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Arquitetura de ferro
no Grande ABC: história e ferrovia
André Luis Balsante CARAM (*) Livro: Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo, de Beatriz Kühl

onstruída pelos ingleses para


C atender interesses capitalistas
do sistema agrário-exportador e para
o escoamento da produção cafeeira,
a implantação da Estrada de Ferro Ponte sobre o
Savern (1777-
São Paulo Railway, na segunda me- 1781) em
tade do século XIX, revolucionou o Coalbrookdale
sistema de transporte com a ligação
do litoral ao interior paulista, colo-
cando São Paulo no centro da econo-
mia do país, e introduzindo, no cam-
po da arquitetura, uma nova lingua-
gem estética, ditada pela arquitetura
de ferro, que se manifesta em várias
estações e instalações ferroviárias.
As marcas deixadas pela São Paulo Ponte de
Railway ainda podem ser vistas na Sunderland
arquitetura de algumas estações, (1792-1796)
construídas com artefatos importa-
dos de ferro, as quais constituem
verdadeiros marcos do patrimônio era motivo de espanto e admiração centro produtor e exportador do
da arquitetura industrial e ferroviária para os próprios ingleses.2 café.4 O reflexo do advento ferro-
presente na região do Grande ABC e A implantação dessa ferrovia, viário repercutiu não só na região
em São Paulo. que introduziu o uso do metal em do ABC, antigamente conhecida
A ferrovia foi a principal cons- São Paulo, foi um dos principais fa- como São Bernardo, mas principal-
trução a empregar o ferro em gran- tores para o desenvolvimento da re- mente na cidade de São Paulo, que
de escala tanto no Brasil quanto nos gião do ABC e para o surgimento passou por grandes transformações.
países estrangeiros, onde este mate- de suas primeiras indústrias, que se A importância econômica dessa
rial permitiu novos rumos para a ar- instalaram principalmente nas pro- obra não pode deixar de ser men-
quitetura, para a engenheira e para o ximidades da malha de ferro e das cionada pois provocou, juntamente
desenvolvimento técnico e científi- estações ferroviárias, de modo a fa- com a navegação a vapor, a articu-
co. Em São Paulo, o início do uso cilitar o tráfego de matéria-prima, o lação da capital e do interior do es-
de ferro ocorreu possivelmente escoamento da produção e o acesso tado com o mercado internacional.
com a implantação da Estrada de ao centro econômico de São Paulo. Abriu espaço para novas ativida-
Ferro São Paulo Railway e a cons- Algumas estações foram germens des empresariais, quer no setor de
trução do sistema de funiculares na de novas cidades ou o trem foi fator transporte (novas ferrovias, nave-
Serra do Mar. O início do uso do de desenvolvimento de pequenos gação e bondes de tração animal),
metal em construções significativas núcleos que se transformaram em quer na exploração de alguns ser-
em território paulista parece ter si- importantes entroncamentos ferro- viços urbanos, como água e gás,
do, justamente, com os viadutos da viários e entrepostos comerciais.3 A bem como na construção civil.5
Serra do Mar, cujo primeiro plano profusão de ferrovias foi a respon- O crescimento das atividades
inclinado foi inaugurado em 1864,1 sável pela integração de grande comerciais, ocasionado pelo acú-
representando um grande marco da parte do território paulista ao surto mulo de capitais do complexo ca-
engenharia britânica no país, que, de desenvolvimento econômico, feeiro, o aumento do número de
nas palavras de Arlete Monteiro, que tornou o Estado o principal imigrantes, que trouxeram novos

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costumes, hábitos e introduziram urbanização e para a construção da cia econômica e cultural dos países
na construção civil uma nova lin- cidade, ministrados, primeiramente, em processo de industrialização em
guagem arquitetônica através de por professores estrangeiros que relação ao capital estrangeiro. Os
novos materiais construtivos, como muito colaboraram para o desenvol- britânicos formaram consórcios
tijolo, ferro e vidro, e, principal- vimento e a consolidação de várias nacionais e internacionais, e se
mente, a implantação do sistema de profissões técnicas e científicas. apresentaram, mais uma vez, como
transporte ferroviário repercutiram Com a necessidade de amplia- benfeitores das sociedades subde-
abrupta e diretamente nos modestos ção do espaço físico e dos serviços senvolvidas, incutindo-lhes as
padrões da cidade de São Paulo, urbanos, as cidades tornaram-se idéias de progresso econômico, o
mudando definitivamente o seu ce- importantes alvos para a entrada de que significava dizer consumo de
nário sociocultural, físico e urbano. investimentos estrangeiros, princi- produtos industrializados.7
A cidade passou a demandar um palmente de origem britânica, que Em função da economia cafeei-
grande número de construções, ins- aportaram no país trazendo toda a ra, a ferrovia consolidou-se como
tituições, lojas comerciais e servi- sorte de novidades e utilidades in- principal meio de deslocamento e
ços de infra-estrutura, provocando dustrializadas: ferrovias, hidroelé- integração entre o litoral e as cida-
a ampliação de seu território urbano tricas, cais, bondes, serviços de ilu- des do interior paulista, resultando
e a construção de novos bairros em minação, energia e água, telégrafos, em maior rapidez, maior capacida-
áreas ainda não urbanizadas, para a empresas de prestação de serviços, de de transporte de carga e conside-
burguesia, com bairros planejados bancos, construtoras etc.. De fato, rável redução dos custos em relação
nos modernos padrões do urbanis- eram serviços, equipamentos e ma- ao sistema realizado por animais,
mo sanitário, e para a classe operá- quinário que modernizaram as ci- que durante anos constituiu um ne-
ria, em sua maioria imigrantes, que dades e geraram grandes vantagens gócio lucrativo para os tropeiros e
ficou relegada às várzeas próximas financeiras para os países que deti- criadores de muares. (Esse sistema
aos rios e vales, em bairros indus- nham essa tecnologia; conseqüen- entrou em decadência com o adven-
triais construídos para atender aos temente se consolidou a dependên- to do sistema ferroviário que, além
interesses capitalistas de manuten-
ção de mão-de-obra perto das fábri- Livro: Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo, de Beatriz Kühl

cas e indústrias. São Paulo foi se


modernizando e crescendo ao ritmo
de fábricas, bondes, comércio,
construções e ferrovias, semelhante
às cidades européias, com seus cos-
tumes e culturas: jornais, correio e
viajantes passaram a circular dia-
riamente pelas cidades e havia em
toda a área um clima de renovação. Biblioteca Sainte
(...) Em muitos aspectos a estrada Geneviève
de ferro mudou a face das cidades, (1843-1850),
em Paris.
introduziu os diferentes aspectos da Projeto de Henri
vida moderna, e chegou a transfor- Labrouste
mar as noções de tempo, de pressa,
de pontualidade, de hora certa e
valor comercial.6
Nesse processo de contínua mo-
dernização e construção, a presença
de profissionais especializados co-
mo engenheiros, arquitetos, cons-
Palácio de Cristal
trutores, pedreiros, mestres-de- (1851), de Joseph
obra, marceneiros, ferreiros, foi Paxton. Reconstruído
fundamental para o desenvolvimen- em Sydenhan, após a
exposição, e destruído
to da cidade paulista. Igualmente em um incêndio
fundamental foi a criação de cursos (1843-1850)
profissionalizantes voltados para a

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de alterar definitivamente o sistema maiores. Possibilitava, também, a metros de vão. A concepção estru-
de transporte em São Paulo, conso- obtenção de temperaturas mais ele- tural da obra era semelhante à de
lidou definitivamente o emprego e vadas que resultavam em moldagem pedra, e a junção das partes foi ba-
a produção de ferro em grande es- mais fina e precisa.11 seada em técnicas de construção de
cala.) As ferrovias foram responsá- Produzido em larga escala, o fer- tesouras de madeira. Esses mesmos
veis por grandes transformações ro populariza-se na construção civil métodos também foram emprega-
nas cidades e pelo surgimento de e torna-se competitivo em relação dos na ponte de Sunderland (1792-
um novo tipo arquitetônico, as esta- aos materiais de construção. As 1796), que venceu um vão de 71
ções, além de depósitos, garagens descobertas científicas acrescidas metros através de um único arco. A
de locomotiva etc.8 No entanto, des- da facilidade de obtenção de maté- partir dessas primeiras experiências
pertavam em todos uma tal sensa- ria-prima, bem como a estrutura co- seguiu-se um desenvolvimento na-
ção de novidade e modernidade mercial voltada ao mercado exter- tural onde o ferro foi capaz de ven-
que não permitia que outros usos no, tornaram a Inglaterra capaz de cer vãos cada vez maiores.
do ferro se destacassem. Deve-se deter o privilégio de domínio do Logo o material passou a ser
entender esse também como uma aplicado num misto de estruturas de
coerência entre o material novo e o pilares, vigas e alvenaria de tijolos,
novo meio de transporte, pois não unindo as novas técnicas e as tradi-
se poderia conceber uma locomoti- cionais, numa composição de ferro
Livro: Aspectos da história da engenharia civil em São Paulo, de Nestor G. Reis Filho

va a vapor ou um trilho que não fos- e tijolo. Os primeiros exemplos fo-


se em ferro.9 ram aplicados em fábricas e em in-
A produção em grande escala dústrias, construídas com pilares de
dos materiais ferrosos deve-se aos ferro fundido, que permitiam vãos
constantes aprimoramentos técni- maiores, redução do número de su-
cos, que os tornaram tão populares portes e, conseqüentemente, maior
quanto a pedra e o tijolo, permitin- área para a instalação dos equipa-
do-lhes diversas aplicações. Inicial- mentos fabris e maquinários. Algu-
mente, foi empregado o ferro fundi- mas experiências também explora-
do; em seguida, o ferro propriamen- ram a aplicação de ferro fundido em
te dito (ferro doce ou obtido por pisos e em reconstrução de edifí-
meio de pudlagem), destinado a ser cios que sofreram incêndios, por ser
forjado, laminado ou prensado em um material incombustível e de
chapas; e, finalmente, o aço.10 Na grande resistência à compressão. E
Inglaterra, a produção industrial de também na cobertura de algumas
Viaduto Grota Funda, construído pela
ferro fundido ocorre com a Primei- São Paulo Railway (1860-1867)
edificações em que o ferro resulta-
ra Revolução Industrial, a partir da va em melhores soluções e grandes
segunda metade do século XVIII, vantagens. Com o tempo, o mate-
após a divulgação das descobertas mercado internacional de ferro, a rial foi aprimorado tecnicamente,
e experiências de Abraham Darby, ponto de ter sido considerada a graça aos estudos de estática e re-
em Coalbrookdale, e de Huns- “oficina mecânica do mundo”.12 A sistência dos materiais, desenvolvi-
tsmann em Sheffield (...). Darby de- partir da segunda metade do século dos pelos franceses, enquanto os in-
senvolveu, em 1709, uma técnica XIX, a concorrência de países co- gleses aperfeiçoavam as técnicas
para empregar o carvão mineral, mo Bélgica, Alemanha e França co- de produção de ferro.
em vez do vegetal, a fim de conver- meçam também a despontar no co- Dessa forma, o surgimento de
ter o minério de ferro em ferro fun- mércio internacional, o que vem a novos materiais construtivos, como
dido. Darby utilizava o coque vindo negar a propagada lenda sobre a vidro, ferro fundido, ferro laminado
de jazidas da região, que continha suposta origem inglesa de tudo (que provém da purificação do fer-
apenas uma pequena quantidade de quanto é produto siderúrgico im- ro fundido e pode ser forjado, lami-
enxofre, cuja presença havia sido o portado da Europa.13 nado ou dobrado a quente ou a frio,
principal obstáculo às experiências Conforme Kühl, o primeiro permitindo junções e emendas com
anteriores. O coque tinha ainda ou- exemplo de construção em grande rebites), chapas de ferro corrugado
tras vantagens, em relação ao car- escala utilizando o ferro fundido foi e de ferro galvanizado, além do aço,
vão vegetal, como a de ser mais ba- a ponte sobre o Savern em Coal- resultaram numa nova linguagem
rato e permitir o emprego de fornos brookdale (1771-1781), com 30 arquitetônica e construtiva e numa

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verdadeira revolução no campo es-


tético, o que permitiu maior liber-
dade de criação e alcance de vãos
maiores com um mínimo de mate-
rial. No entanto, as formas dessas
estruturas pré-fabricadas tinham
como princípio as formas clássicas, Estação de
que eram bem aceitas pelo público Paranapiacaba
Santo André,
consumidor e que atendiam aos

Fundação Pró-Memória
destruída em
conceitos do próprio período arqui- incêndio, em 1981.
tetônico, arraigado no historicismo Alpendre construído,
possivelmente, com
e nos vários revivals, imitando os materiais da Walter
estilos do passado, mesclando vá- Macfarlane.
rias formas, detalhes e composi-
ções, sem necessariamente criar um
estilo novo. do, alguns dos materiais emprega- nico que se seguiu a partir de várias
Alias, o período cultural do sé- dos de maneira original, como o experiências com o uso de ferro, co-
culo XIX foi marcado pela busca de ferro, o vidro e, posteriormente, o mo por exemplo nas fachadas de fer-
um estilo que representasse aquela concreto armado, levaram alguns ro dos edifícios construídos nos Esta-
época, demonstrando assim as con- inovadores a uma nova arte de dos Unidos, na cidade de New York,
tradições entre os avanços tecnoló- construir (...). Progressivamente, largamente exploradas por Daniel
gicos e a falta de expressividade após um período inicial em que o Badger, que possuía uma fundição e
dos projetos arquitetônicos, basica- ferro recebia um tratamento formal podia até mesmo construir um edifí-
mente retirados dos tratados e com- mais apropriado aos materiais tra- cio inteiro de ferro.
pêndios de arquitetura, que apre- dicionais, suas características téc- Essas questões demonstram os
sentavam padrões de tipologias ar- nicas e estéticas passaram a ser embates culturais e as contradições
quitetônicas baseados em formas mais bem exploradas, fazendo dele da época, culminando numa distin-
do passado, o que tornava a arte de um dos únicos materiais, durante o ção entre o ofício dos engenheiros,
projetar tarefa tão sistematizada século, a atingir expressão formal destinado a resolver os problemas
quanto à própria produção dos ele- própria.14 técnicos e de cálculos, e o dos ar-
mentos industrializados. As formas Essa nova estética só foi alcança- quitetos, relegado aos conceitos es-
derivadas das técnicas artesanais e da mediante o uso correto desses ma- téticos e formais. Tal distinção ecoa
da tradição clássica foram trans- teriais, explorando seu verdadeiro até os dias atuais, principalmente
postas para a maioria dos elemen- potencial e não apenas empregando- em nosso país, onde ambas as pro-
tos produzidos industrialmente, o com mero uso decorativo ou orna- fissões ainda são mal compreendi-
sem haver um real empenho em re- mental. Mesmo assim não se pode das, embora já tenham estado uni-
pensá-las e transformá-las. Contu- negar o grande desenvolvimento téc- das num determinado momento
histórico, como no caso do Curso
Livro: Aspectos da história da engenharia civil em São Paulo, de Nestor G. Reis Filho de Engenheiro-Arquiteto da Escola
Politécnica de São Paulo, que for-
mava arquitetos com ênfase tam-
bém nas questões de engenharia,
mas que perdurou até 1948, quando
foi fundado o Curso de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de
São Paulo.
Com o tempo, alguns inovado-
res souberam empregar o ferro mais
adequadamente e de modo bastante
Interior da
original em razão de suas caracte-
estação da Luz, rísticas técnicas, fazendo dele um
em São Paulo dos únicos materiais, durante sécu-
los, a atingir expressão formal pró-

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mercialização de produtos indus-


trializados de ferro. Apesar de não
ser o único país a produzir ferro, foi
Livro: O sonho e a técnica, de Cacilda Teixeira da Costa

o primeiro a produzi-lo em escala


considerável e se beneficiou do mo-
nopólio das relações comerciais
com o mundo subdesenvolvido;
monopólio esse que se estabeleceu
entre fins do século XVIII e início
do século XIX. No último quartel
Vista da plataforma
do século XIX, o que se viu foi uma
da Estação de Rio Grande efetiva rivalidade dos países desen-
da Serra volvidos e industrializados na dis-
puta de mercados. Assim, chega-
ram até o Brasil vários edifícios
pria. 15 Por exemplo, a Biblioteca terno, para garantir a rentabilida- pré-fabricados de ferro, instalados
Sainte Geneviève (1843-50), de de dos investimentos e, até mesmo, em cidades que estavam se moder-
Henry Labroste, em Paris, o primei- a sobrevivência da indústria side- nizando e necessitavam de constru-
ro edifício público francês a empre- rúrgica.16 ções de montagem rápida e prática,
gar ferro, e o Pavilhão da Exposi- No século XIX, o ferro passa a algo que, naquela época, só o ferro
ção Universal de Londres (1851), ter grande aceitação em diversas podia proporcionar.
de Joseph Paxton, concebido em es- áreas de interesse, entre a arquitetu- No Brasil, o início da siderurgia
truturas modelares e padronizadas, ra e a construção civil. A diversida- pode ser datado a partir da vinda da
inteiramente de ferro e vidro, são de de elementos padronizados criou Corte Portuguesa, que fundou a
verdadeiros paradigmas da arquite- um frutífero mercado de comercia- Real Fábrica de Ferro do Morro do
tura universal e do uso bem empre- lização de peças metálicas, e tam- Pilar, em Minas Gerais, e a Real Fá-
gado do ferro. bém de edifícios pré-fabricados, brica de Ferro de São João do Ipa-
Essas e outras obras mostraram que foram largamente exportados nema, em 1810, em São Paulo. Esta
a potencialidade construtiva do fer- para os países não industrializados, última fábrica perdurou até 1913,
ro e muitos são os exemplos de sua tendo a Inglaterra como o país que mas sofreu vários recessos em sua
boa aplicação, que se estendeu a mais se destacou na produção e co- produção. Além disso, a produção
praticamente todas as tipologias ur- brasileira também sofria a concor-
banas surgidas em função da Revo- rência de produtos e equipamentos
lução Industrial e do próprio desen- importados, que tinham preços
volvimento da cidade, que necessi- mais competitivos no mercado. A
tava de novos programas arquitetô- fundação de escolas de engenharia
nicos, antes não existentes, como também contribuiu para disseminar
lojas de departamento, edifícios de a cultura do ferro, através do ensino
escritórios e comerciais, fábricas, de metalurgia. Apenas após a Pri-
galerias, mercados e estações ferro- meira Guerra Mundial a produção
viárias, os quais favoreceram o seu brasileira passou a ser em escala in-
aprimoramento técnico e a sua in- dustrial, e São Caetano foi a primei-
trodução no mercado exterior, prin- ra cidade do país a instalar um forno
cipalmente em cidades de países Siemens-Martins, na Usina Com-
subdesenvolvidos que passavam panhia Mecânica e Importadora,
por processo de expansão e cons- em 1918.
trução urbana. Quando o ferro pas- Nessa companhia, trabalhou, su-
José Roberto Gianello

sou a ser utilizado na construção de pervisionando o departamento téc-


ferrovias, locomotivas, edifícios, nico e dos desenhistas, o engenhei-
navios, maquinaria, sistemas de ro belga Prudent Guillhaume Noél
instalações sanitárias de gás, (1869-1954), que deixou rastros de
Passarela metálica da Estação de
criou-se um mercado que logo dei- Campo Grande, em Santo André sua história também em São Caeta-
xou de ser interno e passou a ser ex- no, principalmente com a instala-

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ção da primeira empresa de cons- das em diferentes elementos da ar- de os espaços eram dominados por
truções metálicas na cidade. Essa quitetura ferroviária, que evolui de arranjos decorativos quase sempre
firma perdurou, provavelmente, até simples coberturas de ferro para as carregados de um alto teor simbóli-
finais da década de 1910, fornecen- plataformas aos extensos progra- co. (...) Tudo se passa como se a co-
do perfis de ferro, para pontes, mer- mas das estações de trem. Estas úl- berta para os trens fosse um sim-
cados e instalações industriais, con- timas eram semelhantes às estações ples abrigo, ao qual se poderia e
forme mostram algumas fotos de construídas na Europa, compostas deveria incorporar todos os avan-
suas obras. pela cobertura de estrutura metálica ços tecnológicos contemporâneos.
O fato acima insere-se num pe- que abrigava as plataformas e os Contudo, o edifício em alvenaria
ríodo histórico do Brasil onde era trens e pelos edifícios de arquitetu- teria de se caracterizar pelo gosto
comum a importação de estruturas do cidadão, ainda preso aos pre-
pré-fabricados de ferro, já que a si- conceitos estabelecidos pela arqui-
derurgia no país estava em processo tetura.21 Assim como as primeiras
de formação. Em algumas cidades pontes de ferro careceram de expe-
brasileiras, Manaus, Belém, Recife riências e aprofundamento técni-
e Fortaleza, que passavam por rápi- co, as estações ferroviárias tam-
do crescimento urbano, a necessi- bém eram programas arquitetôni-
dade de grande número de constru- cos novos e, portanto, não estavam
ções levaram estas cidades a impor- alheias às contradições e aos emba-
tar vários materiais de construção, tes que permearam o próprio perío-
além de uma quantidade expressiva do cultural do século XIX.
de edifícios de ferro pré-fabricados, Na Província de São Paulo, o
dotando o país com preciosos papel da ferrovia na ligação de vá-
exemplos da arquitetura de ferro rias cidades foi fundamental para o
vindos Europa. 18 A estrutura pré- desenvolvimento econômico da re-
moldada do ferro fundido constitui- gião, principalmente com a cons-
se numa solução bastante facilita- trução da Estrada de Ferro São Pau-
Livro: O sonho e a técnica, de Cacilda Teixeira da Costa

dora porque de rápida e simples lo Railway, que, passando por cida-


execução, permitindo aos gover- des do atual Grande ABC como São
nos, principalmente, providenciar Caetano, Santo André, Mauá, Ri-
edifícios públicos de belo porte e beirão Pires e Rio Grande da Serra,
grandes dimensões em locais de propiciou a evolução dos espaços
mão-de-obra precária.19 A contri- Exemplos urbanos, do comércio e da indústria
buição da siderurgia nacional para de estruturas na região, além de ter deixado pre-
a arquitetura do ferro no Brasil foi, ornamentadas ciosos exemplos da arquitetura de
de ferro,
dessa forma, pequena, e muito do fabricadas pela ferro. As primeiras estações cons-
metal utilizado, tanto nas estradas Macfarlane truídas na região do Grande ABC
de ferro quanto na construção, era datam da abertura da Estrada de
importado.20 Ferro São Paulo Railway, em 16 de
Na construção das estradas de ra eclética, erguidos de alvenaria, Fevereiro de 1867: Alto da Serra,
ferro, algumas firmas marcaram como por exemplo a Estação da (que depois passou a se chamar Pa-
presença com o fornecimento de es- Luz, concluída em 1901. ranapiacaba), Rio Grande da Serra,
truturas pré-fabricas. Entre elas Conforme Geraldo Gomes da (antiga Rio Grande) e Santo André.
destaca-se a Walter Macfarlane & Silva, as estações ferroviárias eram Com a construção de uma segunda
Co., que iniciou suas atividades, em templos da nova tecnologia e seus linha, novas estações foram cria-
1850, produzindo os mais variados espaços se multiplicavam pela das: Campo Grande (1889), Ribei-
tipos de peças metálicas para uso criação de serviços, utilizados por rão Pires (1885), Mauá (antiga Es-
utilitário, ornamental, elementos indivíduos de todos os níveis so- tação Pilar, 1883) e São Caetano.
decorativos, estruturais, sanitários ciais. Não era pois estranho que os Dessa linha, as mais recentes são:
e equipamentos urbanos. Desta fir- arquitetos passassem a tratar as es- Guapituba (1907), Capuava (1920),
ma veio a maioria das estruturas de tações como o faziam com os de- Pirelli (1943), Prefeito Saladino
ferro fundido das estações construí- mais edifícios públicos, tais como (1952), Utinga (1933) e Tamandua-
das pela São Paulo Railway, aplica- ministérios, palácios da justiça, on- teí (1955).

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Livro: Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo, de Beatriz Kühl


Grande ABC, além de terem deixa-
do fortes lembranças na memória
daqueles que presenciaram os tem-
pos áureos dessa ferrovia que, de-
pois de ser encampada pela União,
foi gradativamente descaracteriza-
da, culminando no abandono, na
demolição e substituição de antigas
estações por modelos mais moder-
Passarelle anglaise nos de concreto e vidro. Mesmo as-
sim, marcaram indelevelmente a
Algumas dessas estações se des- de e grande unidade de estilo e dão paisagem e o ritmo de vida da popu-
tacam pelas suas características em até hoje, às estações que os conser- lação, em vários aspectos: a arqui-
comum e pelo emprego de estrutu- varam, um aspecto extremamente tetura tipicamente de características
ras pré-fabricadas de ferro em con- gracioso. Dessa maneira estavam inglesas; os horários rígidos dos
traste com a alvenaria de tijolos em sintonia com o fabricante Mac- trens e a pontualidade britânica que
aparentes, como as estações de Rio farlane, que também ia aos últimos regia a vida cotidiana da população;
Grande da Serra e Ribeirão Pires, detalhes até a respeito dos elemen- as cancelas das estações que emper-
construídas dentro da mesma filo- tos menos significativos,23 como as ravam a passagem de cortejos, ca-
sofia daquela empresa ferroviária. braçadeiras de fixação de calhas e samentos, funerais, mas eram sem-
Tanto nos elementos de ferro fundi- condutos. Além dessas estruturas, pre motivos de diversão para a
do quanto nos contrastes realiza- destacam-se na cultura do ferro as criançada, que costumava subir nas
dos com a alvenaria de tijolos à vis- passarelas metálicas treliçadas, sus- porteiras; as longas filas de conges-
ta e os pormenores de madeira re- tentadas por pilares de ferro fundi- tionamentos para atravessar a linha;
cortada, sente-se uma preocupação do, comuns em várias estações, e o ir e vir dos trens de carga e de pas-
que chegava aos últimos detalhes também em Campo Grande. Esse sageiros rasgando os trilhos e bafo-
de acabamentos e desenho das for- tipo de passarela, nos estudos de rando sua densa nuvem de fumaça,
mas.22 Com apenas um pavimento, Beatriz Kühl, era denominado de anunciando sua chegada e partida;
ainda conservam suas característi- passarelle anglaise, de acordo com o apito singular e inconfundível da
cas originais que mesclam várias os tratados ferroviários de língua locomotiva. Enfim, essas e tantas
técnicas e vários materiais constru- francesa. outras lembranças, algumas delas
tivos, como a alvenaria de tijolos, Contudo, pode-se dizer que es- ainda presentes na paisagem, trans-
que forma saliências, pilastras e sas antigas estações, e mesmo formam a ferrovia numa fonte ines-
ressaltos, sem falar dos detalhes de aquelas que não se inserem no pa- gotável de estudo e lembranças pa-
madeira que arrematam portas e norama da arquitetura de ferro, con- ra historiadores, memorialistas,
abertura, e, no nosso estudo, os pri- tribuíram grandemente para o de- pesquisadores, preservacionistas,
morosos elementos de ferro, que fo- senvolvimento e ocupação do saudosistas e interessados em geral.
ram importados e estão presentes
na seqüência de colunas pré-fabri-
cadas de ferro fundido, pelos con-
soles ornamentados e pelos ele-
mentos para escoamento das águas
pluviais, todos produzidos pela fun-
dição de Walter Macfarlane, de
Glasgow.
Tais estruturas não serviam ape-
nas como suportes estruturais, mas
compunham uma estética com
Fundação Pró-Memória

identidade própria que se integrava


agradavelmente ao conjunto arqui- Vista da plataforma e
tetônico da estação. Os equipamen- da antiga Estação de
tos, em sua maioria importados da São Caetano do Sul
Grã-Bretanha, são de alta qualida-

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do Sul: Fundação Pró-Memória SCS, Ano


X, n. 19, pp. 37-42, Julho de 1999.
REIS FILHO, Nestor Goular. Aspectos da
história da engenharia civil em São Paulo:
1860-1960. São Paulo: Livraria Kosmos
Ed., 1989.
SILVA, Geraldo Gomes da. Arquitetura
do ferro no Brasil. São Paulo: Nobel,
1986.
SIMÕES, Elianete. Uma a uma, estações
ferroviárias vão sendo destruídas. Diário
Fundação Pró-Memória

do Grande ABC. 28 mar. 1982.


VICENZI, Giordano P.S.. As porteiras da
Estação atual estrada de ferro e os 40 anos do viaduto.
de São Caetano In: Raízes, São Caetano do Sul: Funda-
do Sul. ção Pró-Memória SCS, Ano VI, n. 11, pp.
40-41, Julho de 1994.

Notas
Por volta da década de 1970, vá- nalto e o litoral, são valiosos ele-
rias estações foram demolidas para mentos do patrimônio da arquitetu- 1 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit., p.
102.
dar lugar a estações maiores, apa- ra de ferro presente na região. Em- 2 Arlete Monteiro, 1999. Op. cit., p. 36.
gando-se com isso parte da própria bora parte deste patrimônio se en- 3 Cacilda Teixeira da Costa, 2001. Op.
história urbana e do patrimônio cul- contre em constante processo de cit., p. 124.
tural desses municípios. Caso, por deterioração, muitas dessas esta- 4 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit., p.
exemplo, da Estação de São Caeta- ções foram demolidas e/ou substi- 135.
5 Nestor Goulart Reis Filho, 1989.
no do Sul, inaugurada em 1883, que tuídas por outras de maior porte, 6 Cacilda Teixeira da Costa, 2001. Op.
permaneceu funcionando até 1975, nos padrões modernos. Mas as que cit,. pp. 122-123.
num edifício construído no ano de ainda persistem de pé constituem 7 Geraldo Gomes da Silva, 1986. Op. cit,.
1896, em terreno cedido pela famí- remanescentes preciosos da produ- p. 17.
8 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit.,
lia Baraldi, possuindo plataforma de ção arquitetônica ferroviária, que pp. 23-24.
120m e uma passarela treliçada, ainda marca grandemente a paisa- 9 Geraldo Gomes da Silva, 1986. Op. cit.,
além do armazém de carga e quatro gem urbana das cidades, da cultura p. 16.
casas para os empregados,24 típicas e da população do Grande ABC. 10 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit.,
p. 21.
da arquitetura inglesa. Porém essa 11 Idem. Op. cit., p. 22.
estação foi substituída por uma edi- Bibliografia 12 Geraldo Gomes da Silva, 1986. Op.
ficação maior de concreto e vidro, BUSO, Silvio José. A velha estação na vi-
cit., pp. 13-14.
pois melhor representava o progres- 13 Idem. Op. cit.. p. 20.
da de um ferroviário. In: Raízes, São Cae-
14 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit.,
so de São Caetano. A substituição tano do Sul: Fundação Pró-Memória SCS,
p. 21.
da Estação de São Caetano e de ou- Ano VI, n. 11, pp. 42-43, Julho de 1994.
15 Idem. Op. cit., p. 21.
COSTA, Cacilda Teixeira da. O sonho e
tras na mesma linha evidencia, cla- técnica: a arquitetura de ferro no Brasil. 16 Geraldo Gomes da Silva, 1986. Op.
ramente, a falta de discussão sobre São Paulo: Editora da Universidade de cit., p. 15.
patrimônio urbano, história e me- São Paulo, 2001. 17 Idem. Op. cit., p. 14.
KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do 18 Beatriz Mugayar Kühl, 1998.
mória, que se reflete na falta de pre- 19 Carlos Lemos. Alvenaria Burguesa.
ferro e arquitetura ferroviária em São
servação e de valorização do patri- Paulo: reflexões sobre sua preservação. São Paulo,1985, p. 48, apud Cacilda
mônio histórico construído. As esta- São Paulo: Ateliê Editorial, Fapesp, Se- Teixeira da Costa.
ções que ainda sobrevivem, em cretaria de Cultura, 1998. 20 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit.,
MARTINS, José de Souza. Diário de fim p. 85.
meio ao processo de transformações 21 Geraldo Gomes da Silva. Op. cit., p.
de século: notas sobre o núcleo colonial
urbanas, ficam relegadas ao aban- de São Caetano no século XIX. São Cae- 35.
dono e à constante deterioração. tano do Sul: Fundação Pró-Memória de 22 Cacilda Teixeira da Costa, 2001. Op.
Enfim, essas estações e uma sé- São Caetano do Sul, 1998. cit. p. 124.
MEDICI, Ademir. Migração e urbaniza- 23 Idem. Op. cit. p. 124-125.
rie de estruturas e edificações cons- 24 José de Souza Martins, 1998. Op. cit.,
ção: a presença de São Caetano na re-
truídas em ferro, somadas ao im- gião do ABC. São Paulo - São Caetano p. 37.
portante conjunto formado pelos do Sul: Hucitec, Prefeitura de São Caeta-
planos funiculares de cinco pata- no do Sul, 1993.
(*) André Luis Balsante Caram é arquiteto da
mares construído na Serra do Mar e MONTEIRO, Arlete Assunção. Os imi- Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul
grantes ao longo dos trilhos da The São
que venceu o desnível entre o pla- Paulo Railway. In: Raízes, São Caetano

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Dezembro/2004 RAÍZES

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