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Toda a conquista nova de natureza técnica ou espiritual dá e rouba ao mesmo tempo.

Quando Adão fruiu pela primeira vez a árvore do conhecimento, seus olhos se abriram e
ele viu que estava nu. Esta história, que é uma das mais belas da literatura, não perdeu
sua verdade e não a perderá jamais. Ela também vale para a astronomia. O homem abriu
os olhos e viu onde está: em meio de um universo imenso e ilimitado; e ele reconheceu
a sua posição nesse universo. Mas o preço desse reconhecimento é grande. Também
para ele o paraíso está perdido, arrancado debaixo de seus pés e como num pesadelo se
vê no meio do espaço infinito sobre uma bolinha rodopiante – um pequeno inseto sobre
um coco que flutua no Pacífico. Ele tem desejo de gritar, mas de que lhe serviria o
grito? Nenhuma exclamação seria ouvida entre um astro e outro. E se fosse? O
grãozinho de pó em que ele se encontra é tão diminuto que o universo não sofreria o
mínimo abalo se esse pontinho que é ali arrastado por um sol desaparecesse
repentinamente. É como o viajante de automóvel que corre de uma estrada à outra, sem
tomar conhecimento da formiga que a roda do seu carro esmaga na estrada.
A Terra e os filhos da Terra nada são, mas tu, ó Sol? Sol grande, belo e radioso, pai
zeloso dos planetas, astro diurno do nosso mundo, de tal maneira resplandecente que o
olho humano, a 150 milhões de quilômetros de distância, nem sequer suporta olhar-te
um minuto sem cegar – tu? Ah, ele não é nada mais, diz-nos o astrônomo, do que uma
faísca que brilha no oceano universal como um pontinho na fosforescência do mar. Que
diferença faz para nós, quando o nosso navio viaja durante duas noites através da
fosforescência do mar, se há embaixo um infusório mais ou um infusório menos?
Nós não acreditamos, mas ele nos mostra uma daquelas fotografias sobre as quais os
sóis da Via - Láctea estão espalhados como farinha. “Procura teu Sol!” e ficamos
boquiabertos, tentamos articular algo acerca da grandeza do universo. “Grandeza do
universo”? Nesta fotografia podem-se ver 20.000 sóis; 200.000 vezes um milhão estão
reunidos na Via - Láctea. Faça os cálculos de quantas destas fotografias u teria de lhe
mostrar, a fim de que você pudesse ver todos os sóis da Via-Láctea. Quanta madeira não
seria necessária para as estantes em que pudéssemos acomodar o “Atlas solar da Via-
Láctea!”.
Enquanto nos mostramos tão ingênuos a ponto de começar a calcular, o astrônomo
surge com uma chapa. Estamos vendo nela manchas desbotadas como num mata-borrão
velho: são tantas que não podemos contar. “Cada mancha é uma Via-Láctea” ele nos
declara rindo, como o gigante malicioso de um conto de fadas, o próprio Mefistófeles, e
é isso o que ele é, o demônio da ciência moderna. “Quantas há?” Não o sabemos. 100
milhões só nos dois pólos do firmamento que podemos fotografar. A maioria está
coberta pela nossa Via-Láctea. O mínimo pode ser 1.000 milhões. Haverá fim? Não o
sabemos. Ele dá de ombros e nos deixa. Raramente nos sentimos tão perdidos como
nesse momento. Como as crianças em tempo de tempestade, temos vontade de puxar a
coberta sobre nossas cabeças e nos encolher dentro de nós mesmos, sem ver nem ouvir
nada dessa nova imagem do mundo, que nos é apresentada com fotos, fórmulas e
números e, que horror! – estão certas! Entendemos a mão para a fruta do conhecimento
e vejam só – ela é amarga como fel. O sabor do arrependimento está na nossa língua.
Sentimos saudades daqueles dias felizes da infância, quando num cabo de vassoura que
nos servia de cavalinho de pau, galopávamos dentro da sala transformada em um reino e
quando julgávamos que a árvore de Natal, toda guarnecida de nozes prateadas e anjos
de algodão, era a imagem do próprio esplendor. Sentimo-nos sobre as ruínas dessa
imagem do mundo como Jeremias sobre os escombros de Jerusalém. Não temos um lar!
Sentimo-nos enregelados e como todos os seres que sofrem, adormecemos para nos
proteger contra o sofrimento.
Acordamos: é manhã. Invadido pela luz da manhã, o mundo está diante de nós, o
mundo da Terra, que é o mundo do homem. Por cima brilha o Sol, a cujo nascimento os
arcanjos cantam seus hinos. É manhã. Que nos importa a noite? Que nos importa uma
foto? Grande é o Sol pela manhã, e se não o é para o mundo, é para nós que vivemos
debaixo dele na Terra. Como é bela a paisagem em torno de nós! Para além da curva do
horizonte, as montanhas erguem ao longe os seus cumes brancos. Se subimos até eles,
defrontamos grutas, cujas pedras cintilam à luz do Sol, como gelo azul e verde, como se
fossem verdadeiros portais dos palácios subterrâneos dos gnomos das montanhas, que
escondem os seus tesouros dos olhares humanos. Olhamos para cima. No azul do
firmamento, que, segundo a ciência, nem existe, passam as nuvens, sempre renovadas.
Os olhos não se cansam de ver esses burgos celestes, essas flores de fadas, essas ilhas
em fuga, habitadas certamente pela felicidade. Diante de nós, vemos o vale. Nos seus
prados verdes, pompeiam milhares de flores coloridas, cada qual uma estrela, belas
como as estrelas do céu. As abelhas zumbem metendo suas cabecinhas nas corolas e as
borboletas esvoaçam ligeiras como sonhos de luz. A mão não ousa tocá-las, pois é a
beleza sagrada da vida que esvoaça perto de nós. Mais além, na orla escura da floresta,
surge o veado por entre os troncos e se detém um instante com seu porte majestoso,
concede um olhar ao mundo e mergulha no escuro. No fundo está o pântano, que
regurgita de vida. Podemos retirar dele milhões de gotas, e em cada uma encontramos,
como sóis nas chapas fotográficas, milhares de pontos – e cada um desses pontos vive,
completo em si mesmo, vivendo o mundo como nós e sentindo-se o centro do universo.
Que lhe importam as Vias-Lácteas? Ele é ele.
O universo é amplo, talvez infinito. Mas em toda parte ele é a mesma coisa. Pode-se
viajar através das Vias-Lácteas, que as suas leis não são diferentes daquelas que regem
nosso mundo terrestre. Não se desembarcará em nenhum planeta onde se encontrem
pedras mais lindas do que a malacacheta e a ágata, ou onde a água seja mais finamente
cristalizada do que nos diamantes das nossas neves invernais. Não haverá Sol que nos
aqueça mais “maternalmente” do que aquele que brilha sobre o nosso planeta. Será a
nossa Terra um “nada”? Nas profundezas de seus mares ondeiam as medusas invisíveis,
cobertas de roupagens festivas como princesas convidadas para alguma festa. Peixes
com escamas e barbatanas de todas as cores lutam como cavaleiros nos torneios e do
esconderijo espreita o caranguejo em sua armadura como um salteador.
Árvores de corais, semeadas de estrelas-do-mar, erguem-se das profundidades
espectrais. Nossa Terra não é um “nada”! A beleza do universo, a vida de tudo o que é
animado, a alma de todas as coisas, acham-se concretizadas nela
Ao concluir, meu olhar vai um pouco além desta folha de papel. Ali está uma rosa em
seu cálice. O movimento de suas pétalas é o torvelinho de todas as espirais do universo.
A sua beleza pura exprime toda a beleza do cosmos. E diante de mim, na cadeira, está o
meu cão que me olha, esperando que eu deixe a pena para ir passear com ele. Na
profundidade de seus olhos, que eu não canso de contemplar e cujo mistério o homem
não consegue decifrar, está o segredo de todo o universo.
Olhe calmamente para a abóbada celeste nesta noite. Mire as estrelas, a Via-Láctea e
pense, sem se sentir diminuído, nos 1.000 milhões de vias-lácteas que se movimentam
em distâncias inatingíveis. A Terra que você habita pode ser um nada no universo.
Porém ela é também o universo no nada.

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