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UMA LEITURA CRÍTICA DOS CONCEITOS DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

APLICADA AOS TEXTOS DE GUIMARAES ROSA


Sandra Eleine Romais, sandraeleine@hotmail.com, UEPG/ UFPR

1. Introdução

Durante décadas, os estudos da crítica e da teoria literárias centraram-se


na questão do autor ou do texto enquanto objeto de análise e portador do sentido
pretendido por seu autor. Somente a partir da segunda metade do século XX, que
algumas correntes literárias problematizaram a função e o papel do leitor,
destacando, consequentemente, a própria ação requerida no ato da leitura.
Desse modo, tanto para uma sociologia da literatura quanto para a estética
da recepção, sobretudo a teoria do efeito, o indivíduo leitor e o ato da leitura
passaram a ser elementos constituintes e fundamentais para que se ocorra o
fenômeno (fato/acontecimento) literário.
Para a estética da recepção – teoria de base para realização da proposta
analítica deste trabalho – o foco de estudo encontra-se nas relações externas e
internas entre o texto e o leitor. Segundo o teórico Hans Robert Jauss, é
importante considerar as condições históricas e as evidências (que podem ser
comprovadas) que moldam e influenciam na atitude do receptor do texto em
relação o contexto social. Nesse sentido, dentro da teoria da recepção, Jauss
tende para uma linha de estudo que privilegia a reconstrução histórica como
cenário para recepção do leitor. Por outro lado, Wolfgang Iser procura aprofundar
as relações interacionais entre texto e leitor, teorizando a recepção (resposta) do
leitor a partir dos pontos de indeterminação presente nos textos e acionados pelo
ato da leitura.
Cabe ressaltar que a teoria recepcional não anula a importância da criação
literária, ou seja, o papel do autor, pois este está subentendido, centra-se,
apenas, no resultado final, o texto. As escolhas, estratégias de construção textual
e o uso que o autor faz da linguagem revelam-se no próprio texto, bem como os
aspectos culturais, políticos, ideológicos, discursos e intertextos, peças
fundamentais para dinamicidade e estímulo ao leitor para o trabalho interpretativo.
Esse trabalho tem como objetivo identificar alguns espaços vazios
presentes no texto, buscando rastrear os aspectos relacionados à interação texto-
leitor, postulados estabelecidos, sobretudo, por Wolfgang Iser.

2. O papel do leitor e os pontos de indeterminação do texto

Para que ocorra a interpretação é preciso que a interação entre a tríade


autor-obra-leitor seja efetivada no ato da leitura. Porém, o leitor real (ou empírico),
ao se deparar com um texto, tem reações variáveis e dinâmicas, podendo tanto
realizar uma leitura que vai ao encontro do leitor implícito ou recusar-se de entrar
no jogo, fechar o livro e desistir da leitura.
Qualquer interação social, de modo geral, não pode prever nem descrever
exatamente a experiência recebida por seus atuantes. De igual forma, na
literatura é impossível saber qual e como cada leitor produz sentido a partir do
texto. Para Heschel, “Ser humano é ser uma novidade, não uma repetição ou
extensão do passado, é ser uma antecipação das coisas que virão. Ser humano é
ser uma surpresa, não uma conclusão antecipada” (apud LEONE, 2002, p. 19). Essa
afirmação justifica, sob o ponto de vista humanista e filosófico, as inúmeras
possibilidades de interpretação de um texto devido às inúmeras maneiras e
capacidades do ser humano de produzir e relacionar novos elementos de forma
significativa. O ponto comum entre os leitores, enquanto seres humanos em
exercício, é a própria existência, a realidade da vida e do mundo que os cerca.
Este, porém, é apreendido de formas diferentes e não poderia ser representado
de outra forma na escrita literária se não pela própria linguagem (signos
convencionais e arbitrários). Em todo momento, a leitura exige a interpretação por
parte do leitor a fim de suprir ou preencher os espaços vazios contidos no texto.
Tal atividade interpretativa só é possível graças à capacidade imaginativa
do leitor combinada aos demais fatores intrínsecos ao texto. Segundo Iser, o
preenchimento dos vazios se realiza mediante a projeção do leitor. Essas
projeções, porém, não devem ser independentes do texto ou movidas apenas
pelo imaginário ou pelas expectativas do leitor. Os elementos presentes no texto,
como um itinerário a ser seguido, poderá romper com as expectativas do leitor,
fazendo-o (re)construir, substituir ou anular suas representações projetivas
habituais. Segundo Costa Lima (1979, p. 24), “diante do texto ficcional, o leitor é
forçosamente convidado a se comportar como um estrangeiro, que a todo instante
se pergunta se a formação de sentido que está fazendo é adequada à leitura que
está cumprindo”. Os vazios fazem parte da estrutura do texto, assim como as
suas negações – como afirma Iser, e servem para orientar ou comandar a ação
projetiva do leitor. Deste modo, a proposta é valer-se das teorias iserianas e
identificar alguns aspectos relacionados à teoria da recepção no último conto do
livro Sagarana, A Hora e Vez de Augusto Matraga, de João Guimarães Rosa.

2.1. A questão do gênero

Segundo a descrição de Costa Lima (1979, p. 32), o gênero literário é “a


norma que orienta a leitura, mostrando o grau de adequação ou rebeldia da obra
que está sendo lida”. Guimarães Rosa descreve Sagarana como contos ou
noveletas – no caso de A Hora e Vez de Augusto Matraga, a construção é
novelística. Sua narrativa apresenta começo, meio e fim, sendo seu teor do tipo
picaresco (segundo a nomenclatura sugerida por Massaud Moisés). O texto é
completo e independente em si mesmo. Por outro lado, situado numa coletânea
(originalmente denominada Contos, agora Sagarana), pode-se perceber uma
unidade que move todos esses contos, interligando-os sutilmente nos aspectos
que vão desde o cenário tipicamente do sertão mineiro e seus personagens-tipo
(vaqueiro, major, prostituta, curandeiro, padre, esposa), até os temas como: a
vingança; o bem e o mal; a morte e a vida, etc..
Aprofundando a questão, observa-se que o título do livro Sagarana trata-se
de um neologismo híbrido criado pelo próprio autor, que une o radical saga, que
significa narrativas em prosa, histórica ou lendária, e o sufixo rã (rana), que
designa a expressão à semelhança de, ao feito de. Sendo assim, o título sugere
uma composição literária feita à semelhança de uma narrativa lendária ou
histórica, um paradoxo que remete a idéia de uma ficção dentro de uma ficção.
A partir desse ponto de vista, o gênero apresentado em Sagarana
corresponde a uma saga, estilo narrativo que fica entre as características de um
conto e uma novela, prevalecendo sobretudo uma unidade de ação que descreve
um momento mítico.
Sendo assim, pode-se afirmar que os contos apresentados em Sagarana
escapam à definição de gênero enquanto um formato pré-determinado e
caracterizado pela crítica e teoria literária. O não-reconhecimento textual imediato
pelo leitor é a primeira passagem para entrar no jogo da literatura, ou seja, o
estranhamento (conceito formulado a priori pelos formalistas russos) ou
desfamiliarização causado pelo gênero literário (indefinido) apresentado.
Para determinadas comunidade interpretativa, o texto pode não causar
tanto estranhamento se levado em conta as propostas (pós) modernistas do
século XX quanto as manifestações artísticas. Para isto é preciso lembrar que tal
leitor deve ter um percurso de leituras (repertório ou enciclopédia de leitura) que o
permita identificar as características de tradição e ruptura da obra em si e
enquanto produto de um determinado contexto histórico e social.

2.2. A tendência literária

Dentro de um contexto histórico das manifestações literárias no Brasil


(valendo-se da perspectiva de Jauss), a obra de Guimarães Rosa traz o tão
explorado regionalismo de volta ao centro com uma roupagem nova. A tendência
regionalista nos textos rosianos assume um patamar universal, pois atinge a
problemática humana, partindo para as questões míticas e místicas ao invés de
tratar apenas peculiaridades de uma região. Afinal, o sertão é o mundo e cada
personagem caracteriza estereótipos inerentes ao conteúdo folclórico, pitoresco e,
portanto, humano e universal.
Até então, as criações artísticas no Brasil reproduziam uma atitude utópica
de deslumbramento e valorização do exótico, alimentada pelas idéias do
chamado país novo rumo ao progresso e ao desenvolvimento industrial,
tecnológico e cultural. Segundo Candido (1987, p. 141), “[...] a idéia de pátria se
vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraia dela a sua justificativa.
Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a
debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais,
fazendo do exotismo razão de otimismo social”.
A nação brasileira enfrentava sérios problemas políticos e culturais que
refletiam diretamente nas condições materiais para existência da literatura. Não
havia meios de produção, circulação e distribuição do produto escrito (livros,
jornais); faltavam estabelecimentos de divulgação da leitura como bibliotecas,
editoras, livrarias e outros; dificuldades na formação de leitores, o público era
restrito e as diferenças culturais intensificadas pela pluralidade lingüística e níveis
de escolaridade (a maioria da população era analfabeta). Todo esse contexto
afastou o grupo de escritores e demais produtores intelectuais para um círculo
isolado de leituras e debates, enquanto que a massa mergulhava na tradição oral
e de conteúdo folclórico. Os romances regionalistas produzidos nesse embate
focalizaram a realidade local num estado de euforia e descoberta da diversidade
do povo brasileiro, observados, porém sob um prisma romântico e idealizado.
É nesse cenário específico nas décadas de 30 e 40 que a obra de
Guimarães Rosa se faz importante para conscientização do verdadeiro estado de
subdesenvolvimento nacional. Para Candido (1987, p. 162), pode-se dizer da
existência de um super-regionalismo que “corresponde à consciência dilacerada
do subdesenvolvimento e opera uma explosão do tipo denaturalismo que se
baseia na referência a uma visão empírica do mundo”. A obra rosiana, então,
supera o regionalismo praticado anteriormente ampliando para uma
universalidade da região. É uma nova literatura totalmente peculiar e
transfigurada, que merece um tratamento universalizante.

2.3. A linguagem poética

A ruptura mais visível da obra de Guimarães Rosa é o “enfretamento” da


palavra. Sua escrita é totalmente singular, madura e elaborada. A riqueza
vocabular empregada torna mais densa as situações dramáticas da narrativa,
revelando uma construção ficcional abundante em informações lingüísticas,
culturais, míticas, documentais, folclóricas, sociológicas dentre outras. A beleza
literária rosiana está no jogo da ficção em contrapartida da realidade.
O uso da linguagem típica do sertão de Minas Gerais dá autenticidade ao
regionalismo proposto por Rosa, diferenciando sua obra das produções anteriores
a essa fase literária da prosa brasileira que buscava recriar o Brasil partindo da
oposição do centro (Rio de Janeiro) caindo numa idealização um tanto romântica
do que seria a vida rural e o herói pitoresco. No plano metafísico, a linguagem
intensifica a relação do homem com a natureza e sua relação com as instâncias
de sua espiritualidade.
A língua que Guimarães Rosa se utiliza vai além da convencional e
dicionarizada. Ele empresta vocábulos de outras línguas, termos arcaicos,
eruditos, técnicos, brasileirismos, formas populares e recria um espaço
significativo no texto.
No plano da teoria da interação, a utilização de um vocabulário novo e
desconhecido para a maioria dos leitores pode provocar “tanto uma reorganização
das estratégias de comportamento, quanto uma modificação dos ‘planos de
conduta’” (ISER, 1979, p. 85). Em outras palavras, a novidade lingüística pode
desencadear reações (efeitos) ao leitor que culminam na entrada deste no jogo da
ficção ou na desistência da leitura. O aspecto lingüístico, no entanto, pode não ser
um dos aspectos de maior relevância para determinada comunidade
interpretativa, a saber, os leitores que se utilizam da mesma linguagem descrita
no texto, porém, tal combinação meio a ficção torna-se singular experiência.
Nota-se, ainda, que toda linguagem empregada, por se tratar de um texto
ficcional, é pseudo-referencial, ou seja, o texto não se utiliza de um referente
externo, não concebe a realidade como tal, mas a realidade outra que se forma e
existe a partir de sua internalização no próprio texto. Segundo Costa Lima (1979,
p. 34), o texto pseudo-referencial “permite ao leitor uma manipulação nova seja
dos conceitos, seja das experiências, facultando-lhe assim oportunidades de
experiência não previstas nem pela ciência, nem pela pragmática”. Tais
estratégias de linguagem são artifícios e técnica narrativa que chamam a atenção
sobre si mesma, motivando a forma através do desvio da norma gramatical ou
lingüística. A abertura do sentido por meio das combinações textuais proporciona
ao leitor maior consciência estética, de mundo, de referenciais, conceitos e
valores. É o que a estética da recepção chama de rompimento do horizonte de
expectativa. Deste modo, no caso do texto de Guimarães Rosa, a descrição do
mundo não corresponde apenas a um espaço geográfico, mas, evidentemente, a
lugares-comuns (arquétipos), ou seja, imagens presentes no inconsciente
coletivo, como se verifica na análise abaixo.
2.4. Narrativa Ficcional

Justamente por ser um texto altamente complexo, principalmente nos


aspectos lingüísticos e referenciais, A Hora e Vez de Augusto Matraga exige uma
intensa participação do leitor no preenchimento dos espaços vazios. A percepção
dos diferentes níveis de leitura, porém são relativas, uma vez que pressupõe uma
enciclopédia (conhecimento de mundo) ou um repertório de leituras por parte do
leitor. Nesta análise, procurar-se-á mostrar e contrapor duas camadas de
interpretação do texto, uma que diz respeito ao enredo (história) e outra
metafísica. Enquanto o leitor procura identificar-se na obra (com o personagem ou
situações comum), a metaficcionalidade corta a identificação, jogando com o leitor
a partir de um ato de leitura mais consciente.
A interação entre texto-leitor já acontece, por assim dizer, na leitura do
próprio título. A Hora e Vez de Augusto Matraga pressupõe que Augusto Matraga
seja a personagem principal - herói, anti-herói ou herói pitoresco. A idéia de
herói, porém, não se encontra no indivíduo (protagonista da história), mas está
descentralizada uma vez que suas ações remetem a outros fatos de origem extra-
textual.
As hipóteses que advém ao ler hora e vez são inúmeras. Hora e vez de
quê, pergunta-se o leitor. Passando para outro nível de leitura, hora e vez possui
um significado mais profundo do que imaginar o que se segue quando é chegada
a hora e a vez, ou seja, parte para um plano mais espiritual (ou místico, como
propõe os textos rosianos) já que a hora e vez é controlada por uma força maior
ou sobrenatural que não o próprio homem como senhor de seu destino. É uma
retomada à condição humana de estar submetido, consciente ou
inconscientemente, ao grande mistério da vida.
Quanto aos acontecimentos esperados, somente no final da narrativa que o
leitor poderá dizer se sua hipótese foi acertada ou refutada pelo autor/narrador –
uma vez que o desenrolar do enredo corrobora para novas (re)construções ou
tentativas hipotéticas sobre o assunto. Por exemplo, num primeiro momento, na
introdução da novela, o relato de vida de Augusto Matraga pode levar o leitor a
pensar que é a hora e vez deste “pagar” por todos seus erros e maus tratos
(principalmente em evidência dos casos familiares e do seu meio social). Seja
“pagar” com a morte, uma maldição ou castigo. Já num segundo momento,
Augusto Matraga toma consciência e deseja que chegue sua hora e vez. O leitor,
porém, desconhece o que o personagem acredita ser sua hora e vez – talvez ser
perdoado, ter a família e seu dinheiro (dignidade) de volta, ou se vingar por sua
miséria e perdas. No final do texto, a hora e vez parecem ter chegado através da
morte. A morte de Matraga, no entanto, não paga por seus próprios erros (não é
merecedora em si mesma), mas é uma morte sacrificial, ou seja, em função do
outro (ou situação).
As relações possíveis referentes à morte do personagem, da mesma
forma, ascendem para um sentido maior se se levar em conta a morte sacrificial
vista no contexto do cristianismo ou até mesmo a questão da vida enquanto uma
fase de purgatório. Assim, toda ação e enredo se volta para um significado maior,
o da existência e conflito humano sob perspectiva de uma entidade divina.
Na narrativa, a omissão do pensamento (como intenção) do personagem
principal faz com que se amplie o poder sugestivo da obra, o que motiva o
imaginário do leitor na construção de hipóteses, ou ainda, nas palavras de Iser, do
“horizonte de expectativa”. Assim, o autor interage com o leitor por meio do jogo
possível ao texto literário, como as formas de narrativa que alteram a sequência
da história e a ordem dos acontecimentos narrados; aproxima ou afasta o leitor
conforme a voz dada ao narrador, o foco narrativo, a distância e a perspectiva
diante do fato observado; controla a freqüência e a duração que cada ato levará
na narrativa e assim por diante.
Desde as primeiras linhas do texto, o autor-narrador responde o leitor com
enigmas, ou de forma obscura, provocando ainda mais questões. O leitor
questiona ao texto quem é Augusto Matraga, e o texto já inicia afirmando que:
“Matraga não é Matraga, não é nada”. E em seguida revela certas características
(personalidade, caráter e conduta) do personagem que, de certa forma, estão
relacionadas com o nome deste. Matraga, então, é: Augusto Matraga (nome que
origina o título do texto, mas que só é retomado no desfecho final); Esteves (ou
ainda, Augusto Esteves, assim conhecido como o filho do Coronel Afonsão
Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira) e Nhô Augusto (homem de vida
social, assim reconhecido na maior parte da narrativa).
Pode-se perceber que os nomes dos personagens e lugares são motivados
na obra de Guimarães Rosa. Conhecer alguém, por exemplo, pelo nome e local
de nascimento, ou ainda como filho de alguém importante, é típico da cultura
judaica. Relacionando com fatos bíblicos, o Cristo era conhecido como Jesus de
Nazaré, cidade que cresceu e passou toda sua infância e adolescência, ou ainda
como filho de Maria, ou filho de Deus. De igual modo, Matraga é reconhecido
como filho do Coronel Afonsão Esteves e como cidadão das Pindaíbas e do Saco-
da-Embira, local de residência.
O narrador proporciona o encontro direto do leitor com o personagem em
pleno final de festa, num leilão atrás da igreja. É nesse local em que de repente
Matraga aparece. Durante a descrição (física, vestes e comportamento), o leitor
preenche os vazios – uma vez que a descrição não fornece a imagem completa
de Matraga. A partir das características dadas, o leitor possivelmente irá concluir
que Matraga é um homem autoritário, que o povo teme e/ou respeita, e acima de
tudo, é rico (já que ofereceu 50 mil pela prostituta, sendo que o lance anterior teria
sido de 5 mil réis).
Entretanto, a chegada de um mensageiro, Quim Recadeiro, apresenta ao
leitor novos dados. Nhô Augusto tem uma casa, uma esposa e uma filha lhe
aguardando para os últimos arranjos da viagem. Nesse ponto, o leitor é convidado
a inferir com novos questionamentos, hipóteses e reformulações – criando, assim,
um campo de expectativas sobre Dionóra e a filha.
O texto não traz muitas descrições sobre os personagens, porém, certas
atitudes quase que revelam seu interior. Os olhos sérios de Dionóra, seu ar de
cansaço e vontade de chorar, levam o leitor a imaginar uma mulher infeliz e
subjulgada pelo marido. Hipóteses como estas são logo comprovadas pelo
“desdeixo” e “pouco-caso” do marido. Esse desamor culmina para a justificativa
de um novo relacionamento extra-conjugal. Algumas frases e sonhos de Dionóra,
por exemplo, colocam em suspenso se ela irá se render ao novo amor e fugir
levando a filha, ou se continuará a se submeter às vontades do marido.
Valendo-se do significado dos nomes, visto que são motivados, Dionóra é
lembrada como uma das deusas do Olimpo, e ainda, no contexto cristão como
sendo a honra de Deus. Essa característica é acertada quando se trata da
religiosidade que a personagem demonstra através das rezas, da submissão e do
desejo do amor verdadeiro.
Informações no decorrer do texto exigem que o leitor refaça certas
expectativas, pois frustras várias hipóteses, como por exemplo, o poder capital de
Matraga: “Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem
pensar. Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E
com dívidas enorme [...]”(p.326).
A situação, como descreve o narrador – a par dos pensamentos de Dionóra
– mostra a falência prevista de Matraga. De homem rico e poderoso, agora a
imagem que se tem é de um homem praticamente falido e pretensioso, já que não
assume nem se comporta como tal.
Ao falar sobre o pai de Matraga, o narrador oferece uma história do
passado que se inclina a um desvendamento do problema psicológico de
Matraga, o que supostamente poderia ter influenciado na formação de seu caráter
e molda, até hoje, suas atitudes, justificando-as: “Mãe do Nhô Augusto morreu,
com ele ainda pequeno. Teu sogro era um leso, não era p’ra chefe de família [...]
um tio era criminoso [...] a vó queria o menino p’ra padre”(p.328). Isto, no decorrer
do enredo, virá à tona, justificando principalmente a atitude de Matraga após seu
salvamento – dedicando-se a vida de penitência (âmbito religioso). Para os
psicalistas, a explicação dos traumas infantis e familiares de Matraga dá
profundidade existencial (psico e moral) ao personagem.
Na seqüência do enredo, Dionóra surpreende o leitor mudando de caminho
durante a viagem, ao lado de seu amante – Seu Ovídio. Ovídio ainda manda
Quim Recadeiro transmitir a novidade ao patrão Matraga (de que Dionóra e sua
filha irão viver com ele e seus parentes). Tal cena é decisiva para Quim. Ele deixa
de ser apenas um mensageiro e se posiciona duramente do lado de seu patrão
Matraga. Passa praticamente a ser seu escudeiro fiel. Essa transformação
(interior) será futuramente comprovada quando entrega a vida bravamente em
favor (por vingança) de Matraga. É claro que o leitor sequer imagina que esse
homem terá seu momento de honra, coragem e fidelidade, uma vez que o próprio
se declara medroso, mas se prontifica. Essa atitude dá margens às expectativas
do leitor quanto à traição dos demais capangas e qual será o posicionamento final
de Quim Recadeiro.
Antes de correr atrás de Dionóra e seu amante, Nhô Augusto resolve
acertar as contas com o Major Consilva, que inesperadamente prepara-lhe uma
emboscada quase mortal. A hora e vez de Augusto Matraga parece ter chegado –
só lhe resta a morte nesse momento (depois de falir e ainda ser traído). Depois de
tanto apanhar, Nhô Augusto se joga num despenhadeiro. Essa imagem da
decadência transcende a questão física (o corpo rolou, lá em baixo, nas moitas,
se sumindo) e denota a questão moral e social da vida de Matraga. Por outro
lado, a vida espiritual, representada por sua religião, ascende. Nesse
pensamento, a independência do homem e sua submissão às forças maiores (a
conspiração do mundo) tornam-se mais evidentes e percebidas pelo personagem
que passa a viver conforme as indicações muitas vezes visualizadas pela
natureza – a ligação mais coerente e perceptível do homem com o sobrenatural.
Até o narrador inserir novos personagens nessa altura da narrativa, a morte
de Matraga fica obscura. Depois de tanto apanhar, ser marcado a fogo e ferro e
ainda cair de um despenhadeiro, o leitor só tende a imaginar a morte da
personagem ou aguardar um bom milagre. De alguma forma, a narrativa é tão
envolvente que depois da justificativa do contexto familiar e da infância de
Matraga, acrescidas da traição da mulher com um de seus companheiros, faz o
leitor começar a torcer pela vida de Matraga e um possível arrependimento de
suas maldades.
O socorro e a hospitalidade oferecidas pelo casal de pretos, suspendem o
fluxo da narrativa, iniciando um processo de leitura mais lento e gradativo – assim
como a recuperação de Matraga. Uma forte expectativa agora é engendrada pelo
leitor que acompanha a melhora de Nhô Augusto. A história, no entanto, frustra
algumas expectativas do leitor, pois Nhô Augusto volta-se totalmente a uma vida
religiosa, de penitência e arrependimento. Procura fazer o que o padre lhe
aconselha e não voltar a velha vida. A narrativa é como Nhô Augusto no decorrer
dos vários anos que se passa trabalhando e vivendo em comunidade, procurando
sempre ajudar o próximo e se afastar dos maus pensamentos (que o passado lhe
traz), parece se acomodar.
Alguns sinais de natureza mística movem o leitor a formular novas
expectativas e hipóteses sobre os futuros acontecimentos, como: “Reze e
trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que
às vezes custa muito a passar, mas sempre passa” ou ainda,“ cada um tem a sua
hora e a sua vez: você há de ter a sua” (p. 337).
Como as histórias (no sentido de estória, segundo definição de Guimarães
Rosa) são fábulas (mytoi) velam e revelam uma visão global da existência
próxima de um materialismo religioso propenso a fundir numa única realidade, a
Natureza (estendendo para os opostos: bem e mal; divino e demoníaco; o uno e o
múltiplo, e assim por diante). Por esse ângulo, o conflito do eu (herói) com o
mundo, é presentificado por meio da interação do homem com um todo natural-
cultural e onipresente (o sertão é o mundo). Por isso, a narrativa beira o real e o
surreal, assim como as velhas tradições (lendas e mitos), como as narrativas dos
cavaleiros feudais que convivem com o sagrado e o demoníaco, mesclando fatos
reais ao contos lendários.
Continuando o enredo, como o próprio narrador adverte, não é para o leitor
ter dó de Matraga, já que sua condição é inerte, sem tentações, sem riscos. Esse
alerta vai gerar grande expectativa quando o Tião da Thereza, conhecido velho de
Nhô Augusto aparece no povoado e o reconhece, tratando logo de colocar as
notícias em dia. A vida do passado novamente à tona. A visita, porém não levou
Matraga a atitude alguma.
Esses momentos de tentação fazem referência aos momentos de tentação
de Cristo no deserto. Um teste que o fez tornar ainda mais poderoso e consciente
de sua missão na terra.
Algo, porém, está por vir. Matraga sente uma alegria diferente, como se
Deus estivesse voltado a ouvir suas preces. Sentiu o desejo de fumar e justificou
para si mesmo que não era pecado. Essa “decaída” de Matraga dá voz ao
narrador que alertou o leitor a não confiar no personagem porque não tinha, até
então, acesso às grandes tentações. Para intensificar a situação, o bando de
João Bem-Bem aparece no vilarejo.
Se o leitor tiver um olhar cuidadoso sobre os aspectos da natureza
descritos pelo autor-narrador, logo perceberá que esta serve de prenúncio aos
acontecimentos que se sucedem, ou revelam simbolicamente o que acontece no
interior do personagem. A descrição da natureza sob ponto de vista do
personagem traz a identificação do homem com a natureza, ou antropomorfia,
aproximando o olhar do leitor para o personagem. É possível visualizar a relação
natural do homem com a natureza na ficção em contraponto à realidade. Há
descrição dos pássaros em revoada (migrando), Matraga também deixa o
povoado e sai à procura do não-sei-o-que, sua hora e vez se aproximam. É
exatamente esse “não-sei-o-que” que todo ser humano move-se em busca a fim
de compreender a própria existência.
Até a paisagem do caminho de Matraga desperta no leitor a sensação de
um presságio: “com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se
recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam
fogo”(p. 357). Mais uma vez, a idéia dos três coqueiros lembra a pilares de um
templo, ou ainda, por outro lado, o monte da crucificação de Cristo, onde
encontravam-se as três cruzes. Para reforçar ainda mais o que há de vir, o leitor é
lembrado pela voz da preta que o jumento, animal oferecido para acompanhar as
andanças de Matraga, tem forte significado religioso, pois remete a Jesus na
entrada de Jerusalém (cena que antecede a sua morte de cruz); e ainda refere-se
ao bode expiatório.
O desfecho da narrativa gera e rompe as expectativas do leitor, de maneira
a provocar, como efeito estético, uma sensação de estranhamento do leitor ao
mesmo tempo que algumas ações parecem ser previstas pelas pistas dadas pelo
texto. Para finalizar, Matraga reencontra (por obra do destino, ou do acaso) o
bando de João Bem-Bem, que retribui a mesma hospitalidade recebida por
Matraga no vilarejo do Tombador. João Bem-Bem, entretanto, preparasse para
vingar um dos seus companheiros (e bem quisto por Matraga) morto pelas costas.
Para resolver o caso, já que o assassino fugiu, João Bem-Bem nega os apelos do
pai do assino e pede que este escolha um dos dois filhos para que morra no lugar
do irmão. Matraga, porém, intervêm na discussão e aconselha João a aceitar o
pedido de perdão do pai e esquecer o caso. João, com sede de vingança, não
aceita as palavras de Matraga, que em seguida, coloca-se no lugar da família do
assassino, oferecendo-se a morte.
Depois de uma conversa de reluta, uma vez que a palavra e as
provocações de Matraga passam a superar a amizade dos dois, Matraga e João
Bem-Bem lutam e ambos são atingidos. Antes de Matraga entregar-se a morte, o
pai e a família do assassino lhe agradecem. Nesse meio tempo, um parente de
Matraga o reconhece e ouve suas últimas palavras: “Põe a benção na minha
filha... seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala com a Dionóra que está
tudo em ordem!”(p.367). A luta que acontece, envolvendo a questão da morte,
gira em torno da vingança – ação movida e justificada pela lei, e a substituição do
condenado por um inocente, ou seja, uma atitude de graça e sacrifício em amor.
Esse conflito é reflexo de todo discurso cristão quanto ao pecado e a graça da
salvação oferecido (ou conquistado) por meio do sangue de Cristo. Da mesma
forma, o personagem está envolto a esta narrativa primeira, servindo como um
recontar da história (mytoi) da humanidade e reconciliação com o divino (no caso,
Deus). É um final ascensional do personagem.
A leitura que se preza aqui não está além do texto, ou seja, na recriação de
diversos finais que satisfaçam o leitor – aquele que se identifica de certo modo
com a história. O leitor maduro e crítico é aquele que após a primeira leitura é
instigado a outras (da mesma ou similares) que o levaram a uma compreensão
mais abrangente e humanitária, que pensa não apenas nas questões do enredo
mas desvenda mistérios, intertextos, reconhece mitos e planos de interpretação
cada vez mais complexos e interrelacionados.

3. Considerações finais

Diante do exposto, pode-se afirmar que o texto A Hora e Vez de Augusto


Matraga revela muito mais que uma preocupação social, desvendada pelo conflito
psicológico das personagens, pois parte para um plano mítico que discute a
existência do homem e suas relações com o desconhecido. As diversas camadas
de interpretação contribuem para a formação do leitor no sentido de propiciar o
alargamento dos seus horizontes de expectativas (de visão de mundo e outros),
conduzindo-o a rever criticamente a própria realidade. A obra leva a reflexão e
reavaliação dos conceitos e valores pregados pela sociedade, desestruturando,
muitas vezes, as projeções do leitor. A experiência literária confronta o leitor de
modo que este passe a formular novos conceitos e assim, reorganizar seu mundo
interior, alcançando uma função extra-textual. A indeterminação, identificada
nesse trabalho como os espaços vazios no texto, originam a comunicação do
texto-leitor no processo da leitura, introduzindo as múltiplas possibilidades de se
entender o texto como significativo. Em suma, analisar o texto na perspectiva de
uma estética da recepção deve sempre levar em conta que o leitor pode (e
certamente fará) leituras e leituras, essas porém, são “controladas” (teoricamente)
pelo próprio texto, pois é ele, nesse jogo de interação, que dá as cartas por meio
de suas indeterminações.

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A Educação pela noite e
outros ensaios. São Paulo, Ática, 1987, pp.140-162.
COSTA LIMA, C. O leitor demanda (d)a literatura. In: ______ (org.). A Literatura e
o Leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LEONE, A. A imagem divina e o pó da terra: humanismo sagrado e crítica da
modernidade em A.J.Heschel. São Paulo: FAPESP; Humanitas/ FFLCH/USP,
2002.
ISER, W. A interação do Texto com o Leitor. In: COSTA LIMA, C. (org.). A
Literatura e o Leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.
MOISES, Massaud. A Criação Literária: introdução à problemática da Literatura.
3.ed, revista e aumentada. São Paulo: Melhoramentos, 1970.
NASCIMENTO, E.M.F.dos S.; COVIZZI, L.M. João Guimarães Rosa: Homem
plural - Escritor singular. 2.ed. Rio de Janeiro, 2001.
ROSA, Guimarães, 1908-1967. Guimarães Rosa: seleção de textos, notas,
estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Beth Brait. São Paulo: Abril
Educação, 1982. (Literatura comentada).
ROSA, Guimarães. Sagarana. 26. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

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