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We don't need the key, we will brake it.
Rage Against the Machine
1. Introdução
Abrir o notebook, plugar o pendrive, ligar os cabos do datashow e iniciar a apresentação.
Algoritmo bem conhecido de diversas situações comunicativas atuais. Por isso, as considerações de
Chartier, feitas na década de 90, soam curiosas do ponto de vista da gênese da chamada era digital:
Dez anos depois, talvez não seja mais digno de nota o uso do “computador portátil aberto”
em conferências, algo tão habitual que torna um imprevisto com a máquina até mais chamativo que
o fato de usá-la. Mas a observação de Chartier registra o rastro das mudanças que as inovações
tecnológicas imprimem às mais diversas práticas de leitura e escrita. Mesmo que não
compartilhemos de sua peremptória visão de que os “os primeiros leitores eletrônicos verdadeiros
não passam mais pelo papel”, é inegável o impacto do mundo digital sobre a formação do leitor –
ainda que, muitas vezes, à revelia da escola.
Neste artigo, discuto alguns aspectos da atividade do leitor sobre textos eletrônicos –
aspectos denominados aqui de operações de leitura – e a sua formação dentro de uma análise de três
produtos culturais de gêneros discursivos diferentes: uma letra de música eletrônica, uma peça
publicitária e trechos de uma reportagem jornalística. Os dois primeiros textos serão enfocados
tendo em vista a cenografia (MAINGUENEAU, 2002) que institui o espaço possível de sua própria
enunciação:
Todo discurso, por sua manifestação mesma, pretende convencer instituindo a cena
da enunciação que o legitima. (…) tomar a palavra significa, em graus variados,
assumir um risco; a cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário, como
se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um espaço já construído e
independente dele: é a enunciação que, ao se desenvolver, esforça-se para constituir
progressivamente o seu próprio dispositivo de fala. (MAINGUENAEU, 2002,
p.87)
A letra de música, tomando as palavras como autêntica arena ideológica, designa um campo
de ações que poderíamos relacionar à chamada cultura digital; a peça publicitária procura legitimar
a inovação de seu produto estabelecendo um diálogo com um novo leitor. Os textos instituem um
leitor contemporâneo em suas operações de leitura – aqui consideradas um consumo (CERTEAU,
1994) – sugerindo imagens de como essa atividade se apresenta, possibilitando sua afirmação como
um diálogo válido com um “co-enunciador modelo” (MAINGUENEAU, 1998). A reportagem
jornalística, por sua vez, apresenta o consumo situado numa prática concreta, fornecendo-nos um
exemplo polêmico da dialética entre produção e consumo, autoria e leitura, autoridade e
(in)subordinação. Veremos que produtores e consumidores são pontos relacionais no plano maior da
economia escriturística que compõe nossas práticas culturais e que nos permite atribuir à palavra
leitura uma gama extremamente variada de objetos:
Proponho um trocadilho para provocar o diálogo sobre o leitor e sua formação no panorama
traçado neste trabalho: a expressão respondi(gi)bilidade. Procurando ao mesmo tempo valorizar o
encontro das sílabas di-gi (de digital) e referenciar as questões conceituais provocadas pela tradução
do neologismo bakhtiniano original, tensionado entre respondibilidade, responsividade,
responsabilidade e responsibilidade (cf. SOBRAL, 2005), esse conceito busca relacionar a
necessidade de se avaliar o lugar de aluno-leitor em materiais e propostas didáticas (cf. ROJO,
2007) a algumas imagens do leitor e suas operações de leitura da chamada 'cultura digital'.
Respondi(gi)bilidade, então, poderia ser sintetizado como uma responsibilidade digital.
2. Tecnológico, tecnológico...
Um pequeno robô, aparentemente articulado por tecidos humanos, entoa uma espécie de
canção em ritmo maquinal:
Palavras que compõem, num monitor, o fundo luminoso para este ser híbrido que assume
diversas expressões faciais, ora sugerindo desejo e súplica, ora parecendo dar ordens
agressivamente, enquanto outras duas figuras mais humanóides, logo abaixo, tocam instrumentos
em forma de guitarra elétrica. As breves tomadas aéreas do local são de uma área aparentemente
inóspita, ainda que repletas de construções do formato de pirâmide. Sob uma luz avermelhada, não
há nada mais que lembre uma paisagem terrestre, não há outras construções assimétricas, vegetação
ou pessoas. As figuras humanóides, tocando a base da música, podem ser o duo francês Daft Punk!,
banda de música eletrônica que lançou o hit “Technologic”1 em 2005, criação que também serviu
como trilha sonora de propagandas da Apple e da Motorola.
Numa rápida incursão pelas discussões sobre o clip na internet, percebe-se o estranhamento
de vários fãs quando dizem não saber muito bem como interpretar o clima lúgubre provocado, em
grande parte, pelo vocalista ciborgue que idolatra o monitor. Onde estão os humanos? São os
músicos ao pé da máquina? Estariam nessa posição por alguma relação de poder?
O clip apresenta 'quem' fala, colocando o texto nos lábios do ciborgue, mas essa relação não
precisa ser tão simplista: evidentemente, esse produto audiovisual é uma leitura possível que não
esgota nossas possibilidades de interpretação. Além disso, o enunciado de um autômato nos leva a
imaginar uma provável dependência do mecanismo em relação a outro centro de informação, um
sistema, um programa, alguém noutro lugar, que o utiliza como interface etc. Focando
especificamente a música, podemos destacar a pronúncia de tonalidade homogênea na melodia
vocal, acompanhada por uma composição que se estrutura em blocos, como se pudesse ser
desmontada e remontada de muitas outras maneiras a cada ritornelo.
A letra é formada por diversos verbos cujo único objeto é o pronome “it”, que poderíamos
traduzir pelos dêiticos “o”, “esse”, “isso”. Considerando os verbos no modo imperativo, o sujeito a
quem se destina as ordens só pode cumprir a função de uma 1ª ou 2ª pessoa do discurso
1 Disponível, entre outros, em http://www.youtube.com/watch?v=YtdWHFwmd2o
(poderíamos ter, por exemplo: compre/compremos, use/usemos, quebre/quebremos,
conserte/consertemos) e, na ausência de uma cena composta por personagens, a injunção parece se
dirigir ao leitor: compre-o, use-o, quebre-o, conserte-o. Assumindo essa possibilidade de leitura,
poderíamos nos perguntar de quem (ou do quê) se origina esse discurso injuntivo e a quem se
destina.
O pronome oblíquo “o”, escolhido nesta possível tradução para o lugar do “it”, constitui a
dêixis que retoma o problema da cena enunciativa: a relativa indeterminação sobre quem e para
quem se enuncia é coextensiva àquilo sobre o que as ações dos verbos devem se efetuar. Ou seja,
tais ações se fazem com o quê? Como também não há essa referência, poderíamos pensar que se
está retomando um lugar que deve ser preenchido pelo leitor e ocupado por virtualmente qualquer
signo em sua dimensão material, aqui encapsulado por uma “terceira pessoa”, em que se incluem,
de acordo com Benveniste, as formas como ele, o, isso etc e que
No texto em foco, não se delimita a natureza do objeto desses verbos, tampouco se pode
dizer que “partes do discurso” o pronome estaria substituindo. Considero que é justamente essa
indeterminação que torna a leitura da música extremamente significativa dos modos de produção e
consumo digitais: virtualmente qualquer enunciado – escrito, imagético, sonoro – pode ser
numerizado, isto é, convertido em linguagem binária, própria do funcionamento eletrônico, e assim
submetido a operações de leitura tão diferentes quanto o são as possibilidades, as ferramentas e
recursos da máquina e do leitor do material digital(izado). Vejo a maleabilidade destes “substitutos
abreviativos”, apontada por Benveniste, como uma metáfora do grande leque de possibilidades de
consumo de objetos digitais. Poderíamos ler a música como um registro instantâneo do fluxo de
práticas que estão atualmente em funcionamento e desenvolvimento: palavras de sentidos
deslocados de seu lugar de origem e de sua época 'impressa' para funcionar em práticas
transformadas e constituídas por aquilo que se torna “technologic”.
O texto elenca operações a se efetuarem sobre “isso” (“it”) por meio de palavras
plurissignificantes: ‘escrever’ (“write”) e ‘queimar’ (“burn”), por exemplo, referenciam outras
práticas e ganham outros significados se observados do ponto de vista da tecnologia atual (registrar
dados em mídias como CDs, DVDs, discos magnéticos, memórias sólidas etc), assim como ‘surfar’
(“surf”), ‘arrastar’ (“drag”), ‘copiar’ (“copy”), ‘colar’ (“paste”) podem nomear ações discursivas
multimodais que rapidamente produzem algo a ser gravado, editado, enviado... Termos que ilustram
um processo dinâmico de significação a partir dos usos históricos e sociais da língua. Um processo
também evidente no ato de 'postar' que, eletronicamente, torna-se o “mail” imaterial, 'e-mail', pelo
qual se compartilha tudo aquilo que possa ser, em última instância, intercambiado em linguagem
digital, prescindindo duma inscrição determinada numa mídia específica (carta, envelope, pacote):
pode-se imprimir um e-mail, acessá-lo no computador em casa, no metrô, num celular, ouvi-lo
enquanto se dirige etc. Um exemplo emblemático poderia ser a palavra “scroll”: de substantivo que
designaria o rolo de papel ou pergaminho a um verbo usado para mover as imagens na tela do
computador.
Linguagens e práticas refratadas de formas diversas na cultura – basta observar usos
populares de palavras técnicas como upgrade, por exemplo, um estrangeirismo do campo da
informática: quem nunca precisou dar um upgrade nas sobras do almoço? Ou deletar um
comentário inconveniente?
Em outras palavras: uma cultura digital não implica que todos estarão, cedo ou
tarde, on-line e melhores por isso, mas assume que, pelas formas com que humanos
e máquinas interagem num contexto de computadorização e digitalização sempre
crescentes da sociedade, expressa-se uma cultura digital emergente. Uma cultura
como essa, então, provoca consequências num nível social compartilhado – tanto
online quanto offline (DEUZE, 2006, p.7)
O computador, por meio desta incessante tradução que realiza entre sua 'língua' numérica
interna e a expressão alfanumérica, sonora e/ou imagética que se mostra ao usuário, constitui-se
como uma máquina de significados em diversas formas de interface cultural, termo que Manovich
usa para descrever uma:
2 Apoiome na definição de Rojo: “Multimodalidade aqui está sendo entendida num sentido amplo, como a presença,
num mesmo texto ou enunciado, de maneira integrada e relacional, mutuamente constitutiva, de diferentes
modalidades de linguagem (verbal oral, verbal escrita, imagem, imagem em movimento etc.)” (ROJO, 2007, p.70).
eletrônica do texto, existe a possibilidade de submeter o texto recebido às decisões
próprias do leitor para cortar, deslocar, mudar a ordem, introduzir sua própria
escrita, etc. Pode-se então escrever no texto ou reescrevê-lo (CHARTIER, 2001,
p.145).
Todas essas possibilidades de reprodução, inscrição e recepção dos textos sugerem a figura
de um leitor que não mais se acomoda em papéis e espaços tradicionais:
Não apenas o leitor pode submeter o texto a múltiplas operações (pode indexar,
anotar, copiar, desmembrar, recompor, deslocar etc.), mas, mais ainda, pode tornar-
se co-autor. A distinção, claramente visível no livro impresso, entre a escrita e a
leitura, entre o autor do texto e o leitor do livro, apaga-se em proveito de uma outra
realidade: o leitor torna-se um dos autores de uma escritura a muitas mãos ou, ao
menos, encontra-se na posição de constituir um texto novo a partir de fragmentos
livremente recortados e reunidos (CHARTIER, 2003, p. 42).
Tal perspectiva certamente coloca em alerta os negócios que lidam com a produção e
circulação comercial de textos; estudos comparativos entre quem foi e quem é o consumidor
contemporâneo dos produtos das empresas de comunicação tentam acompanhar a velocidade das
inovações. O boletim The Media Center – briefing on media, technology & society, publicado em
2005, apresenta os desafios que os empreendimentos jornalísticos enfrentarão de maneira cada vez
mais intensa diante das novas tecnologias digitais. No início, vistas como um recurso que poderia
reduzir ou até eliminar os custos que envolvem a publicação impressa ou a distribuição via rádio e
TV, as tecnologias digitais pareciam ampliar o poder de penetração social dessas empresas sem
demandar a alteração de sua própria estrutura de funcionamento. No entanto, atualmente, acredita-
se num horizonte de profunda crise ao setor: o acesso disseminado a estas tecnologias tem
permitido àqueles que antes eram definidos como 'leitores' ou 'expectadores' tornarem-se produtores
de conteúdos que são disponibilizados gratuita e instantaneamente a bilhões de outros
leitores/expectadores/produtores. Com a perspectiva de perder seu lugar de centro de informação,
estas empresas precisam agora questionar seu papel, sua organização e sua própria identidade num
mundo em que virtualmente qualquer pessoa pode assumir o lugar de repórter/narrador/escritor
(storyteller) e reivindicar, junto aos seus pares, maior legitimidade em relação às grandes agências
de notícias. O boletim sugere uma reconfiguração das perguntas dos empreendedores da esfera
jornalística, apresentando o que velhas questões realmente queriam dizer e o que se deve atualmente
perguntar para a reorientação dos empreendimentos numa “sociedade compartilhadora em que
todos competem por influência e atenção”. Vejamos rapidamente quais seriam estas “quatro
questões arrebatadoras sobre o novo negócio”:
Velha questão: qual é o futuro do jornal?
O que realmente se está perguntando: editores e repórteres terão emprego em
cinco anos?
Deveria se perguntar: como se informa uma sociedade conectada?O que o jornal
tem a ver com isso? Que futuro os jornais e as redes de televisão estão criando?
Que história eles representam?
Velha questão: como ganhamos dinheiro?
O que realmente se está perguntando: como continuamos a fazer o que sempre
fizemos, mantendo altas margens e controlando o mercado?
Deveria se perguntar: quais são as alternativas ao subsídio da propaganda?
Quais modelos de negócio podem capitalizar os empreendimentos jornalísticos?
Qual é o valor das novas formas de jornalismo?
Velha questão: de onde o jornalismo virá?
O que realmente se está perguntando: nós realmente acreditamos nos outros
cidadãos enquanto jornalistas?
Deveria se perguntar: como uma geração de repórteres talentosos irá usar
múltiplas formas de mídia para criar e compartilhar histórias aos cidadãos de um
mundo sempre conectado?
Ao se trocar o questionamento do futuro do jornal pela busca das formas com que uma
“sociedade conectada” se informa, aponta-se, nas entrelinhas, quão profunda deverá ser a
metamorfose dos empreendimentos jornalísticos. A grande questão é se as empresas de notícia
podem “re-imaginar” seus negócios em meio aos dispositivos móveis, alternativas de acesso
gratuito e a proliferação do leitor que também produz e compartilha informação. Portanto, não é de
se estranhar que uma campanha publicitária recente tenha procurado promover o produto de seu
cliente – tradicionalmente um jornal impresso – focando suas novas particularidades interativas,
multimodais e multimidiáticas, abrindo e incentivando a participação de seu consumidor:
Essa peça publicitária, produzida pela Nazca em 2008, foi veiculada tanto na forma de um
filme para TV e internet como nas páginas do jornal impresso, e é em seu texto que iremos nos
concentrar. Aqui, o objeto aparece definido desde o começo: informação. No entanto, esta definição
não fica muito longe da amplitude do ‘it’ da letra de música anterior. Considerando tudo o que possa
ser veiculado num jornal (impresso ou disposto na web) como ‘informação’, então podemos
considerá-la, no limite, como tudo aquilo que pode ser lido, visto e/ou ouvido. No entanto,
diferentemente da letra de música, os sujeitos implicados nesse texto são apresentados de forma
bem definida: “nós” (do jornal); “você” e “seu vizinho” (leitores). Numa forma esquemática:
O que o JORNAL faz com a Pelo JORNAL e pelo LEITOR, O que o LEITOR faz com a notícia
informação a notícia é
Escrevemos Aprofundada Sugere
Atualizamos Analisada Opina
Enviamos Atualiza
Exibimos Busca
Tocamos Edita
Corrige
“faz você mesmo”
3 Disponível em http://www.fnazca.com.br/busca/wmedia.php?ID=648
‘atualizar’ em tempo real que não precisa esperar a próxima edição do jornal impresso. O trabalho
do jornalista se multimodaliza em conteúdos audiovisuais que podem ser ‘exibidos’ ou ‘tocados’.
Se a página do jornal impresso já compunha um discurso que integrava o texto escrito e a imagem
estática, agora o próprio conceito de página de jornal se aproxima da imagem do portal, outra
metáfora da contemporaneidade, pelo qual o leitor pode construir um percurso que se define pela
bifurcação (ou, melhor, polifurcação) virtualmente infinita e plurilíngüe de escolha e acesso aos
textos, sons, imagens, filmes.
Quanto à história destas transformações, a peça publicitária situa num “antigamente” a
dependência do “acontecer” da notícia em relação à impressão e distribuição do jornal. “Hoje”, a
notícia se desterritorializa como produto final de uma cadeia produtiva de jornais impressos e se
volatiliza nos intercâmbios digitais da esfera jornalística. A propaganda argumenta que não se trata
apenas de uma exposição agilizada da notícia ao se trocar o papel pela tela: o leitor é chamado a
formas mais interativas de participação e sua própria leitura é convidada a se materializar em
espaços mediados por diversas interfaces culturais. Mesmo não se tratando de uma participação
radicalmente nova – são comuns os espaços de participação do leitor em seções como ‘cartas do
leitor’, por exemplo – anuncia-se uma participação qualitativamente inédita, dada a onipresença dos
meios de acesso “on line, on time, full time”.
O 'novo' jornal oferece uma leitura que é também escrita, produção: o discurso da
propaganda instaura e se aloja numa cenografia que deve sua legitimidade à idéia de uma nova
leitura e de um novo leitor, em imagens de acesso à mídia e de diálogo intensificado com o texto e
entre leitores. A relação de superação do tradicional/impresso pelo novo/digital parece se dar na
forma 'não só..., mas também...': agora, o leitor não só lê, mas também corrige, edita, aprofunda,
comenta... Pode-se dizer que, fundamentalmente, a peça publicitária relaciona o novo jornal à
interatividade, um atributo cuja origem, como nos explica Silva (1998), ainda aguarda
esclarecimento:
Segundo o autor, além de uma etimologia, é necessário considerar os usos que o conceito
vem ganhando e os diversos interesses que entram em jogo:
Nos anos 90 ocorre com o termo interatividade o mesmo que ocorreu com o termo
pós-modernidade nos anos 80: banalização. Antes, qualquer coisa era chamada de
pós-moderna principalmente pela mídia impressa. Hoje muita coisa é definida
como interativa. Tenho visto o adjetivo ser usado nos contextos mais diversos. A
conseqüência disso é que o termo interatividade tornou-se tão elástico a ponto de
perder (se é que chegou a ter!) a precisão de sentido. O termo virou marketing de si
mesmo. Vende mídias, vende notícias, vende tecnologias, vende shows e muito
mais. É a chamada "indústria da interatividade" (SILVA, 1998).
Pierre Lévy, por exemplo, critica o uso simplista (e reducionista) do termo para demarcar
uma nova forma de relações com as interfaces, pois
O que Bakhtin não poderia prever, mas que constitui um dado central nos novos
letramentos, é que nas novas formas de mediação do texto, lingüístico ou não-
lingüístico, todos os sistemas semióticos são, em última instância, representados
internamente por meio de um sistema binário comum, sua natureza "material"
sendo, em sentido estrito, igualmente "elétrica" ou "magnética" em todos os casos
(BUZATO, 2007, p.116).
Aqui, poderíamos notar um tipo de estratégia da empresa do funk em relação ao seu mercado
consumidor: em primeiro lugar, é permitido – ou melhor, incentivado – que os fãs filmem, gravem,
fotografem o show, prática que não pode ser mais controlada desde que a tecnologia miniaturizou os
dispositivos de captura de imagens e sons. Atualmente, é ilusão acreditar que o espectador seja
constrangido por normas que pretendam limitar a sua liberdade de registro em qualquer evento. Em
segundo lugar, não se pretende mais lucrar com a venda de mídias físicas das músicas da banda. O
compartilhamento de arquivos pela internet torna relativamente desnecessária a compra de CDs ou
DVDs – algo que já há algum tempo vem acontecendo à revelia das grandes gravadoras. Excluindo-
se o público que preza por uma qualidade específica de som e imagem e que, portanto, não se
contenta com os arquivos compactados que se compartilha pela internet, ou aqueles que fazem
questão de possuir os produtos de seus artistas em embalagens e encartes especiais – um perfil que
não é comumente associado ao consumidor deste gênero – quem compraria um DVD de um show
que pode ser ‘baixado’ gratuitamente?
Pode-se apontar muitos problemas que esta mudança acarreta, por exemplo, aos artistas que
não contam com os grandes fluxos de público do momento e que também lucram menos ainda pela
venda de seus produtos, agora compartilhados gratuitamente (ainda que, muitas vezes, ilegalmente)
via CMC. Mas o que gostaria de destacar são as operações do espectador/consumidor que se
tornaram habituais em virtude das novas tecnologias e que foram aproveitadas, no caso, pela
empresa do funk. Tendo em vista um consumidor que irá registrar o show e propagar, gratuita e
indistintamente, as músicas de seus ídolos, aproveita-se o que não se pode evitar e, desta forma,
inverte-se o jogo. O funk recria seu mercado, abandonando seus produtos ‘materiais’ e focando
apenas o ‘evento’ de entretenimento, único elo da produção de mercadorias que deve ser pago pelo
consumidor deste produto, divulgado agora pelos seus milhares de fãs sem os antigos custos de
promoção.
Evidentemente, a propaganda informal, realizada entre expectadores (e, poderíamos
4 Jornal O Estado de São Paulo, Caderno Metrópole, domingo, 23 de novembro de 2008.
acrescentar, leitores, ouvintes etc.), o chamado 'boca a boca', não sucumbiu às novas formas de
socialização proporcionadas pela tecnologia. Tampouco a veiculação de imagens do show de funk
via internet significa algo tão radicalmente diferente que não possa ser incluído entre as práticas
históricas de que se dispõe para exibir, apreciar e compartilhar produtos culturais. No entanto, neste
caso, o expectador do show é considerado não só um sujeito que irá argumentar em favor do
espetáculo, como também é aquele que dispõe de ferramentas de publicação de seu ponto de vista,
seja emitindo opiniões por escrito em fóruns especializados, seja disponibilizando os momentos
mais interessantes do evento registrados em sua câmera.
O alcance que estas ferramentas permitem não podem ser desprezados por quem se
responsabiliza pelos lucros, gerando modificações na própria estrutura do negócio, fazendo com que
se despreze o produto material, anteriormente vendável (tornado agora fisicamente supérfluo),
invista-se no evento de entretenimento – o show – e se aproveite as operações discursivas
multimodais que os compradores desta diversão, ao interagirem, irão realizar por seus próprios
meios.
Se anteriormente compartilhar conteúdos digitais era considerado uma tática que burlava as
estratégias de um mercado baseado na noção de copyright, agora, ao invés de se investir em
tecnologias visando impedir o acesso gratuito ao produto (o que, cedo ou tarde, mostra-se inócuo),
o consumo não autorizado é incorporado como parte da estratégia expansionista da empresa do
funk, tornando-se uma forma importante de divulgação do show, único produto que se pode
comercializar. A penetração pervasiva de ferramentas como celulares e blogs viabilizou o que
Castells chama de comunicação pessoal em massa, a qual evidentemente não serve apenas à
divulgação do funk carioca:
Ela foi recuperada pelos movimentos sociais de todo o mundo, mas eles não são os
únicos a utilizar essa nova ferramenta de mobilização e organização. A mídia
tradicional tenta acompanhar esse movimento e, fazendo uso de seu poder
comercial e midiático passou a se envolver com o maior número possível de blogs.
Falta pouco para que, através da Mass Self Communication, os movimentos sociais
e os indivíduos em rebelião crítica comecem a agir sobre a grande mídia, a
controlar as informações, a desmenti-las e até mesmo a produzi-las (CASTELLS,
2006).
De que forma essa nova materialidade eletromagnética dos sistemas semióticos 5 pode
contribuir para a criação de estratégias didáticas que almejam, com intensidade, a formação de
capacidades de comunicação, discussão, negociação, decisão, análise, enfim, do leitor crítico? Rojo
(2007) destaca aspectos fundamentais para pensarmos o lugar do leitor-aluno ao comparar dois
materiais desenvolvidos para formação de alunos e professores, respectivamente: uma seqüência
didática impressa, conceitualmente embasada na definição de Dolz, Noverraz & Schneuwly (2004),
e um curso on-line de estrutura modular. A autora toma, como critério de análise, as operações
com/sobre os textos propostos nos materiais, ou seja,
5 Expressão que poderíamos depreender das considerações de Buzato (op. cit.)
o lugar que é designado ao leitor-aluno em cada uma das propostas didáticas e os
tipos de atuação lingüístico-discursiva que lhe são possibilitados, de maneira a
discutir as práticas de letramento que se dão nesses dois contextos (ROJO, 2007,
p.67).
A análise desses materiais evidenciaria seu projeto autoral, que reserva ao aluno determinada
posição pela “apreciação de valor” que faz sobre ele. Para analisar este aspecto, Rojo escolhe dois
pontos de vista:
o impresso que circulará na sala de aula prefere colocar o aluno em interação com
o texto escrito e não com seus colegas e sobretudo não com o professor. A voz do
autor do material tende quase sempre a substituir ou ignorar a voz do professor,
dirigindo-se diretamente ao aluno e encarregando-se da aula. Entre outros aspectos
aqui, devemos levar em conta que este tipo de material didático é herdeiro dos
apostilados e dos estudos dirigidos (ROJO, 2007, p.77).
Sua análise mostra que não somente a voz autoral do material impresso parece sobrepor-se à
condução da aula, como também termina por conduzir o próprio aluno a revozear os enunciados do
discurso didático como prova ou produto da aprendizagem. É interessante notar que a presença de
imagens é muito mais intensa no material impresso que no curso on-line, o que pode nos causar
certo estranhamento, já que a multimodalidade é palavra de ordem no ambiente digital. No entanto,
as imagens (estáticas) presentes no impresso cumprem meramente a função de ilustrar/apoiar as
informações ensinadas e não se constituem, na maior parte das vezes, em elemento de leitura
crítica, como signo ideológico do discurso. Por outro lado, Rojo mostra que o curso on-line, apesar
de não contar com nenhuma espécie de banco de imagens, ainda assim remete o aluno a
experiências de leitura multimodais pela própria natureza dos objetos digitais. Aliás, pode-se dizer
que não é apenas um estoque de imagens que este curso deixa de lado: sua própria linha autoral
parece, muitas vezes, perseguir um ponto de fuga com a voz de seu leitor.
Assim é que podemos pensar que o texto eletrônico e a esfera digital favorecem um
apagamento do discurso autoral em materiais didáticos, que pode tender a se
restringir a um conjunto de instruções que, para compensar, pode contar com a
linkagem a um banco de textos quase infinito, sem limite de páginas, cadernos ou
cansaço do leitor, que pode ou não clicar o link, quase que a seu bel prazer (um
pouco restringido por efeitos escolares, é verdade, no caso dos materiais didáticos)
(ROJO, 2007, p.77).
Rojo antecipa a questão que poderíamos colocar neste ponto: trata-se meramente de certo
“estilo didático da autoria”? Para a autora, não somente esse fator, como também o público-alvo de
cada tipo de material (alunos de ensino médio, no caso do impresso; professores em formação
continuada, no caso do curso on-line) certamente influenciam as características de um e de outro.
Mas estilo e imagem de interlocutor bastam para explicar o fato de o material impresso analisado
restringir, controlar e conduzir mais a participação e a produção discursiva do aluno? Ou, em suas
palavras : “por que um se apresenta tão mais interativo e internamente persuasivo que o outro, mais
centrado na autoridade do texto?” (Rojo, 2007, p.76). A própria noção de autoria, desestabilizada
no texto eletrônico, favorece pensar numa autoria coletiva para o curso on-line, que, com sua
estrutura minimalista, opta por um projeto autoral que parcialmente se apaga (ou se funde) no texto
de seu leitor. Apesar de ser possível perceber a intencionalidade da proposta on-line de construção
de um curso mais aberto – já que também poderíamos imaginar o ambiente digital sendo usado
simplesmente para repetir a lógica das apostilas – Rojo argumenta que o impresso carrega o vínculo
histórico e cultural entre a obra e seu criador original, manifestado num estilo didático que pretende
conduzir mais marcadamente a prática discursiva proposta pelo material, talvez compartilhando da
ilusão de um maior poder do autor nesse controle:
Se contrapusermos a essa “era do livro” algo como a “cultura digital”, poderíamos dizer,
apoiando-nos em Deuze, que o curso on-line levaria em conta a atividade de um leitor que participa
de um diálogo potencialmente amplificado pela comunicação mediada por computador, lida com
diversas mídias e traduz umas nas outras (a 'remediação' entendida como a (re)construção discursiva
em outra mídia), revelando um trabalho autoral de consumo dos enunciados.
Este [o leitor] não toma nem o lugar do autor nem um lugar de autor. Inventa nos
textos outra coisa que não aquilo que era a “intenção” deles. Destaca-os de sua
origem (perdida ou acessória). Combina os seus fragmentos e cria algo não-sabido
no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida
de significações. Essa ativididade “leitora” será reservada ao crítico literário
(sempre privilegiado pelos estudos sobre a leitura), isto é, novamente a uma
categoria de funcionários, ou pode se estender a todo o consumo cultural? Esta a
pergunta à qual a história, a sociologia ou a pedagogia escolar deveriam trazer
elementos de resposta (CERTEAU, 1994, p.265).
Bibliografia
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