de uma ética
ações familiares aos Kennedys. Segundo Re- planetária ou global num sentido que se aviz-
ich, foi a partir dos contactos com o casal inha do que lhe deram Hans Jonas e Van
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 47
contribuíram para consolidar esse uso: o pro- não é questão de somenos, porque assenta
jecto da Enciclopédia de Bioética, com War- numa profunda discussão científica acerca
ren T. Reich como seu editor-chefe, que de- dos diferentes entendimentos quanto ao seu
cide atribuir-lhe esse nome em 1972, quando sentido e âmbito: “O campo da bioética
começa a elaborá-la (Jonsen, 1998:27; Re- surgiu com a palavra ‘bioética’, em parte
ich, 1996a:90), que é anunciada em 1973 porque a própria palavra simbolizou e es-
e que viria a público em 1978, com uma timulou uma interacção inédita de proble-
reimpressão em 1982, para se transformar mas biológicos, médicos, tecnológicos, éti-
a partir de então na grande obra de refer- cos e sociais e métodos de pensamento”
ência no campo, a tal ponto que foi inclu- (Reich,:1995:30). O âmbito e o sentido
sive um dos maiores instrumentos do seu da bioética é assim melhor definido pelo
estabelecimento, com uma nova edição re- polemos, os questionamentos ou as prob-
vista em 1995 (Reich et al., 1995:XIX); lematizações que abrem o campo da inves-
e a publicação do artigo de Daniel Calla- tigação, tanto teórica como prática, do que
han, “Bioethics as a Discipline”, no primeiro pelas respostas providenciadas pela perspec-
número do Hastings Center Studies29 , nome tiva de cada autor. Muito a propósito, Kuhse
que então tinha o órgão do centro homón- e Singer contrariam a opinião de George
imo (Callahan, 1997:87-92), ao qual seria Bernard Shaw, para quem toda a profissão
atribuído o valor de autoridade justificativa, era uma conspiração contra os leigos: “A
pela equipa da Biblioteca do Congresso dos bioética, em contrapartida, é uma empresa
Estados Unidos, para a criação de uma nova mais abertamente crítica e reflexiva. Não
referência bibliográfica que classificasse um limitada a questionar as dimensões éticas das
livro então recebido pelos bibliotecários, Se- relações médico-paciente e médico-médico,
lected Readings: Genetic Engineering and vai bem para além do âmbito da ética médica
Bioethics, de Robert Paoletti30 , que pas- tradicional de várias maneiras. Primeiro, o
sou assim a ser o primeiro título fichado seu objectivo não é o desenvolvimento de,
na categoria de “bioética”. Na Europa, o ou a adesão a, um código ou um conjunto
termo bioética surge em língua francesa pela de preceitos, mas uma melhor compreensão
primeira vez em 1973 (Malherbe, 1996:119). das questões. Segundo, está preparada para
Embora Daniel Callahan assevere que, “es- pôr questões filosóficas profundas acerca da
pecialmente a partir do momento em que natureza da ética, do valor da vida, do que
os media começaram a interessar-se pelo as- é ser pessoa, a importância de ser humano.
sunto, houve uma grande pressão para que Terceiro, abrange questões políticas e da ori-
se arranjasse um termo simples que pudesse entação e controle da ciência. Em todos estes
utilizar-se rapidamente para uso público” sentidos, a bioética é um campo de pesquisa
(Reich, 1994:331), a denominação do campo novo e distinto” (Kuhse e Singer, 1998:4).
Entre nós, Archer dá ênfase ao facto
29
Daniel Callahan (1973), “Bioethics as a Disci- de a bioética não ser “simplesmente uma
pline”, Hastings Center Studies, 1(1):66-73.
30
Robert Paoletti (1974), Selected Readings: Ge- nova versão da antiga ética médica” (Archer,
netic Engineering and Bioethics. New York: MSS 1996:23), mas, ao afirmá-lo, ignora o pa-
Information Corporation, 2a ed. pel da crise da auto-regulação da biomedic-
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48 António Fernando Cascais
ina como condição fundamental da insufi- e seguir uma metodologia indutiva, quando
ciência, senão mesmo da falência da ética se sabe que as “realidades respeitantes a val-
médica, limitando-se a justificar a sua afir- ores últimos não são susceptíveis de prova
mação pelo facto de a bioética incluir áreas racional” (Archer, 1996:26), de maneira que
não médicas e de possuir uma inegável di- é pelo recurso à intuição, como forma de
mensão social, o que a obriga a situar- conhecimento sintético que chega à certeza
se “em zonas de intersecção de vários de direitos e deveres anteriormente a qual-
saberes, nomeadamente das tecnociências quer raciocínio discursivo, que “se tem, por
(sobretudo a biologia e a medicina), das hu- vezes, conseguido que pessoas com moti-
manidades (filosofia, ética, teologia, psicolo- vações ideológicas diferentes cheguem a um
gia, antropologia), ciências sociais (econo- juízo ético comum, relativamente coerente,
mia, politologia, sociologia, impacto so- acerca de uma situação concreta” (Archer,
cial) e doutras disciplinas como o direito” 1996:26). Seria ainda marca da bioética a
(Archer, 1996:25). E adianta, com bem mais imprescindível abertura à participação de um
razão, que “a bioética não é propriamente público cada vez mais competente e exigente
uma disciplina mas antes uma nova transdis- e pelo seu papel de assessoramento de políti-
ciplina” (Archer, 1996:25), num esforço de cas nacionais num esforço de harmonização
integração que faz dela um opositor frontal reguladora internacional que é exigido pelo
tanto do cientismo e tecnicismo em que confronto entre a natureza universal da ciên-
a tecnociência moderna tende a constituir- cia e o carácter regional das culturas onde
se como explicação global única, como de ela é produzida e aplicada. Deste modo,
um filosofismo negador da autonomia do será lícito “definir bioética como o saber
conhecimento científico e técnico. De um transdisciplinar que planeia as atitudes que
modo muito próximo, neste ponto concreto, a humanidade deve tomar ao interferir com
do primeiro Engelhardt, Archer reconhece o nascer, o morrer, a qualidade de vida e
que a busca interdisciplinar se faz numa so- a interdependência de todos os seres vivos.
ciedade pluralista cuja heterogeneidade ac- Bioética é decisão da sociedade sobre as
erca do valor da vida e da morte constitui tecnologias que lhe convém. É expressão
precisamente a causa dos problemas bioéti- da consciência pública da humanidade”
cos, chegando a afirmar que, por isso, “ela (Archer, 1996:32). Propondo, aparente-
não deve ser negada, sob pena de desvirtuar mente, a profissionalização do bioeticista
a bioética, que deveria até dar voz àqueles que, aliás, é já prática adquirida sobretudo
que a não têm, como são as minorias éti- nos países anglo-saxónicos, Archer conclui
cas” (Archer, 1996:25). Eis por que, para que “(s)ó o treino profissional numa análise
Archer, o discurso a utilizar pela bioética filosófica que leve à fundamentação ética do
não pode ser “dogmático nem persuasivo, juízo moral poderá impedir que a bioética
mas antes heurístico e criativo, baseando- se limite a um pragmatismo ético-científico,
se num diálogo pluridisciplinar e pluralista se dissolva num relativismo ético ou de-
que deverá entrar em profundidade no estudo genere num sociologismo moral” (Archer,
das raízes históricas, culturais e religiosas 1996:32). Outra autora, M. Patrão Neves,
das diferentes posições” (Archer, 1996:26) atribui à evolução da bioética o mérito de
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 49
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50 António Fernando Cascais
gelhardt e Gilbert Hottois, pode contribuir contributo de Potter para a bioética deve-
para se compreender quão controversa é a ria permanecer largamente marginalizado até
definição do âmbito da bioética. Ao con- a uma época recente, quando foi de algum
trário de Callahan, Potter e Hellegers nunca modo redescoberto e redefinido sob o nome
reivindicaram para si o estatuto de filóso- de bioética global, já em finais da década
fos, no sentido de nunca terem praticado de oitenta, também ainda por influência do
uma ética filosófica, embora nunca tenham próprio Potter e que teve influência deci-
rejeitado o título de bioeticistas, sobretudo siva no pensamento de Brunetto Chiarelli,
o segundo. Quanto a Jonas, Engelhardt antropólogo e bioeticista italiano31 . Parale-
e Hottois, recorreremos aos seus préstimos lamente a Potter, André Hellegers desen-
porquanto são estes os pensadores proemi- volveu inicialmente uma outra concepção de
nentes que declaradamente se abalançaram à bioética no Kennedy Institute of Ethics na
questão da fundamentação de uma bioética, e Universidade de Georgetown, mas também
não tanto para explanarmos a grande questão aqui a sua morte prematura haveria de limitar
filosófica da dificuldade de fundamentar uma a sua influência no próprio meio académico
ética geral, ou sequer uma ética para a téc- onde sempre trabalhou. Segundo Reich, An-
nica, o que nos lançaria numa incomportável dré Hellegers não achava que fossem tanto os
inquirição junto de uma imensidade de au- problemas levantados pelas novas tecnolo-
tores e de referências. gias biomédicas a fornecer o impulso inicial
A intenção de Van Rensselaer Potter ao à bioética, mas sobretudo “aquilo em que se
forjar o termo de bioética era apresentar uma tinha tornado a medicina num mundo em que
nova disciplina que, ao combinar o conhec- a saúde e a doença se tinham transformado
imento biológico com o conhecimento dos em conceitos profundamente confusos” (Re-
sistemas humanos de valores, erguesse uma ich, 1999:43). Reich aponta nomeadamente
ponte entre a cultura das ciências e a cul- a crescente preocupação de Hellegers com
tura das humanidades. Neste sentido, Pot- a medicalização generalizada da vida dos
ter retomava a seu modo uma questão bem homens e mulheres contemporâneos e o
mais antiga e vasta no pensamento ociden- deslize dos fins preventivos e terapêuticos da
tal. À luz da visão de Potter, a bioética pos- medicina para fins extra-terapêuticos, quer
sui uma distinta focagem antropocêntrica, de da ordem dos consumos privados, quer da
preferência a biocêntrica. Potter identifi- ordem do controle público dos comporta-
cava o problema humano dominante como mentos; Hellegers ter-se-ia oposto ao mas-
um problema de sobrevivência e a bioética caramento da medicina pela sociedade e da
seria a nova disciplina dedicada ao estudo e doença pela medicina, a qual se dedicava
à avaliação de um óptimo de mutação am- a “mascarar as doenças sociais tratando os
biental e de um óptimo de adaptação hu- respectivos sintomas biologicamente” (Re-
mana a ele, de modo a “não só enriquecer ich, 1999:45). Ainda segundo Reich, Hel-
as vidas individuais, mas prolongar a so- 31
Brunetto Chiarelli (1992), “Man, Nature and
brevivência da espécie humana numa forma Ethics: Global Bioethics”, Global Bioethics, 5 (1):
aceitável de sociedade” (Reich, 1994:322). 13-20 e (1993), Bioetica Globale, Firenze: A. Pon-
Por mais importante que possa ter sido, o tecorboli Editore.
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 51
legers teria favorecido uma ética centrada da bioética enraízava numa maneira holís-
no cuidado de preferência a uma ética cen- tica de entender a saúde que advinha da
trada na autonomia (Reich, 1999:46-47). De sua própria consciência, como oncologista,
acordo com Hellegers, a bioética deveria do forte laço entre a carcinogénese e as
conjugar as ciências médicas, as ciências so- condições ambientais e da ênfase colocada
ciais e a peritagem ética de um modo que na necessidade de prevenção, mais do que
permitisse aos clínicos uma maior proficiên- em meras questões de terapia. Potter apelava
cia nessa especialidade que a dos filóso- ao desenvolvimento de uma ética normativa
fos e dos teólogos morais. A bioética sig- geral para a saúde global, que só poderia
nificaria a conjugação, profissionalizada, da ser prosseguida no âmbito de uma disciplina
perícia médica e da proficiência ética, mas inteiramente nova que combinasse o con-
permaneceria em larga medida dentro do âm- hecimento científico e filosófico no pressu-
bito de uma especialidade médica com o sen- posto de que eles não só não são incomen-
tido mais restrito de um estudo revitalizado suráveis, mas que, pelo contrário, existem
da ética médica. Efectivamente, a visão fortes afinidades entre ambos. A bioética
que Hellegers tinha da bioética haveria de encontrar-se-ia assim comprometida com a
sobreviver à sua morte em 1979 e inspirar procura da sabedoria que permitisse o de-
uma das tendências contemporâneas da in- senvolvimento de uma nova ética voltada
vestigação em bioética, conhecida sobretudo para a condução de escolhas morais com
como bioética clínica (Reich, 1999:48). vista à sobrevivência humana global e val-
O nascimento “bilocalizado” ou “bicé- orizada. Em contrapartida, o modelo de
falo” da bioética de que fala Warren T. Reich bioética de Georgetown centrava-se em dile-
a este propósito, referindo-se a Van Rens- mas médicos concretos e apresentava ar-
selaer Potter e André Hellegers, implica de gumentos filosóficos precisos no campo da
facto duas concepções de bioética que em ética normativa aplicada, de tal modo que a
muitos aspectos se entrechocam, mas que bioética não seria mais do que um ramo de
por vezes coincidem. Segundo Reich, to- uma disciplina já existente, a ética aplicada.
davia, as principais diferenças não são real- O entendimento de Georgetown sublinhava
mente entre os autores, como se se tratasse também a incomensurabilidade da ciência e
de “abordagens gémeas” que se tivessem da ética e, a nível epistemológico, procu-
separado à nascença, mas sim entre Pot- rava resolver problemas morais concretos do
ter e a perspectiva do Kennedy Institute of foro médico, por intermédio da aplicação de
Ethics/Universidade de Georgetown que, ao princípios éticos pré-estabelecidos e univer-
apropriar à sua maneira o pensamento de salmente válidos. Warren T. Reich observa
Hellegers, teve um papel decisivo na pro- que Hellegers, tal como Potter e ao con-
moção daquele que durante muito tempo se- trário do modelo originalmente prevalecente
ria o sentido largamente aceite de bioética, em Georgetown, abraçava de facto uma per-
uma disciplina baseada numa abordagem spectiva global da bioética em todos os três
filosófica e humanística das questões rela- sentidos do termo global: “1) relativa à,
tivas às políticas públicas de saúde (Reich, ou implicando, a terra inteira: uma ética
1999:48). A concepção que Potter tinha mundial para bem do mundo; 2) acarreta a
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52 António Fernando Cascais
inclusão geral de todas as questões éticas tribuna de onde falar, afastando as suspeitas
nas ciências da vida e na prestação de cuida- de sectarismo e ideologia religiosa anteri-
dos de saúde (tanto as questões ‘biomédicas’ ormente sugeridas ao público pela palavra
como as questões ‘ambientais’ do debate ‘ética’. A palavra possuía o inovador e es-
clássico); 3) utiliza uma visão geral de méto- pantoso efeito de criar um terreno secular
dos para abordar essas questões: incorpo- aceitável - tanto no interior das academias
rando de maneira alargada todos os valores, como no forum público - onde as ideias
conceitos, maneiras de pensar e disciplinas científicas, relacionadas com as questões da
relevantes” (Reich, 1995:24). Ao fazer esta saúde, religiosas, filosóficas, sociais e políti-
observação, Reich visa propôr um quadro cas poderiam encontrar-se e criar um novo e
global para a bioética, sem o qual “a bioética multidisciplinar modo de investigação” (Re-
concebida de modo mais estreito e medica- ich, 1995:30-31). Ainda segundo Reich, é
mente orientado mais facilmente se trans- desta redescoberta do sentido originário da
forma numa lista de questões e argumentos bioética que dão testemunho os editores da
descosidos acerca destes problemas” (Re- Enciclopédia de Bioética que temos vindo
ich, 1995:28), tendendo a medicalizar todo o a referir. Ao contrário de muitos académi-
campo da bioética e a esvaziar gradualmente cos e do público em geral, que tendem a
“as energias morais da bioética das questões reduzir o âmbito da bioética à estreiteza de
mais vastas da sobrevivência humana e da um sentido médico estrito - “a bioética se-
qualidade de vida e de saúde dos pontos ria uma ética médica ligeiramente alargada,
de vista demográfico e ambiental” (Reich, incluindo a ética da investigação biomédica”
1995:29). Por outro lado, “a bioética é mel- (Reich et al., 1995:XXI) - entendem aqueles
hor definida no seu sentido global, como que no âmbito da bioética cabem as questões
a ética das ciências da vida e da prestação sociais, ambientais e globais das ciências da
de cuidados de saúde. Significa isto que a saúde e da vida, de tal modo que ele “vai
bioética vai para além das questões éticas da para além da ética biomédica para englobar
medicina, para incluir as questões éticas rel- as questões morais relativas à saúde e à ciên-
ativas à saúde pública, ao crescimento pop- cia nas áreas da saúde pública, da saúde am-
ulacional, à genética, à saúde ambiental, às biental, da ética da população e do manusea-
práticas e tecnologias reprodutivas, à saúde mento de animais” (Reich et al., 1995:XXI).
e bem-estar dos animais, e por aí fora. Este O que há que evitar, nesta perspectiva, e
âmbito alargado, com o qual, opina Reich, porque se trata de dar razão de unir as áreas
afinal concordariam tanto Potter como Hel- médicas com as áreas sociais e globais das
legers, constituía a intenção originária dos ciências da saúde e da vida, é uma “orien-
outros pioneiros da bioética, reunidos em tação médica excessivamente estreita (que)
torno do Hastings Center que, desde o seu tende a medicalizar e tecnologizar o campo
início, concentrava todo o seu trabalho em da bioética, tornando assim o seu programa
‘ética e ciências da vida”’ (Reich, 1995:29). de trabalho e até os seus métodos mais facil-
Ainda segundo Reich, “a palavra ‘bioética’ mente moldáveis pelas actuais formas das
desempenhou um papel da maior importân- tecnologias clínicas e por poderosas institu-
cia na criação de um novo forum e uma nova ições médicas” (Reich et al., 1995:XXII).
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 53
Em 1988, Van Rensselaer Potter re- global sem demora; g) que qualquer pressu-
definiria a sua própria concepção originária posto fundamental está aberto a questiona-
de bioética, substituindo-a pela noção de mento e modificação, de preferência por pro-
bioética global. Os seus pressupostos fun- cessos ordeiros “ (Potter, 1992:5-6).
damentais são: “a) que uma forma aceitável Em suma, o projecto de uma Bioética
de sobrevivência humana não pode ser pres- Global, tal como Potter o apresenta, acar-
suposta e é improvável sem um renascimento retaria mudanças fundamentais nas políti-
da ciência, da religião e da teoria económica; cas mundiais e, se implica um necessário
b) que a base fundamental da origem da es- extravazamento dos limites tradicionais da
pécie e da evolução por processos naturais ética ou da deontologia médicas, representa
é a chave do nosso passado remoto e das igualmente um contraponto secular ao fun-
nossas dificuldades presentes, embora nen- damentalismo religioso, se bem que não uma
huma das grandes religiões tenha adoptado recusa liminar da admissão à discussão de
esta posição (. . . ); c) que a sobrevivência hu- toda a perspectiva religiosa. Neste sentido,
mana numa forma aceitável requer a utiliza- Potter pretende que a bioética seja uma ética
ção do conhecimento existente e da continu- de inspiração propriamente filosófica, na me-
ada investigação nas ciências básicas, médi- dida em que se distingue quer de uma de-
cas, do ambiente e do comportamento para o ontologia profissional, quer de uma moral
desenvolvimento de uma posição de autori- confessional, e na medida em que dirige
dade moral; d) que a recente taxa de cresci- tanto às profissões em geral, e científicas
mento da espécie humana em muitas regiões e médicas em particular, como às religiões,
tem levado ao sobrepovoamento numa base o desafio racional de formularem e prov-
global e tem de ser invertida se se toma idenciarem valores, ou seja, que as ques-
em consideração a sobrevivência aceitável; tiona no sentido de saber que valores de-
e) que a bioética global é necessária como fendem e como pode ela apropriá-los. No
fonte secular de autoridade moral num diál- entanto, a bioética global de Potter é tam-
ogo com as religiões cooperantes para se re- bém suficientemente generalista, ou também
sponder ao desafio da sobrevivência da espé- “piedosa” no seu generalismo, para de certo
cie humana numa forma aceitável através do modo acomodar, e poder ser explorada em
terceiro milénio e para além dele: como tal, proveito dos cientistas que (re)fazem uma in-
a bioética global é moralmente justa e con- terpretação naturalista da sua própria ciên-
veniente enquanto meio de unificar as diver- cia, designadamente quando defendem que
sas comunidades étnicas, religiosas e políti- é na sua “descoberta” do “facto” da biodi-
cas do planeta Terra, apesar dos interesses versidade que assenta, em última análise, a
instalados que podem optar por se lhe opor; injunção de respeito por esta, o que se tem
f) que a sobrevivência aceitável é concebível tornado numa autêntica palavra-de-ordem.
e alcançável, embora difícil num mundo plu- Com efeito, a convicção nos fundamentos
ralista, se para tanto um número suficiente naturais da ética, cara a autores como Jean-
de espíritos humanos puderem ser mobiliza- Pierre Changeux32 , convergiu com a bioética
dos e motivados para efectivar uma evolução
32
cultural consciente em direcção à bioética V. em especial: Jean-Pierre Changeux (1991), O
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54 António Fernando Cascais
por intermédio de uma interpretação partic- anos oitenta já Callahan dizia claramente que
ular da bioética global de Potter – mas que “a análise e a prescrição morais só raramente
Potter não rejeitou, note-se – e tem sido de- abrem caminho em matéria de evolução so-
senvolvida sobretudo por Brunetto Chiarelli. cial e cultural. Pelo contrário, elas represen-
No entanto, há que recordar que a ideia de tam geralmente uma tentativa de organizar
uma ética evolucionista33 deve ser entendida práticas imperfeitas e díspares e princípios
num quadro mais geral que assimila atitude precários e adaptados a cada caso (aquilo
científica e racionalidade ética, mas ao preço que geralmente se designa com o termo de
da naturalização desta, à luz de um mod- usos) num sistema moral coerente e estru-
elo que remonta a Darwin e a Haeckel, que turado” (Callahan, 1986:44). A ética só
o positivismo científico-social prosseguiu e pode cumprir eficazmente um papel refor-
que hoje desemboca em correntes como a so- mador sob duas condições, a primeira das
ciobiologia. quais consiste em apreender e compreender
Quanto a Daniel Callahan, a emergên- correctamente as realidades culturais e soci-
cia da bioética marca as limitações da ética ais e a segunda que os princípios e as per-
médica que, além de ter que ver com “os di- spectivas por ela estabelecidos representem
versos e delicados dilemas morais com que uma real capacidade de organização e de
se confrontam os médicos, os pacientes e o percepção, ressalvando-se porém que toda
conjunto do sistema médico”, deve englo- a análise moral dá quase inevitavelmente
bar, em sentido mais vasto, os debates so- origem a uma tensão entre os ideais morais
bre os conceitos de saúde e de doença, sobre e as realidades da vida quotidiana que torna
os fins da medicina e sobre o modo como difícil a obediência a esses ideais (Calla-
as decisões devem ser tomadas” (Callahan, han, 1986:44). As duas tarefas maiores
1986:43). A este respeito, em meados dos que se perfilaram diante da bioética emer-
gente foram: um esforço de apagar a dis-
homem neuronal. Lisboa: Publicações Dom Quixote, tinção entre factos estritamente científicos e
Jean-Pierre Changeux e tal. (1996), Fundamentos valores exclusivamente éticos e “desafiar a
naturais da ética. Lisboa: Instituto Piaget e o debate crença segundo a qual os peritos em ciên-
entre Jean-Pierre Changeux e Paul Ricoeur (1998), Ce
cia e medicina eram tão capazes de tomar
qui nous fait penser. La nature et la règle. Paris: Édi-
tions Odile Jacob. decisões morais como médicas” (Callahan,
33
São óbvias as afinidades entre o pensamento 1995:249); e uma tentativa de desenvolver as
de Brunetto Chiarelli e as posições da ética evolu- metodologias necessárias à abordagem dos
cionista – V. nomeadamente: Brunetto Chiarelli novos dilemas éticos. Logo desde o início
(1991), Origem da sociabilidade e da cultura hu-
mana. Coimbra: Instituto de Antropologia da Uni-
impuseram-se as questões da necessária in-
versidade de Coimbra e Paul Thompson, ed. et al. terdisciplinaridade da bioética e de saber que
(1995), Issues in Evolutionary Ethics. New York: decisões deveriam ser remetidas ao foro pri-
State University of New York Press. Por outro lado, a vado e que decisões deveriam ser deixadas à
convergência entre Potter e Chiarelli ficou selada com esfera pública. No entanto, diz Callahan que
a Revista Global Bioethics, editada pelo primeiro na
Università Degli Studi de Florença e de cujo conselho a definição do âmbito da bioética, a sua re-
redactorial Potter foi presidente honorário até à sua lação com as disciplinas da teologia moral e
morte em 2001. da filosofia moral, com os seus campos con-
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 55
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56 António Fernando Cascais
de bioética fundamental, que, no que re- esta como um correlato do poder e que seja
speita às suas metodologias, assume uma capaz de uma previsão alargada da evolução
visão sincrética da bioética muito próxima futura, ou seja, trata-se de uma responsabili-
da de Daniel Callahan e do Hasting Center, e dade que tem por objecto não apenas o des-
Gilbert Hottois se distinguiu sempre por uma tino dos homens, mas também o destino de
reflexão filosófica e científico-social que se todos os fenómenos naturais e vivos que pos-
aproximaria muito daquilo que atrás foi de- sibilitaram a evolução da humanidade da to-
scrito como “bioética cultural”, sem no en- talidade da própria vida; 3) qualquer ex-
tanto se esgotar nessa definição. trapolação a partir dos dados actualmente
Posição claramente distinta, senão mesmo disponíveis terá de levar em conta a preg-
oposta, à de um Potter é tomada por Hans nância causal das nossas acções tecnológ-
Jonas quanto à legitimidade da persecução icas, pelo que uma imaginativa “heurística
livre e autónoma de possíveis biomédicos, do medo”, que substitui as anteriores pro-
científicos e tecnológicos e de estilos de jecções da esperança, deve poder dizer-nos
vida, a cujo propósito o filósofo formulou o que é que está provavelmente em causa e
o seu célebre Prinzip Verantwortung, ou aquilo contra que devemos acautelar-nos, em
Princípio Responsabilidade (Jonas, 1984). A nome de uma regra pragmática que dá prior-
premissa fundamental do seu princípio ou idade à profecia agonística sobre a promessa
imperativo de responsabilidade, que, alerta de redenção, típica do optimismo utópico
Jonas, parte de um diagnóstico que já não herdado do Iluminismo, e tendo em vista
é novo, é que a tecnologia moderna elevou que nos é mais fácil saber o que não quere-
o poder do homem sobre a matéria, a vida mos do que o que queremos; 4) aquilo que
e o próprio homem para além de tudo o devemos evitar a todo o custo é determi-
que antes era conhecido; de acordo com nado por aquilo que devemos preservar a
ela, desenvolve Jonas cinco teses fundamen- todo o custo, sendo este, por sua vez, pred-
tais: 1) a natureza do agir humano foi al- icado da nossa imagem do homem, a qual,
terada, o que levanta questões morais para com o eclipse contemporâneo da religião,
as quais nos não prepararam as antigas éti- só pode ser dada por uma razão secular-
cas e cujos princípios há que repensar; 2) izada e especulativa, susceptível de fundar
a extensão das nossas acções põe a respon- os deveres do homem para consigo próprio,
sabilidade, que tem no próprio destino do a sua posteridade longínqua e a plenitude
homem o seu objecto, no centro do domínio da vida terrestre sujeita ao seu domínio, de
ético, sendo concomitantemente necessária tal modo que uma filosofia da natureza dev-
uma teoria da responsabilidade que entenda erá articular o “é” cientificamente validável
com o “deve” das injunções morais; 5) o
tulo referido na bibliografia, V. Diego Gracia (1989), conceito de imperativo humano objectivo as-
Fundamentos de bioética. Madrid: Eudema, (1990), sim obtido permite-nos discriminar entre os
Primum non nocere. El princípio de no-maleficencia fins legítimos e os ilegítimos, propostos ao
como fundamento de la ética médica. Madrid: Insti-
tuto de España/Real Academia Nacional de Medicina nosso poder prometeico, discriminação essa
e (1991) Procedimientos de decisión en ética clínica. que contraria a imodéstia dos fins decor-
Madrid: Eudema. rentes da aliança entre utopia e progresso
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 57
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58 António Fernando Cascais
mento entre algumas correntes políticas e so- Explica Jonas que falar da natureza al-
bretudo entre os meios ambientalistas e ecol- terada do agir humano significa que to-
ogistas, atraídos pela sua fundação da ca- das as éticas até hoje conhecidas partiam
pacidade ética humana numa metafísica da das premissas tácitas interligadas de que
evolução natural que, por isso, alarga o bem a condição humana, determinada pela na-
humano, e o faz inclusive radicar na pro- tureza do homem e pela natureza das coisas,
tecção do bem da natureza e da vida, mas isto estava dada de uma vez para sempre, que o
em termos diametralmente opostos aos da bem humano era por isso de imediato de-
ética evolucionista. Por outro lado, o princí- terminável e que a latitude do agir humano,
pio de responsabilidade de Jonas permanece ou seja, da responsabilidade, se encontrava
como a tentativa filosoficamente mais sofisti- estreitamente circunscrita. Acontece que,
cada de contrariar as tendências do pen- segundo Jonas, que neste aspecto revela a
samento contemporâneo e os riscos do ni- sua dívida para com a reflexão de Martin
hilismo ontológico e do relativismo ético, Heidegger acerca da técnica, estas premis-
exercendo por esta via um fascínio inegável sas já não se mantêm. Tendo a natureza do
para a grandes preocupações do século42 . agir humano sido alterada pela técnica mod-
erna, é absolutamente necessário formular
vironment: Rejecting the Ethics of Rejecting Nature”, uma ética que se preocupe com esse agir e
in Jennifer Chesworth, ed. et al.: The Ecology of para a qual não existe precedente nos mod-
Health. London: Sage Publications: 3-16; Miguel
Baptista Pereira (1992), “Do biocentrismo à bioética elos e cânones da ética tradicional. Ao con-
ou da urgência de um paradigma holístico”, Revista trário da tekne grega, cujo carácter artesanal
Filosófica de Coimbra, 1 (1): 5-50; Marie-Geneviève não alterava os grandes ciclos da natureza,
Pinsart (1996), “Nature humaine ou expérimentation marcando antes a diferenciação entre ela e o
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Evanston: Northwestern University Press: 1-40. versity Press; (1996b), Pour une éthique du futur.
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Para um conhecimento aprofundado do pensa- Paris: Payot et Rivages ; (1997), Entre le néant et
mento de Jonas, além dos títulos referidops na bib- l’éternité. Paris: Éditions Belin; (1998), Pensar sobre
liogragfia, V.: Hans Jonas (1963), The Gnostic Reli- Dios y otros ensayos. Barcelona: Editorial Herder;
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Philosophical Essays. From Ancient Creed to Tech- tore; (2000), Organismo e libertà. Verso una biologia
nological Man. Chicago: The University of Chicago filosofica. Torino: Giulio Einaudi Editore.
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 59
mundo humano que delimitava o âmbito das sabilidade; e as gerações futuras, dado que o
injunções morais, a técnica moderna é porta- carácter cumulativo da auto-propagação tec-
dora de uma capacidade de manipulação efi- nológica, ao alterar a situação inicial, modi-
caz dos fenómenos naturais que pôs termo fica as condições do agir e leva assim a um
à essencial imutabilidade da natureza, como afastamento crescente entre a capacidade de
ordem cósmica, fazendo com que ela deix- predizer e o poder de agir, o que obriga a que
asse de ser o horizonte moral da acção hu- nos preocupemos com as consequências das
mana e se tornasse igualmente em objecto de nossas acções presentes para as gerações que
responsabilidade sobre o qual há que velar hão-de vir e sofrer-lhes as respectivas con-
eticamente na medida directa do poder ma- sequências: “Em face das potencialidades
nipulador que sobre ela a técnica exerce. As- quase-escatológicas dos nossos procedimen-
sim, de acordo com Jonas, são característi- tos técnicos, a ignorância das implicações
cas das éticas anteriores: tudo o que dizia re- últimas torna-se ela própria num motivo
speito ao domínio não humano da tekne era de contenção responsável” (Jonas, 1984:22).
eticamente neutro, salvo a medicina, tanto Neste sentido, e ao contrário da ética kan-
em relação ao objecto como ao sujeito de tiana, que se baseava numa teoria do conhec-
tal acção, e a tekne era entendida como imento, doravante não é já o conhecimento,
simples tributo à necessidade; a relevância a racionalidade, que se transforma num de-
ética advinha da relação do homem com o ver primeiro e coextensivo à escala causal do
homem, a ética era antropocêntrica; a enti- nosso agir, mas antes o nosso poder de agir
dade do homem era considerada constante que nos obriga a formular racionalmente um
em essência e não como um objecto ma- imperativo que precisamente nos responsabi-
nipulável pela tekne; os valores a que de- lize por esse poder de que nos deparamos
via ater-se a acção permanecem próximos detentores: “Por outras palavras, a técnica,
do próprio acto, quer na praxis, quer no para além das suas realizações objectivas, as-
seu alcance imediato; eram éticas do pre- sume importância ética em virtude do lugar
sente imediato no espaço e no tempo, que central que hoje ocupa nos fins humanos”
deixavam as consequências longínquas da (Jonas, 1984:9). Recobrindo hoje a totali-
acção ao acaso, ao destino e à providência; dade do mundo natural, por obra e graça da
consequentemente, o tipo de conhecimento técnica, a Cidade Universal tornou-se numa
em que se baseavam estas éticas era da or- segunda natureza; já não há diferença entre
dem do senso comum a todos os homens a cidade e a natureza, mas uma megalópole
de boa vontade, permanente e universal, que que usurpou o mundo não humano da na-
não necessitava de grande capacidade pred- tureza. A presença do homem no mundo
itiva com que contrariar o não maior poder surge então como o grande imperativo de
do homem. Em contrapartida, com a téc- uma ética para a era da técnica: de dado
nica moderna, surgem novas dimensões de inquestionável, do qual partia toda a ideia
responsabilidade: a vulnerabilidade da na- de obrigação moral, a presença do homem
tureza à intervenção tecnológica, registada no mundo tornou-se ela própria objecto de
pela ecologia, o que faz com que a preser- obrigação moral, a obrigação de assegurar
vação da biosfera se torne objecto de respon- a própria premissa de toda a obrigação, ou
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60 António Fernando Cascais
seja, a base que sustenta um universo moral a heurística do medo. Diz ele que o mau
no mundo físico. A necessidade de uma prognóstico prevalece sobre o bom prognós-
ética equivale de facto à necessidade de uma tico: primeiro, porque a interferência tec-
ciência dos efeitos a longo prazo do agir nológica sobre o sistema da vida precipita a
tecnológico, que ocupa o seu lugar entre o inserção de novos elementos de insegurança
conhecimento ideal dos princípios éticos e o e acaso na evolução natural, que são estran-
conhecimento prático da aplicação política, hos à lentidão que a caracteriza, ou seja, a
ou seja, uma ciência da projecção hipotética, velocidade dos acontecimentos subtrai-se à
uma “futurologia comparativa” daquilo que auto-correcção; segundo, porque os desen-
o medo ou a esperança devem promover ou volvimentos tecnológicos têm uma dinâmica
prevenir; trata-se de uma necessidade heurís- cumulativa que retira das mãos dos seus ini-
tica de uma doutrina dos princípios éticos ca- ciadores a lei da acção; terceiro, porque há
paz de visualizar as contingências ainda dis- que preservar a herança da evolução con-
tantes. Só pode assegurar-se uma imagem tra o imperativo técnico que reivindica a
do homem por extrapolação das ameaças a exclusividade da competência técnica para
ela: “. . . e exactamente da mesma maneira cumprir a completa liberdade nihilista do
como não poderíamos conhecer o valor da jogo criativo, que nos autoriza o facto de
verdade sem estarmos cientes das mentiras, nada ser sancionado pela natureza, e que
nem da liberdade sem a falta dela, e por aí nada guia a não ser o próprio capricho do
fora – então também, na nossa procura de impulso de jogar. A natureza primeiro, e
uma ética da responsabilidade para as con- depois o homem, foram neutralizados em
tingências longínquas, é uma previsão da termos de valor e estremecemos agora no
distorção do homem que nos ajuda a detec- desabrigo de um nihilismo no qual emparel-
tar aquilo que na concepção normativa do ham a omnipotência quase absoluta e o vazio
homem há que preservar contra ela. E pre- quase absoluto; a questão aqui em causa é a
cisamos da ameaça à imagem do homem de saber se, sem ressuscitar a categoria do
– e de tipos de ameaça bem específicos – sagrado, aquela que mais meticulosamente
para nos certificarmos da sua verdadeira im- foi destruída pelas luzes da ciência, é pos-
agem pelo simples acto de recuar com hor- sível conceber uma ética capaz de ombrear
ror dessa ameaças. Enquanto o perigo for com os poderes extremos de que hoje dispo-
desconhecido, não saberemos o que preser- mos: “Considerando que as consequências
var e porquê. O conhecimento disso vem, do uso desses poderes são suficientemente
contra toda a lógica e método, da percepção iminentes para ainda nos chegarem a atin-
do que há que evitar. (. . . ) Sabemos que gir, o medo poderia aqui fazer as vezes do
coisa corre perigo apenas quando sabemos sagrado – tantas vezes o melhor substituto
que ela corre perigo” (Jonas, 1984:26-27). da virtude ou da sabedoria genuínas. (. . . )
O escândalo precede assim o conhecimento, Só o temor sagrado com o seu desassom-
visto que saber o que recear não é, por si só, brado veto é independente dos cômputos do
definir um mal, nem aquilo que é mais dese- medo mundano e do alívio decorrente da in-
jável corresponde necessariamente ao sumo certeza a respeito de consequências demasi-
bem. Tanto constitui aquilo que Jonas chama ado distantes. (. . . ) E enquanto que da fé
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 61
se pode dizer que ela existe ou não existe, futuras gerações serem o que devem ser e
da ética forçoso é que exista. (§) É forçoso esse dever ser está tanto acima de nós como
que exista porque os homens agem e a ética delas, é o dever de serem verdadeiramente
serve para ordenar as acções e regulamentar humanas: “Este tipo de ‘responsabilidade’ e
o poder de agir” (Jonas, 1994:59-60). As- de ‘se sentir responsável’ é o que temos em
sim sendo, deve assertar-se alguma espécie mente, e não o tipo vazio e formal segundo
de autoridade para se determinar um modelo o qual todo o agente é responsável pelos
de decisão, e essa autoridade só pode basear- seus actos, quando falamos de ‘responsabili-
se numa essencial suficiência da nossa na- dade pelo futuro’ como a marca de uma ética
tureza, tal como evolui no mundo; trata-se que hoje é necessária” (Jonas, 1984:93).
da suficiência em face da verdade, da liber- É precisamente este o primeiro imperativo:
dade e da valoração; a autoridade dela decor- que haja uma humanidade: “Um imperativo
rente nunca pode pois incluir a desfiguração, que desse resposta ao novo tipo de acção
a ameaça ou a remodelação de si própria; o humana e dirigido ao novo tipo de inter-
sujeito da evolução assume assim um valor venção que a comanda poderia exprimir-
sacrossanto. Significa isto: que a existên- se como segue: ‘Age de tal maneira que
cia do “homem” nunca deve ser posta em os efeitos da tua acção sejam compatíveis
causa enquanto único ser pelo qual o próprio com a preservação da vida humana genuína’;
valor vem ao mundo, que a humanidade não ou, expresso negativamente: ‘Age de tal
tem o direito de se suicidar, tem um dever maneira que os efeitos da tua acção não
incondicional de existir, no sentido de não sejam destruidores da futura possibilidade
ter o direito de consentir, agora, nem de pre- dessa vida’; ou simplesmente: ‘Não com-
sumir o consentimento das gerações futuras prometas as condições de uma continuação
que ainda não existem, tanto quanto à sua indefinida da humanidade sobre a terra’; ou
não existência como à sua desumanização: de modo mais geral: ‘Nas tuas opções pre-
“Assim, num tempo de pressões unilaterais sentes, inclui a futura integridade do Homem
e galopantes riscos, há o lado da moderação entre os objectos da tua vontade”’ (Jonas,
e da circunspecção, do ‘toma cuidado!’ e 1984:11; Jonas, 1994:46). Um dever não
do ‘preserva!”’ (Jonas, 1984:204).. Trata-se para com a humanidade a haver, mas para
pois, aqui, de um dever supremo de assegu- que ela própria exista; é uma responsabili-
rar o futuro que não é fornecido pela ideia dade ontológica pela ideia de Homem e não
tradicional de reciprocidade de direitos e de- pelos indivíduos enquanto tais; não se trata
veres, pois ela excluía aquilo que (ainda) não de uma prova ontológica que garanta a ex-
existe da possibilidade de reivindicar dire- istência do seu sujeito a partir da respectiva
itos. O dever para com a posteridade prova- essência, mas sim da ideia de que tal pre-
se pela razão de que somos hoje responsáveis sença deve existir: “Só a ideia de Homem,
pelas condições de existência das gerações ao dizer-nos porquê devem existir homens,
futuras, pois elas têm origem no nosso acto nos diz também como devem ser (Jonas,
procriador; mas isto é insuficiente para uma 1984:43). A ideia ontológica gera um im-
teoria ética, ainda que baste para uma prag- perativo não hipotético, mas sim categórico:
mática; o crime maior será impossibilitar às “. . . o primeiro princípio de uma ‘ética da fu-
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62 António Fernando Cascais
turidade’ não reside ele próprio no interior ito. Diz Jonas que: “O cuidado do futuro
da ética enquanto doutrina da acção (. . . ), da humanidade é o dever supremo da acção
mas no interior da metafísica enquanto dout- colectiva humana na era da civilização téc-
rina do ser, de que a ideia de Homem faz nica que se tornou ‘todo-poderosa’, se não
parte” (Jonas, 1984:44). Segundo Jonas, no seu potencial de produção, pelo menos
tem de se permitir a possibilidade de uma no seu potencial de destruição. Este cuidado
metafísica racional, a despeito do veredicto tem obviamente de incluir o cuidado do fu-
de Kant em contrário (Jonas, 1984:45), mas turo de toda a natureza neste planeta como
há que recusar, porém, o antropocentrismo uma condição necessária do próprio futuro
da ética helénico-judaico-cristã, pois “. . . as do homem” (Jonas, 1984:136). E conclui:
possibilidades apocalípticas inerentes à téc- “. . . se algumas das implicações práticas dos
nica moderna ensinaram-nos que o exclu- meus raciocínios dão a impressão de ir no
sivismo antropocêntrico poderia ser um pre- sentido de uma mais lenta marcha do pro-
conceito que, no mínimo, carece de ser re- gresso, isso não deveria ser motivo de con-
examinado” (Jonas, 1984:46). E acrescenta sternação por aí além. Não esqueçamos que
Jonas: “A dignidade do homem per se só o progresso é um objectivo facultativo, não
pode ser dita potencial, sob pena de se tornar um compromisso incondicional, e que o seu
no discurso de imperdoável vaidade. Con- ritmo, por compulsivo que possa vir a tornar-
tra tudo isto, a existência da humanidade se, nada tem de sagrado. (. . . ) Lembre-
vem primeiro, quer seja ela merecida pelos mos enfim que o progresso não pode ter por
seus feitos passados e a sua provável contin- meta abolir a condição da mortalidade. De
uação, quer não. É a sempre transcendente um ou de outro mal, cada um de nós mor-
possibilidade, obrigatória em si mesma, que rerá. A nossa condição mortal recai sobre
tem de ser mantida aberta pela existência nós com a sua crueldade mas também com
continuada. Preservar esta possibilidade é a sua sabedoria – porque sem ela não have-
uma responsabilidade cósmica; daí o dever ria a promessa eternamente renovada da fres-
de a humanidade existir. Dito epigramati- cura, da imediatez e da sofreguidão da juven-
camente: a possibilidade de haver respons- tude; nem existiria para nenhum de nós in-
abilidade no mundo, que se encontra ligada centivo para contarmos os nossos dias e fazer
à existência do homem, é, de todos os objec- com que valham a pena. Com todo o denodo
tos de responsabilidade, o primeiro” (Jonas, que pomos em arrebatar o que pudermos à
1984:99). A existência da humanidade sig- nossa mortalidade, deveríamos suportar-lhe
nifica tão-só que vivam homens na terra, o fardo com paciência e dignidade” (Jonas,
como primeiro mandamento, e que vivam 1994:165-166).
bem, como segundo; o facto bruto da sua ex- Talvez em virtude da sua considerável
istência, sobre o qual nada lhes cabia dizer, repercussão, a obra de Jonas tem concitado
tornou-se para eles um primeiro imperativo não menos abundantes reparos, que têm o
ontológico, normalmente não expresso, mas mérito de lhe revelar as muitas limitações
implícito em todos os posteriores impera- e equívocos, assim como algumas quali-
tivos e que as excepcionais circunstâncias dades não negligenciáveis. Observa Hottois
dos dias que correm obrigam a tornar explíc- que quanto de renovação ética se pode de-
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 63
scortinar na obra de Jonas tem a ver com damentalismo religioso. Assinala Hottois,
o facto de ela dar expressão a uma maior comparando Engelhardt com Jonas, que, as-
responsabilização consciente dos indivíduos sim como este, Engelhardt começou por
e das colectividades no que respeita ao al- questionar radicalmente a ética enquanto tal,
cance temporal e espacial das respectivas como modalidade do ser-no-mundo próprio
acções, em contraponto à ressurgência de da humanidade, que já não se justifica por
convicções comunitárias absolutistas inspi- si só e que tem de começar por preocupar-
radas pela angústia, bem mais que pela pre- se consigo própria, por interrogar-se sobre a
ocupação com o exercício responsável da sua própria significação, o seu valor, o seu
liberdade (Hottois, 1993:11). Para todos os alcance e limites. A resposta que Engelhardt
efeitos, o tempo tem vindo a revelar que a deu inicialmente a esse questionamento di-
obra de Jonas continua a ser fonte de ines- vergia porém consideravelmente de Jonas e
gotável inspiração, pelo seu fôlego filosó- os dois foram longamente tomados como os
fico e a sua inquebrantável coerência. O pólos do debate acerca da fundamentação de
mesmo não se pode dizer de Hugo Tris- uma bioética. Assim, enquanto que Jonas
tram Engelhardt, o outro autor que tem sido recupera uma fundação metafísica, ou pe-
tomado como referência cardial do pensa- los menos os avatares dela, de uma ética da
mento bioético desde que começou a fazer- responsabilidade, Engelhardt principiou por
se notado com o seu livro Os fundamen- remeter toda a ética para a resolução de con-
tos da bioética, cuja primeira edição data de flitos numa sociedade secular e pluralista em
1985 (Engelhardt, 1985). Com efeito, a obra que o privilégio da autonomia individual sus-
de Engelhardt acabou por fornecer um bom pende toda a possibilidade de fundação onto-
exemplo das limitações e incoerências de teológica (Hottois, 1993:13-14). Entretanto,
boa parte da reflexão que se apresenta como a posição de Engelhardt haveria de se mod-
bioética, cujos tortuosos meandros sugerem ificar até se tornar completamente irrecon-
fortemente a fragilidade de um pensamento hecível e pôr em causa o seu próprio lugar no
com extremas dificuldades em subsistir pe- campo da reflexão bioética. Após a primeira
los seus próprios meios e sem se arrimar edição de Os fundamentos da bioética, bem
aos mais sólidos sustentáculos da filosofia, 1985, surge uma segunda, em 1996, que revê
ou das ciências sociais, ou do direito ou aquela e lhe altera em parte os conteúdos, so-
da teologia moral. Deste modo, a reflexão bretudo radicalizando-os, até que, em texto
que para si própria reivindica o nome e a mais recente, Engelhardt passa uma autên-
coisa de bioética dá frequentes vezes mostras tica esponja sobre todo o seu anterior per-
de ceder a cada um daqueles campos, mas curso, dedicando-se à apologia dogmática do
desfigurando-o sem que disso resulte mais fundamentalismo religioso e moral.
que uma caricatura inútil quer para os prob- Engelhardt tinha começado por sustentar
lemas de que ela deveria ocupar-se, quer para que as questões bioéticas emergem sobre
a desejável transformação de qualquer um um fundo de crise moral estreitamente lig-
deles. É assim que, a pretexto de bioética, ado a uma série de perdas tanto de con-
se pratica diletantismo filosófico, sociolo- vicções éticas como ontológicas no mundo
gismo moral, formalismo legiferante e fun- ocidental, o que precipita a necessidade de
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existe uma multiplicidade de éticas alterna- tura não se poder talvez nunca realmente ul-
tivas prontas a levantar um burburinho de trapassar, a crise do fundamento ontológico
bioéticas conflituais. Esta circunstância con- que milenarmente sustentou as éticas ociden-
stitui o desafio moral fundador de todas as tais: “A dificuldade é particularmente per-
políticas de saúde (. . . ) De preferência a turbante porque a cultura ocidental presumiu
partilhar uma moral, confrontamos visões que existe uma estrutura da lei natural em cu-
morais ostensivamente diferentes e narrati- jos termos se pode ajuizar do bem e do mal
vas de obrigações, direitos e valores morais. das acções através das culturas e dos tempos.
Cada narrativa assevera a sua própria prior- Tais presunções guiaram o direito ocidental
idade. (. . . ) Quando se lhes pede que jus- desde a época do Império Romano aos tem-
tifiquem esses diversos pontos de vista, al- pos modernos e aos julgamentos de Nurem-
guns apelam à consideração das consequên- berga” (Engelhardt, 1985:38). Na edição de
cias; outros fazem apelo a princípios de bem 1996 pode ler-se que: “O projecto de as-
e de mal que são independentes das conse- segurar tanta universalidade quanto possível
quências. É sobre esta cacafónica plurali- às alegações da bioética enraíza no projecto
dade de bioéticas que se recortam as políti- iluminista de estabelecer uma ética universal
cas de saúde contemporâneas. A diversidade plena de conteúdo e uma comunidade moral
de visões e justificações morais desafia a co- de todas as pessoas fora de quaisquer pressu-
erência de sustentar que existe uma bioética postos religiosos ou culturais específicos. O
secular. Este livro reconhece a impossibili- projecto iluminista, pela sua parte, tem raízes
dade de descobrir a ética secular, canónica, na teoria da lei natural e nos pressupostos
concreta. Os fundamentos da bioética tenta filosóficos ocidentais respeitantes às capaci-
antes assegurar uma ética secular destituída dades da razão. Este livro centra-se no fra-
de conteúdo” (Engelhardt, 1996:VII). Mas, casso deste projecto em descobrir uma ética
ao mesmo tempo que os traços maiores da canónica e plena de conteúdo que a bioética
proposta engelhardtiana se conservam, o au- possa aplicar” (Engelhardt, 1996:VIII). Foi
tor entende necessário começar por esclare- justamente a tentativa de dar réplica às impli-
cer a filiação dela no pensamento ilumin- cações últimas desse fracasso que deu lugar
ista cuja crise, ao mesmo tempo, ele não se aos muitos mal-entendidos de que amarga-
cansa de sublinhar, tanto numa como noutra mente se queixa Engelhardt e que estão na
edição. Em 1985, explicava que a dificul- origem dos esclarecimentos introduzidos na
dade de fundar uma perspectiva - ou um sen- nova redacção do seu texto. Ele refere
tido ou intuição moral (moral sense) - in- nomeadamente a acusação de falta de simpa-
fundido com autoridade bastante para, ao tia pelas matrizes de obrigações e de valores
mesmo tempo, possuir as condições para dis- que cimentam as comunidades morais conc-
tinguir entre perfídia e decência, entre ví- retas.
tima e perpetrador, e para fornecer os pro- Ao abordar os problemas do juízo ético
cedimentos necessários à negociação pací- em bioética, Engelhardt propõe dois grandes
fica de conflitos entre perspectivas à partida princípios; em 1985, chamava-lhes ele o
inconciliáveis, se devia essencialmente ao princípio de autonomia e o princípio de
facto de não se ter ultrapassado, e porven- beneficência. Considerando, de um modo
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que ambiciona devolver o poder tecnológico curso pode de facto abarcar e de tal modo
a fins humanistas. A tecnociência moderna que os problemas da limitação dos perigos
trouxe consigo a possibilidade real da ma- tecnocientíficos acabam por atolar-se na ne-
nipulação tecnológica dos seres humanos, gociação mais privada que pública, de inter-
muito para além da tradicional manipulação esses políticos e de arranjo de esferas de in-
simbólica que deixava intacto o que tende- fluência. E o questionamento por excelên-
mos a considerar ser a própria “natureza hu- cia da tecnociência seria porventura o da ne-
mana”, facto que destruiu a possibilidade de cessidade, ou da legitimidade, ou da deseja-
se manter, nos nossos dias, uma definição bilidade, de se limitar a livre disposição e
exclusivamente teológica do que é/deve ser o livre desenvolvimento das possibilidades
o humano, deixando em aberto a pergunta tecnocientíficas “em nome de”; ou por out-
antropológica, a questão que Kant reputava ras palavras, a questão de saber se a hu-
como a fundamental do pensamento da Mod- manidade pode, em última instância, dar re-
ernidade: O que é o homem? - e para sposta à sua condição de outro modo que não
a qual o antropologismo humanista reivin- o simbólico, isto é, de um modo conservador
dicava poder fornecer uma resposta defini- da condição humana. Se a filosofia, que
tiva, com base no pressuposto que a tecnolo- Jonas tão classicamente faz, constitui a re-
gia moderna não altera a condição básica da sposta simbólica do homem à sua condição e
acção humana, apresentando-se assim como ao abismo que a afunda, é inteiramente legí-
capaz de proporcionar respostas éticas teo- tima a questão de saber se o homem pode
logicamente fundadas para problemas cuja responder em última análise à sua condição
natureza alterada recusa na verdade recon- de outra maneira que não a simbólica, isto
hecer. Um certo entendimento da bioética é, conservadora da humana condição. Ou,
assenta, de facto, na recusa declarada deste colocada a questão de modo mais radical
reconhecimento, quando se entende, equiv- ainda: é legítimo limitar a priori e absolu-
ocamente, a bioética como uma mera reit- tamente a livre disposição e o livre desen-
eração ou reactivação de antigas respostas volvimento do possível tecnocientífico “em
ético-teológicas, ou seja, como uma sim- nome de”? Trata-se da questão da limitação
ples moral confessional ou comunitária apli- da potência não simbólica em nome do/pelo
cada, resumindo-se os problemas da bioética simbólico, em nome de um Nome, cuja le-
a simples questões de aplicação de fórmulas gitimidade formal (de uma lei em nome de)
de há muito consagradas. Como dirá Hot- reenvia à definição teológico-filosófica do
tois, este tipo de atitude teórico-prática tem homem como ser vivo simbólico (Hottois,
normalmente por consequência a contempo- 1993:12-13).
rização com o desenvolvimento tecnocientí- Nesta conformidade, Hottois propõe uma
fico, que dá a ilusão de controlar, quando na alternativa, por um lado, à reivindicação
realidade agrava a mútua surdez das lingua- ética antropologista/humanista de preservar
gens da ciência e das humanidades, sublin- o par homem/natureza a todo o custo, tal
hando ao invés a reivindicação que por vezes como é sustentada pelas correntes da ecolo-
faz a comunidade científica da incomensu- gia radical, por filósofos como Hans Jonas
rabilidade da ciência que nenhum outro dis- com a sua noção de uma heurística do medo,
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mas também por concepções religiosas fun- seu eixo é a solidariedade antropocósmica,
damentalistas, e, por outro lado, às tendên- próxima de uma filosofia da natureza atenta
cias tecnocráticas “mainstream” que sus- às dimensões evolutivas. A bioética rep-
tentam uma visão exclusivamente positiva resenta a totalidade das questões de relevo
de progresso indefinido por meio da livre ético, isto é, que tratam de valores, que não
prossecução de possíveis à luz do imperativo podem ser resolvidas a não ser através de
técnico, segundo o qual não só tudo é pos- escolha e que são colocadas pelo crescente
sível, mas tudo o que é possível é legítimo e poder da intervenção tecnocientífica no ser
desejável. Hottois chama à sua alternativa vivo e, em especial, mas não exclusivamente,
a ambas as correntes anteriores a via mé- o homem. A bioética é uma metodolo-
dia (Hottois, 1992), formulando nesse sen- gia, de vocação multidisciplinar ou inter-
tido alguns princípios maiores de selecção e disciplinar, uma abordagem necessariamente
limitação dos possíveis tecnocientíficos, tais pluralista imposta pela complexidade e di-
como os critérios de liberdade, segundo o versidade das sociedades que levantam es-
qual o consentimento informado é a pedra- sas mesmas questões, embora reconheça que
de-toque da livre prossecução da investi- elas dizem respeito a toda a humanidade e
gação, de beneficência, de acordo com o qual não se lhes pode dar resposta susceptível de
há que não tentar nada que não seja para o ser legitimamente monopolizada por qual-
bem-estar dos indivíduos e da humanidade quer grupo ou indivíduo.
em geral, e de responsabilidade, de acordo
com o qual qualquer reivindicação ética se
funda naquilo que Hottois chama a soli- 4 Referências bibliográficas
dariedade antropocósmica, isto é, o homem ALLERT, Gebhard, et al.: (1996), “The
é produto da evolução natural, as fases não- Goals of Medicine: Setting New Prior-
humana e humana do processo evolutivo não ities”. Hastings Center Report, 26 (6),
são inimigas ou incomensuráveis, mas antes Special Supplement
inextricáveis; neste sentido, só uma ética
evolutiva, que de modo nenhum se confunde ARCHER, Luís (1996), “Bioética geral -
com a corrente da ética evolucionista, pode Fundamentos e princípios”, in Luís
dar conta da abertura e da imprevisibilidade Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald
que caracteriza a condição humana como um et al., Bioética. Lisboa: Editorial
conjunto de possíveis tanto naturais como Verbo: 17-33
culturais; pragmatismo, prudência e respons-
abilidade deveriam portanto ser as linhas ori- BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS,
entadoras da abordagem do sentido da com- James. F. (1994), Principles of
plexidade e da ambivalência de todo o em- Biomedical Ethics. New York: Oxford
preendimento humano. De acordo com Hot- University Press, 4th ed.
tois, a bioética não é nem uma nova disci-
plina tecnocientífica, nem uma ética univer- BOMPIANI, Adriano (1996), “The outlines
salista, mas um campo que cobre a ética e of italian Bioethics”, in Corrado Vi-
a deontologia médicas e a ética ambiental, o afora, ed. et al, Bioethics: A History.
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