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Arquitetura de ferro
no Grande ABC: história e ferrovia
André Luis Balsante CARAM (*) Livro: Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo, de Beatriz Kühl
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costumes, hábitos e introduziram urbanização e para a construção da cia econômica e cultural dos países
na construção civil uma nova lin- cidade, ministrados, primeiramente, em processo de industrialização em
guagem arquitetônica através de por professores estrangeiros que relação ao capital estrangeiro. Os
novos materiais construtivos, como muito colaboraram para o desenvol- britânicos formaram consórcios
tijolo, ferro e vidro, e, principal- vimento e a consolidação de várias nacionais e internacionais, e se
mente, a implantação do sistema de profissões técnicas e científicas. apresentaram, mais uma vez, como
transporte ferroviário repercutiram Com a necessidade de amplia- benfeitores das sociedades subde-
abrupta e diretamente nos modestos ção do espaço físico e dos serviços senvolvidas, incutindo-lhes as
padrões da cidade de São Paulo, urbanos, as cidades tornaram-se idéias de progresso econômico, o
mudando definitivamente o seu ce- importantes alvos para a entrada de que significava dizer consumo de
nário sociocultural, físico e urbano. investimentos estrangeiros, princi- produtos industrializados.7
A cidade passou a demandar um palmente de origem britânica, que Em função da economia cafeei-
grande número de construções, ins- aportaram no país trazendo toda a ra, a ferrovia consolidou-se como
tituições, lojas comerciais e servi- sorte de novidades e utilidades in- principal meio de deslocamento e
ços de infra-estrutura, provocando dustrializadas: ferrovias, hidroelé- integração entre o litoral e as cida-
a ampliação de seu território urbano tricas, cais, bondes, serviços de ilu- des do interior paulista, resultando
e a construção de novos bairros em minação, energia e água, telégrafos, em maior rapidez, maior capacida-
áreas ainda não urbanizadas, para a empresas de prestação de serviços, de de transporte de carga e conside-
burguesia, com bairros planejados bancos, construtoras etc.. De fato, rável redução dos custos em relação
nos modernos padrões do urbanis- eram serviços, equipamentos e ma- ao sistema realizado por animais,
mo sanitário, e para a classe operá- quinário que modernizaram as ci- que durante anos constituiu um ne-
ria, em sua maioria imigrantes, que dades e geraram grandes vantagens gócio lucrativo para os tropeiros e
ficou relegada às várzeas próximas financeiras para os países que deti- criadores de muares. (Esse sistema
aos rios e vales, em bairros indus- nham essa tecnologia; conseqüen- entrou em decadência com o adven-
triais construídos para atender aos temente se consolidou a dependên- to do sistema ferroviário que, além
interesses capitalistas de manuten-
ção de mão-de-obra perto das fábri- Livro: Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo, de Beatriz Kühl
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de alterar definitivamente o sistema maiores. Possibilitava, também, a metros de vão. A concepção estru-
de transporte em São Paulo, conso- obtenção de temperaturas mais ele- tural da obra era semelhante à de
lidou definitivamente o emprego e vadas que resultavam em moldagem pedra, e a junção das partes foi ba-
a produção de ferro em grande es- mais fina e precisa.11 seada em técnicas de construção de
cala.) As ferrovias foram responsá- Produzido em larga escala, o fer- tesouras de madeira. Esses mesmos
veis por grandes transformações ro populariza-se na construção civil métodos também foram emprega-
nas cidades e pelo surgimento de e torna-se competitivo em relação dos na ponte de Sunderland (1792-
um novo tipo arquitetônico, as esta- aos materiais de construção. As 1796), que venceu um vão de 71
ções, além de depósitos, garagens descobertas científicas acrescidas metros através de um único arco. A
de locomotiva etc.8 No entanto, des- da facilidade de obtenção de maté- partir dessas primeiras experiências
pertavam em todos uma tal sensa- ria-prima, bem como a estrutura co- seguiu-se um desenvolvimento na-
ção de novidade e modernidade mercial voltada ao mercado exter- tural onde o ferro foi capaz de ven-
que não permitia que outros usos no, tornaram a Inglaterra capaz de cer vãos cada vez maiores.
do ferro se destacassem. Deve-se deter o privilégio de domínio do Logo o material passou a ser
entender esse também como uma aplicado num misto de estruturas de
coerência entre o material novo e o pilares, vigas e alvenaria de tijolos,
novo meio de transporte, pois não unindo as novas técnicas e as tradi-
se poderia conceber uma locomoti- cionais, numa composição de ferro
Livro: Aspectos da história da engenharia civil em São Paulo, de Nestor G. Reis Filho
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Fundação Pró-Memória
destruída em
conceitos do próprio período arqui- incêndio, em 1981.
tetônico, arraigado no historicismo Alpendre construído,
possivelmente, com
e nos vários revivals, imitando os materiais da Walter
estilos do passado, mesclando vá- Macfarlane.
rias formas, detalhes e composi-
ções, sem necessariamente criar um
estilo novo. do, alguns dos materiais emprega- nico que se seguiu a partir de várias
Alias, o período cultural do sé- dos de maneira original, como o experiências com o uso de ferro, co-
culo XIX foi marcado pela busca de ferro, o vidro e, posteriormente, o mo por exemplo nas fachadas de fer-
um estilo que representasse aquela concreto armado, levaram alguns ro dos edifícios construídos nos Esta-
época, demonstrando assim as con- inovadores a uma nova arte de dos Unidos, na cidade de New York,
tradições entre os avanços tecnoló- construir (...). Progressivamente, largamente exploradas por Daniel
gicos e a falta de expressividade após um período inicial em que o Badger, que possuía uma fundição e
dos projetos arquitetônicos, basica- ferro recebia um tratamento formal podia até mesmo construir um edifí-
mente retirados dos tratados e com- mais apropriado aos materiais tra- cio inteiro de ferro.
pêndios de arquitetura, que apre- dicionais, suas características téc- Essas questões demonstram os
sentavam padrões de tipologias ar- nicas e estéticas passaram a ser embates culturais e as contradições
quitetônicas baseados em formas mais bem exploradas, fazendo dele da época, culminando numa distin-
do passado, o que tornava a arte de um dos únicos materiais, durante o ção entre o ofício dos engenheiros,
projetar tarefa tão sistematizada século, a atingir expressão formal destinado a resolver os problemas
quanto à própria produção dos ele- própria.14 técnicos e de cálculos, e o dos ar-
mentos industrializados. As formas Essa nova estética só foi alcança- quitetos, relegado aos conceitos es-
derivadas das técnicas artesanais e da mediante o uso correto desses ma- téticos e formais. Tal distinção ecoa
da tradição clássica foram trans- teriais, explorando seu verdadeiro até os dias atuais, principalmente
postas para a maioria dos elemen- potencial e não apenas empregando- em nosso país, onde ambas as pro-
tos produzidos industrialmente, o com mero uso decorativo ou orna- fissões ainda são mal compreendi-
sem haver um real empenho em re- mental. Mesmo assim não se pode das, embora já tenham estado uni-
pensá-las e transformá-las. Contu- negar o grande desenvolvimento téc- das num determinado momento
histórico, como no caso do Curso
Livro: Aspectos da história da engenharia civil em São Paulo, de Nestor G. Reis Filho de Engenheiro-Arquiteto da Escola
Politécnica de São Paulo, que for-
mava arquitetos com ênfase tam-
bém nas questões de engenharia,
mas que perdurou até 1948, quando
foi fundado o Curso de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de
São Paulo.
Com o tempo, alguns inovado-
res souberam empregar o ferro mais
adequadamente e de modo bastante
Interior da
original em razão de suas caracte-
estação da Luz, rísticas técnicas, fazendo dele um
em São Paulo dos únicos materiais, durante sécu-
los, a atingir expressão formal pró-
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ção da primeira empresa de cons- das em diferentes elementos da ar- de os espaços eram dominados por
truções metálicas na cidade. Essa quitetura ferroviária, que evolui de arranjos decorativos quase sempre
firma perdurou, provavelmente, até simples coberturas de ferro para as carregados de um alto teor simbóli-
finais da década de 1910, fornecen- plataformas aos extensos progra- co. (...) Tudo se passa como se a co-
do perfis de ferro, para pontes, mer- mas das estações de trem. Estas úl- berta para os trens fosse um sim-
cados e instalações industriais, con- timas eram semelhantes às estações ples abrigo, ao qual se poderia e
forme mostram algumas fotos de construídas na Europa, compostas deveria incorporar todos os avan-
suas obras. pela cobertura de estrutura metálica ços tecnológicos contemporâneos.
O fato acima insere-se num pe- que abrigava as plataformas e os Contudo, o edifício em alvenaria
ríodo histórico do Brasil onde era trens e pelos edifícios de arquitetu- teria de se caracterizar pelo gosto
comum a importação de estruturas do cidadão, ainda preso aos pre-
pré-fabricados de ferro, já que a si- conceitos estabelecidos pela arqui-
derurgia no país estava em processo tetura.21 Assim como as primeiras
de formação. Em algumas cidades pontes de ferro careceram de expe-
brasileiras, Manaus, Belém, Recife riências e aprofundamento técni-
e Fortaleza, que passavam por rápi- co, as estações ferroviárias tam-
do crescimento urbano, a necessi- bém eram programas arquitetôni-
dade de grande número de constru- cos novos e, portanto, não estavam
ções levaram estas cidades a impor- alheias às contradições e aos emba-
tar vários materiais de construção, tes que permearam o próprio perío-
além de uma quantidade expressiva do cultural do século XIX.
de edifícios de ferro pré-fabricados, Na Província de São Paulo, o
dotando o país com preciosos papel da ferrovia na ligação de vá-
exemplos da arquitetura de ferro rias cidades foi fundamental para o
vindos Europa. 18 A estrutura pré- desenvolvimento econômico da re-
moldada do ferro fundido constitui- gião, principalmente com a cons-
se numa solução bastante facilita- trução da Estrada de Ferro São Pau-
Livro: O sonho e a técnica, de Cacilda Teixeira da Costa
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Notas
Por volta da década de 1970, vá- nalto e o litoral, são valiosos ele-
rias estações foram demolidas para mentos do patrimônio da arquitetu- 1 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit., p.
102.
dar lugar a estações maiores, apa- ra de ferro presente na região. Em- 2 Arlete Monteiro, 1999. Op. cit., p. 36.
gando-se com isso parte da própria bora parte deste patrimônio se en- 3 Cacilda Teixeira da Costa, 2001. Op.
história urbana e do patrimônio cul- contre em constante processo de cit., p. 124.
tural desses municípios. Caso, por deterioração, muitas dessas esta- 4 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit., p.
exemplo, da Estação de São Caeta- ções foram demolidas e/ou substi- 135.
5 Nestor Goulart Reis Filho, 1989.
no do Sul, inaugurada em 1883, que tuídas por outras de maior porte, 6 Cacilda Teixeira da Costa, 2001. Op.
permaneceu funcionando até 1975, nos padrões modernos. Mas as que cit,. pp. 122-123.
num edifício construído no ano de ainda persistem de pé constituem 7 Geraldo Gomes da Silva, 1986. Op. cit,.
1896, em terreno cedido pela famí- remanescentes preciosos da produ- p. 17.
8 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit.,
lia Baraldi, possuindo plataforma de ção arquitetônica ferroviária, que pp. 23-24.
120m e uma passarela treliçada, ainda marca grandemente a paisa- 9 Geraldo Gomes da Silva, 1986. Op. cit.,
além do armazém de carga e quatro gem urbana das cidades, da cultura p. 16.
casas para os empregados,24 típicas e da população do Grande ABC. 10 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit.,
p. 21.
da arquitetura inglesa. Porém essa 11 Idem. Op. cit., p. 22.
estação foi substituída por uma edi- Bibliografia 12 Geraldo Gomes da Silva, 1986. Op.
ficação maior de concreto e vidro, BUSO, Silvio José. A velha estação na vi-
cit., pp. 13-14.
pois melhor representava o progres- 13 Idem. Op. cit.. p. 20.
da de um ferroviário. In: Raízes, São Cae-
14 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit.,
so de São Caetano. A substituição tano do Sul: Fundação Pró-Memória SCS,
p. 21.
da Estação de São Caetano e de ou- Ano VI, n. 11, pp. 42-43, Julho de 1994.
15 Idem. Op. cit., p. 21.
COSTA, Cacilda Teixeira da. O sonho e
tras na mesma linha evidencia, cla- técnica: a arquitetura de ferro no Brasil. 16 Geraldo Gomes da Silva, 1986. Op.
ramente, a falta de discussão sobre São Paulo: Editora da Universidade de cit., p. 15.
patrimônio urbano, história e me- São Paulo, 2001. 17 Idem. Op. cit., p. 14.
KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do 18 Beatriz Mugayar Kühl, 1998.
mória, que se reflete na falta de pre- 19 Carlos Lemos. Alvenaria Burguesa.
ferro e arquitetura ferroviária em São
servação e de valorização do patri- Paulo: reflexões sobre sua preservação. São Paulo,1985, p. 48, apud Cacilda
mônio histórico construído. As esta- São Paulo: Ateliê Editorial, Fapesp, Se- Teixeira da Costa.
ções que ainda sobrevivem, em cretaria de Cultura, 1998. 20 Beatriz Mugayar Kühl, 1998. Op. cit.,
MARTINS, José de Souza. Diário de fim p. 85.
meio ao processo de transformações 21 Geraldo Gomes da Silva. Op. cit., p.
de século: notas sobre o núcleo colonial
urbanas, ficam relegadas ao aban- de São Caetano no século XIX. São Cae- 35.
dono e à constante deterioração. tano do Sul: Fundação Pró-Memória de 22 Cacilda Teixeira da Costa, 2001. Op.
Enfim, essas estações e uma sé- São Caetano do Sul, 1998. cit. p. 124.
MEDICI, Ademir. Migração e urbaniza- 23 Idem. Op. cit. p. 124-125.
rie de estruturas e edificações cons- 24 José de Souza Martins, 1998. Op. cit.,
ção: a presença de São Caetano na re-
truídas em ferro, somadas ao im- gião do ABC. São Paulo - São Caetano p. 37.
portante conjunto formado pelos do Sul: Hucitec, Prefeitura de São Caeta-
planos funiculares de cinco pata- no do Sul, 1993.
(*) André Luis Balsante Caram é arquiteto da
mares construído na Serra do Mar e MONTEIRO, Arlete Assunção. Os imi- Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul
grantes ao longo dos trilhos da The São
que venceu o desnível entre o pla- Paulo Railway. In: Raízes, São Caetano
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