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Genealogia, âmbito e objecto da bioética∗

António Fernando Cascais

Índice resto, a própria evolução galopante deste


campo, nas suas três décadas de existência,
1 Introdução 1 demonstra bem a instabilidade das definições
2 Condições de emergência da bioética 2 e das ideias feitas, tanto no seu próprio inte-
3 Âmbito e objecto da bioética 46 rior como por quem o perscruta de fora. A
4 Referências bibliográficas 72 reedição do imenso repositório que é a Enci-
clopédia de Bioética, em 1995, mas cujo pro-
1 Introdução cesso remonta aos anos de 1985-87, mostra
como e as entradas “Bioética”, a cargo de
Na sua introdução à monumental Enci- K. Danner Clouser (Clouser, 1982:115-127)
clopédia de Bioética, cuja primeira edição e de Daniel Callahan (Callahan, 1995:247-
data de 1978, Warren T. Reich definia a 256), respectivamente na primeira e na se-
bioética como “o estudo sistemático da con- gunda edições daquela, são bem ilustrati-
duta humana na área das ciências da vida vas de tal evolução: “Mesmo em 1985, pelo
e dos cuidados de saúde, na medida em menos 50 por cento de todos os artigos da
que essa conduta é examinada à luz dos primeira edição necessitavam de significa-
valores e princípios morais” (Reich et al., tiva revisão. À época em que realmente
1982:XIX). A generalidade desta definição, demos início ao projecto, em Janeiro de
embora possa ser suficientemente esclarece- 1990, era claro que seria difícil haver um
dora quanto ao objecto da bioética, é também único tópico da edição original que tivesse
suficientemente leve para poder abrigar as ficado incólume às profundas mudanças não
diferentes perspectivas de outros tantos au- apenas na ciência, na técnica e na ética,
tores representativos desta área do conheci- mas até na maneira como são percebidos os
mento, de uma maneira que de facto dissim- problemas morais” (Reich et al., 1995:XIV).
ula divergências acentuadas o bastante para Deste modo, passados que eram quase vinte
que o objecto e o campo da bioética percam anos sobre a primeira edição, Reich passa a
muito da estabilidade que aparentemente definir bioética como “o estudo sistemático
lhes era conferida pela definição inicial. De das dimensões morais - incluindo a visão

Inicialmente publicado em: João Ribeiro da moral, as decisões, a conduta e as políti-
Silva, António Barbosa e Fernando Martins Vale, co- cas - das ciências da vida e da prestação
ords. et al., Contributos para a Bioética em Portugal. de cuidados de saúde, que emprega uma
Lisboa: Centro de Bioética da Faculdade de Medicina variedade de metodologias éticas num meio
da Universidade de Lisboa/Edições Cosmos: 47-136
2 António Fernando Cascais

interdisciplinar” (Reich et al., 1995:XXI), 2 Condições de emergência da


constituído com contributos de muitas dis- bioética
ciplinas académicas estabelecidas, entre as
quais a filosofia, a teologia, a sociologia, a Uma breve análise do período de gestação ou
antropologia, o direito, a literatura, a medic- “pré-história” da bioética pode esclarecer-
ina e as ciências da vida, mas que lhes abre nos acerca da problematicidade que desde
novas vias de investigação, ao mesmo tempo as origens tem indelevelmente acompanhado
que lhes desafia concepções tidas por solida- a evolução da bioética até aos dias de hoje.
mente adquiridas. Reich conclui que, quer se No entanto, essa problematicidade só poderá
considere a bioética como um campo, quer ser claramente entendida do ponto de vista
como uma disciplina constituída, o certo é de uma genealogia, que não se reduz a uma
que ela não se encontra ainda plenamente mera narrativa factual, das condições que
constituída. A nosso ver, o estado “nascente” possibilitaram a emergência da bioética e a
de que Reich também fala a propósito da sua autonomização como domínio específico
bioética (Reich et al., 1995:XX), imputando- do conhecimento e da acção. Principiare-
o à diversidade de metodologias que interna- mos, por isso, em primeiro lugar, por uma
mente a retalham, deverá ser tido por perma- revisão sumária dos autores que reflectiram
nente e, que não sejamos nisto mal interpre- sobre a questão, para, em seguida, analisar-
tados, por desejavelmente permanente: não mos as condições de emergência da bioética
porque pretendamos fazer a apologia do im- na perspectiva genealógica. Warren T. Reich
passe ou da paralisia eventualmente resul- apontava três grandes razões para a emergên-
tante da irresolução de dilemas prementes, cia da bioética: em primeiro lugar, o facto de
mas porque, porventura mais do que gerir que “as questões da bioética conquistaram
ou “solucionar” a crise das ciências e da re- o pensamento contemporâneo porque rep-
spectiva regulação, será mister aprender a resentam conflitos de primeira grandeza no
viver com ela, nela. Significa isto, no que campo da tecnologia e dos valores humanos
à bioética concreta e “programaticamente” básicos, precisamente aqueles que têm que
diz respeito, laborar contra o fechamento da ver com a vida, a morte e a saúde” (Re-
vocação de problematização e de question- ich et al., 1982:XV), nomeadamente em vir-
amento que foram berço da bioética, contra tude de “a introdução de modernas tecnolo-
toda a estabilização metodológica e concep- gias biomédicas, em especial desde os anos
tual em soluções doutrinárias cristalizadas, cinquenta, ter agravado algumas questões
ela sim paralizante e cinicamente irresoluta, antiquíssimas e ter levantado novos e sur-
e, em última análise, total, totalizante e total- preendentes problemas - o prolongamento da
itária. vida, a eutanásia, o diagnóstico pré-natal e
o aborto, a experimentação humana, a en-
genharia genética e as tecnologias reprodu-
tivas, a manipulação do comportamento e a
psicocirurgia, a definição de morte, o direito
à privacidade, a distribuição de recursos es-
cassos e os dilemas da preservação da saúde

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ambiental” (Reich et al., 1982:XV). Em se- são de direitos de auto-determinação publi-


gundo lugar, haveria “um interesse intenso e camente reconhecidos” (Engelhardt, 1985:4-
generalizado na bioética porque ela oferece 5). Também entre nós, Luís Archer começa
um estimulante desafio intelectual e moral” por apontar como raíz remota da bioética
(Reich et al., 1982:XV), numa época em o Juramento de Hipócrates e o princípio
que são os próprios utensílios durante muito de beneficência nele enunciado, para ime-
tempo usados para se lidar com os dilemas diatamente acrescentar, com contraditória
morais que agora constituem objecto de con- perspicácia, que a emergência recente da
trovérsia e em que os princípios e as pri- bioética se deve efectivamente ao facto de
oridades éticas se encontram sob escrutínio já se não poderem resolver os problemas
sistemático. Em terceiro lugar, “o rápido morais postos à biomedicina com o simples
crescimento do campo da bioética tem sido recurso “a uma deontologia profissional e
facilitado pela abertura ao trabalho multi- uma ética de inspiração hipocrática, apoiada
disciplinar que hoje caracteriza muitos es- apenas em algumas virtudes básicas como a
tudiosos e instituições académicas, especial- compaixão e o desinteresse, assim como no
mente em matérias que dizem respeito a as- princípio de que o médico deve agir sem-
pectos individuais e sociais do comporta- pre e só em benefício do paciente” (Archer,
mento humano” (Reich et al., 1982:XV). 1996:17-18). Três factos históricos seriam
Por seu lado, H. Tristram Engelhardt, que responsáveis pelo desencadear de “uma nova
viria a tornar-se numa das vozes mais es- bioética”: “alguns abusos na experimentação
cutadas da bioética, refere quatro factores com seres humanos”, a saber, as experiên-
históricos e que são os vulgarmente men- cias médicas nazis em hospitais de alienados
cionados nas obras que se referem aos an- e em campos de concentração e os conse-
tecedentes da bioética: “1) grandes e rápidas quentes Julgamento dos Médicos em Nurem-
mudanças tecnológicas que deram origem a berga e o Código homónimo, mas que não
pressões no sentido de se reexaminarem os impediram aquilo que Archer chama, eu-
pressupostos subjacentes de práticas estab- femisticamente, os “abusos” e “escândalos”
elecidas (por exemplo, o advento da trans- que desde então se têm verificado na experi-
plantação contribuiu para o interesse numa mentação humana, e que, de facto, vão muito
definição de morte centrada no cérebro); 2) para além de simples “abusos”; “o surgir das
os custos crescentes da prestação de cuida- novas tecnologias”, “mais inovadoras nos úl-
dos de saúde, que deram lugar a questões timos 25 anos do que o tinham sido nos an-
sobre a distribuição de recursos; 3) o con- teriores 25 séculos” e que “deram origem a
texto abertamente pluralista em que os cuida- situações inéditas de decisão moral”, de tal
dos de saúde são hoje prestados (por exem- modo que, “(à) medida que a ciência trans-
plo, os médicos e enfermeiros já não po- fere para as mãos do Homem poderes antes
dem dar por adquirido que compartilham reservados à fatalidade da natureza, no que
com os seus pacientes concepções comuns, respeita ao nascer, viver e morrer, pergunta-
ou entre si, ou que o modo como conduzem se até que ponto estamos autorizados a ex-
a sua prática se enquadra em pressupostos ercer esses poderes e em que medida aquilo
judeo-cristãos reconhecidos); e 4) a expan- que é tecnicamente possível será eticamente

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aceitável” (Archer, 1996:20); e enfim, “a gizante (Hottois, 1984; Hottois, 1992), dos
percepção da insuficiência dos referenci- problemas levantados pelos avanços das tec-
ais éticos tradicionais” (Archer, 1996:20). nociências biomédicas a uma questão de
Archer refere que a incapacidade para dar desumanização é essencialmente equívoca e
resposta a tais questões, é tanto do código pobre, sem com isto pretendermos negar a
hipocrático, com o paternalismo médico nele percepção comum e generalizada que está
consagrado, posto em causa pelo crescente por trás dela. Albert Jonsen, por sua vez,
reconhecimento do direito à autonomia do aponta cinco tópicos principais que merece-
paciente, como da ética filosófica, sobre- ram atenção preferencial nas primeiras dé-
tudo com a crise das correntes que substi- cadas da bioética, a experimentação humana,
tuíram uma racionalidade especulativa por a genética, os transplantes, a reprodução
outra meramente processual, mas também da e a morte e o morrer (Jonsen, 1998:125),
teologia moral, tradicionalmente baseada no e para quem “foi uma lenta acumulação
conceito de lei natural, e a consequente di- de preocupações respeitantes à ambiguidade
ficuldade de adaptação às novas ciências do do progresso científico que virou a velha
artificial, assim como da renúncia da ciên- ética médica no sentido dos novos camin-
cia à pretensão de fundamentar uma ética, hos da bioética” (Jonsen, 1998:3). Nesta
após ter abandonado os conceitos de final- conformidade, a bioética distinguir-se-ia da
idade ou intencionalidade da vida, o que ética médica tradicional, concentrada nas re-
a fêz desistir de buscar a verdade e, logo, lações médico-doente, por se haver com as
o bem. Archer, que assim pensa, sus- repercussões das tecnociências da vida sobre
tenta, não obstante, que a bioética tem uma a natureza e a sociedade em geral, como o
origem científica, porquanto “foi sobretudo propugnavam desde a década de 70 os amer-
dos homens de ciência que proveio o apelo icanos Van Rensselaer Potter e André Hel-
e o impulso para a nova bioética, talvez legers, ambos médicos e pioneiros da teoria e
por reacção vivencial ao rápido desenvolvi- da prática bioética, mas que envolvem numa
mento de um tecnologismo desumanizante” mesma preocupação assuntos tais como o
(Archer, 1996:21), podendo concluir-se, em crescimento demográfico e a regulação da
sua opinião, que “a bioética surgiu, há cerca natalidade, a preservação do meio ambiente
de um quarto de século, como um conjunto e a qualidade de vida das gerações futuras,
de preocupações éticas levantadas por cien- as relações entre países ricos e países po-
tistas” (Archer, 1996:31). Não é por acaso bres, que já não apenas o universo restrito
que a percebida “desumanização” da medic- dos dilemas que irrompem à cabeceira do pa-
ina contemporânea tenha presidido ao im- ciente.
pulso inicial da bioética: “Aquilo que hoje se Daniel Callahan, um dos nomes tutelares
conhece como ‘bioética’ teve pois início uma da bioética, assevera que: “A bioética repre-
década e meia após o fim da Segunda Guerra senta uma transformação radical do domínio
Mundial como um movimento, latamente mais antigo e tradicional da ética médica
entendido, para ‘humanizar’ a educação e a (...) A palavra ‘bioética’, de colheita re-
prática médica” (Pellegrino, 1999:75). No cente, veio a denotar não apenas um campo
entanto, a redução, humanista e antropolo- particular de estudo – a intersecção da ética

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e das ciências da vida – mas também uma cionais em três grandes aspectos, primeiro
disciplina académica; uma força política no no respeitante à natureza e ao domínio da
interior da medicina, da biologia e dos es- medicina, depois ao âmbito e ao sentido da
tudos do ambiente; e uma perspectiva cul- saúde humana e enfim ao entendimento so-
tural de algum relevo. Entendida de modo cial e cultural do significado de viver uma
estrito, a bioética é simplesmente mais um vida verdadeiramente humana, de tal modo
novo campo que emergiu em face de grandes que “(o) advento da bioética pode ser visto
mudanças científicas e técnicas. Entendida como a principal resposta social a essas
de modo mais alargado, porém, é um campo grandes mudanças” (Callahan, 1995:249). A
que se estendeu, e que em muitos lugares presciência de Callahan revela-se particu-
alterou, outros campos bem mais antigos. larmente quando afirma que “(q)uando um
Atingiu o direito e a política pública; os es- problema moral é objecto de viva controvér-
tudos literários, culturais e históricos; a im- sia, pode-se razoavelmente pensar que está
prensa popular; as disciplinas da filosofia, da em curso um processo cultural mais vasto,
religião, e da literatura; e os campos cien- não passando a preocupação com a moral-
tíficos da medicina, da biologia, da ecolo- idade de um sintoma deste último” (Calla-
gia e do ambiente, da demografia e das ciên- han, 1986:45). Deste modo, o ressurgir do
cias sociais” (Callahan, 1995:248). Callahan interesse pela ética biomédica não seria “as-
aponta como condição de primeiro plano da sunto de filósofos ou teólogos moralistas,
sociogénese da bioética a confluência, na dé- imperialistas ou que presumissem a sua com-
cada de sessenta, do extraordinário desen- petência, nem de um corpo médico inqui-
volvimento tecnológico que se avolumava eto e atingido por um complexo de culpa”
desde a Segunda Guerra Mundial e das pro- (Callahan, 1986:44). Pelo contrário, ele
postas de vastas e profundas reformas sociais resultaria da convergência de razões exter-
e políticas e mudanças culturais (Callahan, nas e internas à medicina. Entre as razões
1999:54): “Essa década juntou os avanços externas, haveria que nomear: o interesse
médicos que pareciam insinuar a conquista crescente que o público atribui aos factos e
final da natureza e as mudanças culturais gestos de todos os profissionais de saúde, in-
que confeririam aos indivíduos recentemente cluindo médicos e cientistas dedicados à in-
emancipados o poder de assumirem o cont- vestigação biomédica; a atenção acrescida
role total dos seus próprio destinos. Nesse dos meios de comunicação, sobretudo em
progresso havia ao mesmo tempo grande es- relação a situações de conflito ou contro-
perança e ambição, e talvez uma grande hy- vérsia; a amplitude e a vastidão de um sis-
bris, a crença cheia de soberba que os seres tema médico em larga medida público e fi-
humanos podiam transcender radicalmente a nanciado pelo Estado e que por isso concen-
sua condição natural” (Callahan, 1995:249). tra inevitavelmente a atenção do público, dos
Assim, segundo Callahan, os efeitos dos pro- tribunais e da lei; o sentimento geral de in-
gressos das ciências biomédicas e das re- quietude e perplexidade em face dos avanços
spectivas aplicações tecnológicas ter-se-iam tecnológicos; o descontentamento suscitado
tornado patentes nos anos sessenta, com a pela desumanização e a fala de qualidade
transformação de muitas concepções tradi- da prestação de cuidados de saúde; e en-

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fim a pressão a que se encontra sujeito o a discórdia num domínio que durante muito
sistema médico que tem de se encarregar tempo consideraram seu território reservado,
de todos os males humanos que dantes não tanto mais quanto a tradição positivista e em-
teriam sido encarados como relevantes para pirista dominante na medicina, que sempre
a medicina. Entre as razões internas, dev- exibiu um certo desprezo em relação às dis-
eriam citar-se os avanços das tecnociências ciplinas tidas por não científicas, mais não
biomédicas e os novos dilemas éticos a que fez que reforçar as dúvidas sobre o valor
dão origem. No entanto, sublinha Callahan, do discurso moral. Pior ainda: “O facto de
há que não menosprezar o contexto cultural se confundir continuamente a moral com a
mais vasto que intensificou e alterou o im- moralização, o endoutrinamento, a penaliza-
pacto das pressões internas à ética biomédica ção ou simplesmente o ‘bom gosto’ não fa-
(Callahan, 1986: 44-45). Nesta conformi- cilitou as coisas” (Callahan, 1986:46). A
dade, Callahan acrescenta que: “Após um principal razão da resistência de médicos e
longo período de progressos médicos rápidos cientistas ficaria porém a dever-se, acredita
marcados pelo advento dos antibióticos e o Callahan, ao facto de que todo o reconheci-
tratamento das doenças infecciosas, a medic- mento do valor moral tornar inevitável uma
ina passa agora por uma evolução ligeira- redefinição das hipóteses e dos objectivos
mente diferente, caracterizada por progres- fundamentais, o que faz acrescer aos proble-
sos terapêuticos menos rápidos, um orça- mas de ordem moral a incerteza quanto aos
mento mais elevado, um sistema médico objectivos profissionais que há que perseguir
mais complexo e uma interacção mais forte (Callahan, 1986:46). Mas, além da in-
entre a medicina e as demais esferas da so- certeza crescente no seio da medicina, o in-
ciedade” (Callahan, 1986:45). E prossegue: teresse pela ética biomédica também se ex-
“Os problemas de ética da ‘biomedicina’ plica por um fenómeno até certo ponto par-
de hoje favoreceram o questionamento dos alelo do lado da filosofia e dos filósofos
objectivos fundamentais da medicina e são quanto aos fins últimos da sua disciplina:
ao mesmo tempo o reflexo desse question- “Neste contexto, os problemas biomédicos
amento. Seria fazer prova de uma certa in- forneceram um bom critério de apreciação
genuidade acreditar que os objectivos tradi- da proposição segundo a qual a filosofia
cionais da medicina, de um ponto de vista moral, mau grado os seus detractores, tem
moral, podem não ser postos em causa” algo de pertinente a dizer sobre a vida hu-
(Callahan, 1986:45). Ora o carácter in- mana. Assim, a medicina encontra-se su-
evitável destas transformações não deixaria jeita à prova da moral e a própria moral
de suscitar fenómenos de resistência no seio fica sujeita à prova da medicina” (Callahan,
das comunidades médicas e científicas. Diz 1986:46). Precisamente, cita-se entre os arti-
ainda Callahan que médicos e cientistas se gos seminais da reflexão bioética um com o
deram conta que as novas pressões a que se sugestivo título de “Como a medicina salvou
viam submetidos se deviam em grande parte a vida da ética”, de Stephen Toulmin. Toul-
à intervenção do público nos debates da ética min explica que, nas últimas décadas, se as-
médica e nunca gostaram de ver juristas e es- sistiu a uma interacção da medicina, da lei
pecialistas em ética imiscuir-se e até semear e de outras disciplinas que teve efeitos es-

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pectaculares e irreversíveis nos métodos e economistas de ser chamados” (Toulmin,


nos conteúdos da ética filosófica, na medida 1997:108-109) a participar em actividades
em que reintroduziu os longamente descarta- públicas de informação, consultoria, acon-
dos tópicos da análise dos casos particulares, selhamento e tomada de decisão: “Neste sen-
obrigou os filósofos a retomar os problemas tido, podemos efectivamente dizer que, nos
da razão prática que remontam a Aristóte- últimos vinte anos, a medicina ‘salvou a vida
les. Com efeito, desde meados do século da ética’, e que devolveu à ética uma se-
XIX que a ética filosófica tinha enveredado riedade e importância humana que ela pare-
pela investigação teórica cada vez mais ab- cia – pelo menos nos escritos do período en-
stracta e distante das questões da aplicação tre as duas guerras – ter perdido para sem-
a casos práticos particulares. No século XX, pre” (Toulmin, 1997: 109). Ora, em outro
a tendência agrava-se com o relevo dado à texto tido por seminal, “A bioética como dis-
metaética como análise do discurso dos de- ciplina”, originalmente publicado em 1973,
bates racionais entre contendores com difer- Daniel Callahan mostrava como era a nova
entes convicções éticas, que o filósofo de- disciplina da bioética que se encontrava em
veria supervisionar e regular em obediên- condições de superar o reducionismo disci-
cia às regras racionais da condução da dis- plinar da ética filosófica e da teologia moral
cussão, mas sem intervir nela para tomar tradicionais na abordagem dos dilemas éti-
partido. Observa Jonsen muito a propósito cos da biomedicina, reducionismo que não
que: “Enquanto a filosofia moral se de- passava de uma outra forma de evadir a re-
batia com as questões metaéticas, o Holo- sponsabilidade e tentar alterar a natureza dos
causto, os julgamentos de Nuremberga, Hi- problemas para os fazer caber na estreiteza
roxima, o armamento nuclear, as purgas de das metodologias da ética e da moral profis-
McCarthy e o Relatório Kinsey acontece- sionalizadas (Callahan, 1997:88-89). Mais,
ram, quaase sem que se ouvisse um mur- Callahan adiantava com inteira justeza que
múrio da parte dos praticantes da metaética” os novos dilemas éticos se exprimiam na
(Jonsen, 1998:75). Com a emergência da linguagem quotidiana que utilizam as pes-
discussão de dilemas concretos no âmbito soas directamente afectadas por eles, entre
da ética médica, nas décadas de cinquenta as quais os pacientes, assim como os médi-
e sessenta, e depois com a bioética, os filó- cos, mas também os próprios especialistas
sofos viram o assunto que tradicionalmente em ética quando falam dos problemas pes-
lhes dizia respeito renascer entre as suas soais que os afectam. Assim, sublinhava
próprias mãos por intermédio da ética apli- ele, a nova disciplina da bioética deveria ex-
cada, a qual “. . . deixava agora de ser campo primir as suas tomadas de posição e as suas
para investigação académica, teórica ou até decisões na mesma linguagem em que as
mandarínica exclusiva. Ao invés, tinha de pessoas comuns normalmente pensam sobre
ser discutida em termos práticos, concretos si próprias. O rigor e a seriedade da bioética
e até mesmo políticos e em breve os filó- dever-se-iam então não tanto à densidade
sofos morais (ou, como barbaramente prin- e à inanidade da linguagem das disciplinas
cipiaram a ser chamados, os ‘eticistas’) de- científicas clássicas de que se queixavam
scobriram que eram tão passíveis como os os próprios especialistas quando se abal-

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ançavam à discussão interdisciplinar, mas avaliações retrospectivas das cerca de três


antes a algo diferente ao assumir como suas décadas de existência da bioética. Entre
tarefas essenciais a definição de questões, de essas análises retrospectivas, há a referir
estratégias metodológicas e de procedimen- quatro principais: a conferência sobre “O
tos para a tomada de decisões. E concluía: nascimento da bioética”, realizada na Uni-
“. . . a disciplina da bioética deveria ser con- versidade estadual de Washington, em 23 e
cebida, e os seus praticantes formados, de 24 de Setembro de 1992, que reuniu muitos
tal modo que - independentemente dos re- dos pioneiros norte-americanos da bioética
spectivos custos para a elegância disciplinar e de cujas conclusões um deles, Albert
– servisse directamente os médicos e biólo- Jonsen, dá conta em livro recente (Jonsen,
gos cuja posição exige que tomem decisões 1998); a recolha crítica, de que este é um
práticas. Isto exige, idealmente, um certo dos editores, de alguns dos documentos hoje
número de ingredientes como parte da for- tidos por seminais acerca da história, dos
mação – que pode prolongar-se pela vida in- métodos e da prática da bioética (Jecker,
teira – do bioeticista: compreensão sociológ- Jonsen e Pearlman, 1997); a conferência
ica das comunidades médicas e biológicas; “Vinte anos de bioética”, realizada em 1990
compreensão psicológica dos tipos de neces- em Pádua, onde se encontraram alguns dos
sidades sentidas por investigadores e clíni- nomes que maior proeminência grangearam,
cos, pacientes e médicos, e a variedade de ao longo das três últimas décadas, a nível
pressões a que se encontram sujeitos; com- internacional, que não já somente os autores
preensão histórica das fontes das teorias do norte-americanos (Viafora et al., 1996); e
valor prevalecentes e das práticas comuns; o número temático do Kennedy Institute of
formação científica de base; conhecimento Ethics Journal, “Medicine Laid Open”, de
e manuseamento fácil dos métodos vulgares 1999, onde surgem artigos de Daniel Calla-
de análise ética tal como são entendidos han (Callahan, 1999), Edmund Pellegrino
nas comunidades filosófica e teológica – e (Pellegrino, 1999) e Warren T. Reich (Reich,
não menor consciência das limitações desses 1999). Estes documentos são de molde a
métodos quando aplicados a casos reais; e, esclarecer que, embora as razões adiantadas
finalmente, exposição pessoal aos tipos de para o surgimento da bioética, pelos autores
problemas éticos que se colocam na medic- que começámos por rever, não só não sejam
ina e na biologia” (Callahan, 1997:91-92). contraditórias como são ainda objecto de
Por fim, diz Callahan, “(u)m teste importante generalizado consenso, é manifesta a sua
da aceitação da bioética como disciplina será insuficiência para explicar o fenómeno da
a medida na qual cientistas e médicos fiz- emergência e da expansão imparável da
erem apelo a ela” (Callahan, 1997:92). bioética e são por isso passíveis de induzir
Alguns dos textos destes e de outros em equívoco quanto à natureza e ao âmbito
iniciadores daquilo que viria a ser a bioética dela. Com efeito, poderia dizer-se que aque-
ainda antes que para ela tal nome houvesse, les factores históricos por eles apontados
constituem imprescindíveis fontes de infor- traduzem todos a real falência da ética e
mação, de que nos serviremos, sobretudo da deontologia médicas tradicionais, o que
quando perscrutados à luz das mais recentes abriu um campo que começa a destacar-se

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dos estreitos limites dos problemas inerentes científica e social, como a ecologia e a
à prática médica e que eram discutidos saúde ambiental, a engenharia genética e as
entre pares à luz de princípios e segundo biotecnologias, o crescimento demográfico,
procedimentos há muito estabelecidos. A a manipulação tecnológica do comporta-
nosso ver, a crise irreversível da regulação mento, a medicina da reprodução, etc.;
paritária, não só da profissão médica em
particular, mas da actividade científica em 4) a irrupção de novos movimentos
geral, deve ser de facto tomada como a mais sociais que levantam questões de recorte
fundamental das condições de emergência biomédico;
da bioética. Porém, o sentido mais vasto
deste fenómeno só poderá ser apreendido 5) a contestação de paradigmas médicos
se formos para além das considerações dominantes e do sentido e fins últimos da
a que se vota o conjunto destes autores. prestação de cuidados de saúde;
Trata-se de um fenómeno que nos seria
grato desdobrar, analiticamente e tão só por 6) a necessidade de uma ética para a era
mor de uma frutífera discussão, em seis da tecnociência e, simultaneamente, a crise
grandes alíneas, a seguir discriminadas, já da fundamentação de toda a ética.
que, historicamente, elas surgem de facto
entrecruzadas. Além disso, e sempre que a 1) Crimes contra a humanidade na
tal houver lugar, este inquérito genealógico experimentação com seres humanos.
abordará as condições de emergência da
bioética em três estádios evolutivos: as O campo da experimentação biomédica
condições remotas, as condições próximas, em seres humanos constituiu a condição
constituindo estas duas a fase de pré-história primeira de emergência da bioética e con-
ou de gestação da bioética, e as condições tinua a ser o terreno fértil que nela alimenta
contemporâneas que relançam e redefinem a reactivação das interrogações fundamen-
o impulso inicial da bioética. Temos assim, tais acerca do rumo a que o desenvolvimento
como condições gerais de emergência da tecnocientífico vota o mundo em que vive-
bioética: mos (Cascais, 2000b)1 . O desenvolvimento

1) os crimes contra a humanidade na 1


Sobre a história da experimentação biomédica
experimentação com seres humanos; em seres humanos, desde a medicina nazi ao
Advisory Committee on Human Radiation Experi-
ments Final Report, de 1995, passando por toda
2) a disponibilidade de novas tecnologias a história da experimentação biomédica após a Se-
biomédicas que, ao mesmo tempo que abrem gunda Guerra Mundial, consultar: António Fernando
novas possibilidades diagnósticas e terapêu- Cascais (2000), Comunicação e bioética. A medi-
ticas, põem em causa conceitos e definições ação dos saberes na experimentação humana. Tese
antiquíssimos e suscitam perplexidades e de Doutoramento em Ciências da Comunicação pela
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Univer-
dilemas inéditos; sidade Nova de Lisboa. Versões anteriores do pre-
sente artigo encontram-se, além desta tese, em: “In-
3) os novos campos de problematização trodução à bioética”, in Maria do Rosário Dias, Ar-

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10 António Fernando Cascais

científico e técnico era já objecto de ques- totalmente vulneráveis e destituídos da sua


tionamento pelo menos desde meados do capacidade de consentimento, com critérios
século XIX, mas sobretudo por correntes que e objectivos cientificamente improváveis e
recusavam doutrinariamente o mundo mod- com resultados funestos para aqueles que a
erno e que responsabilizavam grandemente a elas foram obrigados a submeter-se, emb-
ciência e a técnica pelo que entendiam como ora também tivesse sido mencionada a elim-
decadência da civilização ocidental. No en- inação selectiva de algumas categorias de
tanto, só a partir da Segunda Guerra Mundial pessoas, nomeadamente doentes e diminuí-
surge uma inquietação de fundo acerca do dos mentais, ao abrigo de um vasto programa
desenvolvimento tecnocientífico com difer- indevidamente chamado de “eutanásia” em
ente tom e conteúdo. E essa inquietação hospitais psiquiátricos alemães. O Julga-
surge, de modo espectacular, a propósito mento dos Médicos levantou o véu sobre
das actividades biomédicas e, mais particu- um estendal de atrocidades que, de então
larmente, da experimentação com seres hu- para cá, passou a configurar os crimes con-
manos, a partir do pleno conhecimento das tra a humanidade. No entanto, só com o
atrocidades perpetradas pela medicina nazi, tempo, e sobretudo recentemente, com a mu-
após a queda do Terceiro Reich. Na se- dança de perspectiva da inquirição histórica,
quência da vitória sobre a Alemanha nazi, o se pôde traçar com rigor o quadro em que
Tribunal de Nuremberga, reunido em 1946 decorreram, e que permite compreender, os
pelos países aliados, julgou os crimes de factos submetidos a juízo em Nuremberga:
guerra em que estavam implicados tanto aquilo que Rudolf Hess chamou o primeiro
as principais figuras do regime nacional- regime biologisch da história, com a sua
socialista. Um dos Julgamentos a cargo do política de “higiene racial” que extrema o
tribunal foi o Julgamento dos Médicos, que darwinismo social do virar dos séculos XIX
visou os mais altos dignitários da medic- para XX e, enfim, o processo de genocí-
ina nacional-socialista e foi constituído uni- dio de gigantescas proporções que posteri-
camente pelos Estados Unidos. De facto, ormente se estabeleceu com segurança ter
tratou-se de julgar um regime político e o sido um processo medicalizado em toda a
sistema de saúde inextricavelmente ligado a sua extensão, assim como se sabe hoje que
ele, nas pessoas dos seus responsáveis máx- a medicina nazi não pode já desligar-se do
imos. A matéria principal da acusação era mais vasto fenómeno histórico de medical-
a experimentação médica empreendida em ização generalizada na época moderna, que
campos de concentração sobre prisioneiros Michel Foucault descreveu como a ascensão
da biopolítica: “a maneira como se tentou,
manda Amorim, eds. et al., Clínica Dentária In- desde o século XVIII, racionalizar os prob-
tegrada: Contributos Bio-psico-sociais. Caparica: lemas postos à prática governamental pelos
Egas Moniz Publicações, 2000: 23-51; “A bioetika fenómenos próprios de um conjunto de seres
története, a tudományág körébe tartozó kérdések és vivos constituídos em população: saúde,
a bioetika tárgya”, in Ch. Susanne, Szer. et al.,
Bioetika. Pécs-Budapest: Dialog Campus Kiadó, higiene, natalidade, longevidade, raças... ”
1999: 31-54 e “Bioethics: History, Scope, Object”,
Global Bioethics, 10 (1-4), 1997: 9-24.

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 11

(Foucault: 1989:109)2 . Deste modo, o Jul- sua obtenção como requisito primeiro e in-
gamento dos Médicos haveria de constituir o dispensável à prossecução de toda a exper-
primeiro passo num processo de avaliação, imentação médica em seres humanos, emb-
que prossegue ainda, não só da medicina ora, por outro lado, ao aceitar a necessidade
nazi, mas das concepções prevalecentes no da experimentação, o texto do código tenda a
que de mais excelente havia na medicina enfatizar os benefícios que dela podem advir
mundial da época e que com ela partilhava para a sociedade como um todo, mais do que
uma mesma vocação eugenista; este facto, os que dela podem reverter para o paciente
e a recorrência dele em diferentes épocas individual. Com o Julgamento dos Médi-
e tanto em regimes democráticos como to- cos, a prática médica foi pela primeira vez
talitários, viria a consubstanciar uma das sujeita a avaliação por uma instância exte-
questões mais candentes na bioética, a da rior aos mecanismos de auto-regulação par-
analogia nazi para a época contemporânea, itária, a instância jurídico-política. E o facto
ou seja, a de saber se os actos perpetra- de a partir dele se ter emitido um documento,
dos pela medicina nazi se podem hoje repe- o Código de Nuremberga, que, juntamente
tir nas condições e com a legitimidade dos com a Declaração Universal dos Direitos do
Estados de direito democráticos. Não ob- Homem, emitida pela ONU em 1948, viria a
stante, a importância maior do Julgamento constituir o modelo de toda a posterior reg-
dos Médicos é o facto de a parte final do ulação ética, não apenas da experimentação,
seu acórdão ter dado origem ao Código de mas de todas as actividades biomédicas, des-
Nuremberga, publicado em 1947, que, re- mente a tese, já sustentada pela própria de-
conhecendo a necessidade e legitimidade da fesa dos médicos nazis no decorrer do jul-
experimentação médica em seres humanos, gamento e frequentemente retomada depois
estabelece as condições a que ela deve obe- pelas teses revisionistas, de que tanto o jul-
decer para poder ser científica e eticamente gamento como o código se dirigiam exclu-
validada. À cabeça, avulta o consentimento sivamente à medicina nazi, ou seja, mais
informado, então e pela primeira vez explic- ao regime totalitário do que à medicina
itado de modo categórico, pois estabelece a em si. Tal tese sustenta que a medicina
nazi não é representativa da genuína ciência
2
Sobre a bio-história e a biopolítica em Michel médica, quer por ser marginal e medíocre do
Foucault, ver, nomeadamente os textos inseridos na ponto de vista científico, quer por ser ide-
colecção: Michel Foucault (1994), Dits et écrits. 4 ologicamente comprometida, e compreen-
vols.: I - 1954-1969, II - 1970-1975, II - 1976-1979, sível apenas como aberração histórica resul-
IV - 1980-1988. Paris: Éditions Gallimard; e o ab-
solutamente seminal Vigiar e punir. Petrópolis: Edi-
tante da cooptação forçada da comunidade
tora Vozes, 1984, 3a ed.; estão em vias de publicação médica por um regime totalitário, o que faria
os textos dos seus cursos no Collège de France, mas dela “má ciência”, e dos médicos peões e
o volume referente ao desenvolvimento do conceito não pioneiros. Ao obrigar toda a activi-
de biopolítica ainda não saiu a público; no entanto, dade de experimentação médica à obtenção
do conjunto já publicado, podem encontrar-se já al-
gumas referências à biopolítica em: Michel Foucault do consentimento informado, o Código de
(1997), Il faut défendre la société. Cours au Collège Nuremberga consagra a primazia da instân-
de France - 1976. Paris: Gallimard/Seuil. cia jurídico-política na defesa dos interesses

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12 António Fernando Cascais

do indivíduo por sobre a regulação paritária para orientar os médicos na pesquisa clínica
da medicina que, ao assimilar benefício da e que aponta para a supremacia da revisão
humanidade ao rigor científico que só os por pares sobre o consentimento do sujeito
pares se encontram em condições de avaliar, individual, uma vez que à qualidade cientí-
identifica os interesses da ciência com os in- fica da investigação, que só pode ser avali-
teresses da sociedade. O que o Código de ada pela própria comunidade de médicos-
Nuremberga põe em causa será pois, em úl- investigadores, com recurso a comités de re-
tima análise, a pretensão de uma “boa ciên- visão do protocolo inicial, é dada clara prior-
cia” valorativamente neutral a eximir-se a idade sobre o consentimento informado. En-
um juízo exterior ao dos seus próprios pares. contramos aqui uma fractura de primeira or-
O facto de o Código de Nuremberga con- dem que pode ser traçada através da história,
stituir o modelo para todos os posteriores não só da experimentação humana, mas da
documentos de regulação ética da experi- medicina moderna em geral: a que, grosso
mentação humana de modo algum significa modo, opõe o avanço dos poderes e dos
que eles lhe tenham sido escrupulosamente saberes científico-tecnológicos em nome do
fiéis, quer à letra, quer ao espírito. A benefício da sociedade como um todo à de-
Declaração de Helsínquia, promulgada pela fesa dos interesses individuais, implícita ou
Associação Médica Mundial na sua 18a As- explicitamente tidos por sacrificáveis. É mis-
sembleia Geral em Junho de 1964, é o ter sublinhar, porém, que uma oposição tão
primeiro desses documentos. Mais do que nítida ocorre só se - mas sempre que - o
filiar-se no que de mais essencial veiculava discurso e a prática científicos fazem assim-
o Código de Nuremberga, a Declaração de ilar bondade ética a rigor científico, cuja
Helsínquia pode ser entendida como uma avaliação cabe em exclusivo à comunidade
resposta alternativa àquilo que os médicos- de pares. Ora esta linha de argumentação
investigadores, e ainda mais as organizações equivale à apologia da auto-regulação par-
científicas, encaravam como limitador e in- itária da actividade médica e ela ocorre mais
aplicável às suas práticas, visto que tinha sistematicamente do que se poderia crer. A
sido promulgado por juízes, na sequência de Declaração de Helsínquia seria emendada e
um acórdão de um tribunal criminal, como revista na 29a Assembleia Geral da Associ-
um documento de direitos humanos e era, as- ação Médica Mundial, em Tóquio, em 1975,
sim, uma peça jurídica demasiado rígida de dando lugar à Declaração de Tóquio, tam-
exigências legais, circunstancialmente rela- bém conhecida como Helsínquia II, sendo
cionada com os crimes nazis. Em contra- esta a revisão mais profunda e a que constitui
partida, a Declaração de Helsínquia tinha de facto o modelo que desde então prevalece,
por finalidade substituir à agenda legal do com posteriores alterações de menor en-
Código de Nuremberga, baseada nos dire- vergadura nas 35a , 41a e 48a Assembleias
itos humanos, um modelo de ética médica Gerais da Associação Médica Mundial, re-
de algum modo mais lassa que permite o spectivamente em Veneza, em 1983 (Hel-
paternalismo, na medida em que constitui sínquia III), Hong Kong, 1989 (Helsínquia
um conjunto de recomendações, feitas por IV) e Sommerset West, África do Sul, 1996
médicos e dirigidas a médicos, concebido (Helsínquia V). Há a notar, da versão inicial

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 13

de 1964 para a primeira revisão, de 1975, o na história dessa dissenção, e já plenamente


maior relevo dado à obtenção do consenti- contemporâneo da bioética é a constituição,
mento informado, mas trata-se de um requi- nos Estados Unidos, da Comissão Nacional
sito que figura em nono lugar entre os requi- para a Protecção dos Seres Humanos Su-
sitos básicos a satisfazer para que um exper- jeitos a Experimentação Biomédica e Com-
imento seja eticamente admissível, quando portamental, reunida entre 1974 e 1978,
o primeiro desses requisitos nunca deixa de e ao hoje célebre Relatório Belmont, que
ser, em todas as versões da Declaração, o da em 1978 dá conta das conclusões finais do
cientificidade, só pelos pares avaliável. trabalho da referida Comissão, onde são
A experimentação humana é a arena onde definidos os princípios de respeito pelas
se tem jogado a regulação estritamente par- pessoas, autonomia e justiça que estão na
itária da prática médica versus uma forma de origem do paradigma bioético dominante,
regulação que envolve a participação de in- o modelo principialista. O principialismo
stâncias extra-profissionais e de que a dis- ficou de facto a dever-se à formulação de
senção entre o Código de Nuremberga e a Tom L. Beauchamp e James Childress, em
Declaração de Helsínquia dá a ver apenas a Princípios de ética biomédica (Beauchamp,
superfície. Com efeito, a ambiguidade pro- Childress, 19943 , publicado no ano imedi-
funda, essencial, de raíz, que impregna a re- atamente a seguir ao do Relatório Belmont,
lação da sociedade moderna com a ciência e onde a fórmula quádrupla da beneficência,
a técnica constitui o sustentáculo da topolo- da autonomia, da não-maleficência e da
gia por que se reparte a competição pela reg- justiça se vem substituir ao antiquíssimo e
ulação da experimentação médico-científica exclusivo primado da beneficência, de ex-
com seres humanos, mas também do próprio tracção hipocrática: “Mas o autenticamente
campo da bioética. Se a primeira versão importante não é isso, e sim o facto de que
da Declaração de Helsínquia, de 1964, é com este sistema a bioética assumiu toda
independente da bioética, mais difícil é já uma peculiar forma de definir e manusear
dizer que as suas posteriores revisões são os valores. A partir de Beauchamp e Chil-
independentes da progressiva instalação da dress a bioética em geral, e a bioética norte-
bioética, cuja capacidade de pressão sobre americana em particular, fizeram girar to-
a comunidade médico-científica cresce de dos os problemas de valor à volta desses
maneira directamente proporcional ao da sua quatro princípios. Eles são qualquer coisa
respeitabilidade. Nota-se isto no sentido das
3
revisões que sucedem à versão original de Henry K. Beecher (1966), “Ethics and Clinical
Research”, New England Journal of Medicine, 274
1964, que vão dando maior ênfase, se bem (24): 1354-1360. Também o médico inglês Maurice
que nunca clara primazia, à defesa da au- H. Pappworth publicou em 1968 uma obra de denún-
tonomia, mas também nos restantes docu- cia de experimentação criminosa - Human Guinea
mentos reguladores da experimentação hu- Pigs: Experimentation on Man. Boston: Beacon
mana que reflectem, e devem ser enquadra- Press - porventura mais cáustica e detalhada que a de
Beecher, informa Albert Jonsen, mas que passou des-
dos, no contexto da dissenção entre o priv- percebida na altura e mais tarde vilipendiada quando
ilégio da beneficência e a defesa primor- de facto lhe foi dada atenção, talvez devido à vulner-
dial da autonomia. Acontecimento capital abilidade do autor, menos renomado que Beecher.

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14 António Fernando Cascais

como os núcleos de confluência de todo o imentação humana, seu berço, a todas as de-
universo dos valores. Não é que não exis- mais actividades biomédicas4 .
tam muitos outros valores, o que acontece é Teríamos assim que a regulação ética da
que todos saturam em torno a estes quatro experimentação humana é uma das maiores
eixos ou pontos. Dito de outra maneira, to- responsáveis pela deslocação do âmbito
das as questões de valor podem ordenar-se à da ética biomédica tradicional, de matriz
volta destes quatro princípios. A linguagem hipocrática, para o âmbito da bioética, que
dos valores pode-se reduzir a estas quatro não coincide com aquele, o extravaza e
palavras” (Gracia, 1995:40). Isto mesmo inclusivamente é de molde a pôr-lhe em
corrobora Daniel Callahan: “Chamarei a isto causa os principais pressupostos e preten-
o movimento da autonomia, que enfatiza sões. A experimentação biomédica em seres
a necessidade de proteger os que são vul- humanos ocupa uma posição chave na tec-
neráveis, de dar poder aos que são com- nociência moderna e torna patente o que
petentes e de encontrar um melhor equi- significa os homens disporem e ao mesmo
líbrio entre médico e paciente do que aquele tempo estarem à mercê de uma ciência cuja
que representou o clássico paternalismo da natureza é experimental; a experimentação
tradição hipocrática. A sua plena expressão, biomédica em seres humanos trata da prosse-
suspeito eu, pode ser encontrada na teoria cução de possibilidades tecnocientíficas di-
moral do principialismo, na qual os princí- rectamente investigadas e aplicadas em seres
pios, quando são sopesados, revertem to- humanos concretos; experimentar em seres
dos à autonomia, o mais poderoso e dom- humanos é, por isso, a todos os títulos,
inador dos princípios. Tal era a bioética alçar-se do nível do laboratório às alturas
como filha natural do individualismo amer- de um autêntico experimentum mundi: re-
icanop” (Callahan, 1999:65). Tanto consti- criar seres humanos encontra-se pois no cen-
tui a primeira formulação histórica - deliber- tro de um projecto mais vasto de recriação
ada, porque implicitamente já o era o Código tecnocientífica, demiúrgica, do mundo. Con-
de Nuremberga - de uma regulação da ac- tudo, a multiplicação previsível de possi-
tividade da investigação biomédica alterna- bilidades experimentais proporcionadas pelo
tiva à estrita regulação paritária. E tanto avanço tecnológico não constituiu o único
constituirá justificação suficiente para que se centro de preocupações nos anos contem-
possa afirmar que a condição essencial da porâneos da emergência da bioética. Uma
emergência da bioética é, em última análise, reavaliação geral, mais ampla e profunda, di-
a crise da regulação paritária das actividades
biomédicas, que não só as de investigação, 4
Sobre a crise da auto-regulação paritária como
ideia de resto cara a Diego Gracia, atrás condição de emergência da bioética, ver, nomeada-
citado, pois os princípios de Beauchamp e mente: Diego Gracia, (1987), “La bioética, una nueva
Childress almejaram, e efectivamente con- disciplina académica”, Jano, XXXIII (781): 69-73;
seguiram, expandir-se do domínio da exper- (1988), “Historia de la ética médica”, in Francisco
Vilardell, coord. et al.: Ética y medicina. Madrid:
Espasa Calpe: 25-65 e (1995), “El qué y porqué de
la bioética”, Cuadernos del Programa Regional de
Bioética. Santiago: O.P.S./O.M.S.,1: 35-53.

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 15

rigida não apenas para o discernimento das tamento humano, nomeadamente com re-
condições do presente, mas também retro- curso ao LSD, empreendidos pela Central
spectivamente, da necessidade, da legitimi- Intelligence Agency (CIA) ao abrigo de ob-
dade, da natureza e fins últimos da experi- scuros programas como o MKULTRA, tanto
mentação biomédica enquanto projecto tec- em civis como militares, que conjugavam
nocientífico da era moderna, acompanhou a o imperativo da salvaguarda dos interesses
evolução dos códigos concebidos para a reg- nacionais dos EUA e o avanço do conhec-
ulamentar. Precipitada pelo conhecimento imento médico no quadro da guerra fria.
público de algumas experiências em seres Alguns destes experimentos, e muitos out-
humanos ostensivamente anti-éticas, essa ros mais, foram mencionados por Henry
reavaliação foi inclusivamente prosseguida a Knowles Beecher no seu artigo “Ethics and
nível institucional, num processo de “fact- Clinical Research”, publicado em 1966 no
finding” conduzido nos EUA por comissões New England Journal of Medicine4 [?], um
governamentais que se haveria de prolon- marco na história da denúncia de experimen-
gar e intensificar até ao presente. As mais tação criminosa com um imenso impacto
notórias dessas experiências foram as de na comunidade médico-científica da época
Tuskegee, no Estado americano do Alabama, (Jonsen, 1998:144-146; Reich, 1996a:83-
onde, entre 1932 e 1972, cerca de seiscen- 87). Não obstante ser um defensor da
tos afro-americanos pobres foram privados Declaração de Helsínquia como alterna-
de tratamento para a sífilis que os afectava, tiva necessária ao Código de Nuremberga,
recebendo apenas placebos, para se estu- Beecher não se abstém de afirmar, porém,
darem os efeitos do curso natural da doença, que a obtenção do consentimento informado
sem que disso fossem informados e apesar é um imperativo sociológico, ético e legal,
da descoberta da cura através da penicilina dado o sistemático desrespeito dos exper-
em 1954 (Jonsen, 1998:146-148). Outras imentadores pelos próprios documentos de
experiências chegaram igualmente ao con- regulação - e a Declaração de Helsínquia
hecimento público, porém: as efectuadas datava de dois anos antes deste seu artigo
entre 1956 e 1971 em crianças diminuí- que cita os exemplos a prová-lo. De resto,
das mentais da Escola Estadual de Willow- Beecher haveria de ser um dos primeiros
brook, em Nova York, a quem foi injectado colaboradores activos da nova disciplina da
o vírus da hepatite para pesquisa de uma bioética (Callahan, 1999:59). Jay Katz, um
vacina eficaz; as experiências de imunoter- doa mais proeminentes e influentes autores
apia, patrocinadas pelo Serviço de Saúde que se dedicou à ética da experimentação
Pública dos Estados Unidos, realizadas em biomédica, afirma a sua dívida, e de uma
1963 em idosos internados no Hospital e geração inteira anterior à bioética, em re-
Centro Médico Judaico para doenças cróni- lação a Beecher (Katz, 1994:88). As reve-
cas de Brooklyn, a quem foram injectadas lações de Beecher, assim como das atroci-
células cancerosas (Jonsen, 1998:143); os dades da medicina nazi, tiveram um impor-
ensaios de drogas psicotrópicas em mil- tantíssimo papel de “consciousness raising”
itares americanos e vários outras experimen- na época que precedeu de perto a emergên-
tos de manipulação bioquímica do compor- cia da bioética enquanto disciplina e discurso

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16 António Fernando Cascais

(Katz, 1994:89). Já não como condição re- dioactivo às populações das ilhas do Pací-
mota de emergência da bioética, que as an- fico onde se realizaram explosões experi-
teriores são, mas como facto que relança a mentais, ao pessoal civil e militar das bases e
interpelação fundamental que ela endereça à aos habitantes das imediações, e, enfim, aos
tecnociência biomédica, encontramos o mais pacientes a quem eram administrados isóto-
recente instrumento de denúncia e avali- pos radioactivos como meio de diagnóstico.
ação de experimentação criminosa, o Comité As instituições envolvidas, desde bases mil-
Consultivo Sobre a Experimentação de Ra- itares a hospitais e laboratórios, o número
diações em Seres Humanos (Advisory Com- de pessoas, desde as muitas centenas de in-
mittee on Human Radiation Experiments), vestigadores às dezenas de milhares de víti-
nomeado em 1994 pelo presidente Clinton, mas que de algum modo sofreram os efeitos
com o fim de investigar a experimentação da experimentação, os astronómicos finan-
dos efeitos da radioactividade em seres hu- ciamentos e a sofisticação do aparato ex-
manos realizada por iniciativa dos Depar- perimental, fazem deste conjunto de exper-
tamentos da Energia e da Defesa do gov- imentos porventura o de maiores proporções
erno federal norte-americano desde a Se- de sempre, desde o Projecto Manhattan até
gunda Guerra Mundial. Facto a notar, como ao actual Programa Genoma Humano. En-
indício da plena instalação da bioética ao tre as conclusões a que chega o Relatório
mais alto nível das instâncias de consultoria Final, avultam: a improbabilidade de uma
e decisão, é o de, à frente deste comité, se instituição ou indivíduo poder oferecer al-
encontrar a bioeticista Ruth Faden, escolhida guma forma de resistência eficaz à sua in-
exclusivamente pela sua qualidade de rep- strumentalização por um organismo de Es-
resentante prestigiada da disciplina. Dado tado, em nome dos imperativos da segurança
a público em 1995, o Relatório Final do nacional, ou outra qualquer instituição igual-
Comité revela que, entre 1944 e 1974, foi mente poderosa, que o fizesse em nome do
empreendido um gigantesco programa de in- bem comum - exactamente o que foi in-
vestigação dos efeitos da radioactividade em vocado, tanto para legitimar a experimen-
seres humanos. Teve início ainda durante a tação como para lhe manter o secretismo
Segunda Guerra Mundial, no âmbito do Pro- durante décadas, até à primeira presidência
jecto Manhattan que criou as primeiras bom- americana, a de Clinton, que decorre in-
bas atómicas e tratava inicialmente de inda- teiramente fora do quadro da guerra fria;
gar os efeitos da radioactividade na popu- a persistência da experimentação criminosa
lação civil e militar exposta acidentalmente fora do quadro de regimes totalitários, como
às deflagrações (Cascais, 2000b:147-187). o tinha sido a Alemanha nazi, e como o
Prosseguida pelas instituições herdeiras do era a então União Soviética que empreendia
Projecto Manhattan, primeiro a Comissão idênticos programas experimentais; e, en-
da Energia Atómica e, depois, o Departa- fim, a impossibilidade, senão mesmo a re-
mento de Energia, a experimentação passou lutância, da comunidade médico-científica
também pela exposição deliberada de indi- resistir quer ao poder e à influência do Es-
víduos singulares e de grupos inteiros a ra- tado, sobretudo quando legitimado com o
diações, dos mineiros índios do urânio ra- imperativo da segurança nacional, quer às

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 17

extraordinárias possibilidades de aquisição o Julgamento dos Médicos como empreende


cognitiva, legitimadas com a prossecução o Projecto Manhattan e a experimentação
de um bem comum superior aos interesses dos efeitos da radioactividade na sequência
singulares dos indivíduos a ele sacrificados, dele. Não é de surpreender que a bioética
quer ao mercado que, por meio das insti- viesse a surgir nos Estados Unidos e a man-
tuições financiadoras, públicas ou privadas, ter perduravelmente as características típicas
garante meios de outro modo inacessíveis, da sociedade e da organização política
tanto aos organismos que acolhem os projec- norte-americana. O domínio da regulação
tos de investigação médico-científica, como da experimentação humana, com a capital
às carreiras dos investigadores individuais. importância que teve para a emergência da
Os críticos mais avisados concluem com bioética como forma de problematização da
uma nota céptica, senão mesmo pessimista, ciência e da técnica modernas, constituiu
quanto à dinâmica imparável da experimen- igualmente a via da instalação da própria
tação biomédica, quanto à capacidade de bioética no interior do processo tecno-
controle dos instrumentos reguladores dela científico moderno, instalação que, há que
que se verifica não bastarem para impedir a reconhecê-lo, se operou ao preço do seu
repetição de autênticas atrocidades, e quanto ensimesmamento numa prática profissional
à sempre reivindicada auto-suficiência da de especialistas autorizados, a nova classe
comunidade científica que afirma praticar dos bioeticistas (Cascais, 2000a). De tal
um rigor científico e estar submetida a instalação dão prova vários factos. À cabeça,
imposições éticas que os perpetradores de a multiplicação de documentos reguladores,
crimes passados não possuíam (Cascais, não só da prática de investigação biomédica,
2000a). Não falta quem, a este respeito, ad- mas de toda a prestação de cuidados de
vogue a instauração de um novo Tribunal de saúde que incessantemente têm sucedido, e
Nuremberga permanente, capaz de arbitrar a em ritmo crescente, ao Código de Nurem-
questão que permanece no âmago das pre- berga e à Declaração de Helsínquia numa
ocupações desde o Julgamento dos Médicos fúria codificadora e juridificadora que, no
e que, hoje como então, opõe, de um lado, momento presente, prossegue de modo tão
a apologia da liberdade de investigação cien- imparável quão imparável é o desenvolvi-
tífica em nome dos superiores interesses da mento tecnocientífico. Mas a integração da
ciência ou da sociedade e, do outro lado, a bioética no próprio processo tecnocientí-
defesa dos interesses do indivíduo. fico é ainda atestada pelo estabelecimento
O conjunto de fenómenos que con- e a institucionalização generalizada das
stituem condições remotas de emergência comissões de ética, quer de investigação,
da bioética remonta pois ao imediato quer de âmbito geral - nomeadamente as
pós-Segunda Guerra Mundial. Trata-se de comissões hospitalares e as comissões
acontecimentos que não se podem desligar nacionais de ética - e pela institucional-
do estabelecimento da ordem mundial do ização do seu ensino, que culmina a sua
pós-guerra, nem, como é óbvio, do papel consagração académica. Ora é precisamente
determinante dos Estados Unidos como esta integração que tem suscitado reservas,
super-potência vitoriosa que tanto organiza sobretudo no campo da filosofia, quanto

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18 António Fernando Cascais

à possibilidade de a bioética constituir funda das possibilidades biomédicas ou da


perspectiva analítica suficientemente lúcida natureza e do alcance da prestação de cuida-
- por falha do suficiente distanciamento - dos médicos. Do mesmo modo, o sentido
do processo tecnocientífico e veículo para cultural, social, ético e político profundo de
obviar efectivamente aos efeitos inumanos tal mudança não pode ser entendido a par-
da sua imparável dinâmica interna. Con- tir da mera listagem desses desenvolvimen-
frontado com o desembaraço dos cientistas tos tecnológicos. Podem porém citar-se al-
em qualificar de “ético” tudo quanto é guns que fizeram história, pelo seu contrib-
do interesse da ciência que abusivamente uto para a transformação de noções prevale-
praticam, há mesmo quem apode a bioética centes a respeito do início e do fim da vida,
de Instituto das Permissões Científicas5 . de corpo próprio e de identidade individual,
assim como na erosão de alguns dos mais
2) A disponibilidade de novas tecnolo- sólidos pilares da antropologia e da ética, e
gias biomédicas que, ao mesmo tempo que pelo papel que desse modo desempenharam,
abrem novas possibilidades diagnósticas quer como condições próximas de emergên-
e terapêuticas, põem em causa conceitos cia da bioética, quer como factores de reacti-
e definições antiquíssimos e suscitam vação da problematização bioética da tecno-
perplexidades e dilemas inéditos. ciência biomédica.
O surgimento da tecnologia da hemod-
Seria empresa impossível dar aqui conta iálise para tratamento da insuficiência re-
de todos os desenvolvimentos tecnológicos nal crónica terminal deu azo a uma das
que estão na origem de uma mudança pro- primeiras controvérsias públicas que ante-
5
cede a emergência da bioética, mas que se
A expressão, que dá voz a uma corrente de
manteve com toda a sua vivacidade nos anos
opinião, encontra-se em Richard John Neuhaus
(1992), “The Way They Were, The Way We Are”, de instalação desta; tratava-se do problema
in Arthur Caplan, ed. et al., When Medicine Went da sua escassa acessibilidade desse recurso
Mad. Bioethics and the Holocaust. Totowa: Humana terapêutico e a consequente necessidade de
Press: 211-230. A crítica mais ou menos radical da se estabelecerem prioridades na respectiva
bioética gerou já uma literatura considerável, tanto
alocação, com a correspondente seriação de
nos EUA como na Europa; para maior conhecimento,
V. nomeadamente: Pierre-Henri Gouyon, Dominique candidatos e a delicadeza dos critérios da sua
Lecourt, Dominique Memmi, Jean-Paul Thomas e inclusão ou exclusão, que pode implicar uma
Dominique Thouvenin (1999), La bioéthique est-elle decisão de escolha entre a vida e a morte,
de mauvaise foi? Paris: Presses Universitaires de como ocorreu com o pioneiro programa de
France; Dominique Memmi (1996), Les gardiens du
corps. Dix ans de magistère bioéthique. Paris: Édi-
diálise de Seattle, nos EUA, iniciado em
tions de l’École des Hautes Études en Sciences So- 1960 (Jonsen, 1993:S2; Jonsen, 1998:211-
ciales; Lucien Sève (1994), Pour une critique de la 213). As primeiras tentativas de transplantes,
raison bioéthique. Paris: Odile Jacob; Wesley J. ainda com carácter experimental, tiveram lu-
Smith (2000), Culture of Death. The Assault on gar na primeira metade da década de cin-
Medical Ethics in America. San Francisco: En-
counter Books e Jean-Paul Thomas (1990), Misère de quenta, começando a generalizar-se na dé-
la bioéthique. Pour une morale contre les apprentis cada seguinte com a introdução de imunos-
sorciers. Paris: Albin Michel. supressores contra a rejeição (Jonsen, 1998:

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 19

197-208). As transplantações cardíacas, ini- suscita problemas colaterais mais candentes


ciadas por Christian Barnard em 1967, mais ainda, como os do risco de tráfico de órgãos
não fizeram que reactivar as discussões já e a consequente transformação dos seres hu-
precipitadas pelas renais (Jonsen, 1993:S2; manos em meros bancos de órgãos, o que
Jonsen, 1998: 200-201). Jonsen assinala poderia ocorrer maximamente no caso de a
contudo, a este respeito, que o tipo de dis- clonagem humana se vir a efectuar com esse
cussões surgidas neste campo, se inaugu- propósito e a legitimar-se como terapêutica
raram um estilo de fazer ética que haveria de em nome dele. No entanto, também se pode
se tornar comum na tradição bioética norte- dar como exemplo de interferência frutífera
americana, não passava porém pela análise da bioética no impulso imparável da tecno-
rigorosa de uma teoria ética prévia e da sua ciência o papel de uma preocupação bioética
posterior aplicabilidade à matéria em debate, na inflexão da investigação científica no sen-
mas antes pela discussão em torno de um tido da clonagem de tecidos e órgãos iso-
caso concreto, empiricamente bem definido lados que não passe pelo indivíduo inteiro,
mas vago em termos éticos, a partir de que ou da exploração das possibilidades do xeno-
se tiravam conclusões que levavam a alguma transplante.
forma de definição útil para estabelecer um Em 1968, uma comissão da Faculdade de
curso de acção. Diz Jonsen que se trata Medicina da Universidade de Harvard, en-
de uma questão metodológica que atravessa cabeçada por Henry Knowles Beecher, prop-
toda a história da bioética norte-americana, unha pela primeira vez a definição de morte
a de saber “como é que se há-de adaptar a cerebral para encerrar uma questão que o
teoria ética às deliberações práticas – ou será Papa Pio XII tinha aberto em 1957, a pedido
que se deveria sequer adaptar? Essa questão de um grupo de eminentes anestesiologistas
haveria de ocupar o centro das atenções na preocupados com as repercussões filosóficas
bioética dos anos noventa” (Jonsen, 1998: e éticas da então recente tecnologia da res-
211). Os transplantes de órgãos suscitaram piração artificial através de máquinas venti-
alguns dos primeiros debates do que viria ladoras, inicialmente ensaiadas durante uma
a entender-se por bioética, porquanto rev- epidemia de poliomielite na Dinamarca, em
olucionaram as definições até então prevale- 1952 (Jonsen, 1993:S3; Jonsen, 1998:238-
centes de identidade individual, ou de morte, 242). A controvérsia que haveria de opôr
e levantaram questões que continuam em um entendimento da morte como aconteci-
aberto, como o valor social e ético da doação mento ao seu entendimento como processo
em dadores vivos e da recolha de órgãos “foi um luminoso momento nos dias iniciais
em cadáveres. O problema da escassez de da bioética” (Jonsen, 1998:241) e teria pre-
órgãos punha-se desde o início das transplan- cisamente lugar em 1970 no Hastings Cen-
tações e é ele que mais tem contribuído para ter, uma das duas primeiras instituições de-
relançar a problematização bioética, levan- votadas à nova disciplina. Além do campo
tando os problemas colaterais da distribuição dos transplantes, a questão da redefinição
de recursos escassos, tal como começou por da morte tornou-se igualmente crucial com
acontecer com a hemodiálise, com a ressalva as tecnologias de manutenção artificial da
que, no caso dos transplantes, esta questão vida, desde os primitivos “pulmões de aço”,

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20 António Fernando Cascais

concebidos em 1929, até às mais sofisti- decisão se centrava exclusivamente na pes-


cadas aparelhagens de reanimação cárdio- soa do médico e na sua consciência pessoal
respiratória, que se generalizaram a partir ou profissional; no caso Quinlan, perante as
da década de cinquenta e revolucionaram o posições e convicções irredutíveis dos médi-
campo do intensivismo, transformando as cos e dos pais que disputavam entre si o di-
unidades de cuidados intensivos em labo- reito de decidir, houve recurso para uma in-
ratórios de ponta, ao mesmo tempo que pal- stância reguladora terceira, naquele caso a
cos de alguns dos mais dilacerantes dilemas instância jurídica, mas cujo papel haveria de
bioéticos. Será nesse quadro que, na dé- ser progressivamente cometido à nova dis-
cada de cinquenta, neurologistas franceses ciplina nascente, a bioética; esta marcaria
irão elaborar a noção de coma ultrapassado, assim a falência do modelo de resolução
ou irreversível. O “desligar da máquina” dos conflitos éticos centrado na consciên-
tornava-se doravante um dos tópicos e have- cia e nas qualificações respectivas dos difer-
ria de agitar um dos fantasmas maiores da entes actores (Callahan, 1986:52). Além
bioética, nomeadamente quando a seu re- das suas repercussões na delimitação do final
speito se retomou a discussão da eutanásia. da vida, a inovação tecnológica no domínio
Pouco após a fundação dos primeiros cen- do intensivismo teve efeitos no aumento das
tros de investigação em bioética, o dramático possibilidades de sobrevivência de recém-
caso de Karen Ann Quinlan, em 1975-76, - a nascidos de outro modo inviáveis, facto que,
“mãe de todos os casos” - é de molde a figu- aliado à inovação tecnológica nas áreas do
rar como o melhor exemplo da ambivalência diagnóstico e da terapêutica in utero, se
dos avanços das tecnociências biomédicas e iria repercutir, por sua vez também, na re-
das controvérsias a que deram origem. No definição dos limites da possibilidade de in-
caso Quinlan, tratava-se de pôr termo à sus- tervenção biomédica antes do nascimento
tentação artificial da vida de uma paciente e, consequentemente, na reconfiguração do
em coma irreversível e dos correlativos prob- início da vida. Estes fenómenos conjuga-
lemas de futilidade médica e de respons- dos encontram-se, de resto, na definição de
abilidade médica ou parental por procuração uma nova disciplina biomédica em 1960, a
na tomada de decisões. A decisão final do neonatalogia. Exemplo clássico de tecnolo-
Supremo Tribunal do Estado de Nova Jer- gias de diagnóstico pré-natal responsáveis
sey, em 31 de Março de 1976, foi no sen- por aquele tipo de alterações é a amnio-
tido de aceder favoravelmente aos pais da centese, que permite a detecção precoce de
jovem em coma ultrapassado para que fosse doenças e malformações e a prevenção atem-
desligada do sistema de manutenção artifi- pada, sobretudo quando terapêuticas igual-
cial da vida, o que até aí os médicos que a mente novas existem para a intervenção in
tratavam e a direcção do hospital onde es- utero, mas que também podem ser respon-
tava internada recusavam (Jonsen, 1993:S3). sabilizadas por fornecerem fundamentos in-
Lembra Daniel Callahan que o caso Quin- éditos para a interrupção terapêutica e selec-
lan demonstrava bem a situação de fundo tiva da gravidez.
prevalecente nos Estados Unidos: ele marca Outra consequência de primeiro plano da
o termo de uma época em que o modelo de inovação tecnológica no campo terapêutico,

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 21

desde a tecnologia da diálise e dos trans- da psiquiatra Margaret Kübler-Ross6 . Igual-


plantes e de toda a farmacologia, a eles as- mente coextensivos à disponibilização de no-
sociada ou não, foi o extraordinário alarga- vas tecnologias biomédicas, como os prob-
mento da cronicidade da doença. Este facto lemas da definição do princípio e do fim da
acarretou de maneira directa problemas de vida, do aborto, da eutanásia, do encarniça-
redefinição do esforço terapêutico e de fu- mento terapêutico e do conceito de qualidade
tilidade médica, mas também veio conferir de vida, permanecem sempre presentes os
renovada acuidade a problemas como os da problemas da distribuição de recursos escas-
legitimidade da eutanásia ou da necessária sos. Contudo, estes problemas não são senão
definição de conceitos como o de qualidade aqueles que mais de perto se ligam ao pro-
de vida, com toda a arbitrariedade e rela- gresso das tecnociências biomédicas e que
tivismo a ele ligados, este último sendo de surgem no interior do campo da prestação de
inegável importância quando abrange direc- cuidados de saúde enquanto tal.
tamente uma crescente população de doentes Na verdade, uma ambiguidade fun-
crónicos, cuja vida apenas pode ser prolon- damental projecta a sua sombra sobre
gada por meios tecnológicos, num estado de a disponibilidade de novas tecnologias
doença terminal que há não muito tempo biomédicas e sobre o progresso médico de
tinha um prognóstico fatal a curto prazo. As que elas são portadoras. O mesmo se pode
insuficiências crónicas terminais, coronárias, dizer, evidentemente, acerca da maior parte
hepáticas, renais, etc. dão disto superabun- das tecnologias e do progresso científico-
dantes exemplos, pondo em causa ao mesmo tecnológico em geral: elas são alvo tanto
tempo tanto o modo de conceber um es- de expectativas positivas como negativas,
tado terminal que se prolonga ao ponto de são igualmente desejadas pelo seu sucesso
permitir ao doente uma expectativa de vida esperado na refrega contra novas e antigas
semelhante ao do indivíduo saudável, como aflições humanas e temidas pelos seus
o modo de conceber os parâmetros de nor- efeitos secundários inesperados ou indese-
malidade biológica numa multidão de pes- jáveis. Mais exactamente, a ambiguidade
soas cuja sobrevivência é uma vitória tec- a que nos temos vindo a referir respeita
nológica mas que muito frequentemente ap- à avaliação do sentido emancipatório do
resentam valores analíticos que pouco ou progresso médico em particular e do pro-
nada correspondem a um estado de saúde gresso científico-tecnológico em geral. O
estritamente entendido. Juntamente com o exemplo que, a este propósito, se tornou
alargamento da cronicidade, foi também o referência obrigatória, é o da talidomida,
morrer que se prolongou a um ponto que medicamento administrado às mulheres
centrou nele uma preocupação essencial de antes ou durante a gravidez e que foi causa
cuidar onde outrora se procedia à preparação de graves malformações fetais no início
para o além, inteiramente referido ao mo- da década de sessenta. A evidência dos
mento culminante, brutal e espectacular da efeitos teratogénicos da talidomida levou à
agonia, a morte. Não é por acaso que surge
em 1969 o hoje clássico On Death and Dying 6
Elisabeth Kübler-Ross (1969), On Death and Dy-
ing. New York:MacMillan.

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alteração da legislação americana em 1963, podem deixar de ser entendidas. Calla-


no sentido de condicionar a autorização de han enumera como efeitos principais das
comercialização de novos medicamentos à mudanças tecnociências biomédicas os
verificação prévia das respectivas segurança seguintes: o prolongamento da expectativa
e eficácia mediante ensaios clínicos sujeitos média de vida, que revolucionou a nossa
a avaliação por comissões independentes maneira de encarar o ciclo de vida, com
de ética, os Institutional Review Boards, alterações fundamentais na natureza da
desde então institucionalizados (Archer, infância e das relações de parentalidade; a
1996:18-19; Jonsen, 1998:140-142): “O capacidade de controle da procreação, com
início da revisão paritária por uma comissão alterações radicais no modo de conceber a
ética independente (. . . ) foi o princípio do relação entre ela e a sexualidade e o papel
fim da ingénua confiança na integridade do da mulher na sociedade; a alteração da
investigador” (Jonsen, 1998:145). Autores pirâmide etária nas sociedades desenvolvi-
há, inclusive, que estão persuadidos que o das, com repercussões essenciais no modo
caso da talidomida terá sido responsável de entender as relações geracionais e o papel
por forçar a adopção da Declaração de do envelhecimento e da idade avançada; a
Helsínquia. O certo é que ele precipitou alteração do sentido do conhecimento dos
considerável preocupação pública e tornou- fenómenos humanos, primeiro através da
se símbolo de justificados receios a respeito psiquiatria e depois através da benética,
do sentido do progresso médico nos anos com efeitos directos na nossa autocom-
que precederam de perto o surgimento preensão e no modo de conceber as relações
dos debates bioéticos. E demos exemplos interindividuais; a alteração das concepções
apenas dos primeiros problemas a terem sido da fixidez da natureza humana, que, certas
levantados, na qualidade de causas próxi- ou equívocas, faz com que a sua persecução
mas da emergência do campo da bioética. se transforme ela própria numa fonte de
Quanto aos factores actuais de reactivação mudança (Callahan, 1994:29).
da problematização bioética, bastará referir
as actuais possibilidades da terapia génica, 3) Novos campos de problematização
abertas pelos avanços da biologia molecular, científica e social, como a ecologia e a
para mostrar como se trata de um processo saúde ambiental, a engenharia genética
imparável. O estado de permanente rev- e as biotecnologias, o crescimento de-
olução científica e tecnológica das últimas mográfico, a manipulação tecnológica do
décadas tem efectivamente consequências comportamento, etc..
bem mais vastas e profundas, tanto na
medicina como em todos os domínios O desenvolvimento tecnocientífico levan-
da investigação científica, contribuindo tou preocupações muito para além do
nomeadamente para um desafiar de alguns domínio biomédico, mas que não podiam
conceitos fundamentais das humanidades deixar de se espelhar nele. A consciência
médicas em particular e das humanidades dos perigos do desenvolvimento tecnocien-
em geral, em cujo contexto as mudanças na tífico tinha vindo a crescer desde que Robert
prática e no pensamento biomédicos não Oppenheimer, presidente do projecto Man-

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 23

hattan, contesta a bondade da física nuclear própria natureza, avessa a qualquer ética
aplicada a fins bélicos. Em termos porven- e de modo nenhum possui as condições
tura mais públicos, aquela consciência ganha necessárias à fundamentação de uma ética
impulso sobretudo a partir do momento em para a tecnociência. Na época do surg-
que começaram a notar-se os efeitos biológi- imento da bioética, a problematização da
cos a longo prazo da radioactividade nos responsabilidade científica tinha já percor-
sobreviventes do bombardeamento atómico rido um longo caminho e havia-se entretanto
de Hiroxima e Nagasaki, facto que marca cruzado com a preocupação ambientalista.
o nascimento do movimento anti-nuclear Episódios relevantes desse cruzamento e que
(Hens e Susanne, 1998:100) e não cessa de fazem parte da pré-história da bioética foram
se desenvolver na senda da competição tec- a catástrofe do smog de Londres, que em
nocientífica entre as grandes potências, no 1952 causou 4000 mortes (Hens e Susanne,
quadro da corrida ao armamento na época 1998:99) e a tragédia da chamada “doença
da guerra fria, mas também com o conheci- de Minamata” que afectava uma população
mento das devastações ambientais causadas de pescadores habitantes da baía com mesmo
pelas armas convencionais, como as bom- nome, no Japão, entre 1959 e 1965, e cuja
bas de napalm. Os desastres nucleares de contaminação maciça por resíduos industri-
grandes proporções, desde o de Three Mile ais de mercúrio esteve na origem de grande
Island, em Harrisburg, nos Estados Unidos, número de mortes e malformações congéni-
em 1979, ao de Chernobyl, na antiga União tas. Este caso deu também origem a uma
Soviética, em 1986, mais não fazem que iconografia fotográfica de extraordinária ex-
transformar a preocupação de sectores in- pressividade que muito contribuiu para a
formados e intervenientes na tragédia impo- dramatização de um dos maiores problemas
tente de muitos e na generalizada consciên- com que se confronta a humanidade contem-
cia pública dos perigos da tecnociência. Em- porânea. Em 1962, a publicação do livro
bora o tema da responsabilidade científica já Silent Spring, da bióloga americana Rachel
fosse esgrimido desde o século XIX pelas Carson, constitui um marco7 . Torna-se mod-
correntes religiosas num tom fundamental- elar das preocupações ecológicas a denún-
ista, anti-científico e anti-moderno, o caso cia aí feita do lento mas irreversível enve-
Oppenheimer constitui o episódio inaugu- nenamento ambiental por pesticidas como
ral da problematização da responsabilidade o DDT, então de uso generalizado e pos-
científica pelos próprios cientistas. O outro teriormente interdito nos países desenvolvi-
momento alto da consciência da responsabil- dos (Hens e Susanne, 1998:100; Soromenho-
idade científica surgiria com a moratória de Marques, 1998:31-32), isto bem antes de
Paul Berg, já na década de setenta. No o movimento ecológico adquirir expressão
entanto, e ao contrário do que entre nós política e social tão significativa como o
sustenta Luís Archer, não só o papel dos movimento “Verde” na República Federal da
próprios cientistas no questionamento ético Alemanha das décadas de setenta e oitenta,
da ciência teve um papel consideravelmente
modesto na emergência da bioética, como 7
Rachel Carson (1964), Silent Spring. London:
a racionalidade tecnocientífica é, pela sua Readers Union/Hamish Hamilton (ed. or.: 1962).

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24 António Fernando Cascais

até ao mais recente Greenpeace. Os termos gar e generalizar o processo até o transfor-
em que Rachel Carson se exprimia contin- mar numa questão pública de primeiro plano,
uam a ser aqueles com que se abordam ca- como o da encefalopatia espongiforme bov-
sos tão espectaculares como os dos gigan- ina e da sua contrapartida humana, a doença
tescos derrames de petróleo, desde o do Tor- de Creutzfeld-Jacob, e da sua relação causal
rey Canyon em 1967 e do Amoco Cadiz, em com aquilo que é a transformação de her-
1978, na costa da Bretanha francesa até ao do bívoros em autênticos carnívoros alimenta-
Exxon Valdez, já na década de 90, ao largo dos com rações feitas com base em produ-
da costa do Alasca, mas também os inúmeros tos provindos da sua própria espécie. Ao
exemplos comezinhos com que hoje nos con- mesmo tempo que o elo entre os comporta-
frontamos quotidianamente ao pé da porta. mentos colectivos - a poluição química e in-
Pode efectivamente dizer-se que a bioética dustrial - e os desiquilíbrios ambientais e a
e o ambientalismo contemporâneo nascem doença humana ficou bem estabelecido, uma
de um mesmo chão. Pelo menos três cam- relação semelhante entre o comportamento
pos podem mostrar-nos como estas duas pre- individual e as alterações do estado de saúde
ocupações confluem a determinados níveis: - o cancro, as malformações congénitas e
a saúde ambiental, as biotecnologias e a certas doenças degenerativas - principiava a
demografia. Com o avanço do tempo, a dar uma renovada legitimidade ao esboço de
preocupação com o ambiente per se, sem políticas de saúde pública voltadas para a
perder nenhum do seu vigor, viria a ser re- avaliação e o controle da manipulação bio-
tematizada em termos de saúde ambiental, química ou genética de produtos para con-
englobando os seres humanos enquanto seres sumo humano. O caso presente dos alimen-
vivos dependentes de um nicho ecológico, o tos transgénicos constitui o exemplo mais
que não deixa de constituir um certo deslo- significativo disto mesmo, assim como é em-
camento epistemológico de consequências blemático do outro campo em que as con-
não negligenciáveis. Pontos chave nesta cepções originárias da bioética e do ambien-
transformação são os acidentes de Seveso, talismo inicialmente se fundiam, isto é, o da
em Itália, em 1976, o primeiro grande aci- preocupação com as biotecnologias.
dente industrial com a libertação de diox- Na sequência da descrição da dupla hélice
ina, num complexo fabril da Hoffman-La do ácido desoxirribonucleico em 1953 por
Roche, e isto numa altura em que o mecan- James D. Watson e Francis H. Crick, as
ismo da acção biológica no organismo ainda potencialidades biotecnológicas da biologia
não tinha sido descrito, e da fábrica da molecular no controle sem precedentes da
multinacional Union Carbide, em Bhopal, moldura genética dos seres vivos, vegetais,
na União Indiana, em 1984, com a liber- animais e humanos, em breve se tornou si-
tação de isocianato de metilo que causou a multaneamente fonte de grandes expectati-
morte por gaseamento a pelo menos 3000 vas e não menores receios: a terapia génica,
pessoas. Casos mais recentes, que periodica- o reforço de traços genéticos desejáveis ou
mente dão origem às mais desencontradas até o melhoramento de espécies vegetais e
opiniões científicas e preocupações públi- animais para uso humano, senão mesmo o da
cas e privadas, mais não fazem que prolon- própria espécie humana, até culminar com

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 25

o Programa do Genoma Humano e as pos- Center. As Conferências de Asilomar mar-


síbilidades totalmente inéditas por ele aber- caram um novo estádio na consciência que
tas. Na origem de tais perspectivas es- a comunidade científica, o governo e a so-
tiveram as técnicas de recombinação in vitro ciedade tinham da responsabilidade dos ci-
do ADN, desenvolvidas pela primeira vez entistas e de que a investigação não tem lu-
em 1972, possibilitando a criação de organis- gar num vazio social e político. Diz Jonsen
mos transgénicos, ou seja, de organismos ge- que: “A questão ética que motivou a bioética
neticamente modificados, logo no ano imedi- desde os seus primórdios estava silenciosa-
ato. Depressa se tornaram patentes os inter- mente presente nas discussões de Asilomar:
esses comerciais na produção de micróbios, como deveríamos avaliar riscos para atin-
plantas e animais geneticamente modifica- girmos bens?” (Jonsen, 184). Foram elas
dos para uso humano, nomeadamente nas in- que lançaram as bases da institucionaliza-
dústrias alimentares. Em Janeiro de 1973, ção da revisão científica; poucos meses de-
um grupo de cientistas encabeçado por Paul pois, surgia na Universidade da Califórnia
Berg, da Universidade de Stanford, con- em São Francisco a primeira comissão de
vocou a primeira conferência de Asilomar biosegurança. por pares da investigação. Há
na qual foi proposta uma moratória volun- que lembrar que, por essa altura, os Esta-
tária sobre certas experiências de recombi- dos Unidos se encontravam ainda envolvidos
nação genética, tomada como um protela- na guerra do Vietname e nas conferências
mento voluntário da investigação com a fi- de Asilomar participou um certo número de
nalidade de adiar ou talvez mesmo de aban- cientistas preocupados nomeadamente com
donar futuramente as experiências científi- os usos da investigação com fins bélicos e
cas com o ADN recombinante cujos riscos com os usos sociais da ciência em geral –
não pudessem ser ainda cabalmente avalia- Paul Berg era inclusive um militante contra
dos, em particular aquelas que envolvessem a guerra (Jonsen, 1998:182-185; Krimsky,
a libertação de organismos geneticamente 1982:58-96).
modificados no meio ambiente (Krimsky, A questão do sobrepovoamento mundial,
1982:13-23). A proposta foi publicada em com os problemas conexos da distribuição de
1974 em revistas tão prestigiadas como a recursos alimentares escassos, extravazava
Science, a Nature e Proceedings of the Na- os estreitos limites da ciência demográfica
tional Academy of Sciences (EUA) e foi pos- para se tornar num assunto de interesse
teriormente objecto de acesa discussão na se- público em finais dos anos sessenta (Jon-
gunda Conferência de Asilomar sobre Peri- sen, 1998:13-14) e começar a ser enten-
gos Biológicos, em Fevereiro de 1974, onde dida a partir da questão mais vasta dos lim-
um grupo internacional de cientistas se re- ites do crescimento e do questionamento
uniu com o objectivo de avaliar os riscos da de um modelo de desenvolvimento mundial
nova tecnologia e estabelecer as condições em cujo seio não deixava de se cavar o
sob as quais a investigação poderia ou dev- abismo entre os países desenvolvidos e o en-
eria ser prosseguida. Nesta conferência par- tão chamado Terceiro Mundo. O primeiro
ticiparam vários juristas, alguns dos quais relatório do Clube de Roma, ou Relatório
estavam estreitamente ligados ao Hastings Meadows, sobre os “Limites do cresci-

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26 António Fernando Cascais

mento”, surge em 1972 (Hens e Susanne, natalidade. E com isto se retomava, decerto
1998:100; Soromenho-Marques, 1998:30) que noutros termos, mas à escala global,
Um pouco antes, em 1968, tinha apare- um problema que fêz escola no princípio do
cido o livro The Population Bomb, de Paul século e para o qual o darwinismo social em
Ehrlich8 , que em tom apocalíptico augura a geral e a higiene racial nazi propuseram uma
catástrofe a que inevitavelmente conduzirá solução cuja monstruosidade não se pode
um crescimento demográfico inestancável e deixar de ter em mente no modo como hoje
cuja republicação, em 1991, revela, mais se re-problematiza o assunto e há que lhe dar
do que a permanência, o agravamento do respostas que não repitam a inumanidade de
problema, agora ligado a fenómenos como outrora: “A dimensão ambiental da presente
o aquecimento global, a destruição das flo- crise social global significa, nesta viragem
restas equatoriais, a fome e a poluição (Hens de milénio, que as relações de poder entre
e Susanne, 1998:100), e que já na década grupos, sexos, etnias, classes, povos, Esta-
de noventa virá a tornar-se enfim tema pri- dos e gerações dependem da mediação que
oritário com a Conferência do Cairo. Al- os nossos modelos científicos, técnicos, cul-
iás, o tema da explosão demográfica foi turais e económicos estabelecem com a ‘Na-
caro a bioeticistas como Van Rensselaer Pot- tureza”’ (Soromenho-Marques, 1998:24). É
ter, que fez dele cavalo-de-batalha, e An- nestas águas que navega Van Rensselaer Pot-
dré Hellegers, que era mesmo especialista ter, quando afirma, na sua proposta originária
na área (Jonsen, 1998:302). Desde a dé- para a bioética: “a finalidade última (da
cada de sessenta, o acesso aos níveis ociden- bioética) deveria ser, não enriquecer as vi-
tais de bem-estar económico e de padrões de das individuais, mas prolongar a sobrevivên-
prestação de cuidados de saúde estavam na cia da espécie humana numa forma aceitável
ordem do dia e começavam a ser patentes de sociedade” (Potter, 1992:5). Embora a
as contradições dos modelos de desenvolvi- relação entre a preocupação (bio)ética, no
mento, ou seja, uma população afluente cada domínio da clínica e da prestação de cuida-
vez mais idosa que padece sobretudo de dos de saúde, e a preocupação ecológica es-
doenças de comportamento, no Norte de- tivesse já claramente estabelecida na origem
senvolvido, por oposição às massas do Sul, da bioética - como o atestam as obras não só
jovens e famintas, devastadas por doenças de Potter como de Hans Jonas - depressa elas
de ambiente, e um Norte onde prevalece a haveriam de divergir, do ponto de vista em
baixa mortalidade associada à baixa natali- que nos situamos, entre, por um lado, uma
dade, contra um Sul onde a elevada mortal- concepção reducionista da bioética e, por
idade não compensa, nem estatísticamente outro, a ecologia; aquela ligação só muito re-
nem de nenhuma outra maneira, a elevada centemente voltaria a ser recuperada por via
de uma reconstruída afinidade entre aquilo
8
Paul Ehrlich (1968), The population Bomb. New que Potter chamará a bioética global e a
York: Ballantine Books. A republicação do livro ecoética ou a ecofilosofia.
é feita em colaboração com a sua mulher; ed.
ut.: Paul R. Ehrlich e Anne H. Ehrlich (1993), A convergência entre ecologia e bioética,
La explosión demográfica. El principal problema em campos e a níveis discriminados, coloca
ecológico. Barcelona: Salvat Editores porém outro tipo de problemas e que tam-

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 27

bém têm que ver com as características orig- de comunidade a ser protegida à terra, com
inárias da preocupação ambiental. Tal como os seus recursos minerais, vegetais e an-
acontecia com as origens remotas do tema imais, para além dos seres humanos. O
da responsabilidade científica, numa atitude ideário conservacionista acaba por ser es-
anti-científica e anti-moderna de pendor re- pecífico de alguns traços culturais do mundo
ligioso, também o ambientalismo moderno anglo-saxónico, e também germânico, o que
enraíza no conservacionismo do século XIX, torna compreensível que a sua influência per-
cujas correntes dominantes preconizavam dure nas correntes contemporâneas da ecolo-
uma forma de respeito quase religioso pelo gia profunda do americano Arne Naess, nos
mundo natural e veiculavam uma desconfi- anos oitenta do século XX, ou na “Deep
ança profunda em relação à técnica enquanto Green Theory” dos australianos Richard Syl-
empresa humana de conquista da natureza. van e Val Plumwood (Hens e Susanne,
O ideário conservacionista remonta a mea- 1998:109). Não é também por acaso que os
dos do século XIX norte-americano e inglês, “Grüne” alemães tiveram uma pujança sem
com a atribuição do estatuto de protecção ao igual em qualquer outro país, assim como
vale do Yosemite, na Califórnia, em 1864, e reuniram no seu seio tanto os jovens univer-
a criação do primeiro parque natural, o Par- sitários urbanos pós-modernos como os últi-
que Nacional de Yellowstone (Soromenho- mos representantes da agricultura tradicional
Marques, 1998:25). A Manchester Associ- da antiga Prússia de sentimentos fortemente
ation for the Prevention of Smoke, criada pré e mesmo anti-modernos. Por outro lado,
em 1843, e as célebres Audubon Society, em a definição originária de ecologia parece re-
1886, e o Sierra Club, em 1892, nos Esta- montar a Ernst Haeckel, eminente biólogo
dos Unidos, foram as primeiras organizações alemão de século XIX, no seu discurso inau-
não governamentais de defesa do ambiente gural como docente de Botânica da Univer-
(Soromenho-Marques, 1998:27). O período sidade de Iena (Hens e Susanne, 1998:98).
entre 1902 e 1910 é frequentemente apon- Haeckel foi também um dos grandes inspi-
tado como o da fundação do actual movi- radores do eugenismo que dominou as ciên-
mento ecológico, com as mais representa- cias biomédicas de finais do século XIX e
tivas instituições a surgirem logo após, a que perdurou mesmo para além da medicina
British Ecological Society, em 1913, e a Eco- nazi e da Segunda Guerra Mundial. Neste
logical Society of America, em 1916 (Hens e caso, o passadismo religioso reconverte-se
Susanne, 1998:98). Uma das vozes mais in- na tecnociência biomédica que recupera em
fluentes no mundo norte-americano foi Aldo termos seculares as funções de controle so-
Leopold, com o seu célebre A Sand County cial dantes a cargo da religião.
Almanac9 , de 1949, no qual apregoa uma O que há de comum, por um lado, ao dar-
“land ethic” de retorno romântico a um ru- winismo social que culmina com a higiene
ralismo pré-mecanizado que alarga a noção racial nazi e o holocausto e a ideologia do
“sangue e terra” que lhes correspondem,
9
Aldo Leopold (1968), A Sand County Almanac. e, por outro lado, as correntes da ecologia
And Sketches Here and There. Oxford: Oxford Uni- profunda é o anti-humanismo. Algumas
versity Press (ed. ut.). correntes que pugnavam pelo regresso à

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28 António Fernando Cascais

natureza na Alemanha pré-nazi tinham um recusando à natureza qualquer valor ético


pendor decididamente conservador e consti- para além do proveito instrumental que
tuíram um contingente de recrutamento de dela se poderia retirar como matéria prima
quadros do Terceiro Reich. Rudolf Hess é indefinidamente disponível e cujos recursos
o mais célebre dos praticantes do naturismo com a maior candura e boa consciência
alemão que o nazismo conquistou e que se acreditava serem inesgotáveis. Ora a
justamente denominou o regime de biolo- restituição, à natureza, da dignidade de que
gisch, isto é, aquele que se lhe afigurava a ciência a tinha destituído, quando operada
ser o único consentâneo com os ditames da a partir de categorias mediante as quais se
natureza e que por isso mesmo garantia a pretende interpretar de modo normativo as
sobrevivência da espécie humana, ou talvez, concepções científicas, pode efectivamente
melhor dizendo, dos representantes dela traduzir-se em atitudes anti-humanistas e
por excelência, a raça ariana, em perigo precipitar uma inumanidade equivalente
devido à reprodução desenfreada das raças àquela de que os cientistas costumam acusar
inferiores ou de membros degenerados da a superstição. Parafraseando a célebre frase
raça superior. O anti-humanismo da ecolo- de Goya, é como se a vigília da razão fosse
gia profunda, por sua vez, consiste no seu tão responsável pela monstruosidade como o
biocentrismo, isto é, no facto de privilegiar sono dela. Um desenvolvimento recente da
a biosfera como depositária fundamental do bioética levanta precisamente esta questão
valor, ao qual as preocupações com os seres a partir da fundamentação biológica dos
humanos se devem vergar. Do ponto de vista direitos, já não apenas do homem, mas
da ecologia radical, perante a salvaguarda dos animais. Ora, a actual pretensão de
dos últimos exemplares de uma espécie fundar direitos em dados biológicos não
em extinção e o respeito pela vida de um é diferente do modo como os ideólogos
bebé africano a morrer de fome num mundo nazis legitimavam as prerrogativas da raça
que se diz sobrepovoado, a opção pelos ariana, que começava com um direito pri-
primeiros é inequívoca. Esta atitude não é mordial ao espaço vital. Assim como fundar
destituída de perigosas semelhanças com direitos em dados biológicos é simétrico
outras atitudes no campo da saúde ambiental de os retirar com igual fundamento, facto
e da bioética mais recente. Na perspectiva que se prefigura no nosso horizonte se o
da saúde ambiental, os seres humanos, conhecimento genético preditivo, sobretudo
enquanto seres vivos, equiparam-se a toda a na sequência do mapeamento integral do
biosfera na qualidade de vítimas potenciais genoma humano, for utilizado como critério
em permanente risco e cuja vida e saúde há de selecção no mercado de trabalho ou
portanto que salvaguardar como condição pelas companhias seguradoras. Tanto não
mesma de tudo quanto possa ser a sua faria mais que consumar o processo da
humanidade. Em contrapartida, a biosfera, e biopolítica moderna, tal como começou
em particular os animais, readquirem como por descrevê-lo Michel Foucault e depois o
tal, e na medida do perigo que correm, prosseguiu Giorgio Agamben10 , para quem
uma dignidade de que a ciência moderna
10
os tinha destituído desde o século XVII, Agamben desenvolveu a sua reflexão sobre a

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 29

o paradigma biopolítico da modernidade não insuspeito de defender posições semelhantes


é já a antiga polis grega, onde imperava o às da biomedicina nazi, Singer foi no
jogo racional mediado pela palavra humana, entanto impedido violentamente de realizar
mas antes o campo de concentração, onde conferências na Áustria por manifestantes
o que prevalece é aquilo que ele chama a que o acusavam de fazer a apologia da
vida nua, ou seja, a matéria prima do corpo mundividência nazi com as suas posições
indefinidamente manipulável. Neste sentido, acerca do respeito pela dignidade dos ani-
o eixo biocêntrico, que em certas correntes mais. A título de memória instrutiva, que
da bioética contemporânea almeja contrabal- não exactamente de fábula moral, poderá
ançar o antropocentrismo caduco que desde mesmo assim observar-se que a primeira
há muito foi responsável pela deplecção legislação de protecção do bem-estar dos
dos recursos naturais, bem se pode ter na animais de experimentação foi promulgada
conta de um prolongamento da biopolítica em 1933 pelo regime nazi, pouco antes
na sua dimensão mais decididamente anti- das leis de Nuremberga, que retiravam aos
humanista e por isso mesmo susceptível de membros das raças inferiores a cidadania
precipitar os desenvolvimentos mais inu- alemã, dando-se assim o primeiro passo na
manos. Com efeito, a protecção dos animais senda que conduziria ao extermínio12 .
não humanos e o reconhecimento de direitos
com base na sensibilidade à dor, que eles 4) Irrupção de novos movimentos
têm em comum com os animais humanos, sociais que levantam questões de recorte
repõe o biocentrismo no centro dos debates biomédico.
(bio)éticos mais recentes. É deste modo
que chega a propôr-se a substituição dos Não pode ser negligenciada a importância
animais de experimentação, nos ensaios dos movimentos sociais que irrompem nas
clínicos, por seres humanos doentes. Peter sociedades ocidentais sobretudo após a Se-
Singer é um dos nomes proeminentes da gunda Guerra Mundial, e especialmente nos
bioética que mais finamente desenvolveu anos sessenta e setenta, sobretudo aqueles
esta problemática na sua já célebre Liber- com incidência biopolítica directa. O que
tação animal11 . Descendente de judeus e está em jogo na relação entre os movimen-
tos sociais e as questões biomédicas é, uma
biopolítica sobretudo em: Giorgio Agamben (1997), vez mais, o sentido emancipatório das tec-
Homo sacer. Le pouvoir souverain et la vie nue. Paris: nologias biomédicas. E uma vez mais, é de
Éditions du Seuil, no qual desenvolve a tese de que o
um sentido ambivalente que se trata, con-
paradigma biopolítico da modernidade é o campo de
concentração e já não a polis grega clássica; V. tam- sistindo a sua duplicidade, por um lado, no
bém: Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: controle público das condutas privadas que
Éditions du Seuil, 1995 e Ce qui reste d’Auschwitz. nunca deixou de crescer na razão directa da
Paris : Éditions Payot et Rivages, 1999.
11 Repensar la vida y la muerte. El derrumbe de nuestra
Peter Singer (1999) Liberación animal. Madrid:
Editorial Trotta; para melhor se compreender o pen- ética tradicional. Barcelona: Paidós, 1997.
12
samento de Singer, V: “Bioethics and Academic Free- É isto mesmo que lembra Luc Ferry em (1992),
dom”, Bioethics, 4 (1), 1990: 33-44; Ética prática. Le nouvel ordre écologique. L’arbre, l’animal et
Cambridge: Cambridge University Press, 1995 e l’homme. Paris: Grasset: 181-186.

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30 António Fernando Cascais

medicalização da sociedade, e, por outro, na Wade, que, em 1973, esteve na origem da al-
exploração das possibilidades tecnocientífi- teração legislativa que deu início à liberaliza-
cas no sentido do desenvolvimento de novos ção da prática da interrupção voluntária da
estilos de vida que exercem pressão con- gravidez (Callahan, 1986:49). Alvos perma-
stante sobre os limites de tolerância social no nentes da crítica feminista continuam a ser,
quadro das sociedades abertas em que vive- por exemplo, os critérios economicistas de
mos. Os movimentos feministas, gays e lés- selecção de candidatos a ensaios clínicos, as
bicos foram aqueles que de forma mais pro- políticas totalitárias de limitação da natali-
funda, duradoura e consequente se empen- dade, com recurso a práticas como a ester-
haram na crítica do poder e do saber médi- ilização compulsiva e a interrupção forçada
cos, e da tecnociência em geral, como in- da gravidez, mas também a educação e a in-
strumentos de controle social, e que no seu formação sexual como forma de combate à
seio deram corpo a um número substancial prática da mutilação feminina em certas cul-
de estratégias de resistência a ele. Desde os turas. A progressiva feminilização da profis-
tempos mais heróicos do sufragismo nove- são médica, assim como da ciência e do en-
centista que, em paralelo com a luta pelos sino médicos, teve também enormes conse-
direitos cívicos, se desenvolvia um trabalho quências na abordagem biomédica do corpo
e um combate mais lentos, mais morosos e e da saúde da mulher. Em contrapartida,
talvez mais discretos, no campo da saúde das novas tecnologias biomédicas, sobretudo no
mulheres, dos seus direitos reprodutivos e da campo da medicina da reprodução, foram
sua sexualidade, mas também da informação apropriadas pelos movimentos feministas no
e da educação sexual dirigida a toda a so- sentido de servirem móbeis emancipatórios
ciedade, e isto de um modo já então alterna- da condição feminina, tais como a satis-
tivo ao higienismo que na época se ocupava fação da reivindicação da livre disposição do
das mesmas questões mas num sentido bem próprio corpo pela separação entre sexuali-
diferente. Segundo Reich, os acesos debates dade e reprodução, com todas as decorrentes
em torno do controle da fertilidade, longa consequências na vida individual e social. O
batalha da célebre Margaret Sanger (Jonsen, caso exemplar sempre citado a este respeito
1998:298-299), desempenharam um papel é o da pílula contraceptiva, a qual constituiu,
crucial na emergência da bioética: “e num desde a década de sessenta, a realização téc-
sentido bem real, muita da enorme energia nica, concreta e eficaz, de uma reivindicação
que foi canalizada para a bioética por volta antiga, até então apenas possível de ser satis-
de 1970/71 era energia desviada dos debates feita a nível simbólico. No entanto, a pílula
religiosos então cada vez mais fúteis acerca contraceptiva foi apenas o ponto de partida
do controle da fertilidade” (Reich, 1999:37). da canalização das possibilidades tecnocien-
Por outro lado, todo o debate contemporâneo tíficas no campo da medicina da reprodução
à volta do aborto, que continua a ser ponto para a persecução de modos de vida alter-
central nas discussões bioéticas, teve um mo- nativos à família heterossexual nuclear tradi-
mento alto nos Estados Unidos ao mesmo cional. Pense-se apenas no caminho percor-
tempo que surgia a bioética enquanto dis- rido pela fertilização in vitro, que permitiu
ciplina e discurso, com o caso Roe contra o nascimento do primeiro “bebé-proveta”,

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 31

Louise Brown, em 1978, no Reino Unido Americana, no início dos anos setenta e
(Jonsen, 1998:308), até aos actuais e futuros pouco depois da revolta de Stonewall que
préstimos da inseminação artificial para os marca o começo dos movimentos gays e
casais de mulheres lésbicas. lésbicos contemporâneos. Assistia-se então
A repercussão da fortíssima tradição ao advento de uma ciência pós-normal -
de associativismo e de participação cívica não necessariamente no sentido que Kuhn
norte-americana na emergência da bioética poderia atribuir ao termo - que a pouco
de modo algum se resume aos movimentos e pouco deixava de observar as minorias
feministas. Associações cívicas como as sociais sob o prisma do desvio e da normal-
de doentes e de consumidores remontam ização, ou seja, como objectos indefesos e
pelo menos às primeiras décadas do século vulneráveis de experimentação biomédica
XX, como a Associação Americana de compulsiva com o móbil da promoção de
Consumidores, onde, já na década de cin- um superior bem colectivo. Recordemos que
quenta, pontifica Ralph Nader, advogado as experiências de Tuskegee se realizaram
novaiorquino que se notabilizou pela feroz sobre negros pobres e que boa parte da
defesa dos direitos dos consumidores (Hens população institucionalizada sempre se
e Susanne, 1998:99). Estes movimentos recrutou entre os grupos sociais minoritários
deram um contributo decisivo para o afina- e de algum modo discriminados, à parte
mento dos critérios da qualidade, e a prática a sua condição de pacientes. Com efeito,
efectiva da sua exigência, na prestação como anteriormente vimos, os indivíduos
de cuidados de saúde, assim como para a e grupos de algum modo discriminados
criação de um público informado e atento e vulneráveis por razões não necessaria-
de “concerned citizens”. Os direitos dos mente médicas, mas também por elas e por
pacientes constituíram, por outro lado, acréscimo, sempre constituíram fonte de
uma preocupação central no pensamento recrutamento para experimentação humana
de Daniel Callahan, na época em que em virtude da sua disponibilidade, e que,
fundou o Hastings Center. Comum a estes neste sentido, boa parte da literatura ref-
movimentos sociais é a sua ênfase, de erente à regulação da experimentação se
resto afim do espírito de Nuremberga, na debruça sobre a protecção destes indivíduos
autodeterminação e na autonomia como e grupos específicos. Melhor, estamos hoje
pressupostos fundadores da defesa dos em condições de saber que foi nas pessoas e
direitos civis, o que teve um impacto directo nos corpos deles que os regimes e as institu-
na tradicional relação entre médico e doente ições totalitárias sempre ensaiaram os seus
e entre a profissão e a ciência médicas mais altos vôos de controle de sociedades
e a sociedade em geral, com contributos ou populações inteiras. Neste contexto
essenciais na superação do paternalismo alargado de mudança social e de desafio à
médico e das funções de controle social medicalização global da sociedade moderna
da biomedicina. É neste sentido que devem também entender-se movimentos
constituiu um marco histórico a exclusão como a anti-psiquiatria e a crítica global
da homossexualidade da lista de doenças da institucionalização, que se encontrava
mentais, pela Associação Psiquiátrica já in nuce nas controvérsias suscitadas

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32 António Fernando Cascais

pela leucotomia pré-frontal de Egas Moniz dos próprios pacientes, na época da fun-
e o seu posterior desenvolvimento como dação dos primeiros centros de investigação
lobotomia, por Watts e Freeman nos Estados em bioética e pela mesma altura em que o
Unidos, uma das discussões com maior uso político da psiquiatria contra dissidentes
impacto na consciência pública antes dos da União Soviética se começava a divulgar
anos sessenta e que regista uma viragem ab- e a discutir. Com o tempo, as ciências do
solutamente essencial na história do controle comportamento haveriam de tomar o rumo
social medicalizado (Jonsen, 1998:100, 102, da abordagem biográfica da saúde e da
105)13 . No movimento anti-psiquiátrico doença e de serem percebidas e utilizadas
pontificavam entretanto as obras de Thomas como instrumento de (re)construção de
Szasz, David Cooper e Ronald Laing, com identidades individuais e colectivas, como
influência no mundo anglo-saxónico, ao acontece actualmente com as correntes da
mesmo tempo que em França surgiam as teoria queer e da psicoterapia afirmativa.
teses doravante clássicas de Robert Castel e Com efeito, foi no âmbito da psicologia
de Michel Foucault14 , além de associações e da psicoterapia contemporâneas que se
recompôs de modo mais espectacular um
13
Sobre a psicocirurgia de Egas Moniz, Walter paradigma científico em que outrora imper-
Freeman e James Watts e as controvérsias científicas aram a psiquiatria e a antropologia biológica.
e ético-políticas por ela suscitadas, V. A. Fernando
Cascais (2001), “A cabeça entre as mãos. Egas Mo-
niz, a Psicocirurgia e o Prémio Nobel”, in João Ar- 5) A contestação de paradigmas médi-
riscado Nunes e Maria Eduarda Gonçalves, orgs. et cos dominantes e do sentido e fins últimos
al., Enteados de Galileu? A semiperiferia no sistema da prestação de cuidados de saúde.
mundial da ciência. Porto: Edições Afrontamento:
291-359.
14
V. nomeadamente: Thomas Szazs (1978), Es- Na verdade, o Julgamento dos Médicos
quizofrenia. O símbolo sagrado da psiquiatria. Lis- e o Código de Nuremberga constituem o
boa: Publicações Dom Quixote – ed. or.: 1977 maior golpe jamais desferido na antiquís-
e (1988), The Theology of Medicine. The Political sima tradição do paternalismo hipocrático
Foundations of Medical Ethics. Syracuse: Syracuse
University Press – ed. or.: 1977; David Cooper
que consagrava uma relação carismática en-
(1983), A linguagem da loucura. Lisboa: Edito- tre o médico que decide a sós, sem o con-
rial Presença – ed. or.: 1978; David Cooper e curso do seu paciente e por ele, a beneficên-
al. (1977), Psiquiatria e antipsiquiatria em debate. cia da sua intervenção diagnóstica, pre-
Porto: Afrontamento; Ronald D. Laing (1979), A ventiva ou terapêutica. De resto, a ética
psiquiatria em questão. Lisboa: Editorial Presença;
Ronald Laing, J. L. Fabregas e A. Calafat (1978), hipocrática é uma ética da virtude que as-
A política da psiquiatria. Lisboa: Moraes Editores; socia rigor da arte a pureza ritual, equação
Thomas Szazs (1978), Esquizofrenia. O símbolo esta que a antropologia mostra ser um traço
sagrado da psiquiatria. Lisboa: Publicações Dom histórico universal que não se restringe ao
Quixote – ed. or.: 1977 e (1988), The Theology
mundo helénico da Antiguidade, mas que
of Medicine. The Political Foundations of Medical
Ethics. Syracuse: Syracuse University Press – ed. or.: marcaram particularmente toda a tradição
1977; Robert Castel (1978), L’ordre psychiatrique.
L’âge d’or de l’aliénisme. Paris: Éditions de Minuit e déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris:
toda a obra de Michel Foucault desde (1961), Folie et Plon.

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 33

das “maneiras de cabeceira” da medicina antigas na medicina hipocrática e no seu


ocidental (Jonsen, 1998:6). A era da medic- princípio de beneficência, um pilar da vir-
ina científica moderna mais não faz do que tude médica ao longo dos séculos, mas de
agravar o paternalismo: a sofisticação tec- acordo com o qual a definição do bem do
nocientífica torna a antiga arte médica her- doente era responsabilidade e privilégio do
mética ao olhar leigo, ao mesmo tempo que médico, que tinha o direito de o prosseguir
a medicina não é já uma medicina do pa- mesmo contra a vontade do doente, olhado
ciente individual, mas de uma população como essencialmente incompetente. O pa-
em que a singularidade deste se vê sufo- ternalismo médico não deixou de se re-
cada. Doravante, o juízo da cientificidade forçar consideravelmente durante o processo
da intervenção médica ficava exclusivamente histórico da biopolítica, com a medicaliza-
cometido à comunidade dos pares iniciados ção generalizada da vida nas sociedades oci-
no saber médico, que detêm o múnus da dentais dos dois últimos séculos, sobretudo
transmissão deste e da certificação do ex- quando a relação do médico com o pa-
ercício profissional. Regulação exclusiva- ciente individual passa a institucionalizar-
mente paritária das actividades médicas e se no hospital e noutros serviços estatais de
absorção da beneficência pela cientificidade prestação de cuidados de saúde. A medic-
são pois o verso e o reverso da moderna ina massifica-se numa medicina das popu-
medicina científica. Ora as transformações lações, cuja saúde se torna assunto de inter-
por que passou a relação médico-doente con- esse público e matéria cometida ao Estado,
stitui um dos aspectos mais frequentemente e a prática da medicina cada vez mais de-
mencionados pelo seu peso nas origens das pendente das políticas estatais de saúde. Ora
discussões bioéticas. É comum resumir-se a sofisticação tecnocientífica da biomedic-
aquelas transformações à crise do modelo ina levou paradoxalmente à erosão do pa-
paternalista que tradicionalmente regia a re- ternalismo clássico na medida em que sub-
lação médico-paciente, progressivamente su- stituiu o antigo carisma do médico individ-
plantado por uma crescente consideração da ual pela inacessibilidade da linguagem cien-
autonomia deste último. A verdade é que, tífica aos olhares leigos, mas que, por in-
por um lado, o reconhecimento da autono- termédio da especialização, se voltou tam-
mia do paciente é corolário da crise do pa- bém contra o próprio médico, que assim se
ternalismo, mas, por outro lado, nem o re- depara paternalista a despeito de si mesmo.
conhecimento da autonomia se ficou a de- Nomeadamente, a sofisticação tecnocientí-
ver à boa vontade da classe médica, nem fica contribuiu de decisivo para erodir a clás-
a crise do paternalismo se resume à ordem sica autoridade do mestre com a sua exper-
jurídico-política, mas antes se trata em boa iência, o seu “olho clínico” criado à custa
medida de uma questão da ordem técnica. de tempo e maturidade. A actual corrente
Com efeito, foi o próprio desenvolvimento da medicina baseada na evidência (evidence
tecnocientífico que alterou as condições de based medicine) é um claro indício disto
exercício profissional da medicina e teve mesmo (González, 1998:423-425).
por efeito a erosão do paternalismo clás- Na sequência dos Julgamentos de Nurem-
sico. O paternalismo médico possui raízes berga, assistiu-se a uma generalizada conde-

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34 António Fernando Cascais

nação da anamorfose nazi do paternalismo ternativas terapêuticas dão renovada ênfase


médico. A suspeição acerca dos fins últi- à autonomia do paciente, estimulado para
mos da medicina e da legitimidade do pa- compartilhar com o clínico a responsabili-
pel da medicina como meio de controle so- dade na tomada de decisões, na definição
cial, e não necessariamente em condições de um padrão pessoal de qualidade de vida
totalitárias, não foi tão imediata e general- assim como no desenvolvimento de com-
izada, porém. Um primeiro sintoma daquela petências próprias, nomeadamente quando
suspeição pode mesmo assim detectar-se lhe é possível ocupar-se do seu tratamento;
na Declaração Universal dos Direitos do os insuficientes renais crónicos em fase
Homem de 1948, na qual o direito ao próprio terminal, que se auto-dialisam sob super-
corpo é pela primeira vez estatuído contra os visão médica, constituem porventura exem-
interesses do Estado ou da sociedade, de um plo paradigmático deste fenómeno. Além
modo que recupera de forma renovada, a da disso, a existência de novas tecnologias di-
defesa dos direitos individuais, o princípio agnósticas, a cargo de outros profissionais
iluminista da autonomia. Seria necessário especializados que não o médico, contribui
chegar aos anos sessenta e setenta para que para que o processo que conduz ao diagnós-
tal suspeição se transformasse em princí- tico se torne mais transparente aos olhos do
pio político organizador de movimentos so- doente, que se torna mais crítico e exigente
ciais e pelo menos até aos de noventa para em relação ao médico que, por sua vez, tende
que se procedesse a uma reavaliação global a ser considerado, não como a figura pater-
dos fins da medicina (Allert et al., 1996). nal dotado de inquestionáveis bondade e au-
A autonomia do indivíduo, quer como pa- toridade, mas sobretudo como um técnico
ciente, quer como cidadão, começa a par- que presta um serviço especializado. Este
tir daí a ser reivindicada em tom cada vez processo é frequentemente percebido pelo
mais insistente e elaborado, mas este pro- médico como uma perda de controle da sua
cesso não deveria ser entendido apenas em prática, tanto mais quando o diagnóstico e
termos éticos, isto é, ser avaliado pelo seu até mesmo a terapêutica têm de depender de
presumível progresso ético, ainda que o seja, especialidades estranhas à clínica, como a da
porque de facto a autonomia do paciente biologia molecular, cuja liberdade de inves-
tem sido estimulada pelo próprio desenvolvi- tigação chega a ser invejada pelos médicos
mento, e por mor da eficácia, das tecno- que dela dependem mas que não é tolhida
ciências biomédicas. A existência de no- pelos constrangimentos próprios da prática
vas tecnologias terapêuticas, que permitem a e da investigação clínicas. Outra caracterís-
transformação de doenças anteriormente fa- tica que contribui para aquele sentimento de
tais a curto prazo em doenças crónicas de perda de controle do processo de cura é a
sobrevivência prolongada, contribuiu para o extrema especialização médica15 , que garan-
alargamento da expectativa de vida de cres- tiu a eficácia terapêutica, mas que cada vez
centes massas de doentes crónicos termi- mais é sentida como um obstáculo a uma
nais, cuja activa cooperação se tem que con-
fiar a bem da própria eficácia do tratamento; 15
V. Karl Jaspers (1998), O médico na era da téc-
por outro lado, um mais vasto leque de al- nica. Lisboa: Edições 70.

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 35

abordagem global das necessidades do pa- artista, pois que a sua liberdade de expressão
ciente. Quando hoje se tem por adquirido é limitada, mas num artesão especializado
que toda a afecção somática é acompan- que produz corpos “ready-made” conformes
hada de conflito psíquico, que por sua vez aos critérios convencionais de beleza do
a experiência da doença é determinada pelo paciente/cliente que lhe encomenda alter-
património cultural do paciente, a relação ações à sua aparência17 . Dois exemplos
deste com o médico pelo seu grau de litera- maiores, mas de sentidos diferentes, deste
cia científica e a capacidade de definir para fenómeno geral, atestam bem a essencial
si próprio e negociar com o clínico o sentido ambiguidade do desenvolvimento das tecno-
biográfico do tratamento pela sua competên- ciências biomédicas. As intervenções para
cia como doente e como cidadão, a especial- mudança de sexo, hoje prática corrente, mas
ização médica torna-se assim um autêntico a primeira das quais data de 1955, com um
obstáculo a uma relação terapêutica que não transsexual dinamarquês, que parecem ex-
seja para ambos, doente e médico, uma fonte tremar o sentido emancipatório das tecno-
de sofrimento e tensão equiparável aos da ciências biomédicas canalizadas para a per-
própria doença16 . secução de estilos de vida alternativos (Mori,
O desenvolvimento tecnocientífico have- 2000:736). E o chamado eugenismo “de
ria de redefinir de outro modo ainda o en- consumo” ou “à la carte”, com a possibili-
tendimento da relação entre o médico e o dade de selecção genética de bebés com as
doente como cliente e como cidadão que for- características desejadas pelos progenitores
mula solicitações que vão muito para além - qualquer espécie de progenitores - sus-
da terapêutica e, por extensão, o valor e a ceptível de repetir, no quadro dos regimes
finalidade da medicina na satisfação de pe- democráticos e com a legitimidade do re-
didos e necessidades inéditas e que não se speito pelos direitos, liberdades e garantias
enquadram nas áreas clássicas da biomedic- dos seus cidadãos-consumidores, as políti-
ina, a prevenção, o diagnóstico e a terapêu- cas eugenistas compulsivas dos Estados to-
tica. Com efeito, um crescente número e talitários passados ou presentes18 .
variedade de solicitações extra-terapêuticas O desafio ao paradigma prevalecente da
foram dirigidas às competências que a classe medicina, vindo quer do interior quer do
médica é vista como a melhor posicionada exterior do domínio biomédico, foi na ver-
para oferecer. Trata-se, obviamente, da ma- dade muito para além do questionamento do
nipulação do comportamento, por meios far- paternalismo médico e do papel da medicina
macológicos ou cirúrgicos, em todos os cam- como meio de controle social. A tal ponto a
pos da vida, desde a melhoria da prestação mudança de paradigma é profunda e extensa
desportiva, à dietética, ao controle do sono
17
e da vigília, do humor e da sensibilidade, V. o esclarecedor artigo de Soren Holm (2000),
à medicina estética que está em vias de “Changes to bodily appearance: the aesthetics of de-
liberate intervention”, Journal of Medical Ethics -
transformar o cirurgião estético, não num Medical Humanities, 26 (1): 43-48.
18
V. especialmente: Jean-Noel Missa e Charles Su-
16
V. Hans-Georg Gadamer (1997), O mistério da sanne, eds. et al. (1999), De l’eugénisme d’État à
saúde. Lisboa: Edições 70. l’eugénisme privé. Bruxelles: De Boeck.

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36 António Fernando Cascais

que Mori propõe substituir definitivamente do que se haveria de tornar um caudal de


o termo de medicina pelo de cuidados de literatura de reflexão crítica, epistemológ-
saúde (Mori, 2000:735). Neste sentido, ica e política, das ciências da saúde e da
em finais dos anos sessenta, princípios de vida e que hoje é apanágio dos campos,
setenta, a crítica externa à medicina definia actualmente pujantes, dos estudos culturais
como alvo primordial o crescimento dos da ciência e da medicina. As primícias de
poderes médicos e apontava como emblema uma mudança de paradigma na medicina,
a iatrogenia resultante da própria eficácia juntamente com uma crítica mais ou menos
médica. O que se punha em questão era radical dos seus principais avatares, con-
o paradigma alopático da medicina e a tribuíram para moldar o ambiente social e
agressividade das intervenções terapêuticas, intelectual que testemunhou o nascimento
um modelo que remontava às políticas de da bioética (Allert et al., 1996). Remonta a
saúde pública do século dezanove e que esses tempos o lento processo de avaliação
atravessava toda a moderna medicina clínica. e redefinição de fundo dos fins da medicina
Mas, ao mesmo tempo que se encontrava que haveria de ser prosseguido já de maneira
a caminho uma mudança de paradigma reflectida e formal pela própria bioética.
segundo uma dinâmica interna à medicina Esse processo culminou com a formação
(Mori, 2000:732-743), pela mesma altura de um grupo composto por especialistas
a profissão médica tendia a desconsiderar, internacionais provindos tanto de países que
como anti-médicas, as críticas radicais que ocupam um lugar central na produção cien-
atacavam o paradigma do exterior, oriundas tífica e na prestação de cuidados de saúde
nomeadamente de perspectivas ligadas como países periféricos, à frente dos quais
ao surgimento das várias correntes das se encontra o bioeticista Daniel Callahan
medicinas chamadas alternativas, holísticas, (Callahan, 2000:680), e um projecto de
homeopáticas, da recuperação de tradições investigação cujos trabalhos foram dados
médicas não-ocidentais, dos programas por terminados em 1996-1997 (Callahan,
desinstitucionalizadores da antipsiquiatria, 1999:66). Concluiu-se que a medicina
ou de obras tão contundentes e de tão grande deveria perseguir quatro fins maiores: a pre-
repercussão na época como a da crítica venção da doença e do dano e a promoção e
neo-marxista da medicina por Ivan Illich19 manutenção da saúde, o alívio da dor e do
e das obras de René Dubos20 e de Hans sofrimento causado pelas doenças, o cuidado
Jonas21 , que se contam entre os pioneiros e a cura das pessoas doentes e o cuidado
19
daqueles que não podem ser curados, o evi-
Ivan Illich (1977), Limites para a medicina. Lis-
boa: Livraria Sá da Costa Editora e (1996), “Brave
New Biocracy: A Critique of Health Care From The Phenomenon of Life. Toward a Philosophical Bi-
Womb to Tomb”, in Jennifer Chesworth, ed. et al., ology. New York: Harper & Row, 1966. Aliás, nesta
The Ecology of Health. Identifying Issues and Alter- obra surge um texto, “The Practical Uses of Theory”,
natives. London: Sage: 17-29. resultante de uma conferência originalmente publi-
20
René Dubos (1959), Mirage of Health: Utopias, cada em alemão em 1959, e que é o texto seminal de
Progress and Biological Change. New York: Harper uma reelaboração conceptual que Jonas prosseguiria
& Row. até formular o seu Imperativo Responsabilidade, já
21
Hans Jonas foi um desses pioneiros com o seu em 1979.

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 37

tamento da morte prematura e a prossecução escolhas e a dignidade humanas (Allert et


de uma morte serena. Como implicações al., 1996:S1-S27).
práticas da redefinição dos fins da medicina,
apontam-se como prioridades: “Deveria ser 6) A necessidade de uma ética para a
desenvolvido um modelo de investigação era da tecnociência e, simultaneamente, a
que incorpore a peritagem em epidemiologia crise da fundamentação de toda a ética.
e saúde pública para proporcionar uma
compreensão mais vasta das várias doenças A evidência de que a tecnociência mod-
presentes na sociedade. Deveria dar-se erna apresenta problemas inteiramente novos
início a esforços para desenvolver sistemas que requerem abordagens igualmente novas
de saúde com um sólido núcleo de prestação em vários campos de investigação propor-
de cuidados primários e de emergência e cionou uma nova consciência da respons-
levar em consideração as necessidades dos abilidade da ciência e, por extensão, da so-
membros mais frágeis da sociedade. Deveria ciedade, entre os cientistas e em particular
ensinar-se aos estudantes de medicina que entre os médicos e os filósofos. Muito antes
a morte é inevitável e que nem sempre eles da emergência da bioética, já a sociologia da
serão capazes de curar. Têm de aprender a ciência e a filosofia da técnica tinham em-
abordar os problemas da doença crónica. Os preendido uma extensa inquirição acerca dos
novos médicos têm também de ter formação efeitos de ambas na modelação da sociedade
em economia, nas humanidades e na organi- moderna. No entanto, essa inquirição, de
zação dos cuidados de saúde para poderem indiscutível importância a todos os títulos,
estar à altura das realidades económicas dos não envolveu os próprios cientistas e pode
sistemas de saúde contemporâneos” (Allert, ser encarada como uma preocupação mais
et al., 1996:S1-S27). Como fins médicos ou menos privada de académicos no domínio
equívocos, denunciam-se nomeadamente “o das humanidades, sem referência a qual-
uso de informação da saúde pública para quer tipo de preocupação pública. Aliás, a
justificar antidemocraticamente a coerção crítica radical da racionalidade instrumental
de vastos grupos de pessoas no sentido da ciência moderna fazia escola pelo menos
de modificarem os seus comportamentos desde Friedrich Nietzsche, passando pela
‘doentios’. No outro extremo, a medicina hermenêutica de Wilhelm Dilthey a Martin
não pode ter por fim o bem-estar do indiví- Heidegger e a fenomenologia de Edmund
duo para além do fim de uma boa saúde. A Husserl a Merleau-Ponty, anteriormente à
medicina é também incapaz de determinar emergência do tema de uma ética para a
o bem global da sociedade” (Allert et al., era da técnica e não deixaria de fundamen-
1996:S1-S27). Finalmente, como forma de tar esta, mas, uma vez mais, aquela riquís-
obviar à possibilidade de abuso ou mau uso sima reflexão filosófica não correspondia ao
dos fins da medicina, esta deveria aspirar a tipo de preocupação pública a que a ética
ser honrosa e a controlar a sua própria vida para a técnica se vocacionava para dar re-
profissional, a ser temperante e prudente, a sposta. Por outro lado, desde finais do século
ser economicamente acessível e sustentável, dezanove que a abordagem da sociedade in-
a ser justa e equitativa e a respeitar as dustrial e tecnocientífica moderna como uma

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38 António Fernando Cascais

sociedade anómica e decadente constituía sumível progresso que ela acarretaria, é hoje
um dos temas maiores da sociologia da cul- brandido contra os cientistas sobretudo pelas
tura, mas estava longe de ser partilhada pelos correntes imbuídas de misticismo da con-
próprios cientistas, que defendiam uma visão tracultura radical, ou inclusive da ecolo-
essencialmente positiva da ciência e da tec- gia profunda, que defendem uma forma ex-
nologia como instrumentos da persecução de trema de cepticismo e suspeição a respeito
bens humanos, isto é, como instrumentos de da moderna sociedade tecnocientífica e que
progresso. Esta visão sempre foi largamente frequentemente propugnam o retorno a for-
partilhada pelos médicos e a sua concepção mas sociais e modos de vida pré-modernos
de progresso sanitário, cujos principais con- como única alternativa a um futuro apoc-
tendores podiam normalmente encontrar-se alíptico. Na outra ponta do panorama cul-
no campo teológico. Com efeito, o debate tural, as correntes tecnocráticas de pensa-
entre a ciência e a religião marcou várias mento continuaram a sustentar uma visão de
gerações e polarizava-se entre reivindicações progresso mais ou menos indefinido e cumu-
opostas da bondade quer da ciência quer lativo por intermédio de incessantes realiza-
da religião no melhoramento da condição ções científicas e tecnológicas, em obediên-
humana, tanto material como moralmente. cia ao chamado “imperativo técnico”, à luz
Tanto mais quando estavam em jogo con- do qual nada é tecnicamente impossível e
cepções opostas da natureza humana, o que tudo o que é possível é desejável.
acontecia pelo menos desde a época do de- Na verdade, um fenómeno que levou ao
bate entre o evolucionismo darwiniano e o engrossamento das fileiras da bioética foi
criacionismo e que por vezes se radicali- a desilusão dos sectores católicos mais de-
zou entre o mais empedernido positivismo sapontados com as posições da hierarquia
cientista, de um lado, e o mais ultramon- da Igreja na sequência do Concílio Vaticano
tano fundamentalismo religioso, do outro. II. Embora o espírito e a letra conciliares
A história portuguesa moderna fornece ex- tivessem representado uma imensa abertura
emplos sumamente esclarecedores deste úl- nas posições tradicionais da Igreja, as at-
timo tipo de polarização, com um pico na itudes que prevaleceram em relação a al-
Primeira República, mas que ainda hoje tem gumas questões candentes, como a contra-
entre nós um peso para o qual se torna cada cepção e o aborto, e as posições tomadas
vez mais difícil encontrar paralelos nas so- por Paulo VI na Encíclica Humanae Vi-
ciedades ocidentais desenvolvidas. Os fun- tae, foram entendidas como um recuo per-
damentalismos religiosos, sobretudo os das ante a inovação conciliar e deram origem a
religiões monoteístas, concentram-se hoje um movimento de desafecção de certos sec-
quase em exclusivo em questões muito re- tores católicos norte-americanos. De resto,
stritas das tecnociências biomédicas como o a postura permanente de entidades como a
aborto e a eutanásia ou as questões relativas Sagrada Congregação para a Doutrina da
à sexualidade e à reprodução, e a esgrim- Fé e do seu responsável máximo, o cardeal
irem aí com uma truculência que não usam Ratzinger, assim como do Papa João Paulo
em praticamente mais assunto nenhum. O II, cuja intransigência se faz notar exemplar-
tema da falência da tecnociência, e do pre- mente na condenação do uso do preservativo

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 39

como meio de combate à epidemia de Sida, plexo acerca do singnificado da vida moral.
continuam a alimentar hoje o mesmo tipo de Aquilo a que assistimos foi o movimento de
fuga e distanciamento em relação à hierar- muita gente empenhada na bioética rumo a
quia católica que um dia contribuiu para a um tipo diferente de linguagem moral na cor-
sociogénese da bioética. Tal como Daniel rente dominante das políticas públicas, em
Callahan e Warren T. Reich, André Hellegers direcção a uma linguagem de direitos, pre-
foi um dos fundadores do campo da bioética ocupações com questões de pluralismo, es-
que se voltou para esse novo campo em forços para encontrar consensos morais e es-
parte devido à sua desilusão com as posições tratégias morais em face de uma situação
da Igreja Católica nos debates das questões cultural diferente. E em especial, tratava-se
suscitadas pelo progresso das tecnociências da necessidade de encontrar alguma forma
biomédicas, à cabeça das quais a do controle de lidar com a hostilidade em relação à
da fertilidade (Jonsen, 1998:301). André ética em geral” (Callahan, 1993:S8). Cos-
Hellegers foi inclusive um dos altos respon- tumam referir-se a este respeito, dois au-
sáveis da comissão papal sobre o controle da tores e obras marcantes na sua época e como
fertilidade que, nessa sua qualidade, esteve predecessores da literatura bioética: Morals
na origem de um inquérito aos casais católi- and Medicine22 , de 1954, pelo teólogo epis-
cos que veio demonstrar as dificuldades que copal Joseph Fletcher, que terá sido pio-
eles sentiam em seguir a doutrina da Igreja neiro ao propôr uma ética de situação de
sobre a moral sexual e os expedientes a que tipo utilitarista contra o tradicional privilé-
recorriam para a contornar (Reich, 1999:37- gio teológico dos princípios morais absolu-
41). Com a Encíclica Humanae Vitae, de tos e inflexíveis (Callahan, 1990:3; Jonsen,
1968, o Papa Paulo VI rejeitou as conclusões 1993:S3; Kuhse e Singer, 1998:7), e The
da comissão, dando o conteúdo e o tom Patient as Person23 , de 1970, pelo teólogo
às posições desde então defendidas pela hi- metodista Paul Ramsey, o qual tem a posição
erarquia da Igreja. Do lado protestante, diametralmente oposta à de Fletcher, rejei-
assistia-se a idêntico movimento de distan- tando toda a ética de situação e preconizando
ciamento em relação à teologia moral clás- um firme apego aos princípios morais tradi-
sica das igrejas reformadas. Este movimento cionais na linha do mais rígido moral-
de revisão teológica aproximou pensadores ismo teológico (Callahan, 1990:3; Calla-
católicos e protestantes, distanciando-os si- han, 1986:46-47; González, 1998:148; Jon-
multaneamente das respectivas ortodoxias e sen, 1993:S3). Diz Callahan que a bioética
fundamentalismos e encaminhando-os para a nascente abriu caminho – e abriu caminho
bioética nascente (Jonsen, 1998:42-55). Es- à sua própria aceitação pública – na me-
clarece Callahan que, para que a aceitação
da bioética na América fosse possível, “. . . a 22
Joseph Fletcher (1954), Morals and Medicine.
primeira coisa que as pessoas empenhadas The Moral Problems of: the patient right to know the
na bioética tiveram de fazer foi (. . . ) pôr truth, contraception, artificial insemination, steriliza-
tion, euthanasia. Boston: Beacon Press.
de lado a religião. Era igualmente claro 23
Paul Ramsay (1970), The Patient as Person: Ex-
que o modelo do médico como único decisor plorations in Medical Ethics. New Haven: Yale Uni-
teria de dar lugar a um quadro mais com- versity Press.

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40 António Fernando Cascais

dida em que optou por uma via intermé- Medicine and Biomedical e Behavioral Re-
dia entre aqueles dois autores e modos de search, da Presidência dos Estados Unidos,
pensar e adquirindo um carácter predomi- entre 1980 e 1983, que em 1981 have-
nantemente regulatório (Callahan, 1993:S8). ria de produzir o relatório Defining Death,
Além de Fletcher e de Ramsey, teve ainda que definia a morte como a cessação ir-
papel de relevo na emergência da bioética o reversível da função cardio-respiratória ou
teólogo moral jesuíta Richard McCormick, a cessação irreversível de todas as funções
que representava uma atitude moderada en- cerebrais, incluindo as do tronco cerebral
tre as dos outros dois (Jonsen, 1998:41). (Jonsen, 1998:110). Por sua vez, Hans
Também o teólogo Robert Veatch, teólogo Jonas, judeu de origem alemã e refugiado do
metodista, paladino dos direitos dos doentes regime nazi desde 1935, tinha feito a sua for-
na década de sessenta, foi o primeiro fun- mação filosófica com mestres como Edmund
cionário pago do Hastings Center, após ter Husserl, Martin Heidegger e Rudolf Bult-
sido apresentado a Daniel Callahan por Van mann. Em 1967 e 1968, a Academia Amer-
Rensselaer Potter (Jonsen, 1998:57). Na icana de Artes e Ciências promoveu duas
verdade, a filosofia e a teologia constituíam conferências sobre a ética da experimentação
os campos de onde provinha, em exclusivo, humana que constituíram um marco neste
a problematização da biomedicina antes campo de reflexão e para o que Jonas con-
da definição do campo bioético (Callahan, tribuiu com o seu ensaio “Reflexões filosó-
1990:2; González, 1998:148). A influência ficas sobre a experimentação com seres hu-
dos teólogos no início da bioética começa manos”24 , que revolucionou o modo até en-
a declinar em meados da década de se- tão prevalecente de pensar a ética da experi-
tenta, quando os filósofos seculares passam mentação humana a partir da polaridade en-
a predominar (Callahan, 1999:61-63; Pelle- tre os direitos individuais e o bem comum
grino, 1999:74; Reich, 1996a:100; Viafora, e a respectiva legitimidade nos termos do
1996:8). Entre estes, além de Daniel Calla- contrato social; ao invés, Jonas opõe que
han, tiveram papel proeminente Stephen a experimentação só se pode legitimar em
Toulmin e Hans Jonas, de formação clás- termos de fins melhoradores e que por isso
sica europeia, a que posteriormente viriam a submissão dos indivíduos a experimen-
acrescentar-se Samuel Gorovitz e K. Dan- tação transcende os deveres sociais, é antes
ner Clouser. Toulmin e Jonas já se tinham da ordem da absoluta gratuitidade e volun-
distinguido como filósofos antes de se dedi- tariedade, pelo que o mero consentimento
carem a temas de bioética. Toulmin tinha es- não basta. Neste ensaio, Jonas é também o
tudado em Cambridge com Ludwig Wittgen- primeiro filósofo a debruçar-se sobre a re-
stein e integrou a National Commission for definição de morte do relatório da Universi-
Protection of Human Subjects of Biomedi- dade de Harvard, de 1968. A partir daqui, o
cal and Behavioral Research do Congresso empenhamento de Jonas na reflexão bioética
dos Estados Unidos, entre 1974 e 1978, foi
um dos relatores do Belmont Report (Jon- 24
V. tradução portuguesa in Hans Jonas (1994),
sen, 1998:102-104), e depois a Commis- Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega: 117-169,
sion for the Study of Ethical Problems in trad. António Fernando Cascais.

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 41

levá-lo-á a produzir um caudal de literatura a qual toda a atitude expedita falha. Com
entre o qual se destaca o seu entretanto céle- efeito, uma ética para a tecnociência apre-
bre Princípio Responsabilidade. Em busca senta uma dificuldade de princípio que con-
de uma ética para a era da técnica (Jonas, siste numa situação aporética: como formu-
1984) – obra de 1979 que, além de for- lar uma ética para uma tecnociência que ela
mular o princípio que o tornou uma refer- própria é a principal responsável por com-
ência incontornável, formula também pela prometer irremediavelmente a possibilidade
primeira vez a ideia de uma ética para a tec- de fundar toda a ética? Em suma, diríamos
nociência que pairava já no ambiente intelec- que se trata de pensar a crise, mas no interior
tual de então mas que a partir daí se trans- dela e tomando-a como o “estado de coisas”
forma num tema intelectual de primeira or- permanente com que há que viver e que
dem. A tensão que começou por desenhar-se aprender a viver como a própria condição
entre filósofos e teólogos, nos primórdios da de todo o pensamento e o pensamento ético
bioética, haveria de reproduzir-se mais tarde em particular enquanto capacidade de de-
entre bioeticistas e cientistas sociais (Calla- strinça entre possíveis tecnocientíficos dese-
han, 1999:64-65). jáveis e indesejáveis. Assim, a crise não se
A ciência e a medicina, porém, prati- resume de modo nenhum ao facto de o de-
camente nunca foram desafiadas na esfera senvolvimento das tecnociências biomédicas
pública a partir de outros pressupostos que romperem, em actos e casos discriminados,
não os religiosos antes da Segunda Guerra com os valores estabelecidos que há que re-
Mundial, quando os efeitos conhecidos ou por por intermédio de uma regulação ética
previsíveis dos seus crescentes poderes se das práticas e actividades tecnocientíficas, de
tornaram patentes em termos públicos. Só tal modo que essa regulação ética se limitaria
a partir daí é que a necessidade de uma regu- a aplicar aos novos problemas-infracções as
lação ética da tecnociência pôde realmente normas-soluções perenes, como se de uma
deixar de ser apanágio da reflexão privada espécie de nova deontologia geral da técnica
dos filósofos para se metamorfosear em per- se tratasse. Nada disso, e nada de mais alheio
cepção pública largamente difundida. A ex- ao que implica uma ética para a tecnociência
traordinária proliferação de conferências so- ou que faz necessitar uma bioética.
bre os problemas sociais e éticos levanta- Nesta conformidade, temos por feridas de
dos pelo progresso tecnocientífico, nos Esta- um equívoco essencial as ideias, solidárias
dos Unidos, na década de sessenta, que con- aliás, que reduzem a bioética, quer a uma
tribuiu para criar o clima favorável ao surgi- mera ética aplicada, quer a uma deontolo-
mento da bioética como disciplina e discurso gia, mas que deram corpo a práticas efecti-
específicos, é um sintoma claro da suspeita vas que não podemos deixar de olhar como
pública em relação à bondade científica (Jon- um empobrecimento daquilo que a emergên-
sen, 1998:13-19). No entanto, após tudo o cia da bioética originariamente promete, de
que atrás foi dito, é mister reconhecer que que continua a ser portadora e que será dese-
essa percepção exprime uma experiência de jável levar por diante, sob o nome de bioética
crise que nada tem de conjuntural, antes re- ou de outro qualquer. A ideia equívoca
flecte algo de essencial, irreversível e perante que reduz a bioética a uma simples ética

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42 António Fernando Cascais

aplicada, seja ela teológica e com recurso particular, ou seja, qualquer destrinça entre
a um fundamento onto-teológico transcen- o que é desejável e o que não é desejável,
dente, ou filosófica e com recurso a um fun- não pode prescindir de instâncias e pessoas
damento fenomenológico-imanente, reflecte exteriores às comunidades científicas. Deste
ainda o paternalismo esclarecido, pois só modo, a discussão doutrinária e a avaliação
se pode proceder à aplicação a casos práti- de casos concretos obriga à inclusão, para
cos uma ética cuja verdade já tinha previa- além dos elementos da comunidade médica
mente sido constituída a nível doutrinário, de ou científica, de representantes de outras
maneira assertiva e apodítica, por uma co- comunidades de saber igualmente especial-
munidade profissional de pares especializa- izado, como a teologia, a filosofia, o di-
dos, sejam eles teólogos, médicos ou filó- reito e as ciências sociais e humanas, mas
sofos. Eis por que é igualmente equívoca a não só. Efectivamente, só se pode aceder a
ideia da bioética como deontologia, suscep- uma avaliação realmente rigorosa dos peri-
tível de ser fundada na própria racionalidade gos reais que há que evitar, ou dos danos que
tecnocientífica. Ora a racionalidade tecno- há que de algum modo reparar, mediante a
científica possui uma dinâmica imparável de participação activa daqueles sobre quem re-
produção indefinida, ou de autoproliferação, caem os efeitos, benéficos ou prejudiciais da
que o imperativo técnico bem exprime e que actividade científico-tecnológica. Ora a in-
a torna pela sua própria natureza avessa à clusão destes no processo de discussão e de
formulação de qualquer princípio de auto- decisão é uma das vias que tem deslocado,
limitação. O mesmo é dizer que ela não pos- e a nosso ver afortunadamente, a reflexão
sui a capacidade de gerar uma ética com os ético-política sobre a tecnociência para o ter-
mesmíssimos materiais que são os maiores reno das suas consequências e a fazer com
obreiros da erosão da possibilidade de a fun- que sejam elas, ou a previsibilidade delas,
dar. A racionalidade tecnocientífica, com a lançar luz sobre a própria concepção dos
a sua dinâmica imparável, exclui qualquer programas e projectos tecnocientíficos. Com
justa medida e nesse sentido ela representa, efeito, uma ciência - no caso a ciência exper-
por esse simples facto, se não mesmo um imental, como o poderiam ser o saber filosó-
obstáculo à responsabilidade e à boa von- fico ou a scientia teológica - que reconhece
tade do cientista, pelo menos o objecto de- e aceita, ou é levada a reconhecer e a aceitar
las. A racionalidade tecnocientífica é aquilo (Callahan, 1990):
que pode garantir o rigor e a eficácia da in-
a) que os seus limites possam ser deter-
tervenção médica e é com tal promessa e
minados numa discussão em que partic-
compromisso que ele se apresenta perante
ipam em pé de igualdade tanto aqueles
o doente, mas não é a racionalidade tec-
que a fazem como quantos experienciam
nocientífica que pode formular os termos
as suas consequências e nessa qualidade
em que é beneficente a relação deste com
são convocados a participar na discussão
o doente e pode inclusivamente ser inimiga
ou inclusivamente forçam a sua partici-
da beneficência do médico. Deste modo,
pação nela, e
qualquer limitação ética da tecnociência em
geral, e das tecnociências biomédicas em b) que justamente no estabelecimento

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 43

desses limites se privilegie a consider- própria tecnociência não deixou intactos e


ação destas consequências, integrando a que se mostram por isso incapazes de enten-
avaliação delas no processo de decisão, der o que está em jogo nela e de dar solução
aos dilemas por ela levantados. Tanto obriga
é uma ciência que renunciou já às suas a que a bioética não se reduza nem a uma
pretensões ontológicas, porquanto toda a deontologia profissional nem a uma teologia
pretensão ontológica só se pode realizar moral aplicada (Malherbe, 1996:136-138).
efectivamente no mundo da vida activa na No coração da controvérsia intelectual e
medida em que se dotar dos meios extra- pública em torno da ética para a era da téc-
teóricos que garantem a sua “verdade” in- nica e da bioética encontram-se valores e
terna, ou seja, dos meios políticos de con- reivindicações de sinal contrário: os perigos
trole do acesso à discussão. A emergên- da moderna tecnociência e a necessidade de
cia de algo como a bioética provaria a im- os controlar ou evitar, por um lado, e o po-
possibilidade de a ciência, ou o discurso do tencial emancipatório da tecnociência na ex-
saber em geral, continuar a proceder àquele ploração de novas possibilidades e vias de
controle com exclusivo recurso aos meios realização humana, por outro. A respons-
de que tradicionalmente esteve dotada: a abilidade científica, veiculada por uma in-
racionalidade que lhe é própria e cuja vali- cessante solicitação social, em atender a am-
dade universal é exclusivamente estabelecida bas pretensões viria a atravessar toda a co-
e verificada pela comunidade dos seus pares munidade científica, mas também a dilacerá-
no seio das suas organizações representati- la em dilemas frequentemente tematizados
vas. Tanto equivale a dizer que a condição como problemas de natureza ética, mas que
sine qua non de emergência da bioética re- inegavelmente apontam com igual força para
side na crise irreversível da auto-regulação escolhas de ordem cultural e decisões de
paritária das actividades médico-científicas. carácter político. O tema da responsabil-
Essa crise situa-se por sua vez no contexto idade científica tornou-se assim particular-
mais vasto da incapacidade de a tecnociên- mente acutilante para alguns membros da co-
cia se auto-limitar com recurso à sua própria munidade médica, assim como investigação
racionalidade, cuja natureza a impede de de primeira linha para a filosofia, que tinham
distinguir entre possíveis desejáveis e inde- uma clara percepção da carência de meios
sejáveis. A percepção pública da neces- da tecnociência para fazer face aos prob-
sidade desta destrinça consubstanciou uma lemas humanos causados pelo seu próprio
ética para a tecnociência ou, no domínio es- desenvolvimento. Não é pois de surpreen-
pecífico das tecnociências biomédicas, uma der que a investigação bioética tenha sido
bioética, que faz apelo aos saberes humanís- empreendida pelos esforços conjugados de
ticos e científico-sociais tradicionalmente re- médicos e de filósofos em finais dos anos
jeitados pelo paradigma dominante da ciên- sessenta nos Estados Unidos da América,
cia moderna. No entanto, esse apelo de os quais estiveram na origem dos primeiros
modo nenhum deve significar uma pura e centros de investigação exclusivamente ded-
simples recuperação das tradições religiosas icados à bioética. Com efeito, a bioética
ou da teologia moral, cujos fundamentos a tem o seu berço no mundo social e cul-

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44 António Fernando Cascais

tural norte-americano e pode sem dificul- fronteiras e fazer jus a exigências contra-
dade ser entendida como um desenvolvi- ditórias de modo a que se perceba o que
mento contemporâneo da Berufsethik de- pode autorizar ou interditar a lei na preser-
scrita por Max Weber, a ética protestante vação da ordem pública ao mesmo tempo
na sua afinidade essencial com o espírito do que se respeitam os imperativos privados de
capitalismo. Segundo Jonsen, a bioética é ordem moral (Callahan, 1986:48). Por essa
afim do ethos americano com fortes pilares mesma razão a bioética norte-americana ten-
no melhorismo e no individualismo morais deu a ser um modelo de exportação univer-
e assinala com toda a razão que as lon- sal cujos limites, no entanto, se tornariam
gas tradições europeias de sistemas públi- patentes à medida do seu confronto com re-
cos de prestação de cuidados de saúde no alidades sociais, culturais e políticas diver-
âmbito do Estado-providência filtram o en- sas daquelas que lhe deram origem. Sobre-
tendimento que na Europa se tem da bioética tudo a partir da década de noventa, começam
(Jonsen, 1998:389-401). Por outro lado, a esboçar-se adaptações e formulações al-
diz ele que, desde os tempos heróicos dos ternativas, com especial relevo nos países
primórdios, com toda a sua excitação int- europeus (Bompiani, 1996; Bondolfi, 1996;
electual, astúcia política e coragem moral, Bourgeault, 1992:32; Gracia, 1996; Mal-
a bioética tornou-se hoje aborrecida (Jonsen, herbe, 1996), onde o desafio que se põe à
2000:690). Terá sido esse o inevitável preço bioética consiste precisamente em “ver se ela
da respeitabilidade entretanto grangeada e a é capaz de recrear as questões bioéticas à luz
bioética só poderá recuperar se empreender das suas próprias tradições e cultura” (Gra-
uma decisiva reflexão sobre o ethos partic- cia, 1996:169). Sintomático da diferença en-
ular da sociedade norte-americana que foi tre o modo de entender e praticar a bioética
seu berço e, para tanto, é necessário que nos Estados Unidos e na Europa é o facto de
deixe o seu pequeno mundo e se aventure o projecto de revisão dos fins da medicina,
por outras paragens disciplinares que tenham tão caro a Daniel Callahan que o inspirou,
a ver com a questão ética e que se abal- ter tido acolhimento bastante mais favorável
ance a uma viagem - filosófica? - pelo es- no continente europeu do que na América,
trangeiro (Jonsen, 2000:694-697). Daniel berço da bioética (Callahan, 1999:66).
Callahan assinala, a este propósito, que a Eis o quadro em que surgem os primeiros
bioética emerge no quadro do debate, aceso centros de investigação em bioética. O In-
desde os anos sessenta, entre o privilégio stitute of Society, Ethics and the Life Sci-
político dos direitos individuais próprio do ences foi fundado em Hastings-on-Hudson,
individualismo norte-americano, com a cor- Nova York, em 1969, pelo filósofo Daniel
respondente ausência de uma linguagem co- Callahan e o psiquiatra Willard Gayling, que
munitária forte e com poderes equivalentes, amadureciam a ideia desde o ano anterior
e a atenção a prestar ao interesse colectivo e (Callahan, 1999:56; Jonsen, 1998:20-22).
ao bem comum, mais próprios da linguagem Tentativas de criar centros similares não pas-
do direito e da moral, a cujo papel regu- saram disso mesmo, nas universidades de
lador se faz apelo - sobretudo nos Estados Yale e da Pennsylvania, pela mesma época
Unidos - sempre que se trata de delimitar (Callahan, 1999:57). A denominação orig-

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 45

inal do centro reflectia o pensamento e as Sargent e Eunice Shriver que Hellegers teve
intenções de Daniel Callahan (que foi pres- acesso à família Kennedy e o que cimentou a
idente do centro até Setembro de 1996), relação terá sido o facto de ambas as famílias
numa época em que o espírito, mas ainda e o próprio Hellegers terem sido profunda-
não o nome de bioética, se encontrava já em mente afectados pela deficiência mental de
pleno desabrochar. O centro haveria pos- que padeciam familiares de todos eles (Re-
teriormente de chamar-se Hastings Center, ich, 1999:29-30). As publicações periódi-
nome por que ficou célebre, a partir da sua cas oficiais de ambos os centros continuam
localização geográfica inicial em Hastings- a ser as de maior prestígio e excelência no
on-Hudson, no Outono de 1970 (Callahan, campo da bioética: o Hastings Center Report
1999:58); após sucessivos deslocamentos, o e o Kennedy Institute of Ethics Journal, que
centro encontra-se actualmente sediado em se publicam, respectivamente, desde 1971 e
Garrison, no Estado de Nova York. Nos desde 1990 (Cascais, 1992).
seus quase trinta anos de existência, adquiriu Na opinião de Edmund Pellegrino, a
renome mundial pela qualidade da sua inves- história da bioética teria atravessado três es-
tigação, que reúne os nomes mais proemi- tádios distintos nas suas três décadas de ex-
nentes neste domínio, entre os quais Hans istência: uma primeira fase, a proto-bioética,
Jonas, e que tem liderado projectos inter- entre 1960 e 1972, uma segunda, a da
nacionais da maior relevância. O Joseph bioética filosófica, de 1972 a 1985, e uma
and Rose Kennedy Institute for the Study of terceira, a da bioética global, de 1985 ao pre-
Human Reproduction and Bioethics foi fun- sente (Pellegrino, 1999:74). Warren T. Re-
dado no primeiro de Outubro de 1971 - ob- ich admite que, nas suas três décadas de ex-
viamente, quando o termo bioética já tinha istência, a bioética passou por dois paradig-
sido forjado - pela iniciativa de André Hel- mas, um baseado nos princípios, outro na
legers, um obstetra, fisiologista e demógrafo experiência (Reich, 1996a:98-106) e “o fu-
de origem holandesa que trabalhava na Uni- turo da bioética será determinado pelos mo-
versidade de Georgetown em Washington, a dos como esses dois paradigmas se desen-
universidade católica de maior prestígio nos volverão separadamente até acabarem por se
EUA, onde o centro sempre esteve sediado e reunir” (Reich, 1996a:98). E os problemas
cuja tendência filosófico-teológica não deixa que dominarão a cena da reflexão e da prática
de reflectir. Mais tarde, o seu nome haveria bioética serão a genética, a alocação de re-
de mudar para Kennedy Institute of Ethics. cursos, a sida e a saúde ambiental (Reich,
André Hellegers foi seu presidente até à sua 1996a:106). Segundo David Roy, além da
morte em 1979, tendo-lhe sucedido Edmund genética e da sida, as áreas donde provirão os
Pellegrino (Jonsen, 1998:22-24). O nasci- maiores desafios para a bioética serão a em-
mento do instituto deve-se aos bons ofícios briologia humana, a medicina fetal, a geria-
da família Kennedy, já então patrocinadora tria e a gerontologia, a imunologia e as neu-
da Fundação Joseph P. Kennedy, cuja vice- rociências (Roy, 1996:54) e a bioética as-
presidente era então Eunice Shriver, com lig- sumirá decisivamente o carácter de uma ética
ações familiares aos Kennedys. Segundo Re- planetária ou global num sentido que se aviz-
ich, foi a partir dos contactos com o casal inha do que lhe deram Hans Jonas e Van

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46 António Fernando Cascais

Rensselaer Potter (Roy, 1996:73-76). Tam- 3 Âmbito e objecto da bioética


bém James F. Drane, nome particularmente
reconhecido na bioética norte-americana, é Embora por vezes se encontrem referên-
de opinião que a importância e a expansão cias, raras, ao facto de o termo bioética ter
da bioética ficarão ligadas ao futuro da epi- sido pela primeira vez sugerido por Aldo
demia de sida, em que praticamente nada há Leopold, a paternidade do termo bioética é
que não constitua problema bioético, e ao atribuída ao oncologista Van Rensselaer Pot-
desenvolvimento do Projecto Genoma Hu- ter da Universidade do Wisconsin em Madi-
mano, que está para as ciências da vida dos son, que pela primeira vez o empregou pub-
tempos que correm da mesma maneira que licamente em 1970. Mas não no seu muito
a fissão nuclear estava para a década de citado livro Bioethics: Bridge to the Fu-
quarenta (Drane, 1998:304). Quanto a Calla- ture25 , porquanto o termo já ocorria nos tí-
han, o destino da bioética está intimamente tulos de dois artigos anteriores: “Bioethics,
ligado ao futuro da medicina enquanto ciên- the Science of Survival”, de 197026 , e
cia e disciplina profissional, da prestação de “Bioethics”, de 197127 , assim como numa
cuidados de saúde enquanto política e gestão nota de rodapé em outro artigo, “Biocyber-
pública, da cultura e das ideologias enquanto netics and Survival”28 . O termo bioética
forças que moldam a medicina e os cuidados ocorre pela primeira vez na imprensa no ar-
de saúde e da ética biomédica enquanto fonte tigo “Man into superman: the promise and
influente de sabedoria e perspectiva (Calla- peril of the new genetics”, na edição da re-
han, 2000:678). No entanto, avisa Callahan, vista Time de 19 de Abril de 1971 (Jon-
se a bioética tem futuro, isto é, intuições e sen, 1998:27). De acordo com Warren T.
perspectivas valiosas que possa passar com Reich, porém, o termo bioética passou por
êxito às gerações futuras, não será se se lim- um nascimento bilocalizado: pouco depois
itar a um papel essencialmente regulador: de ter sido forjado por Potter, André Hel-
“Ela só pode ter futuro se for imaginativa, legers superintendeu à sua introdução no en-
independente, susceptível de colocar vastas tão Joseph and Rose Kennedy Center for the
interrogações acerca do bem humano e de Study of Human Reproduction and Bioethics,
providenciar respostas complexas – não os de onde haveria de expandir-se para os meios
tipos de resposta reducionista que resolvesse de comunicação, os meios académicos, as
as questões morais por meio de uma espé- ciências biomédicas e os governos. O termo
cie de apelo demolidor a direitos„ ou princí- pegou e adquiriu o generalizado uso público
pios, ou procedimentos, ou a alguma espé- de que goza hoje. Alguns acontecimentos
cie de esforço para chegar a consensos (... ) 25
Van Rensselaer Potter (1971), Bioethics: Bridge
A bioética ainda tem muito que andar. Tem to the Future. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.
tido um sucesso demasiado fácil e, no en- 26
Van Rensselaer Potter (1970), “Bioethics, the
tanto, com tudo isso, tem dado poucos con- Science of Survival”, Perspectives in Biology and
tributos importantes e duradouros” (Calla- Medicine, 14: 127-153
27
Van Rensselaer Potter (1971), “Bioethics”, Bio-
han, 2000:686). Science, 21: 1088.
28
Van Renselaer Potter (1970), “Biocybernetics
and Survival”, Zygon, 5:229-246.

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 47

contribuíram para consolidar esse uso: o pro- não é questão de somenos, porque assenta
jecto da Enciclopédia de Bioética, com War- numa profunda discussão científica acerca
ren T. Reich como seu editor-chefe, que de- dos diferentes entendimentos quanto ao seu
cide atribuir-lhe esse nome em 1972, quando sentido e âmbito: “O campo da bioética
começa a elaborá-la (Jonsen, 1998:27; Re- surgiu com a palavra ‘bioética’, em parte
ich, 1996a:90), que é anunciada em 1973 porque a própria palavra simbolizou e es-
e que viria a público em 1978, com uma timulou uma interacção inédita de proble-
reimpressão em 1982, para se transformar mas biológicos, médicos, tecnológicos, éti-
a partir de então na grande obra de refer- cos e sociais e métodos de pensamento”
ência no campo, a tal ponto que foi inclu- (Reich,:1995:30). O âmbito e o sentido
sive um dos maiores instrumentos do seu da bioética é assim melhor definido pelo
estabelecimento, com uma nova edição re- polemos, os questionamentos ou as prob-
vista em 1995 (Reich et al., 1995:XIX); lematizações que abrem o campo da inves-
e a publicação do artigo de Daniel Calla- tigação, tanto teórica como prática, do que
han, “Bioethics as a Discipline”, no primeiro pelas respostas providenciadas pela perspec-
número do Hastings Center Studies29 , nome tiva de cada autor. Muito a propósito, Kuhse
que então tinha o órgão do centro homón- e Singer contrariam a opinião de George
imo (Callahan, 1997:87-92), ao qual seria Bernard Shaw, para quem toda a profissão
atribuído o valor de autoridade justificativa, era uma conspiração contra os leigos: “A
pela equipa da Biblioteca do Congresso dos bioética, em contrapartida, é uma empresa
Estados Unidos, para a criação de uma nova mais abertamente crítica e reflexiva. Não
referência bibliográfica que classificasse um limitada a questionar as dimensões éticas das
livro então recebido pelos bibliotecários, Se- relações médico-paciente e médico-médico,
lected Readings: Genetic Engineering and vai bem para além do âmbito da ética médica
Bioethics, de Robert Paoletti30 , que pas- tradicional de várias maneiras. Primeiro, o
sou assim a ser o primeiro título fichado seu objectivo não é o desenvolvimento de,
na categoria de “bioética”. Na Europa, o ou a adesão a, um código ou um conjunto
termo bioética surge em língua francesa pela de preceitos, mas uma melhor compreensão
primeira vez em 1973 (Malherbe, 1996:119). das questões. Segundo, está preparada para
Embora Daniel Callahan assevere que, “es- pôr questões filosóficas profundas acerca da
pecialmente a partir do momento em que natureza da ética, do valor da vida, do que
os media começaram a interessar-se pelo as- é ser pessoa, a importância de ser humano.
sunto, houve uma grande pressão para que Terceiro, abrange questões políticas e da ori-
se arranjasse um termo simples que pudesse entação e controle da ciência. Em todos estes
utilizar-se rapidamente para uso público” sentidos, a bioética é um campo de pesquisa
(Reich, 1994:331), a denominação do campo novo e distinto” (Kuhse e Singer, 1998:4).
Entre nós, Archer dá ênfase ao facto
29
Daniel Callahan (1973), “Bioethics as a Disci- de a bioética não ser “simplesmente uma
pline”, Hastings Center Studies, 1(1):66-73.
30
Robert Paoletti (1974), Selected Readings: Ge- nova versão da antiga ética médica” (Archer,
netic Engineering and Bioethics. New York: MSS 1996:23), mas, ao afirmá-lo, ignora o pa-
Information Corporation, 2a ed. pel da crise da auto-regulação da biomedic-

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48 António Fernando Cascais

ina como condição fundamental da insufi- e seguir uma metodologia indutiva, quando
ciência, senão mesmo da falência da ética se sabe que as “realidades respeitantes a val-
médica, limitando-se a justificar a sua afir- ores últimos não são susceptíveis de prova
mação pelo facto de a bioética incluir áreas racional” (Archer, 1996:26), de maneira que
não médicas e de possuir uma inegável di- é pelo recurso à intuição, como forma de
mensão social, o que a obriga a situar- conhecimento sintético que chega à certeza
se “em zonas de intersecção de vários de direitos e deveres anteriormente a qual-
saberes, nomeadamente das tecnociências quer raciocínio discursivo, que “se tem, por
(sobretudo a biologia e a medicina), das hu- vezes, conseguido que pessoas com moti-
manidades (filosofia, ética, teologia, psicolo- vações ideológicas diferentes cheguem a um
gia, antropologia), ciências sociais (econo- juízo ético comum, relativamente coerente,
mia, politologia, sociologia, impacto so- acerca de uma situação concreta” (Archer,
cial) e doutras disciplinas como o direito” 1996:26). Seria ainda marca da bioética a
(Archer, 1996:25). E adianta, com bem mais imprescindível abertura à participação de um
razão, que “a bioética não é propriamente público cada vez mais competente e exigente
uma disciplina mas antes uma nova transdis- e pelo seu papel de assessoramento de políti-
ciplina” (Archer, 1996:25), num esforço de cas nacionais num esforço de harmonização
integração que faz dela um opositor frontal reguladora internacional que é exigido pelo
tanto do cientismo e tecnicismo em que confronto entre a natureza universal da ciên-
a tecnociência moderna tende a constituir- cia e o carácter regional das culturas onde
se como explicação global única, como de ela é produzida e aplicada. Deste modo,
um filosofismo negador da autonomia do será lícito “definir bioética como o saber
conhecimento científico e técnico. De um transdisciplinar que planeia as atitudes que
modo muito próximo, neste ponto concreto, a humanidade deve tomar ao interferir com
do primeiro Engelhardt, Archer reconhece o nascer, o morrer, a qualidade de vida e
que a busca interdisciplinar se faz numa so- a interdependência de todos os seres vivos.
ciedade pluralista cuja heterogeneidade ac- Bioética é decisão da sociedade sobre as
erca do valor da vida e da morte constitui tecnologias que lhe convém. É expressão
precisamente a causa dos problemas bioéti- da consciência pública da humanidade”
cos, chegando a afirmar que, por isso, “ela (Archer, 1996:32). Propondo, aparente-
não deve ser negada, sob pena de desvirtuar mente, a profissionalização do bioeticista
a bioética, que deveria até dar voz àqueles que, aliás, é já prática adquirida sobretudo
que a não têm, como são as minorias éti- nos países anglo-saxónicos, Archer conclui
cas” (Archer, 1996:25). Eis por que, para que “(s)ó o treino profissional numa análise
Archer, o discurso a utilizar pela bioética filosófica que leve à fundamentação ética do
não pode ser “dogmático nem persuasivo, juízo moral poderá impedir que a bioética
mas antes heurístico e criativo, baseando- se limite a um pragmatismo ético-científico,
se num diálogo pluridisciplinar e pluralista se dissolva num relativismo ético ou de-
que deverá entrar em profundidade no estudo genere num sociologismo moral” (Archer,
das raízes históricas, culturais e religiosas 1996:32). Outra autora, M. Patrão Neves,
das diferentes posições” (Archer, 1996:26) atribui à evolução da bioética o mérito de

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 49

uma quádrupla conquista, “cada uma assina- pluridisciplinaridade ou na interdisciplinar-


lando a instauração de uma nova realidade idade, visto que é através da sua pluridis-
que contribui, de forma ímpar, para a con- ciplinaridade, mas para além dela, que a
stituição do que vem sendo a bioética na bioética põe em marcha a confrontação in-
sua especificidade” (Neves, 2001:26): dos terdisciplinar em vista da discussão e da
médicos e cientistas, da sociedade, as quais tomada de decisão (Bourgeault, 1992:41).
decorrem necessariamente das condições de Também Callahan afirma que se a bioética
origem da bioética, e do governo e do pretende preservar o seu carácter interdisci-
poder (Neves, 2001:26-27). Repara, no en- plinar, como deveria, então talvez nunca en-
tanto, que importa simultaneamente consid- contre uma boa solução para o problema da
erar que cada nova conquista enfrenta de- sua metodologia (Callahan, 2000:683). Para
safios ou perigos susceptíveis de comprom- Neves, isto significaria que o momento pre-
eter a sua identidade e a natureza do seu sente seria o de repensar a bioética como
desenvolvimento, nomeadamente devido à conquista de si própria, “não preferencial-
especialização da bioética e à profissional- mente em termos do desenvolvimento dos
ização dos bioeticistas. De resto, Neves seus temas originários ou da ampliação das
aponta muito justamente que o reverso do suas características problemáticas” (Neves,
extraordinário sucesso da bioética se encon- 2001:29), mas na sua identidade própria, na
tra naquilo que podem ser igualmente indí- sua natureza e desígnio, de tal modo que
cios da sua caducidade, pela ausência de um “o sucesso da bioética dependerá da fidel-
estatuto epistemológico objectivamente fun- idade à sua intencionalidade originária no
damentado e consensualmente reconhecido, protagonizar do espírito humanista” (Neves,
conjugado com os abusos que a sua evocação 2001:30). Ora, saber em que consiste ao
frequente e diversificada tem permitido. De certo tal humanismo, que talvez nunca tenha
facto, a bioética, ou o seu universo temático, sido claro, mas antes sempre atravessado
é hoje matéria de amplo debate público, em por uma irreprimível ambiguidade, propi-
que rapidamente a curiosidade e o interesse ciará o necessário esclarecimento da inten-
se autopromovem em conhecimento e au- cionalidade originária da bioética de modo
toridade com uma consequente descredibi- a percebermos a que terá ela de ser real-
lização deste novo domínio da reflexão e da mente fiel para repetir no futuro os frutos
prática. E a bioética permanecerá exposta a do seu passado. Convirá não esquecer, a
este tipo de abusos enquanto não conquis- este propósito, que uma das maiores virtuali-
tar um estatuto epistemológico, o que, por dades da bioética foi a ruptura que ela repre-
seu turno, a interdisciplinaridade de origem sentou com a estreiteza e o acanhamento dos
dificulta” (Neves, 2001:21). Assinale-se, humanismos da teologia moral ou da deon-
a propósito, que este raciocínio é corrob- tologia de funestas consequências na prática.
orado por Bourgeault, para quem há uma Uma breve revisão do pensamento dos
incompatibilidade de fundo entre a preten- fundadores e dos mais proeminentes pen-
são de a bioética adquirir estatuto autónomo sadores no campo da bioética, como Van
entre as demais disciplinas e a exigência Rensselaer Potter, André Hellegers e Daniel
simultânea de que ela seja praticada na Callahan, Hans Jonas, Hugo Tristram En-

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50 António Fernando Cascais

gelhardt e Gilbert Hottois, pode contribuir contributo de Potter para a bioética deve-
para se compreender quão controversa é a ria permanecer largamente marginalizado até
definição do âmbito da bioética. Ao con- a uma época recente, quando foi de algum
trário de Callahan, Potter e Hellegers nunca modo redescoberto e redefinido sob o nome
reivindicaram para si o estatuto de filóso- de bioética global, já em finais da década
fos, no sentido de nunca terem praticado de oitenta, também ainda por influência do
uma ética filosófica, embora nunca tenham próprio Potter e que teve influência deci-
rejeitado o título de bioeticistas, sobretudo siva no pensamento de Brunetto Chiarelli,
o segundo. Quanto a Jonas, Engelhardt antropólogo e bioeticista italiano31 . Parale-
e Hottois, recorreremos aos seus préstimos lamente a Potter, André Hellegers desen-
porquanto são estes os pensadores proemi- volveu inicialmente uma outra concepção de
nentes que declaradamente se abalançaram à bioética no Kennedy Institute of Ethics na
questão da fundamentação de uma bioética, e Universidade de Georgetown, mas também
não tanto para explanarmos a grande questão aqui a sua morte prematura haveria de limitar
filosófica da dificuldade de fundamentar uma a sua influência no próprio meio académico
ética geral, ou sequer uma ética para a téc- onde sempre trabalhou. Segundo Reich, An-
nica, o que nos lançaria numa incomportável dré Hellegers não achava que fossem tanto os
inquirição junto de uma imensidade de au- problemas levantados pelas novas tecnolo-
tores e de referências. gias biomédicas a fornecer o impulso inicial
A intenção de Van Rensselaer Potter ao à bioética, mas sobretudo “aquilo em que se
forjar o termo de bioética era apresentar uma tinha tornado a medicina num mundo em que
nova disciplina que, ao combinar o conhec- a saúde e a doença se tinham transformado
imento biológico com o conhecimento dos em conceitos profundamente confusos” (Re-
sistemas humanos de valores, erguesse uma ich, 1999:43). Reich aponta nomeadamente
ponte entre a cultura das ciências e a cul- a crescente preocupação de Hellegers com
tura das humanidades. Neste sentido, Pot- a medicalização generalizada da vida dos
ter retomava a seu modo uma questão bem homens e mulheres contemporâneos e o
mais antiga e vasta no pensamento ociden- deslize dos fins preventivos e terapêuticos da
tal. À luz da visão de Potter, a bioética pos- medicina para fins extra-terapêuticos, quer
sui uma distinta focagem antropocêntrica, de da ordem dos consumos privados, quer da
preferência a biocêntrica. Potter identifi- ordem do controle público dos comporta-
cava o problema humano dominante como mentos; Hellegers ter-se-ia oposto ao mas-
um problema de sobrevivência e a bioética caramento da medicina pela sociedade e da
seria a nova disciplina dedicada ao estudo e doença pela medicina, a qual se dedicava
à avaliação de um óptimo de mutação am- a “mascarar as doenças sociais tratando os
biental e de um óptimo de adaptação hu- respectivos sintomas biologicamente” (Re-
mana a ele, de modo a “não só enriquecer ich, 1999:45). Ainda segundo Reich, Hel-
as vidas individuais, mas prolongar a so- 31
Brunetto Chiarelli (1992), “Man, Nature and
brevivência da espécie humana numa forma Ethics: Global Bioethics”, Global Bioethics, 5 (1):
aceitável de sociedade” (Reich, 1994:322). 13-20 e (1993), Bioetica Globale, Firenze: A. Pon-
Por mais importante que possa ter sido, o tecorboli Editore.

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 51

legers teria favorecido uma ética centrada da bioética enraízava numa maneira holís-
no cuidado de preferência a uma ética cen- tica de entender a saúde que advinha da
trada na autonomia (Reich, 1999:46-47). De sua própria consciência, como oncologista,
acordo com Hellegers, a bioética deveria do forte laço entre a carcinogénese e as
conjugar as ciências médicas, as ciências so- condições ambientais e da ênfase colocada
ciais e a peritagem ética de um modo que na necessidade de prevenção, mais do que
permitisse aos clínicos uma maior proficiên- em meras questões de terapia. Potter apelava
cia nessa especialidade que a dos filóso- ao desenvolvimento de uma ética normativa
fos e dos teólogos morais. A bioética sig- geral para a saúde global, que só poderia
nificaria a conjugação, profissionalizada, da ser prosseguida no âmbito de uma disciplina
perícia médica e da proficiência ética, mas inteiramente nova que combinasse o con-
permaneceria em larga medida dentro do âm- hecimento científico e filosófico no pressu-
bito de uma especialidade médica com o sen- posto de que eles não só não são incomen-
tido mais restrito de um estudo revitalizado suráveis, mas que, pelo contrário, existem
da ética médica. Efectivamente, a visão fortes afinidades entre ambos. A bioética
que Hellegers tinha da bioética haveria de encontrar-se-ia assim comprometida com a
sobreviver à sua morte em 1979 e inspirar procura da sabedoria que permitisse o de-
uma das tendências contemporâneas da in- senvolvimento de uma nova ética voltada
vestigação em bioética, conhecida sobretudo para a condução de escolhas morais com
como bioética clínica (Reich, 1999:48). vista à sobrevivência humana global e val-
O nascimento “bilocalizado” ou “bicé- orizada. Em contrapartida, o modelo de
falo” da bioética de que fala Warren T. Reich bioética de Georgetown centrava-se em dile-
a este propósito, referindo-se a Van Rens- mas médicos concretos e apresentava ar-
selaer Potter e André Hellegers, implica de gumentos filosóficos precisos no campo da
facto duas concepções de bioética que em ética normativa aplicada, de tal modo que a
muitos aspectos se entrechocam, mas que bioética não seria mais do que um ramo de
por vezes coincidem. Segundo Reich, to- uma disciplina já existente, a ética aplicada.
davia, as principais diferenças não são real- O entendimento de Georgetown sublinhava
mente entre os autores, como se se tratasse também a incomensurabilidade da ciência e
de “abordagens gémeas” que se tivessem da ética e, a nível epistemológico, procu-
separado à nascença, mas sim entre Pot- rava resolver problemas morais concretos do
ter e a perspectiva do Kennedy Institute of foro médico, por intermédio da aplicação de
Ethics/Universidade de Georgetown que, ao princípios éticos pré-estabelecidos e univer-
apropriar à sua maneira o pensamento de salmente válidos. Warren T. Reich observa
Hellegers, teve um papel decisivo na pro- que Hellegers, tal como Potter e ao con-
moção daquele que durante muito tempo se- trário do modelo originalmente prevalecente
ria o sentido largamente aceite de bioética, em Georgetown, abraçava de facto uma per-
uma disciplina baseada numa abordagem spectiva global da bioética em todos os três
filosófica e humanística das questões rela- sentidos do termo global: “1) relativa à,
tivas às políticas públicas de saúde (Reich, ou implicando, a terra inteira: uma ética
1999:48). A concepção que Potter tinha mundial para bem do mundo; 2) acarreta a

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52 António Fernando Cascais

inclusão geral de todas as questões éticas tribuna de onde falar, afastando as suspeitas
nas ciências da vida e na prestação de cuida- de sectarismo e ideologia religiosa anteri-
dos de saúde (tanto as questões ‘biomédicas’ ormente sugeridas ao público pela palavra
como as questões ‘ambientais’ do debate ‘ética’. A palavra possuía o inovador e es-
clássico); 3) utiliza uma visão geral de méto- pantoso efeito de criar um terreno secular
dos para abordar essas questões: incorpo- aceitável - tanto no interior das academias
rando de maneira alargada todos os valores, como no forum público - onde as ideias
conceitos, maneiras de pensar e disciplinas científicas, relacionadas com as questões da
relevantes” (Reich, 1995:24). Ao fazer esta saúde, religiosas, filosóficas, sociais e políti-
observação, Reich visa propôr um quadro cas poderiam encontrar-se e criar um novo e
global para a bioética, sem o qual “a bioética multidisciplinar modo de investigação” (Re-
concebida de modo mais estreito e medica- ich, 1995:30-31). Ainda segundo Reich, é
mente orientado mais facilmente se trans- desta redescoberta do sentido originário da
forma numa lista de questões e argumentos bioética que dão testemunho os editores da
descosidos acerca destes problemas” (Re- Enciclopédia de Bioética que temos vindo
ich, 1995:28), tendendo a medicalizar todo o a referir. Ao contrário de muitos académi-
campo da bioética e a esvaziar gradualmente cos e do público em geral, que tendem a
“as energias morais da bioética das questões reduzir o âmbito da bioética à estreiteza de
mais vastas da sobrevivência humana e da um sentido médico estrito - “a bioética se-
qualidade de vida e de saúde dos pontos ria uma ética médica ligeiramente alargada,
de vista demográfico e ambiental” (Reich, incluindo a ética da investigação biomédica”
1995:29). Por outro lado, “a bioética é mel- (Reich et al., 1995:XXI) - entendem aqueles
hor definida no seu sentido global, como que no âmbito da bioética cabem as questões
a ética das ciências da vida e da prestação sociais, ambientais e globais das ciências da
de cuidados de saúde. Significa isto que a saúde e da vida, de tal modo que ele “vai
bioética vai para além das questões éticas da para além da ética biomédica para englobar
medicina, para incluir as questões éticas rel- as questões morais relativas à saúde e à ciên-
ativas à saúde pública, ao crescimento pop- cia nas áreas da saúde pública, da saúde am-
ulacional, à genética, à saúde ambiental, às biental, da ética da população e do manusea-
práticas e tecnologias reprodutivas, à saúde mento de animais” (Reich et al., 1995:XXI).
e bem-estar dos animais, e por aí fora. Este O que há que evitar, nesta perspectiva, e
âmbito alargado, com o qual, opina Reich, porque se trata de dar razão de unir as áreas
afinal concordariam tanto Potter como Hel- médicas com as áreas sociais e globais das
legers, constituía a intenção originária dos ciências da saúde e da vida, é uma “orien-
outros pioneiros da bioética, reunidos em tação médica excessivamente estreita (que)
torno do Hastings Center que, desde o seu tende a medicalizar e tecnologizar o campo
início, concentrava todo o seu trabalho em da bioética, tornando assim o seu programa
‘ética e ciências da vida”’ (Reich, 1995:29). de trabalho e até os seus métodos mais facil-
Ainda segundo Reich, “a palavra ‘bioética’ mente moldáveis pelas actuais formas das
desempenhou um papel da maior importân- tecnologias clínicas e por poderosas institu-
cia na criação de um novo forum e uma nova ições médicas” (Reich et al., 1995:XXII).

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 53

Em 1988, Van Rensselaer Potter re- global sem demora; g) que qualquer pressu-
definiria a sua própria concepção originária posto fundamental está aberto a questiona-
de bioética, substituindo-a pela noção de mento e modificação, de preferência por pro-
bioética global. Os seus pressupostos fun- cessos ordeiros “ (Potter, 1992:5-6).
damentais são: “a) que uma forma aceitável Em suma, o projecto de uma Bioética
de sobrevivência humana não pode ser pres- Global, tal como Potter o apresenta, acar-
suposta e é improvável sem um renascimento retaria mudanças fundamentais nas políti-
da ciência, da religião e da teoria económica; cas mundiais e, se implica um necessário
b) que a base fundamental da origem da es- extravazamento dos limites tradicionais da
pécie e da evolução por processos naturais ética ou da deontologia médicas, representa
é a chave do nosso passado remoto e das igualmente um contraponto secular ao fun-
nossas dificuldades presentes, embora nen- damentalismo religioso, se bem que não uma
huma das grandes religiões tenha adoptado recusa liminar da admissão à discussão de
esta posição (. . . ); c) que a sobrevivência hu- toda a perspectiva religiosa. Neste sentido,
mana numa forma aceitável requer a utiliza- Potter pretende que a bioética seja uma ética
ção do conhecimento existente e da continu- de inspiração propriamente filosófica, na me-
ada investigação nas ciências básicas, médi- dida em que se distingue quer de uma de-
cas, do ambiente e do comportamento para o ontologia profissional, quer de uma moral
desenvolvimento de uma posição de autori- confessional, e na medida em que dirige
dade moral; d) que a recente taxa de cresci- tanto às profissões em geral, e científicas
mento da espécie humana em muitas regiões e médicas em particular, como às religiões,
tem levado ao sobrepovoamento numa base o desafio racional de formularem e prov-
global e tem de ser invertida se se toma idenciarem valores, ou seja, que as ques-
em consideração a sobrevivência aceitável; tiona no sentido de saber que valores de-
e) que a bioética global é necessária como fendem e como pode ela apropriá-los. No
fonte secular de autoridade moral num diál- entanto, a bioética global de Potter é tam-
ogo com as religiões cooperantes para se re- bém suficientemente generalista, ou também
sponder ao desafio da sobrevivência da espé- “piedosa” no seu generalismo, para de certo
cie humana numa forma aceitável através do modo acomodar, e poder ser explorada em
terceiro milénio e para além dele: como tal, proveito dos cientistas que (re)fazem uma in-
a bioética global é moralmente justa e con- terpretação naturalista da sua própria ciên-
veniente enquanto meio de unificar as diver- cia, designadamente quando defendem que
sas comunidades étnicas, religiosas e políti- é na sua “descoberta” do “facto” da biodi-
cas do planeta Terra, apesar dos interesses versidade que assenta, em última análise, a
instalados que podem optar por se lhe opor; injunção de respeito por esta, o que se tem
f) que a sobrevivência aceitável é concebível tornado numa autêntica palavra-de-ordem.
e alcançável, embora difícil num mundo plu- Com efeito, a convicção nos fundamentos
ralista, se para tanto um número suficiente naturais da ética, cara a autores como Jean-
de espíritos humanos puderem ser mobiliza- Pierre Changeux32 , convergiu com a bioética
dos e motivados para efectivar uma evolução
32
cultural consciente em direcção à bioética V. em especial: Jean-Pierre Changeux (1991), O

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54 António Fernando Cascais

por intermédio de uma interpretação partic- anos oitenta já Callahan dizia claramente que
ular da bioética global de Potter – mas que “a análise e a prescrição morais só raramente
Potter não rejeitou, note-se – e tem sido de- abrem caminho em matéria de evolução so-
senvolvida sobretudo por Brunetto Chiarelli. cial e cultural. Pelo contrário, elas represen-
No entanto, há que recordar que a ideia de tam geralmente uma tentativa de organizar
uma ética evolucionista33 deve ser entendida práticas imperfeitas e díspares e princípios
num quadro mais geral que assimila atitude precários e adaptados a cada caso (aquilo
científica e racionalidade ética, mas ao preço que geralmente se designa com o termo de
da naturalização desta, à luz de um mod- usos) num sistema moral coerente e estru-
elo que remonta a Darwin e a Haeckel, que turado” (Callahan, 1986:44). A ética só
o positivismo científico-social prosseguiu e pode cumprir eficazmente um papel refor-
que hoje desemboca em correntes como a so- mador sob duas condições, a primeira das
ciobiologia. quais consiste em apreender e compreender
Quanto a Daniel Callahan, a emergên- correctamente as realidades culturais e soci-
cia da bioética marca as limitações da ética ais e a segunda que os princípios e as per-
médica que, além de ter que ver com “os di- spectivas por ela estabelecidos representem
versos e delicados dilemas morais com que uma real capacidade de organização e de
se confrontam os médicos, os pacientes e o percepção, ressalvando-se porém que toda
conjunto do sistema médico”, deve englo- a análise moral dá quase inevitavelmente
bar, em sentido mais vasto, os debates so- origem a uma tensão entre os ideais morais
bre os conceitos de saúde e de doença, sobre e as realidades da vida quotidiana que torna
os fins da medicina e sobre o modo como difícil a obediência a esses ideais (Calla-
as decisões devem ser tomadas” (Callahan, han, 1986:44). As duas tarefas maiores
1986:43). A este respeito, em meados dos que se perfilaram diante da bioética emer-
gente foram: um esforço de apagar a dis-
homem neuronal. Lisboa: Publicações Dom Quixote, tinção entre factos estritamente científicos e
Jean-Pierre Changeux e tal. (1996), Fundamentos valores exclusivamente éticos e “desafiar a
naturais da ética. Lisboa: Instituto Piaget e o debate crença segundo a qual os peritos em ciên-
entre Jean-Pierre Changeux e Paul Ricoeur (1998), Ce
cia e medicina eram tão capazes de tomar
qui nous fait penser. La nature et la règle. Paris: Édi-
tions Odile Jacob. decisões morais como médicas” (Callahan,
33
São óbvias as afinidades entre o pensamento 1995:249); e uma tentativa de desenvolver as
de Brunetto Chiarelli e as posições da ética evolu- metodologias necessárias à abordagem dos
cionista – V. nomeadamente: Brunetto Chiarelli novos dilemas éticos. Logo desde o início
(1991), Origem da sociabilidade e da cultura hu-
mana. Coimbra: Instituto de Antropologia da Uni-
impuseram-se as questões da necessária in-
versidade de Coimbra e Paul Thompson, ed. et al. terdisciplinaridade da bioética e de saber que
(1995), Issues in Evolutionary Ethics. New York: decisões deveriam ser remetidas ao foro pri-
State University of New York Press. Por outro lado, a vado e que decisões deveriam ser deixadas à
convergência entre Potter e Chiarelli ficou selada com esfera pública. No entanto, diz Callahan que
a Revista Global Bioethics, editada pelo primeiro na
Università Degli Studi de Florença e de cujo conselho a definição do âmbito da bioética, a sua re-
redactorial Potter foi presidente honorário até à sua lação com as disciplinas da teologia moral e
morte em 2001. da filosofia moral, com os seus campos con-

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 55

ceptuais e as suas metodologias estabeleci- passando pela recuperação de uma ética da


das, e a dilaceração da bioética entre a am- virtude, com Edmund Pellegrino e David
plitude da interdisciplinaridade e a estreiteza Thomasma35 , que se opõem tanto ao princip-
de metodologias comprovadas, foram prob- ialismo de Tom Beauchamp e James Chil-
lemas que acompanharam a bioética também dress36 , como à defesa da autonomia, por
desde o início e que estão longe de ser re- Robert Veatch37 , que por sua vez se dis-
solvidos. Mais, entende Callahan que, en- tinguem todos das correntes feministas e
quanto campo, a bioética oferece duas difi- da ética do cuidado de Carol Gilligan38 e
culdades de monta: “ela fracassou na perse- da ética narrativa39 , enquanto que na Eu-
cução, suficientemente imaginativa, da ideia ropa, Diego Gracia40 , desenvolve estudos
de bem comum, ou interesse público, por
um lado, e da ideia de responsabilidade pes- Prática de Decisões Éticas em Medicina Clínica. Al-
soal, ou dos usos morais da escolha individ- fragide: McGraw-Hill de Portugal.
35
ual, por outro. Em virtude da sua tendên- Edmund D. Pellegrino (1985), “The Virtuous
Physician, and the Ethics of Medicine”, in Earl E.
cia de reduzir o problema do bem comum à Shelp, ed. et al: Virtue and Medicine. Dordrecht: Rei-
justiça e da vida moral individual à aquisição del: 237-255, (1995b), “Toward a Virtue-Based Nor-
de autonomia, ela deixou um vazio moral” mative Ethics”, in Kennedy Institute of Ethics Jour-
(Callahan, 1994:28). Assim, a evolução da nal, Vol. 5 (3): 253-277 e Edmund D. Pellegrino
bioética levaria à sedimentação de quatro (2000), “Bioethics at Century’s Turn: Can Normative
Ethics be Retrieved?”, The Journal of Medicine and
grandes áreas no seu interior, como resposta Philosophy, 25 (6): 655-675; Edmund D. Pellegrino e
possível e pragmática àqueles problemas de David C. Thomasma (1988), For the Patient’s Good:
fundo. Assim, haveria quatro grandes áreas The Restoration of Beneficence in Health Care. New
de pesquisa: a bioética teórica ou fundamen- York: Oxford University Press e (1993), The Virtues
in Medical Practice. New York: Oxford University
tal, que lida com os fundamentos epistémi-
Press.
cos do campo, a bioética clínica, que abrange 36
Tom L. Beauchamp (1985) “What’s So Special
a resolução de problemas éticos concretos e a About the Virtues?”, in Earl E. Shelp, ed. et al.:
tomada de decisões “à cabeceira”, a bioética Virtue and Medicine. Explorations in the Character
regulatória e das políticas públicas, com um of Medicine. Dordrecht: D. Reidel Publishing Com-
pany: 307-327, (1993), “The Principles Approach”,
imenso manancial de instrumentos de regu-
Hastings Center Report, 23 (6): S9, (1995), “Prin-
lação e de decisões políticas, e a bioética cul- ciplism and Its Alleged Competitors”, Kennedy In-
tural, que se refere à abordagem das questões stitute of Ethics Journal, 5 (3): 181-198 e Tom L.
bioéticas do ponto de vista das ciências soci- Beauchamp e Laurence B. McCullough (1987), Ética
ais e dos estudos culturais. De facto, é certo médica. Las responsabilidades morales de los médi-
cos. Barcelona: Editorial Labor.
que se desenvolveram correntes inteiras de 37
Robert Veatch (1981), A Theory of Medical
reflexão em cada uma destas áreas ou sub- Ethics. New York: Basic Books.
especialidades no interior da bioética, desde 38
Carol Gilligan (1998), In A Different Voice. Cam-
o privilégio da bioética clínica e a metodolo- bridge: Harvard University Press e Margaret Olivia
gia casuística de Albert Jonsen34 , nos EUA, Little (1996), “Why a Feminist Approach to Bioethics
?”, Kennedy Institute of Ethics Journal, 6 (1): 1-18.
39
V. Kathryn M. Hunter (1991), Doctor’s Stories.
34
Albert R. Jonsen, Mark Siegler e William J. Princeton: Princeton University Press.
40
Winslade (1998), Ética clínica: Uma Abordagem Para um conhecimento aprofundado, além do tí-

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56 António Fernando Cascais

de bioética fundamental, que, no que re- esta como um correlato do poder e que seja
speita às suas metodologias, assume uma capaz de uma previsão alargada da evolução
visão sincrética da bioética muito próxima futura, ou seja, trata-se de uma responsabili-
da de Daniel Callahan e do Hasting Center, e dade que tem por objecto não apenas o des-
Gilbert Hottois se distinguiu sempre por uma tino dos homens, mas também o destino de
reflexão filosófica e científico-social que se todos os fenómenos naturais e vivos que pos-
aproximaria muito daquilo que atrás foi de- sibilitaram a evolução da humanidade da to-
scrito como “bioética cultural”, sem no en- talidade da própria vida; 3) qualquer ex-
tanto se esgotar nessa definição. trapolação a partir dos dados actualmente
Posição claramente distinta, senão mesmo disponíveis terá de levar em conta a preg-
oposta, à de um Potter é tomada por Hans nância causal das nossas acções tecnológ-
Jonas quanto à legitimidade da persecução icas, pelo que uma imaginativa “heurística
livre e autónoma de possíveis biomédicos, do medo”, que substitui as anteriores pro-
científicos e tecnológicos e de estilos de jecções da esperança, deve poder dizer-nos
vida, a cujo propósito o filósofo formulou o que é que está provavelmente em causa e
o seu célebre Prinzip Verantwortung, ou aquilo contra que devemos acautelar-nos, em
Princípio Responsabilidade (Jonas, 1984). A nome de uma regra pragmática que dá prior-
premissa fundamental do seu princípio ou idade à profecia agonística sobre a promessa
imperativo de responsabilidade, que, alerta de redenção, típica do optimismo utópico
Jonas, parte de um diagnóstico que já não herdado do Iluminismo, e tendo em vista
é novo, é que a tecnologia moderna elevou que nos é mais fácil saber o que não quere-
o poder do homem sobre a matéria, a vida mos do que o que queremos; 4) aquilo que
e o próprio homem para além de tudo o devemos evitar a todo o custo é determi-
que antes era conhecido; de acordo com nado por aquilo que devemos preservar a
ela, desenvolve Jonas cinco teses fundamen- todo o custo, sendo este, por sua vez, pred-
tais: 1) a natureza do agir humano foi al- icado da nossa imagem do homem, a qual,
terada, o que levanta questões morais para com o eclipse contemporâneo da religião,
as quais nos não prepararam as antigas éti- só pode ser dada por uma razão secular-
cas e cujos princípios há que repensar; 2) izada e especulativa, susceptível de fundar
a extensão das nossas acções põe a respon- os deveres do homem para consigo próprio,
sabilidade, que tem no próprio destino do a sua posteridade longínqua e a plenitude
homem o seu objecto, no centro do domínio da vida terrestre sujeita ao seu domínio, de
ético, sendo concomitantemente necessária tal modo que uma filosofia da natureza dev-
uma teoria da responsabilidade que entenda erá articular o “é” cientificamente validável
com o “deve” das injunções morais; 5) o
tulo referido na bibliografia, V. Diego Gracia (1989), conceito de imperativo humano objectivo as-
Fundamentos de bioética. Madrid: Eudema, (1990), sim obtido permite-nos discriminar entre os
Primum non nocere. El princípio de no-maleficencia fins legítimos e os ilegítimos, propostos ao
como fundamento de la ética médica. Madrid: Insti-
tuto de España/Real Academia Nacional de Medicina nosso poder prometeico, discriminação essa
e (1991) Procedimientos de decisión en ética clínica. que contraria a imodéstia dos fins decor-
Madrid: Eudema. rentes da aliança entre utopia e progresso

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 57

tecnológico, trocando-a pelo fim mais ade-


quado que consiste em salvar a sobrevivência Belin : 7-74; Marie-Luce Delfosse (1996), “Expéri-
e a humanidade do homem dos excessos do mentation médicale sur l’être humain et philosophie”,
seu próprio poder (Jonas, 1984:IX-X). Hans in Jean-Noel Missa et al.: Le devoir d’expérimenter.
Études philosophiques, éthiques et juridiques sur la
Jonas formula deste modo um imperativo de recherche biomédicale. Bruxelles : De Boeck : 207-
responsabilidade dirigido para a preservação 225; Strachan Donneley (1995) “The Art of Moral
de um mundo adequado à habitação humana Ecology”, Ecosystem Health, 1(3): 170-176 e (1996),
e para a preservação da presença do homem “Transgenic Animals and ‘Wild’ Nature. A Land-
no mundo como aquele ser pelo qual a ca- scape of Moral Ecology”, in Jennifer Chesworth,
ed. et al.: The Ecology of Health.Identifying Is-
pacidade ética vem à existência. Segundo sues and Alternatives. Thousan Oaks: Sage Publica-
Jonas, este imperativo de uma responsabil- tions: 47-58; Anne Fagot-Largeault (1996), “Norma-
idade apriorística aplica-se sobretudo à es- tividade biológica e normatividade social”, in Jean-
fera pública, como no campo das políticas de Pierre Changeux, dir. et al.: Fundamentos naturais da
investigação, em que ele propõe, por exem- ética. Lisboa : Instituto Piaget: 179-211 ; Luc Ferry
(1992), Le nouvel ordre écologique. L’arbre, l’animal
plo, a interdição total de experimentação hu- et l’homme. Paris: Grasset; C. Fethe (1993), “Beyond
mana com fins eugénicos; em contrapartida, voluntary consent: Hans Jonas on the requirements of
Jonas defende uma visão muito mais liberal human experimentation”, Journal of Medical Ethics,
da autonomia individual na esfera privada, 19 (2): 99-103; Jean Greisch (1995), “L’amour du
como por exemplo na defesa que faz do dire- monde et le principe responsabilité”, in AAVV: La re-
sponsabilité. La condition de notre humanité. Paris :
ito a certas formas de eutanásia voluntária. Éditions Autrement : 72-93 ; Gilbert Hottois (1992),
Embora a fundação metafísica do seu im- O paradigma bioético. Uma ética para a tecno-
perativo de responsabilidade, que vai contra ciência, Lisboa, Edições Salamandra e (1997), De
praticamente todas as linhas contemporâneas la Renaissance à la Postmodernité. Une histoire
de la philosophie moderne et contemporaine. Brux-
de pensamento filosófico, soberanamente ig-
elles : De Boeck; Gilbert Hottois, ed. et al. (1993),
noradas por Jonas, assim como os constrang- Aux fondements d’une éthique contemporaine. Hans
imentos que a heurística do medo lança sobre Jonas et H. Engelhardt. Paris: Vrin; Gilbert Hottois
a liberdade humana, tenham sido objecto de e Marie-Geneviève Pinsart, eds. et al. (1993), Hans
abundante comentário crítico41 , o seu pensa- Jonas. Nature et responsabilité. Paris: Vrin; Leon
Kass (1981), “The New Biology: What Price Reliev-
mento tem usufruído de considerável acolhi-
ing Man’s Estate ?”, in Thomas Shannon, ed. et al.:
41
V. AAVV (1995), The Legacy of Hans Jonas, Bioethics. Basic Writings on the Key Ethical Issues
Hastings Center Report (Special Issue), 25 (7); Karl- that Surround the Major, Modern Biological Possibil-
Otto Apel (1995), “Epílogo: Límites de la ética dis- ities and Problems. Ramsey: Paulist Press: 295-318;
cursiva ?”, in Adela Cortina: Razón comunicativa Teresa Levy (1997), “Philosophical ethics meets tech-
y responsabilidad solidária, Salamanca, Ediciones nology: a difficult state of affairs”, Global Bioethics,
Sígueme, 3a ed.; Dominique Bourg (1991) “Faut-il 10 (1-4): 35-54 e (1998), “Rethinking ethics: A crit-
avoir peur de la bioéthique ?”, Esprit, 171 : 22-39 ical appraisal of Hans Jonas’ work on ethics”, in
e (1993), “Hans Jonas et l’écologie”, La Recherche, AAVV: Ética e o futuro da democracia. Lisboa:
24 (213): 886; A. Fernando Cascais (1994), “Sal- Edições Colibri: 443-450; Carl Mitcham (1989), Qué
var que natureza e que homem?”, in Hans Jonas, és la filosofía de la tecnología ? Barcelona: Edito-
Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega: 5-24; Sylvie rial Anthropos, (1994), Thinking Through Technol-
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Arendt: Histoire d’une complémentarité”, in Hans phy. Chicago and London: The University of Chicago
Jonas: Entre le néant et l’éternité. Paris : Éditions Press e (1996), “Biomedical Technologies and the En-

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58 António Fernando Cascais

mento entre algumas correntes políticas e so- Explica Jonas que falar da natureza al-
bretudo entre os meios ambientalistas e ecol- terada do agir humano significa que to-
ogistas, atraídos pela sua fundação da ca- das as éticas até hoje conhecidas partiam
pacidade ética humana numa metafísica da das premissas tácitas interligadas de que
evolução natural que, por isso, alarga o bem a condição humana, determinada pela na-
humano, e o faz inclusive radicar na pro- tureza do homem e pela natureza das coisas,
tecção do bem da natureza e da vida, mas isto estava dada de uma vez para sempre, que o
em termos diametralmente opostos aos da bem humano era por isso de imediato de-
ética evolucionista. Por outro lado, o princí- terminável e que a latitude do agir humano,
pio de responsabilidade de Jonas permanece ou seja, da responsabilidade, se encontrava
como a tentativa filosoficamente mais sofisti- estreitamente circunscrita. Acontece que,
cada de contrariar as tendências do pen- segundo Jonas, que neste aspecto revela a
samento contemporâneo e os riscos do ni- sua dívida para com a reflexão de Martin
hilismo ontológico e do relativismo ético, Heidegger acerca da técnica, estas premis-
exercendo por esta via um fascínio inegável sas já não se mantêm. Tendo a natureza do
para a grandes preocupações do século42 . agir humano sido alterada pela técnica mod-
erna, é absolutamente necessário formular
vironment: Rejecting the Ethics of Rejecting Nature”, uma ética que se preocupe com esse agir e
in Jennifer Chesworth, ed. et al.: The Ecology of para a qual não existe precedente nos mod-
Health. London: Sage Publications: 3-16; Miguel
Baptista Pereira (1992), “Do biocentrismo à bioética elos e cânones da ética tradicional. Ao con-
ou da urgência de um paradigma holístico”, Revista trário da tekne grega, cujo carácter artesanal
Filosófica de Coimbra, 1 (1): 5-50; Marie-Geneviève não alterava os grandes ciclos da natureza,
Pinsart (1996), “Nature humaine ou expérimentation marcando antes a diferenciação entre ela e o
humaine chez Hans Jonas”, in Jean-Noel Missa et
al.: Le devoir d’expérimenter. Études philosophiques,
éthiques et juridiques sur la recherche biomédicale. Press; (1981), “The Right to Die”, in Thomas A.
Bruxelles : De Boeck: 187-205; Paul Ricoeur (1996), Shannon, ed. et al., Bioethics. Basic Writings on
Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil; the Key Issues that Surround the Major, Modern Bi-
Jean-Pierre Séris (1994), La technique. Paris : Presses ological Possibilities and Problems. Ramsey: Paulist
Universitaire de France; Lucien Sève (1994), Pour Press: 195-208; (1991), “De la Gnose au Principe Re-
une critique de la raison bioéthique. Paris : Édi- sponsabilité. Entretien avec Hans Jonas”, Esprit, 171:
tions Odile Jacob; Franck Tinland (1997), L’Homme 5-21; (1994), Le concept de Dieu après Auschwitz.
aléatoire. Paris : Presses Universitaires de France; Paris: Éditions Rivages & Payot; (1995), “Not Com-
Lawrence Vogel (1996), “Hans Jonas’s Exodus: From passion Alone: On Euthanasia and Ethics”, Hastings
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Morality. A Search for the Good after Auschwitz. by Lawrence Vogel. Evanston: Northwestern Uni-
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Para um conhecimento aprofundado do pensa- Paris: Payot et Rivages ; (1997), Entre le néant et
mento de Jonas, além dos títulos referidops na bib- l’éternité. Paris: Éditions Belin; (1998), Pensar sobre
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Philosophical Essays. From Ancient Creed to Tech- tore; (2000), Organismo e libertà. Verso una biologia
nological Man. Chicago: The University of Chicago filosofica. Torino: Giulio Einaudi Editore.

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 59

mundo humano que delimitava o âmbito das sabilidade; e as gerações futuras, dado que o
injunções morais, a técnica moderna é porta- carácter cumulativo da auto-propagação tec-
dora de uma capacidade de manipulação efi- nológica, ao alterar a situação inicial, modi-
caz dos fenómenos naturais que pôs termo fica as condições do agir e leva assim a um
à essencial imutabilidade da natureza, como afastamento crescente entre a capacidade de
ordem cósmica, fazendo com que ela deix- predizer e o poder de agir, o que obriga a que
asse de ser o horizonte moral da acção hu- nos preocupemos com as consequências das
mana e se tornasse igualmente em objecto de nossas acções presentes para as gerações que
responsabilidade sobre o qual há que velar hão-de vir e sofrer-lhes as respectivas con-
eticamente na medida directa do poder ma- sequências: “Em face das potencialidades
nipulador que sobre ela a técnica exerce. As- quase-escatológicas dos nossos procedimen-
sim, de acordo com Jonas, são característi- tos técnicos, a ignorância das implicações
cas das éticas anteriores: tudo o que dizia re- últimas torna-se ela própria num motivo
speito ao domínio não humano da tekne era de contenção responsável” (Jonas, 1984:22).
eticamente neutro, salvo a medicina, tanto Neste sentido, e ao contrário da ética kan-
em relação ao objecto como ao sujeito de tiana, que se baseava numa teoria do conhec-
tal acção, e a tekne era entendida como imento, doravante não é já o conhecimento,
simples tributo à necessidade; a relevância a racionalidade, que se transforma num de-
ética advinha da relação do homem com o ver primeiro e coextensivo à escala causal do
homem, a ética era antropocêntrica; a enti- nosso agir, mas antes o nosso poder de agir
dade do homem era considerada constante que nos obriga a formular racionalmente um
em essência e não como um objecto ma- imperativo que precisamente nos responsabi-
nipulável pela tekne; os valores a que de- lize por esse poder de que nos deparamos
via ater-se a acção permanecem próximos detentores: “Por outras palavras, a técnica,
do próprio acto, quer na praxis, quer no para além das suas realizações objectivas, as-
seu alcance imediato; eram éticas do pre- sume importância ética em virtude do lugar
sente imediato no espaço e no tempo, que central que hoje ocupa nos fins humanos”
deixavam as consequências longínquas da (Jonas, 1984:9). Recobrindo hoje a totali-
acção ao acaso, ao destino e à providência; dade do mundo natural, por obra e graça da
consequentemente, o tipo de conhecimento técnica, a Cidade Universal tornou-se numa
em que se baseavam estas éticas era da or- segunda natureza; já não há diferença entre
dem do senso comum a todos os homens a cidade e a natureza, mas uma megalópole
de boa vontade, permanente e universal, que que usurpou o mundo não humano da na-
não necessitava de grande capacidade pred- tureza. A presença do homem no mundo
itiva com que contrariar o não maior poder surge então como o grande imperativo de
do homem. Em contrapartida, com a téc- uma ética para a era da técnica: de dado
nica moderna, surgem novas dimensões de inquestionável, do qual partia toda a ideia
responsabilidade: a vulnerabilidade da na- de obrigação moral, a presença do homem
tureza à intervenção tecnológica, registada no mundo tornou-se ela própria objecto de
pela ecologia, o que faz com que a preser- obrigação moral, a obrigação de assegurar
vação da biosfera se torne objecto de respon- a própria premissa de toda a obrigação, ou

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60 António Fernando Cascais

seja, a base que sustenta um universo moral a heurística do medo. Diz ele que o mau
no mundo físico. A necessidade de uma prognóstico prevalece sobre o bom prognós-
ética equivale de facto à necessidade de uma tico: primeiro, porque a interferência tec-
ciência dos efeitos a longo prazo do agir nológica sobre o sistema da vida precipita a
tecnológico, que ocupa o seu lugar entre o inserção de novos elementos de insegurança
conhecimento ideal dos princípios éticos e o e acaso na evolução natural, que são estran-
conhecimento prático da aplicação política, hos à lentidão que a caracteriza, ou seja, a
ou seja, uma ciência da projecção hipotética, velocidade dos acontecimentos subtrai-se à
uma “futurologia comparativa” daquilo que auto-correcção; segundo, porque os desen-
o medo ou a esperança devem promover ou volvimentos tecnológicos têm uma dinâmica
prevenir; trata-se de uma necessidade heurís- cumulativa que retira das mãos dos seus ini-
tica de uma doutrina dos princípios éticos ca- ciadores a lei da acção; terceiro, porque há
paz de visualizar as contingências ainda dis- que preservar a herança da evolução con-
tantes. Só pode assegurar-se uma imagem tra o imperativo técnico que reivindica a
do homem por extrapolação das ameaças a exclusividade da competência técnica para
ela: “. . . e exactamente da mesma maneira cumprir a completa liberdade nihilista do
como não poderíamos conhecer o valor da jogo criativo, que nos autoriza o facto de
verdade sem estarmos cientes das mentiras, nada ser sancionado pela natureza, e que
nem da liberdade sem a falta dela, e por aí nada guia a não ser o próprio capricho do
fora – então também, na nossa procura de impulso de jogar. A natureza primeiro, e
uma ética da responsabilidade para as con- depois o homem, foram neutralizados em
tingências longínquas, é uma previsão da termos de valor e estremecemos agora no
distorção do homem que nos ajuda a detec- desabrigo de um nihilismo no qual emparel-
tar aquilo que na concepção normativa do ham a omnipotência quase absoluta e o vazio
homem há que preservar contra ela. E pre- quase absoluto; a questão aqui em causa é a
cisamos da ameaça à imagem do homem de saber se, sem ressuscitar a categoria do
– e de tipos de ameaça bem específicos – sagrado, aquela que mais meticulosamente
para nos certificarmos da sua verdadeira im- foi destruída pelas luzes da ciência, é pos-
agem pelo simples acto de recuar com hor- sível conceber uma ética capaz de ombrear
ror dessa ameaças. Enquanto o perigo for com os poderes extremos de que hoje dispo-
desconhecido, não saberemos o que preser- mos: “Considerando que as consequências
var e porquê. O conhecimento disso vem, do uso desses poderes são suficientemente
contra toda a lógica e método, da percepção iminentes para ainda nos chegarem a atin-
do que há que evitar. (. . . ) Sabemos que gir, o medo poderia aqui fazer as vezes do
coisa corre perigo apenas quando sabemos sagrado – tantas vezes o melhor substituto
que ela corre perigo” (Jonas, 1984:26-27). da virtude ou da sabedoria genuínas. (. . . )
O escândalo precede assim o conhecimento, Só o temor sagrado com o seu desassom-
visto que saber o que recear não é, por si só, brado veto é independente dos cômputos do
definir um mal, nem aquilo que é mais dese- medo mundano e do alívio decorrente da in-
jável corresponde necessariamente ao sumo certeza a respeito de consequências demasi-
bem. Tanto constitui aquilo que Jonas chama ado distantes. (. . . ) E enquanto que da fé

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 61

se pode dizer que ela existe ou não existe, futuras gerações serem o que devem ser e
da ética forçoso é que exista. (§) É forçoso esse dever ser está tanto acima de nós como
que exista porque os homens agem e a ética delas, é o dever de serem verdadeiramente
serve para ordenar as acções e regulamentar humanas: “Este tipo de ‘responsabilidade’ e
o poder de agir” (Jonas, 1994:59-60). As- de ‘se sentir responsável’ é o que temos em
sim sendo, deve assertar-se alguma espécie mente, e não o tipo vazio e formal segundo
de autoridade para se determinar um modelo o qual todo o agente é responsável pelos
de decisão, e essa autoridade só pode basear- seus actos, quando falamos de ‘responsabili-
se numa essencial suficiência da nossa na- dade pelo futuro’ como a marca de uma ética
tureza, tal como evolui no mundo; trata-se que hoje é necessária” (Jonas, 1984:93).
da suficiência em face da verdade, da liber- É precisamente este o primeiro imperativo:
dade e da valoração; a autoridade dela decor- que haja uma humanidade: “Um imperativo
rente nunca pode pois incluir a desfiguração, que desse resposta ao novo tipo de acção
a ameaça ou a remodelação de si própria; o humana e dirigido ao novo tipo de inter-
sujeito da evolução assume assim um valor venção que a comanda poderia exprimir-
sacrossanto. Significa isto: que a existên- se como segue: ‘Age de tal maneira que
cia do “homem” nunca deve ser posta em os efeitos da tua acção sejam compatíveis
causa enquanto único ser pelo qual o próprio com a preservação da vida humana genuína’;
valor vem ao mundo, que a humanidade não ou, expresso negativamente: ‘Age de tal
tem o direito de se suicidar, tem um dever maneira que os efeitos da tua acção não
incondicional de existir, no sentido de não sejam destruidores da futura possibilidade
ter o direito de consentir, agora, nem de pre- dessa vida’; ou simplesmente: ‘Não com-
sumir o consentimento das gerações futuras prometas as condições de uma continuação
que ainda não existem, tanto quanto à sua indefinida da humanidade sobre a terra’; ou
não existência como à sua desumanização: de modo mais geral: ‘Nas tuas opções pre-
“Assim, num tempo de pressões unilaterais sentes, inclui a futura integridade do Homem
e galopantes riscos, há o lado da moderação entre os objectos da tua vontade”’ (Jonas,
e da circunspecção, do ‘toma cuidado!’ e 1984:11; Jonas, 1994:46). Um dever não
do ‘preserva!”’ (Jonas, 1984:204).. Trata-se para com a humanidade a haver, mas para
pois, aqui, de um dever supremo de assegu- que ela própria exista; é uma responsabili-
rar o futuro que não é fornecido pela ideia dade ontológica pela ideia de Homem e não
tradicional de reciprocidade de direitos e de- pelos indivíduos enquanto tais; não se trata
veres, pois ela excluía aquilo que (ainda) não de uma prova ontológica que garanta a ex-
existe da possibilidade de reivindicar dire- istência do seu sujeito a partir da respectiva
itos. O dever para com a posteridade prova- essência, mas sim da ideia de que tal pre-
se pela razão de que somos hoje responsáveis sença deve existir: “Só a ideia de Homem,
pelas condições de existência das gerações ao dizer-nos porquê devem existir homens,
futuras, pois elas têm origem no nosso acto nos diz também como devem ser (Jonas,
procriador; mas isto é insuficiente para uma 1984:43). A ideia ontológica gera um im-
teoria ética, ainda que baste para uma prag- perativo não hipotético, mas sim categórico:
mática; o crime maior será impossibilitar às “. . . o primeiro princípio de uma ‘ética da fu-

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turidade’ não reside ele próprio no interior ito. Diz Jonas que: “O cuidado do futuro
da ética enquanto doutrina da acção (. . . ), da humanidade é o dever supremo da acção
mas no interior da metafísica enquanto dout- colectiva humana na era da civilização téc-
rina do ser, de que a ideia de Homem faz nica que se tornou ‘todo-poderosa’, se não
parte” (Jonas, 1984:44). Segundo Jonas, no seu potencial de produção, pelo menos
tem de se permitir a possibilidade de uma no seu potencial de destruição. Este cuidado
metafísica racional, a despeito do veredicto tem obviamente de incluir o cuidado do fu-
de Kant em contrário (Jonas, 1984:45), mas turo de toda a natureza neste planeta como
há que recusar, porém, o antropocentrismo uma condição necessária do próprio futuro
da ética helénico-judaico-cristã, pois “. . . as do homem” (Jonas, 1984:136). E conclui:
possibilidades apocalípticas inerentes à téc- “. . . se algumas das implicações práticas dos
nica moderna ensinaram-nos que o exclu- meus raciocínios dão a impressão de ir no
sivismo antropocêntrico poderia ser um pre- sentido de uma mais lenta marcha do pro-
conceito que, no mínimo, carece de ser re- gresso, isso não deveria ser motivo de con-
examinado” (Jonas, 1984:46). E acrescenta sternação por aí além. Não esqueçamos que
Jonas: “A dignidade do homem per se só o progresso é um objectivo facultativo, não
pode ser dita potencial, sob pena de se tornar um compromisso incondicional, e que o seu
no discurso de imperdoável vaidade. Con- ritmo, por compulsivo que possa vir a tornar-
tra tudo isto, a existência da humanidade se, nada tem de sagrado. (. . . ) Lembre-
vem primeiro, quer seja ela merecida pelos mos enfim que o progresso não pode ter por
seus feitos passados e a sua provável contin- meta abolir a condição da mortalidade. De
uação, quer não. É a sempre transcendente um ou de outro mal, cada um de nós mor-
possibilidade, obrigatória em si mesma, que rerá. A nossa condição mortal recai sobre
tem de ser mantida aberta pela existência nós com a sua crueldade mas também com
continuada. Preservar esta possibilidade é a sua sabedoria – porque sem ela não have-
uma responsabilidade cósmica; daí o dever ria a promessa eternamente renovada da fres-
de a humanidade existir. Dito epigramati- cura, da imediatez e da sofreguidão da juven-
camente: a possibilidade de haver respons- tude; nem existiria para nenhum de nós in-
abilidade no mundo, que se encontra ligada centivo para contarmos os nossos dias e fazer
à existência do homem, é, de todos os objec- com que valham a pena. Com todo o denodo
tos de responsabilidade, o primeiro” (Jonas, que pomos em arrebatar o que pudermos à
1984:99). A existência da humanidade sig- nossa mortalidade, deveríamos suportar-lhe
nifica tão-só que vivam homens na terra, o fardo com paciência e dignidade” (Jonas,
como primeiro mandamento, e que vivam 1994:165-166).
bem, como segundo; o facto bruto da sua ex- Talvez em virtude da sua considerável
istência, sobre o qual nada lhes cabia dizer, repercussão, a obra de Jonas tem concitado
tornou-se para eles um primeiro imperativo não menos abundantes reparos, que têm o
ontológico, normalmente não expresso, mas mérito de lhe revelar as muitas limitações
implícito em todos os posteriores impera- e equívocos, assim como algumas quali-
tivos e que as excepcionais circunstâncias dades não negligenciáveis. Observa Hottois
dos dias que correm obrigam a tornar explíc- que quanto de renovação ética se pode de-

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 63

scortinar na obra de Jonas tem a ver com damentalismo religioso. Assinala Hottois,
o facto de ela dar expressão a uma maior comparando Engelhardt com Jonas, que, as-
responsabilização consciente dos indivíduos sim como este, Engelhardt começou por
e das colectividades no que respeita ao al- questionar radicalmente a ética enquanto tal,
cance temporal e espacial das respectivas como modalidade do ser-no-mundo próprio
acções, em contraponto à ressurgência de da humanidade, que já não se justifica por
convicções comunitárias absolutistas inspi- si só e que tem de começar por preocupar-
radas pela angústia, bem mais que pela pre- se consigo própria, por interrogar-se sobre a
ocupação com o exercício responsável da sua própria significação, o seu valor, o seu
liberdade (Hottois, 1993:11). Para todos os alcance e limites. A resposta que Engelhardt
efeitos, o tempo tem vindo a revelar que a deu inicialmente a esse questionamento di-
obra de Jonas continua a ser fonte de ines- vergia porém consideravelmente de Jonas e
gotável inspiração, pelo seu fôlego filosó- os dois foram longamente tomados como os
fico e a sua inquebrantável coerência. O pólos do debate acerca da fundamentação de
mesmo não se pode dizer de Hugo Tris- uma bioética. Assim, enquanto que Jonas
tram Engelhardt, o outro autor que tem sido recupera uma fundação metafísica, ou pe-
tomado como referência cardial do pensa- los menos os avatares dela, de uma ética da
mento bioético desde que começou a fazer- responsabilidade, Engelhardt principiou por
se notado com o seu livro Os fundamen- remeter toda a ética para a resolução de con-
tos da bioética, cuja primeira edição data de flitos numa sociedade secular e pluralista em
1985 (Engelhardt, 1985). Com efeito, a obra que o privilégio da autonomia individual sus-
de Engelhardt acabou por fornecer um bom pende toda a possibilidade de fundação onto-
exemplo das limitações e incoerências de teológica (Hottois, 1993:13-14). Entretanto,
boa parte da reflexão que se apresenta como a posição de Engelhardt haveria de se mod-
bioética, cujos tortuosos meandros sugerem ificar até se tornar completamente irrecon-
fortemente a fragilidade de um pensamento hecível e pôr em causa o seu próprio lugar no
com extremas dificuldades em subsistir pe- campo da reflexão bioética. Após a primeira
los seus próprios meios e sem se arrimar edição de Os fundamentos da bioética, bem
aos mais sólidos sustentáculos da filosofia, 1985, surge uma segunda, em 1996, que revê
ou das ciências sociais, ou do direito ou aquela e lhe altera em parte os conteúdos, so-
da teologia moral. Deste modo, a reflexão bretudo radicalizando-os, até que, em texto
que para si própria reivindica o nome e a mais recente, Engelhardt passa uma autên-
coisa de bioética dá frequentes vezes mostras tica esponja sobre todo o seu anterior per-
de ceder a cada um daqueles campos, mas curso, dedicando-se à apologia dogmática do
desfigurando-o sem que disso resulte mais fundamentalismo religioso e moral.
que uma caricatura inútil quer para os prob- Engelhardt tinha começado por sustentar
lemas de que ela deveria ocupar-se, quer para que as questões bioéticas emergem sobre
a desejável transformação de qualquer um um fundo de crise moral estreitamente lig-
deles. É assim que, a pretexto de bioética, ado a uma série de perdas tanto de con-
se pratica diletantismo filosófico, sociolo- vicções éticas como ontológicas no mundo
gismo moral, formalismo legiferante e fun- ocidental, o que precipita a necessidade de

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elaborar e justificar um ponto de vista ético à prestação de cuidados de saúde e à in-


fora de uma rede de premissas que o sus- vestigação biomédica, de tal modo que se
tentem, modeladas por uma tradição especí- pode considerar que “(a) bioética, ao abor-
fica, religiosa ou de outro tipo. Exprimia-se dar essas incertezas, é a filosofia empen-
ele assim em 1985: “A história da bioética hada numa das suas tarefas centrais: aju-
nas duas últimas décadas tem sido a história dar a cultura a clarificar as suas perspec-
do desenvolvimento de uma ética secular tivas sobre a realidade e os valores” (En-
(. . . ) A bioética é um elemento de uma gelhardt, 1985:8). Assim sendo, a bioética
cultura secular e a bisneta do Iluminismo cumpriria a função, não de procuradora de
(. . . ) A bioética desenvolverá inevitavel- uma qualquer confissão religiosa, nem de
mente uma tessitura secular de racionalidade uma espécie de aconselhamento moral com
numa época de incerteza. Isto é, a existên- respostas singulares de antemão prontas para
cia de discussão aberta e pacífica entre gru- questões específicas, mas, acima de tudo, de
pos divergentes, tais como ateus, católicos, proporcionar orientação racional para as es-
judeus, protestantes, marxistas, heterossex- colhas com incidência ética no campo da
uais e homossexuais, sobre as questões de biomedicina, no que a função primordial
política pública respeitantes aos cuidados de da bioética se confunde com o objectivo
saúde exercerá inevitavelmente pressão no maior de todas as humanidades (Engelhardt,
sentido de uma linguagem comum neutra. 1985:11). Para poder cumprir os objectivos
A bioética está a desenvolver-se como lin- a que se propõe, a bioética não pode es-
gua franca de um mundo preocupado com os capar à secularidade, isto é, sem ser anti-
cuidados de saúde, mas que não possui um religiosa, a bioética apela à racionalidade, de
ponto de vista ético comum (. . . ) A bioética, preferência às convicções religiosas individ-
ao contrário de muitos códigos de ética, não uais, como única lógica possível do plural-
propende para ser nacional ou paroquial, ismo que caracteriza as sociedades ociden-
porque os desenvolvimentos na prestação de tais contemporâneas e instrumento de nego-
cuidados de saúde e nas ciências biomédi- ciação pacífica entre convicções éticas con-
cas encontram-se geralmente ligados ao de- flituais (Engelhardt, 1985:11). Engelhardt
senvolvimento das sociedades industriais” adverte peremptoriamente que aquilo que o
(Engelhardt, 1985:5-6). Neste sentido, a seu apelo à racionalidade transporta con-
bioética ultrapassa o domínio tradicional sigo é mais da ordem da exigência do que
da ética médica para desempenhar um pa- da esperança: “Se os argumentos racionais
pel mediador central na adaptação intelec- não são de molde a revelar algumas linhas
tual mútua da cultura e da ética biomédica, de conduta como imorais, então o manuse-
apresentando-se como necessária alternativa amento da medicina no hospital de Albert
ao comunitarismo ético, sobre cujas ruí- Schweitzer e os campos de morte nazis são
nas vai erguendo os seus alicerces. Essas igualmente defensáveis ou indefensáveis”
ruínas, traduzem-se, na prática concreta da (Engelhardt, 1985:37). Uma exigência de
prestação de cuidados de saúde, num feixe fundação racional não por mor da racional-
de incertezas que transcendem os próprios idade em si, mas por mor de algo que tran-
limites das profissões particulares ligadas scende a tematização filosófico-cognitiva do

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 65

problema ético em causa: “Afigurar-se-ia perigo de queda nihilista e a sempre pre-


que não existe base racional para se escol- sente tendência de a necessidade de fun-
her um conjunto de pontos de vista morais damentação se verter numa tentação funda-
e não outros quaisquer, fora de consider- mentalista. Para Engelhardt, a bioética terá
ações de vantagem pessoal. Assim, se hou- de fundar-se, além de no conhecimento pu-
vesse que tentar comparar a moralidade ou ramente fenoménico tal como foi estabele-
a imoralidade de um Adolf Hitler ou de cido desde Kant e no pressuposto básico da
um Dietrich Bonhoeffer, não encontraríamos relatividade de todo o conhecimento, tam-
princípios gerais para sustentar uma con- bém no que ele chama um pressuposto po-
clusão acerca do que seria moralmente cor- liteísta, por oposição ao monoteísmo das
recto. Não existiria base geral para se distin- éticas comunitárias regidas por um princí-
guir entre a prática da obtenção do consen- pio único e exclusivo de conhecimento e
timento livre e informado dos indivíduos su- de valor, estabelecendo assim um compro-
jeitos a investigação e a prática de pressionar misso entre a liberdade e a autonomia in-
os indivíduos a prestar serviço” (Engelhardt, dividuais e a relatividade ética (Engelhardt,
1985:38). Trata-se, pois, de superar o rel- 1985:19-22). Como afirma Engelhardt, a
ativismo, que com a maior facilidade der- caracterização do tecido moral está ligada à
rapa para o desespero nihilista e que, a seu própria empresa de se ser pessoa: “É este o
tempo, e porque ninguém o pode sustentar caso, porquanto ao colocar-se uma questão
- viver nele - por muito tempo, frequente- sobre a moral enquanto questão filosófica, o
mente acaba por desembocar nas soluções que se procura. . . é um argumento decisivo
totalitárias de refundação violenta. Deste para uma discussão sobre qual das possíveis
modo, a bioética adquire um carácter to- maneiras de viver ou de praticar medicina
talmente incompatível com todo e qualquer se deve escolher e na qual a sanção para
fundamentalismo ou integrismo: “O risco a violação do ‘deve’ não é uma ameaça de
que para a humanidade decorre da guerra e força ou um sentimento de culpa, mas a ir-
da repressão brutal em nome da rectidão re- racionalidade, a censurabilidade ou a inca-
ligiosa e ideológica sobreleva de longe os pacidade de realizar os bens que nos pro-
danos passíveis de resultar da tolerância em pusemos alcançar. (. . . ) Com os argumentos
relação a males tais como a autodetermi- aduzidos neste sentido, podemos compreen-
nação, o aborto e o infanticídio” (Engelhardt, der porque não deveriam os médicos tratar,
1985:13), o que, não obstante, obriga a re- experimentar ou manejar um doente compe-
conhecer que o preço a pagar por “essa paz tente sem a autorização do próprio” (Engel-
é a tolerância da tragédia pessoal - a tolerân- hardt, 1985:68).
cia de estilos de vida desviantes, desde que A edição de 1996 dos Fundamentos con-
pacíficos, e a aceitação das tragédias que as serva os traços maiores da proposta de En-
pessoas experienciam em resultado das suas gelhardt: “Este não é um livro de ética apli-
livres escolhas” (Engelhardt, 1985:13). A cada. Mais exactamente, este não é um livro
bioética engelhardtiana exprime pois a ne- que aplica um ponto de vista moral particu-
cessidade premente de superar a viciada al- lar, canónico, concreto, pleno de conteúdo,
ternativa entre o relativismo em permanente à prestação de cuidados médicos. Para isso

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existe uma multiplicidade de éticas alterna- tura não se poder talvez nunca realmente ul-
tivas prontas a levantar um burburinho de trapassar, a crise do fundamento ontológico
bioéticas conflituais. Esta circunstância con- que milenarmente sustentou as éticas ociden-
stitui o desafio moral fundador de todas as tais: “A dificuldade é particularmente per-
políticas de saúde (. . . ) De preferência a turbante porque a cultura ocidental presumiu
partilhar uma moral, confrontamos visões que existe uma estrutura da lei natural em cu-
morais ostensivamente diferentes e narrati- jos termos se pode ajuizar do bem e do mal
vas de obrigações, direitos e valores morais. das acções através das culturas e dos tempos.
Cada narrativa assevera a sua própria prior- Tais presunções guiaram o direito ocidental
idade. (. . . ) Quando se lhes pede que jus- desde a época do Império Romano aos tem-
tifiquem esses diversos pontos de vista, al- pos modernos e aos julgamentos de Nurem-
guns apelam à consideração das consequên- berga” (Engelhardt, 1985:38). Na edição de
cias; outros fazem apelo a princípios de bem 1996 pode ler-se que: “O projecto de as-
e de mal que são independentes das conse- segurar tanta universalidade quanto possível
quências. É sobre esta cacafónica plurali- às alegações da bioética enraíza no projecto
dade de bioéticas que se recortam as políti- iluminista de estabelecer uma ética universal
cas de saúde contemporâneas. A diversidade plena de conteúdo e uma comunidade moral
de visões e justificações morais desafia a co- de todas as pessoas fora de quaisquer pressu-
erência de sustentar que existe uma bioética postos religiosos ou culturais específicos. O
secular. Este livro reconhece a impossibili- projecto iluminista, pela sua parte, tem raízes
dade de descobrir a ética secular, canónica, na teoria da lei natural e nos pressupostos
concreta. Os fundamentos da bioética tenta filosóficos ocidentais respeitantes às capaci-
antes assegurar uma ética secular destituída dades da razão. Este livro centra-se no fra-
de conteúdo” (Engelhardt, 1996:VII). Mas, casso deste projecto em descobrir uma ética
ao mesmo tempo que os traços maiores da canónica e plena de conteúdo que a bioética
proposta engelhardtiana se conservam, o au- possa aplicar” (Engelhardt, 1996:VIII). Foi
tor entende necessário começar por esclare- justamente a tentativa de dar réplica às impli-
cer a filiação dela no pensamento ilumin- cações últimas desse fracasso que deu lugar
ista cuja crise, ao mesmo tempo, ele não se aos muitos mal-entendidos de que amarga-
cansa de sublinhar, tanto numa como noutra mente se queixa Engelhardt e que estão na
edição. Em 1985, explicava que a dificul- origem dos esclarecimentos introduzidos na
dade de fundar uma perspectiva - ou um sen- nova redacção do seu texto. Ele refere
tido ou intuição moral (moral sense) - in- nomeadamente a acusação de falta de simpa-
fundido com autoridade bastante para, ao tia pelas matrizes de obrigações e de valores
mesmo tempo, possuir as condições para dis- que cimentam as comunidades morais conc-
tinguir entre perfídia e decência, entre ví- retas.
tima e perpetrador, e para fornecer os pro- Ao abordar os problemas do juízo ético
cedimentos necessários à negociação pací- em bioética, Engelhardt propõe dois grandes
fica de conflitos entre perspectivas à partida princípios; em 1985, chamava-lhes ele o
inconciliáveis, se devia essencialmente ao princípio de autonomia e o princípio de
facto de não se ter ultrapassado, e porven- beneficência. Considerando, de um modo

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 67

muito próximo das éticas comunicacionais chamar a moralidade do bem-fazer e das


ou discursivas de um Jürgen Habermas ou simpatias sociais” (Engelhardt, 1985:87).
de um Karl-Otto Apel, que a autoridade para Na segunda edição de Os fundamentos da
se praticarem acções que envolvem outros Bioética, de 1996, Engelhardt altera o nome
numa sociedade secular e pluralista deriva do seu primeiro princípio, aquele a que dá
do livre consentimento, quer implícito quer inequívoco primado na sua proposta de uma
explícito, dos que por ela são atingidos, “o (bio)ética secular para uma sociedade plu-
princípio de autonomia exprime o facto de ralista. Ao princípio de autonomia, passa
que a autoridade para a resolução de confli- a denominá-lo de princípio de permissão.
tos éticos numa sociedade secular e plural- Alteração ínfima e absoluta, naquilo que
ista apenas pode ser derivada da concordân- faz adivinhar. A redacção de ambos os
cia dos participantes nas discussões, visto princípios, de facto, quase só parece regis-
que não pode ser derivada de um argumento tar as modificações decorrentes do que, su-
racional ou de uma crença comum. Por perficialmente, se afigura não ser mais do
isso, o consentimento é a origem da autori- que uma transformação terminológica; ora o
dade e o respeito do direito dos participantes próprio Engelhardt atalha logo que o que está
ao consentimento é a condição necessária em causa não se limita a isso: “Este carácter
da possibilidade de uma comunidade moral. libertário de uma ética secular geral defen-
O princípio da autonomia proporciona a sável não se opõe às moralidades das comu-
gramática mínima da linguagem moral” (En- nidades morais concretas cujos compromis-
gelhardt, 1985:86). A sua máxima é “Não sos pacíficos podem estar longe de ser lib-
faças aos outros o que não querem que lhes ertários. (. . . ) Mesmo assim, muitos com-
seja feito, e faz-lhes o que se contratou que preenderam mal os Fundamentos como um
fosse feito” (Engelhardt, 1985:86) e “funda manifesto libertário que celebra o valor da
aquilo que se pode chamar a moralidade liberdade, como uma tentativa de estabele-
da autonomia como respeito mútuo” (Engel- cer uma ética concreta e específica hostil às
hardt, 1985:86). Por sua vez, e visto que um morais comunitárias que ligam muitas, de
compromisso com a beneficência caracteriza facto a maioria, das comunidades morais es-
o empreendimento da moralidade, “o princí- pecíficas. (§) Como passo para dissipar a
pio de beneficência reflecte a circunstância confusão, nesta segunda edição rebaptizei ‘o
de que as preocupações morais são coexten- princípio de autonomia’ com o nome de ‘o
sivas à procura de bens e ao evitamento de princípio de permissão’ para melhor indicar
males. Visto que tais discussões se podem que aquilo que está em causa não é um qual-
resolver em sociedades seculares e pluralis- quer valor que possua a autonomia ou a liber-
tas apenas por meio de um apelo ao princí- dade, mas o reconhecimento que a autori-
pio de autonomia, o princípio de autono- dade moral secular deriva da permissão de
mia precede conceptualmente o princípio de quantos se encontram implicados numa em-
beneficência” (Engelhardt, 1985:86); a sua presa comum” (Engelhardt, 1996:X-XI). O
máxima é “Faz aos outros o seu bem” (En- princípio de permissão sublinha o facto de
gelhardt, 1985:87) e “funda o que se pode que, a partir do momento em que os indi-
víduos não pertencem todos a uma mesma

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68 António Fernando Cascais

comunidade de convicção e a razão não con- promisso com a beneficência caracteriza o


segue descortinar uma ética canónica conc- empreendimento da moralidade, porque sem
reta, então nem a razão, nem Deus, nem as um empenhamento na beneficência a vida
concepções de uma comunidade específica moral não tem conteúdo; nesta conformi-
podem ser fonte de autorização moral jus- dade, o princípio de beneficência reflecte o
tificável, mas apenas a permissão dada pe- facto de as preocupações morais abarcarem a
los indivíduos (Engelhardt, 1996:XI). Per- persecução de bens e o evitamento de males;
missão e beneficência surgem-nos então da uma vez que, em sociedades seculares e plu-
seguinte maneira na segunda edição de Os ralistas, tais discussões só podem ser resolvi-
fundamentos da bioética, de 1996. A per- das fazendo-se apelo ao princípio de permis-
missão é aquilo que funda a autoridade ou são, o princípio de permissão é conceptual-
o consentimento numa sociedade secular e mente anterior ao princípio de beneficência,
pluralista; o princípio de permissão exprime o que significa que se pode saber quando se
o facto de que a autoridade para resolver con- está a violar a moralidade do respeito mú-
tendas morais numa sociedade secular e plu- tuo, mesmo quando não é possível saber,
ralista só pode decorrer do acordo entre os por causa da sua falta de conteúdo, se se
participantes, visto que não pode derivar da está a violar o princípio de beneficência; o
argumentação racional ou da crença comum; reconhecimento do princípio de beneficên-
portanto, a permissão ou o consentimento é a cia proporciona a caracterização mínima do
condição necessária da possibilidade de uma conteúdo que é exigido pelas preocupações
comunidade moral; o princípio de permis- morais e o próprio princípio de beneficên-
são proporciona a gramática mínima do dis- cia proporciona o fundamento moral para di-
curso moral secular e o fundamento moral reitos de bem-estar recusáveis e deduzidos
para políticas públicas dirigidas para a de- de pontos de vista comuns e funda aquilo
fesa dos inocentes; o princípio de permissão que se pode chamar a moralidade do bem-
funda aquilo que se pode denominar a moral- estar e das afinidades sociais; a sua máx-
idade da autonomia como respeito mútuo; a ima é: “Faz aos outros o seu bem” (Engel-
sua máxima é: “Não faças aos outros aquilo hardt, 1996:122-124). Noutros textos43 , en-
que eles não querem que lhes seja feito e faz- tretanto publicados, Engelhardt aprofunda as
lhes aquilo que ficou contratado fazer-lhes”. suas considerações acerca da possibilidade
Quanto à beneficência, Engelhardt considera da bioética num mundo plural, na linha das
que, sendo o propósito da acção moral a con- duas primeiras edições dos Fundamentos.
secução de bens e o evitamento de males,
mas dado o facto de, numa sociedade secular 43
H. Tristram Engelhardt (1991), Bioethics and
e pluralista, não ser no entanto possível es- Secular Humanism. The Search for a Common
tabelecer de modo canónico nenhuma razão Morality. London: SCM Press/ Philadelphia: Trin-
ou ordenamento de bens e de males, então ity Press International, (1996), “Bioethics Reconsid-
não é também possível, dentro dos limites do ered: Theory and Method in a Post-Christian, Post-
Modern Age”, Kennedy Institute of Ethics Journal, 6
respeito da autonomia, estabelecer nenhuma (4): 336-341 e (1999), “Bioethics and the Third Mil-
visão específica plena de conteúdo acima lenium: Some Critical Anticipations”, Kennedy Insti-
de perspectivas opostas; porém, um com- tute of Ethics Journal, 9 (3): 225-243).

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 69

Finalmente, em 2000, Engelhardt, surge percurso intelectual não é desconhecido, so-


com um novel Foundations of Christian bretudo nos meios filosóficos. No caso de
Bioethics44 em que dá mostras de ter aban- Engelhardt, a consequência mais imediata
donado todas as suas anteriores posturas. é lançar uma suspeita de inutilidade, tanto
Nesta obra, o autor para passar a defender em relação à sua “work in progress” como
que só uma bioética com um fundamento a toda a literatura crítica que foi alimen-
religioso estará em condições de constituir tando a polémica de que ela constituiu um
umas alternativa à bioética secular que é de- dos pólos, nomeadamente como opositor de
sprovida de conteúdo. No entanto, uma vez um Hans Jonas. Não significa isso que a sua
que mesmo a bioética cosmopolita e lib- contraposição a Jonas se tivesse de repente
ertária (por cuja defesa ele se tinha precisa- desvanecido, porque as suas posições actuais
mente notabilizado) é compatível com o pen- coincidem tão pouco com as de Jonas como
samento e a prática das confissões cristãs as iniciais. O que de facto tende a ficar, dessa
contemporâneas, mas não com o espírito e polémica, é a oposição entre a coerência do
a letra do verdadeiro Cristianismo, torna-se espírito filosófico solidamente formado de
necessário retornar às fontes cristãs prim- Jonas e a fragilidade de uma aventura reflex-
itivas que sobreviveram apenas nas Igre- iva que, de tanto correr sempre à frente de
jas Ortodoxas. Estas preservaram o teo- si mesma, se depara traída pela sua própria
centrismo evangélico contra o antropocen- nostalgia de fundamento que a leva a ceder
trismo tanto do Catolicismo como do Protes- enfim ao fundo cultural religioso donde tinha
tantismo modernos que não estão por isso emergido.
em condições de fundar uma bioética porque No entender de Gilbert Hottois, porven-
o sentimento de obrigação moral não ad- tura o nome europeu mais conotado com a
vém da racionalidade humana mas da rev- reflexão sobre a bioética do ponto de vista
elação divina e do contacto pessoal com das ciências humanas e da filosofia, qua-
Deus através da fé. Tanto explica que o tro determinações primordiais delimitariam
autor acabe por afirmar, em última análise, o âmbito da bioética: “1) ela trata de
que passou a defender o Cristianismo orto- questões colocadas pelos novos desenvolvi-
doxo tal como ele o interpreta, simplesmente mentos (tanto ao nível da pesquisa como
porque ele sabe que é verdadeiro. Nem por da aplicação) nas tecnologias biomédicas
isso a posição de Engelhardt se torna fá- que desse modo envolvem a manipulação de
cil de distinguir das versões fundamental- organismos vivos (especialmente seres hu-
istas quer do Catolicismo, quer do Protes- manos); 2) trata de questões de importância
tantismo. Tanto equivale a fazer a apologia ética; 3) trata de práticas e discursos (seja en-
sem rebuços do retorno a um exacerbado pa- tendido que essas práticas e discursos pos-
ternalismo médico ancorado numa ética da suem pelo menos uma relevância prática in-
virtude de inspiração religiosa. Este tipo de directa ou potencial); 4) trata de questões
caracterizadas por uma forte interacção co-
44
Engelhardt, H. Tristram (2000), The Foundations municacional: a multidisciplinaridade e a
of Christian Bioethics. Lisse: Swets & Zeitlinger confrontação pluralista” (Hottois, Parizeau
Publishers. et al., 1993:52). Gilbert Hottois visa su-

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70 António Fernando Cascais

perar a oposição entre a prossecução livre filosofia da técnica de Martin Heidegger,


e autónoma dos possíveis tecnocientíficos e a tecnologia moderna possui um carácter
humanos defendida por Engelhardt e a lim- muito distinto da tekne grega, ao ponto de a
itação desses possíveis em nome da preser- especulação científica moderna se subsumir
vação da integridade da natureza e da identi- à eficácia técnica. A ciência moderna já
dade humana, por Jonas. Retém, de Jonas, não é logoteórica, mas antes logotécnica; a
a injunção de prudência necessária a con- ciência é tecnociência, criando o próprio ob-
trariar a hybris da dinâmica tecnológica que jecto sobre que se debruça, afirma Hottois,
não conhece medida, mas contrapõe-lhe a que, de facto, forjou o termo hoje consagrado
abertura de Engelhardt ao carácter abissal (Hottois, 1984). A tecnologia tornou-se na
da criatividade humana e natural, em per- manifestação ostensiva da verdade do con-
manente risco de queda no inumano, como hecimento operativo, perdendo deste modo
preço necessário da condição de liberdade a antiga inocência do conhecimento contem-
que sustenta toda a realização de possíveis. plativo, facto que exige uma reavaliação rad-
De acordo com Hottois45 , e na linha da ical daquilo que entendemos por ética. Essa
reavaliação não pode ser cumprida pelo que
45
Para um conhecimento aprofundado, além dos ele chama a clássica avaliação antropologista
títulos referidos na bibliografia, V. Gilbert Hottois da técnica que considera a técnica como um
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Genealogia, âmbito e objecto da bioética 71

que ambiciona devolver o poder tecnológico curso pode de facto abarcar e de tal modo
a fins humanistas. A tecnociência moderna que os problemas da limitação dos perigos
trouxe consigo a possibilidade real da ma- tecnocientíficos acabam por atolar-se na ne-
nipulação tecnológica dos seres humanos, gociação mais privada que pública, de inter-
muito para além da tradicional manipulação esses políticos e de arranjo de esferas de in-
simbólica que deixava intacto o que tende- fluência. E o questionamento por excelên-
mos a considerar ser a própria “natureza hu- cia da tecnociência seria porventura o da ne-
mana”, facto que destruiu a possibilidade de cessidade, ou da legitimidade, ou da deseja-
se manter, nos nossos dias, uma definição bilidade, de se limitar a livre disposição e
exclusivamente teológica do que é/deve ser o livre desenvolvimento das possibilidades
o humano, deixando em aberto a pergunta tecnocientíficas “em nome de”; ou por out-
antropológica, a questão que Kant reputava ras palavras, a questão de saber se a hu-
como a fundamental do pensamento da Mod- manidade pode, em última instância, dar re-
ernidade: O que é o homem? - e para sposta à sua condição de outro modo que não
a qual o antropologismo humanista reivin- o simbólico, isto é, de um modo conservador
dicava poder fornecer uma resposta defini- da condição humana. Se a filosofia, que
tiva, com base no pressuposto que a tecnolo- Jonas tão classicamente faz, constitui a re-
gia moderna não altera a condição básica da sposta simbólica do homem à sua condição e
acção humana, apresentando-se assim como ao abismo que a afunda, é inteiramente legí-
capaz de proporcionar respostas éticas teo- tima a questão de saber se o homem pode
logicamente fundadas para problemas cuja responder em última análise à sua condição
natureza alterada recusa na verdade recon- de outra maneira que não a simbólica, isto
hecer. Um certo entendimento da bioética é, conservadora da humana condição. Ou,
assenta, de facto, na recusa declarada deste colocada a questão de modo mais radical
reconhecimento, quando se entende, equiv- ainda: é legítimo limitar a priori e absolu-
ocamente, a bioética como uma mera reit- tamente a livre disposição e o livre desen-
eração ou reactivação de antigas respostas volvimento do possível tecnocientífico “em
ético-teológicas, ou seja, como uma sim- nome de”? Trata-se da questão da limitação
ples moral confessional ou comunitária apli- da potência não simbólica em nome do/pelo
cada, resumindo-se os problemas da bioética simbólico, em nome de um Nome, cuja le-
a simples questões de aplicação de fórmulas gitimidade formal (de uma lei em nome de)
de há muito consagradas. Como dirá Hot- reenvia à definição teológico-filosófica do
tois, este tipo de atitude teórico-prática tem homem como ser vivo simbólico (Hottois,
normalmente por consequência a contempo- 1993:12-13).
rização com o desenvolvimento tecnocientí- Nesta conformidade, Hottois propõe uma
fico, que dá a ilusão de controlar, quando na alternativa, por um lado, à reivindicação
realidade agrava a mútua surdez das lingua- ética antropologista/humanista de preservar
gens da ciência e das humanidades, sublin- o par homem/natureza a todo o custo, tal
hando ao invés a reivindicação que por vezes como é sustentada pelas correntes da ecolo-
faz a comunidade científica da incomensu- gia radical, por filósofos como Hans Jonas
rabilidade da ciência que nenhum outro dis- com a sua noção de uma heurística do medo,

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72 António Fernando Cascais

mas também por concepções religiosas fun- seu eixo é a solidariedade antropocósmica,
damentalistas, e, por outro lado, às tendên- próxima de uma filosofia da natureza atenta
cias tecnocráticas “mainstream” que sus- às dimensões evolutivas. A bioética rep-
tentam uma visão exclusivamente positiva resenta a totalidade das questões de relevo
de progresso indefinido por meio da livre ético, isto é, que tratam de valores, que não
prossecução de possíveis à luz do imperativo podem ser resolvidas a não ser através de
técnico, segundo o qual não só tudo é pos- escolha e que são colocadas pelo crescente
sível, mas tudo o que é possível é legítimo e poder da intervenção tecnocientífica no ser
desejável. Hottois chama à sua alternativa vivo e, em especial, mas não exclusivamente,
a ambas as correntes anteriores a via mé- o homem. A bioética é uma metodolo-
dia (Hottois, 1992), formulando nesse sen- gia, de vocação multidisciplinar ou inter-
tido alguns princípios maiores de selecção e disciplinar, uma abordagem necessariamente
limitação dos possíveis tecnocientíficos, tais pluralista imposta pela complexidade e di-
como os critérios de liberdade, segundo o versidade das sociedades que levantam es-
qual o consentimento informado é a pedra- sas mesmas questões, embora reconheça que
de-toque da livre prossecução da investi- elas dizem respeito a toda a humanidade e
gação, de beneficência, de acordo com o qual não se lhes pode dar resposta susceptível de
há que não tentar nada que não seja para o ser legitimamente monopolizada por qual-
bem-estar dos indivíduos e da humanidade quer grupo ou indivíduo.
em geral, e de responsabilidade, de acordo
com o qual qualquer reivindicação ética se
funda naquilo que Hottois chama a soli- 4 Referências bibliográficas
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evolutiva, que de modo nenhum se confunde ARCHER, Luís (1996), “Bioética geral -
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culturais; pragmatismo, prudência e respons-
abilidade deveriam portanto ser as linhas ori- BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS,
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