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PSICOTERAPIA EXISTENCIAL:
A SISTEMATIZAÇÃO DE IRVIN D. YALOM
Vamos por partes. Por que um enfoque dinâmico? Segundo o autor, o termo
“dinâmico” relaciona-se ao conceito de “força”, conceito esse desenvolvido por Freud em
seu modelo do funcionamento mental. Tal modelo postula a existência, em todos os
indivíduos, de uma série de forças conscientes e inconscientes em conflito, as quais por
sua vez são traduzidas em emoções, desejos, pensamentos e comportamentos.
Grande parte das psicoterapias baseia-se nesse modelo, ou seja, o que
Maddi denominou de modelo baseado no conflito, onde encontramos, por exemplo, a
própria psicanálise, a psicologia analítica, a orgonoterapia, a análise transacional, etc.,
em contraposição aos modelos baseados no desenvolvimento, tendo como exemplo
algumas orientações humanistas tais como a de Rogers, Maslow, etc. A concepção de
Yalom situa-se no primeiro grupo. Entretanto, se dizemos que a estrutura da psicoterapia
existencial é a mesma dos modelos baseados nas forças em conflito, tal não ocorre com
seu conteúdo – e é aí que reside o que há de existencial neste modelo.
Podemos dizer que a psicodinâmica existencial é regida pela seguinte
fórmula:
Consciência da(s)
Preocupação(ões) Angústia Mecanismo(s) de Defesa
Essencial(ais)
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Vale notar que este é o termo empregado por Yalom. Comentaremos sobre isso ao final deste trabalho.
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Termo cunhado por Karl Jaspers.
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agressão, que torna mais tolerável o sentido da própria fragilidade, das próprias
limitações. Assumir posições de poder acalma os temores mais aparentes, ainda que nas
capas mais profundas eles não deixem de existir.
O mais intrigante desses exemplos é que por mais que apontem, em termos
de senso comum, para o sucesso, com certa freqüência indivíduos com esses traços
passam a apresentar uma “neurose de fracasso”, isto é, quando estão próximos de
alcançar determinada meta há muito tempo perseguida, passam a sentir uma disforia
paralisadora que às vezes os impede de triunfar. Podemos pensar, seguindo esta
perspectiva, que se alcançamos nossas metas, nos aproximamos do nosso fim. Se elas
permanecem inacabadas, „precisamos‟ estar vivos para poder terminá-las!
O outro tipo de negação – a crença em um salvador – é menos eficaz que o
primeiro. É também o pólo oposto da crença de que se é especial; esta última é
caracterizada pela diferenciação, enquanto a crença em um salvador baseia-se na fusão.
Sua menor eficácia – e seu caráter mais nitidamente restritivo – reside na dependência
extrema em relação ao outro – seja ele real ou imaginário –, o que implica em uma das
piores perdas a que podemos nos expor: a perda de nós mesmos. A segurança oferecida
pela crença em um salvador cobra um preço bastante elevado para sua manutenção.
Percebemos nos indivíduos neuroticamente dirigidos ao outro, uma enorme dificuldade
em encontrar alternativas para o eventual fracasso de uma relação baseada na fusão. No
máximo propõem-se a buscar uma nova pessoa na qual possam fundir-se, alguém que
dirija afetivamente suas vidas – e às vezes bem mais do que afetivamente.
Encontramos também uma série de traços associados a esse modo defensivo
de existir: desprezo por si mesmos, medo de perder o amor do outro, passividade,
dependência, depressão e, em casos mais extremos, tendências masoquistas.
É importante salientar que estes dois tipos de negação da morte não são
mutuamente exclusivos. Pelo contrário, a maioria das pessoas utiliza ambos
indistintamente, apenas foram apresentados separadamente visando uma maior clareza.
Podemos dizer então que o conflito que emana da idéia da morte dá-se entre a
consciência de vir a não-ser e o desejo de continuar sendo.
Cabe acrescentar que:
mudanças, e para tal é necessário que falemos da vontade, que, como a liberdade,
também está desgastada por querelas filosóficas e teológicas. Alguns autores
desenvolveram trabalhos sobre este tema (May, 1978; Rank, Farber in: Yalom, 1984),
resgatando-o para a psicologia, já que esta tem preferido substituí-lo pelo conceito de
motivação. Entretanto, ambos não são a mesma coisa: “a motivação pode influir, mas
não pode substituir a vontade; independente de quais sejam seus motivos, o indivíduo
pode comportar-se ou não comportar-se de uma determinada maneira” (Yalom, 1984,
353). A vontade é entendida como o “agente responsável” (ibid.) e vai de mãos dadas
com a liberdade, na medida em que não podemos falar de uma vontade que não seja
livre. É o ponto sobre o qual o terapeuta deve trabalhar, mas não se trata da força de
vontade, pois então bastaria a exortação, o incentivo, e isso não é psicoterapia. A
vontade é o que a filósofa Hannah Arendt denominou “órgão do futuro”, pois se ocupa
dos projetos, em contraposição à memória, que seria o “órgão do passado”, que se ocupa
dos objetos. Arendt destaca duas maneiras de entendermos a vontade: como “nossa
faculdade de iniciar espontaneamente uma seqüência no tempo” (in: Yalom,1984, p.
366), o que podemos denominar por desejo, só que o desejo de um agente; e “a
capacidade de decidir entre determinados fins e optar pelo caminho que leve a eles”
(ibid.), o que denominamos escolha. Decidir e não agir não é decidir verdadeiramente;
por outro lado, agir sem desejar não é fazer uso de sua vontade, mas sim uma ação
impulsiva. A ação isolada do desejo está presente, por exemplo, no personagem do
romance “O Estrangeiro”, de Camus, onde vemos Meursault carregado de uma explosiva
impulsividade, destrutiva para os outros e, o que é pior, para si mesmo.
Resta dizer, porém, que nem tudo depende de nossa vontade, nem sequer é
de nossa responsabilidade. Refiro ao que denominamos “coeficiente de adversidade”, ou
seja, o que o mundo nos coloca em termos de dificuldade, impedimento, frustração de
nossos propósitos. Nesse sentido, os indivíduos voltados para o controle e o poder
buscam minimizar, desconsiderar ou mesmo eliminar esse coeficiente, enquanto as
„vítimas inocentes‟, os que deslocam a responsabilidade e aqueles que „perdem o
controle‟ tratam de hipertrofiá-lo.
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É evidente que advogamos pela noção de “condição” humana, ao invés de “natureza” humana. O uso do
termo “desnaturalização” pretende tão somente ressaltar a idéia do poder do homem sobre a natureza, seu
afastamento da mesma, e sua crença de que ela deve ser dominada, subjugada por ele.
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Frankl (1984) destaca que a motivação humana desenvolve-se a partir do princípio do prazer freudiano,
que rege a criança; no adolescente, seu correspondente é o princípio do poder adleriano; e na maturidade
do adulto, o princípio regente seria a vontade de sentido.
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Uma observação se faz necessária no que diz respeito aos resultados de tais
pesquisas. Yalom nos chama a atenção para o fato da carência de sentido da vida
associar-se à psicopatologia, mas não ser a sua causa. Não vamos incorrer em
equívocos já destacados à respeito de relações causais tão freqüentemente
estabelecidas pela “psicologia do senso comum5” e por outros sistemas psicológicos.
Além do mais, é evidente a noção de um indivíduo que responde, que age, enfim, que
existe como ser-no-mundo, desde sempre.
Como observação crítica sobre a obra aqui referida, podemos dizer que o
autor nem sempre faz uso dos termos mais adequados ao referir-se à psicopatologia. Isto
pode ser visto, por exemplo, quando fala em „mecanismos‟ de defesa, termo em total
antagonismo com a posição crítica da orientação existencial. A palavra „mecanismo‟
guarda um traço de algo que „acomete‟ ao indivíduo, algo dissociado do seu ser, e não de
um modo de ser-no-mundo, o que para nós se mostraria mais adequado e coerente com
as categorias de liberdade e responsabilidade pela configuração da própria existência.
Também podemos perceber que na explanação sobre os conflitos básicos
referentes à liberdade e à carência de sentido da vida, estes interpenetram-se tanto –
para não dizer que se confundem! – que quase não se justifica tal diferenciação, ainda
que os escritos de Frankl, por exemplo, estabeleçam melhor essa mesma distinção.
Ainda sobre o tema dos mecanismos de defesa, percebemos sobre o autor
que, em sua tentativa de explicar sobre a especificidade de certos modos defensivos de
ser-no-mundo e sua relação com cada um dos pressupostos básicos da existência, tais
diferenças não se mostram muito claras, as defesas se confundem, o que compromete
um pouco aquilo que vem a ser justamente a sua proposta: uma sistematização da
psicodinâmica existencial. Talvez fosse necessário apontar essas semelhanças,
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(Folk Psychology). Termo muito usado na filosofia da mente, especialmente por Daniel C. Dennett em seu
livro “La Stratégie de L‟Interprète - Le Sens Commun et L‟Univers Quotidien” (A Estratégia da Interpretação -
O Senso Comum e o Universo Cotidiano). Paris: Gallimard, 1993.
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intercessões, não prometendo a falsa ilusão de que por mais que o modo de ser
neurótico faça do homem uma caricatura de si mesmo, onde a previsibilidade, a repetição
e o empobrecimento da vivência relacional são sua tônica, há suficiente variabilidade e
singularidade para encher diversos tratados sobre o tema.
Longe de desqualificar a obra, suas páginas afirmam a própria característica
crítica da psicologia como ciência, enquanto saber precário, sujeito a constantes
reformulações. E de fato, sistematizar é empobrecer aquilo que é objeto de nossa
sistematização; só que é preciso sistematizar!
Seguindo esse raciocínio, consideramos positiva a posição do autor de
ilustrar os elementos teóricos não só com uma grande quantidade de casos clínicos,
como também com pesquisas científicas de outros tipos que não as de estudo de caso,
algo que não ocorre com muita freqüência na psicologia clínica, mas que nos parece uma
medida importante, saudável e que deveria ser mais disseminada em nosso meio,
independente das dificuldades de operacionalização.
Bibliografia
AMATUZZI, M. M. (1989). O Resgate da Fala Autêntica. SP: Papirus.
BINSWANGER, L. (1973). Artículos y Conferencias Escogidas. Madrid: Editorial
Gredos.
FRANKL, V. E. (1984). El Hombre en Busca de Sentido. Barcelona: Herder
FROMM, Erich (1984). El Miedo a la Libertad. México: Paidós.
MAY, Rollo (1978). Eros e Repressão: Amor e Vontade. Petrópolis: Vozes.
YALOM, Irvin D. (1984). Psicoterapia Existencial. Barcelona: Herder.