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A arte de desmascarar

A Sociedade do Espetáculo:
Um dos principais libelos contra o capitalismo.
(Fonte original: Especial para a Folha, editoria MAIS!, página 5-4 8/8372, 17 de agosto de 1997.)

Anselm Jappe
Autor de Guy Debord, publicado na Itália e na França e, proximamente, nos EUA e no Brasil. É
colaborador da revista Krisis, dirigida por Robert Kurz. Tradução de Roberta Barni.

“Sociedade do espetáculo”: esta expressão já está em voga, especialmente ao se


falar de televisão. No Brasil, parece se impor mais do que em outros lugares.
Poucos, porém, sabem que, na origem, este era o título de um livro de Guy Debord,
agora traduzido pela primeira vez no Brasil (Ed. Contraponto).
Lançado na França em 1967, A Sociedade do Espetáculo tornou-se inicialmente
livro de culto da ala mais extremista do Maio de 68, em Paris; hoje é um clássico
em muitos países. Em um prefácio de 1982, o autor sustentava com orgulho que o
seu livro não necessitava de nenhuma correção.
O “espetáculo” de que fala Debord vai muito além da onipresença dos meios de
comunicação de massa, que representam somente o seu aspecto mais visível e
mais superficial. Em 221 brilhantes teses de concisão aforística e com múltiplas
alusões ocultas a autores conhecidos, Debord explica que o espetáculo é uma forma
de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são
obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes
falta em sua existência real.
Têm de olhar para outros (estrelas, homens políticos etc.) que vivem em seu lugar.
A realidade torna-se uma imagem, e as imagens tornam-se realidade; a unidade
que falta à vida, recupera-se no plano da imagem. Enquanto a primeira fase do
domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela notória degradação do ser
em ter, no espetáculo chegou-se ao reinado soberano do aparecer. As relações
entre os homens já não são mediadas apenas pelas coisas, como no fetichismo da
mercadoria de que Marx falou, mas diretamente pelas imagens.
Para Debord, no entanto, a imagem não obedece a uma lógica própria, como
pensam, ao contrário, os pós-modernos “a la Baudrillard”, que saquearam
amplamente Debord. A imagem é uma abstração do real, e o seu predomínio, isto
é, o espetáculo, significa um “tornar-se abstrato” do mundo. A abstração
generalizada, porém, é uma conseqüência da sociedade capitalista da mercadoria,
da qual o espetáculo é a forma mais desenvolvida. A mercadoria se baseia no valor
de troca, em que todas as qualidades concretas do objeto são anuladas em favor
da quantidade abstrata de dinheiro que este representa. No espetáculo, a
economia, de meio que era, transformou-se em fim, a que os homens submetem-
se totalmente, e a alienação social alcançou o seu ápice: o espetáculo é uma
verdadeira religião terrena e material, em que o homem se crê governado por algo
que, na realidade, ele próprio criou.
Nessa base, Debord condena toda a sociedade existente, não somente fraquezas
individuais e imperfeições. Em 1967, Debord distinguia dois tipos de espetáculo. O
“difundido” (o tipo ocidental, “democrático”) caracterizava-se pela abundância de
mercadorias e por uma aparente liberdade de escolha. No espetáculo
“concentrado”, ou seja, nos regimes totalitários de toda a espécie, a identificação
mágica com a ideologia no poder era imposta a todos para suprir a falta de um real
desenvolvimento econômico.
Toda a forma de poder espetacular justificava-se denunciando a outra; e nenhum
sistema, além destes dois, devia ser imaginável. Debord, portanto, reconheceu na
URSS, nada menos do que 25 anos antes de seu fim, uma forma subalterna - e
destinada, enfim, a sucumbir - da sociedade da mercadoria. Mas, por um longo
período, enquanto existia um proletariado inquieto, o comunismo de Estado
desempenhou uma função essencial para o espetáculo ocidental: a de assegurar
que os rebeldes potenciais se identificassem com a mera imagem da revolução,
delegando a ação real aos Estados e aos partidos comunistas totalmente cúmplices
do espetáculo ocidental; ou, então, a pressupostos revolucionários muito distantes,
no Terceiro Mundo.
Debord anunciou, no entanto, o aparecimento de um movimento de contestação de
tipo novo: retomando o conteúdo liberatório da arte moderna, teria como programa
a revolução da vida cotidiana, a realização dos desejos oprimidos, a recusa dos
partidos, dos sindicatos e de todas as outras formas de luta alienadas e
hierárquicas, a abolição do dinheiro, do Estado, do trabalho e da mercadoria. Por
isto, Debord sempre considerou o conteúdo profundo de 1968 como uma
confirmação de suas idéias.
Teve, porém, de admitir, em Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo (1988),
que o domínio espetacular conseguiu se aperfeiçoar e vencer todos os seus
adversários; de modo que agora é a sua própria dinâmica, a sua desenfreada
loucura econômica a arrastá-lo em direção à irracionalidade total e à ruína.
Os dois tipos anteriores de espetáculo deram lugar, no mundo todo, a um único
tipo: o “integrado”. Sob a máscara da democracia, este remodelou totalmente a
sociedade segundo a própria imagem, pretendendo que nenhuma alternativa seja
sequer concebível. Nunca o poder foi mais perfeito, pois consegue falsificar tudo,
desde a cerveja, o pensamento e até os próprios revolucionários. Ninguém pode
verificar nada pessoalmente. Ao contrário, temos de confiar em imagens, e, como
se não bastasse, imagens que outros escolheram. Para os donos da sociedade, o
espetáculo integrado é muito mais conveniente do que os velhos totalitarismos. A
América Latina sabe algo a respeito.
Mas Debord (1931-1994) não é apenas um dos poucos autores de inspiração
marxista que hoje podem dar uma contribuição válida para a análise do capitalismo
globalizado e pós-moderno. Ele também fascina por sua vida singular, sem
compromissos e conforme as suas teorias.
A busca da aventura e da vida “verdadeira” esteve na base de sua vida pessoal - da
qual a sua autobiografia Panegírico e os seus filmes falam -, assim como de sua
teoria. Levou uma existência intencionalmente “maldita”, às margens da sociedade,
sem um trabalho reconhecido, sem nenhum contato com as instituições, sem nunca
ter freqüentado uma universidade, concedido uma entrevista ou participado de um
congresso e, no entanto, conseguiu fazer com que fosse ouvido.
Levou adiante a sua batalha contra a sociedade espetacular exclusivamente com os
meios que ele próprio criou para si: em primeiro lugar, com a Internacional
Situacionista, uma pequena organização que existiu entre 1957 e 1972 e que se
originou da decomposição do surrealismo parisiense e de outras experiências
artísticas. Com a revista homônima e novos meios de agitação (quadrinhos,
organização de escândalos), os situacionistas souberam prefigurar, muito melhor
do que a esquerda “política”, as novas linhas de conflito na sociedade “da
abundância”.
Entre outras coisas, criticavam impiedosamente a nova arquitetura e o vazio e o
tédio do pós-guerra. Com poucas intervenções miradas, os situacionistas fizeram
com que idéias subversivas - que, por volta de 1960, eram compartilhadas por um
punhado de pessoas - se tornassem, em 1968 e posteriormente, um fator histórico
de primeira ordem.
Os situacionistas, e particularmente Debord, distinguem-se pelo estilo
inconfundível, e não somente no plano literário. Era o resultado da mistura entre
um conteúdo radical - que remetia, entre outros, aos dadaístas, aos anárquicos e à
vida popular parisiense - e um tom sofisticado e aristocrático, com muitas
referências à cultura clássica francesa. Este estilo, assim como a sua verve
polêmica, mesmo para com todos os supostos contestadores (esquerda oficial,
artistas “engajados” etc.), sua inacessibilidade e a sua transgressividade nas
formas, logo os cercou de um ódio significativo, mas sobretudo de uma aura de
mistério. Que ainda vive, 30 anos depois: com efeito, ainda se publicam textos dos
situacionistas e sobre eles, embora amiúde procurem fazê-los passar
exclusivamente por última “vanguarda cultural”. Na França, ao contrário, só
querem enxergar em Debord o escritor. Ainda hoje não querem perdoá-lo por ter
escrito A Sociedade do Espetáculo.
Fonte: http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540/ajpp.htm

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