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Exposição Einstein

O tempo no teatro

Palestra de Sérgio de Carvalho - 08/11/2008

Boa tarde. Quero agradecer o convite para estar aqui também. Me sinto uma espécie de peixe
fora d’água porque estou num ambiente em que o debate é sobre física e vou falar um pouco
sobre um assunto de difícil apreensão, que é discutir um pouco como o tempo se organiza no
teatro. É um assunto muito geral, então vou apresentá-lo de modo meio caótico, seguindo um
movimento meio browniano, que acabei de aprender aqui. Tentarei passear um pouco como o
pólen na água sobre alguns temas.

A questão é difícil na dramaturgia porque se sabe que o teatro acontece no instante presente na
platéia, é um fenômeno que quem perdeu não vai ver de novo, é efêmero, irrepetível e por mais
que se repita a ação não é a mesma. A duração do espetáculo teatral está sujeita a essa relação
presencial dos atores, quer dizer, ela se relaciona com o que os atores estão fazendo no palco uns
em relação aos outros, em relação à luz, à música, ao cenário, ou seja, essa organização dos
elementos da cena define a passagem do tempo e a experiência no teatro, mas isso se dá sempre
como trânsito com o público. Quer dizer, o público interfere no espetáculo teatral, ele dá outra
dimensão da sensação do tempo.

Um tempo atrás eu dirigi um espetáculo de teatro que estreou no Rio de Janeiro e durava três
horas, com intervalo. A apresentação foi muito boa, as pessoas gostaram muito e tal. E aconteceu
um fenômeno muito curioso: durante a longa temporada carioca, a peça aumentou de tamanho. A
maioria dos diretores de teatro corta e deixa a peça mais rápida, mas ela aumentou de tamanho
porque o espetáculo foi melhorando, o público reagia mais e aumentou o tempo objetivo da peça.
E era mais interessante assisti-la mais longa; ela foi ficando maior, chegou a quatro horas,
também porque o intervalo cresceu. E na sua versão maior ela psicologicamente durava menos
para o espectador.

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Mas hoje eu gostaria de discutir um outro aspecto do tempo no teatro, talvez mais complicado,
que é o seguinte: como o tempo do teatro se relaciona com o tempo da ficção teatral? Porque
uma peça que dura duas, três ou quatro horas no palco pode contar uma ficção que dura anos.
Hamlet, por exemplo – a peça lida ou encenada – de Shakespeare, dura umas quatro horas na
íntegra. Só que a ação da peça se passa em mais de dois anos. Hamlet vai para a Inglaterra, volta
– existe uma desconexão entre o tempo do palco e o tempo da ficção. Essa questão do tempo no
teatro, de como se representa o tempo, foi crucial no início do século XX como um problema
para quem faz teatro.

Curiosamente, ao mesmo tempo em que Einstein estava pensando a relatividade e a física


quântica, o teatro estava debatendo muito a questão do tempo. O teatro, no início do século XX,
procurava não um tempo empírico, mas um espaço-tempo diferente, o tempo do sonho, o tempo
da história, tempos diversos do tempo dos indivíduos que se relacionam. Esse debate começou
antes, já na segunda metade do século XIX, curiosamente com o naturalismo.

Foi o movimento naturalista e alguns teóricos do teatro na época do naturalismo que tentaram
criar no teatro um tempo que fosse parecido com o do romance. Qual era a questão importante?
Por exemplo, o [Émile] Zola – romancista francês que também teorizou sobre o teatro – escreveu
isso: “O teatro tem que ter um tempo como o do romance, tem que ter liberdade de ir e vir. Por
que a prisão no presente da história?”. Quando se pensa isso, levanta-se uma questão que parece
técnica, mas eu tenho de tocar nela para discutir esse assunto, que é o seguinte: a forma
dominante do teatro no fim do século XIX e até hoje, de certo modo, é aquela em que você vê o
desenrolar do presente contínuo em busca de um futuro.

A peça começa, você vê duas pessoas se relacionando e se pergunta o que vai acontecer no
futuro imediato delas. Mas a organização da ficção se dá no presente real das figuras que estão
vivendo, na forma do drama. Zola fala: “Por que a gente não pode voltar para o passado, para a
infância, depois para o presente da personagem, como o romance faz, como o cinema faz no
flashback?”... Por quê? Porque no século XIX existia uma forma dominante que se chama
drama. A forma do drama. O drama é um gênero de escrita teatral baseado no diálogo inter-

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subjetivo. Eu falo com você, minha fala te modifica e o que eu acompanho, de certo modo, é a
ação do indivíduo dentro da história.

O drama é a forma literária do teatro que concentrou o olhar sobre relações entre indivíduos. Isso
é novo historicamente, o teatro nem sempre olhou só para os indivíduos. O teatro grego, por
exemplo, olhava para os coros, para a pólis no todo, para heróis míticos do passado creto-
micênico e não para o indivíduo. A noção de indivíduo pressupõe alguém que organiza o seu
destino, alguém que tem autonomia, alguém que pode agir em relação aos outros, então a forma
dramática foi aquela que começou a concentrar a estrutura do olhar em torno de alguém de uma
história que se desenvolve. É o que a gente está acostumado hoje.

A gente vê um filme, vê um namoro começando, se atrapalhando e se resolvendo. Você vê


alguém construindo sua história. Essa prioridade no campo do indivíduo cria uma espécie de
privatização da forma. O que quer dizer isso? Os grandes temas públicos do teatro na era
burguesa foram se concentrando em torno desse campo mais privado. Para dar um exemplo: na
época de Shakespeare, que é muito antes disso, as peças se passavam nos palácios, nas cortes, no
campo de batalha. Na era burguesa, no fim do século XIX, a maioria das peças se concentra na
casa da família, no quarto, na sala, nos arredores da casa e dentro do campo familiar. A
concentração em torno dessa forma que se chama drama, que foi a forma que estabeleceu a
hegemonia do tempo presente na forma do teatro, se deu num longo processo de vários anos.

Vou tentar explicar um pouco isso aqui. O que ela tem de outras conseqüências importantes? Ela
criou um padrão. A unidade do drama é o ato. Acompanha-se um ato de uma personagem se
desenvolvendo durante uma história. Esse ato se dá no tempo presente. Por exemplo, uma
mulher chega em casa, numa peça chamada Casa de bonecas, de [Henrik] Ibsen, está com
presentes de natal, feliz, com dinheiro pela primeira vez, o marido a chama de minha
cotoviazinha, só que você começa a descobrir que a família dela é podre, que ela fez uma dívida
no passado, está sendo pressionada por um agiota e que o marido não a respeita, trata-a como
mulher objeto; essa mulher sofre muito essa pressão a peça toda e no último ato ela rompe com a
família, sai de casa. Foi um escândalo porque a mulher abandonou os filhos e a família. Mas,

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formalmente, apesar do assunto explosivo, é uma peça que segue uma história do herói que
rompe com seu ambiente. Essa mulher realiza o tempo da narrativa. Ibsen, no fim da vida, estava
querendo fazer coisas diferentes. Influenciado pelo naturalismo, ele queria fazer uma peça que
não fosse puro presente, que fosse passado. Como se faz uma peça de teatro que é só passado?

Há um problema formal. Como se faz uma peça em que as personagens são, de certo modo,
fantasmas, não têm vida no presente? O próprio Ibsen escreveu uma peça no fim da vida
chamada John Gabriel Borkman, que era assim: uma mulher chega na casa da amiga, percebe
que a amiga está ali sem sair de casa e no sótão mora um homem que há oito anos não sai de lá,
fica andando. Você começa a ver que é uma peça meio sombria, o homem fica lá marcando o
tempo, como um bicho enjaulado. E você lê aquela peça meio mórbida e vai descobrindo o
passado daquelas pessoas pela conversa, é uma espécie de análise do passado. As personagens já
não têm presente puro. Mas vejam que Ibsen queria, na forma do drama, usar matéria do
passado, pôr no tempo presente, o que deixa a peça muito esquisita. Ela não é chata, essa peça é
estranha só.

Mas vejam que esse problema é típico da era do drama. Antes do drama burguês, antes do século
XVI, não havia esse problema para o teatro porque ele não estava comprometido com o tempo
presente. O que quer dizer isso? Uma peça de Shakespeare, por exemplo, que é um autor que não
tem a ver com isso – é do século XVI, ele escreveu suas peças entre 1592 e 1616, quando morre.
As peças de Shakespeare não voltam para o passado, mas dão saltos temporais, têm uma
descontinuidade de espaço e tempo. O drama tem continuidade de espaço e tempo.

Shakespeare começa a peça Henrique V assim: um ator fala “Senhores, vou contar uma história
da luta entre França e Inglaterra”. O palco está vazio, não tem cenário. Ele diz assim: “Quando
eu falar do Exército de França, vocês verão um homem batendo cascos de cavalo com uma
bandeira. Imaginem todo o Exército francês. Quando vocês virem do lado de cá uma
bandeirinha, imaginem todo o Exército inglês”. Aí, na mesma peça, entra uma personagem
assim: “Lady...”, um nome de uma dama, mas é um homem que faz a dama, um jovem
adolescente disfarçado de mulher... A personagem sai de uma cena dizendo “Meu marido ficará

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dois anos fora”, na cena seguinte entra alguém e fala: “Acabo de chegar do meu exílio de dois
anos”. Você percebe que é uma peça toda descontínua do ponto de vista do espaço e tempo, em
que o que você vê no palco não se parece com o que você vê na ficção.

O princípio do drama foi fazer com que o presente do palco se parecesse com o presente, com a
representação. O princípio do teatro shakespeariano, por exemplo, é o da diferença: o palco não
precisa parecer com o que você está vendo, um homem pode representar uma mulher, um gesto
pode representar um exército, existe uma diferença entre o que você vê e o que imagina. Essa
diferença é importante historicamente porque a gente hoje em dia está acostumado ao drama.
Imaginem como vocês reagiriam estranhamente se vissem na novela das 8 uma personagem
dizer assim, para a câmera: “Vou representar uma mulher”. Vocês achariam esquisito. Na novela
das 8, eu acharia esquisito uma personagem conversar com a namorada e de repente olhar para a
câmera e falar: “É uma louca, mas tem método”. Para isso acontecer, o que a gente tem? O palco
tem que ter uma liberdade, uma diferença em relação ao mundo da ficção.

Na história do teatro, o que a gente percebe? A construção do tempo foi muito ligada à forma de
encenar historicamente. Por que o teatro shakespeariano podia ser tão descontínuo, saltar no
tempo, ter essa liberdade, essa falta de unidade temporal? Porque o palco permitia isso. O palco
elisabetano era um palco herdeiro da Idade Média, em que não se tinha a idéia de sucessividade
do espaço, tinha-se uma idéia ainda de simultaneidade do espaço. Então, no palco elisabetano, o
que se tinha? No alto do palco, uma amurada, as portas do fundo... Eu podia deixar o cenário
dentro da porta do fundo, um cenário pronto lá em cima ao mesmo tempo... Não se usava muito
cenário, na verdade, no caso elisabetano, o público estava perto, sentado às vezes no palco.

Eu podia criar uma cena aqui e imediatamente do outro lado começava outra. Hamlet começa
assim: no alto do castelo, dois guardas no escuro... Eles sugeriam o escuro, não representavam o
escuro de fato, entravam com uma lanterna, isso era feito num teatro às duas horas da tarde, e
eles falavam: “Quem está aí?”, “Não, diga você”, “E aí, o fantasma apareceu?”... E se vêem os
guardas morrendo de medo de um fantasma à meia-noite. Acaba a cena lá em cima, já começa
outra cena aqui embaixo. O palco elisabetano, por exemplo, é herdeiro do teatro medieval, que

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era feito em praças ou perto de igrejas, em que se tinha toda a cenografia pronta. O que tem de
diferente nisso? Isso é o equivalente, em pintura, a vocês verem um quadro que não trata de um
tema só.

Por exemplo, eu conto a vida de Jesus Cristo, mas mostro na mesma imagem ele criança e
adulto. Eu ponho dois tempos simultaneamente na cena. Isso era norma. Antes do período
dramático não havia problema nenhum em pôr no mesmo quadro duas coisas; dentro do teatro,
dois tempos. O drama foi criando ao longo da história uma espécie de unidade do tempo a partir
do indivíduo que se constituía. Isso coincidiu, historicamente, com uma mudança de técnica de
palco.

É muito famosa a história de que no período do Renascimento se descobre a técnica da ilusão da


perspectiva na pintura. As pessoas de teatro ficaram fascinadas. “Vamos usar a perspectiva,
vamos criar uma cena ilusionista.” O que se começou a fazer? Pintar um telão com uma cidade
em perspectiva ou com um canto de um palácio em perspectiva, que dava a impressão de que a
figura está dentro do espaço. Isso gerou uma técnica de palco diferente, o chamado palco
italiano, parecido com o que a gente conhece. Palco italiano é aquele em que se vê de frente a
cena para conseguir perceber a relação de perspectiva.

Então vejam, eu sou um ator já do período renascentista. É diferente do teatro elisabetano: já tem
um telão pintado, com perspectiva, ali, e quero dar a sensação de que estou dentro da cidade, do
que você está vendo. Para isso funcionar, os pintores da época descobriram que a figura tinha
que estar mais ou menos a 6 metros de distância do fundo, tinha que ocupar a área central, em
que você tivesse a relação com o ponto de fuga do desenho. Isso obriga o dramaturgo a começar
a escrever peças em que eu não estou vendo mais uma multidão em cena, eu começo a ver a
rainha na frente do palácio, começo a diminuir o número de personagens, a concentrar dentro do
campo privado a forma.

Enfim, isso começa a configurar um princípio que vai se tornando hegemônico da representação
ficcional. Um princípio em que vou concentrando personagens no campo das relações privadas

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íntimas, paro de ver as relações externas públicas, começo a olhar para a personagem dentro do
íntimo dela. Isso coincide com novos interesses, mas tem a ver também com uma nova técnica
de palco, um novo jeito de encenar o teatro. Os escritores, em vez de fazer a peça pular tanto no
espaço quanto no tempo, começam a concentrar a peça em torno de trajetórias, de
temporalidades acompanháveis.

E o palco começa a raciocinar com o princípio de identificação. O tempo da ficção começa a


ficar parecido com o tempo do palco, o espaço da ficção tem que ser parecido com o espaço do
palco, a cenografia que vejo tem que ser aquela que imagino. É uma mudança no jeito de pensar
a representação. No teatro elisabetano, anterior, não precisava ser de noite para você acreditar
que era noite, você imaginava. Ele dependia de uma colaboração imaginária do público para que
a coisa acontecesse. Estou levantando um aspecto do problema, mas esse aspecto é crucial,
porque tem a ver com a forma de encenar. E isso se tornou um padrão dominante no Ocidente e
no teatro europeu.

Se a gente pegar outros exemplos de teatro do mundo, veremos que essa relação do tempo com a
ficção é muito variada historicamente. Vou dar alguns exemplos rápidos aqui para a gente ver
como o assunto é amplo. Existe um gênero de teatro no Japão chamado kyogen, um gênero do
século XIII, XIV e que existe até hoje, de comédia. É um dos gêneros clássicos do teatro
japonês, junto com o teatro nô. No kyogen as peças são curtas, contam coisas cotidianas, mas na
estrutura de uma parábola. Então a peça kyogen começa assim: uma personagem vem para o
palco e fala: “Moro nessa vizinhança e estou tendo problemas com meu sogro. Na noite passada,
fui até a plantação de arroz e percebi que o curso da água do arroz estava sendo desviado. O que
será que está acontecendo?”. Aí ela vai para o palco, ela mesmo que narrou volta, cria com a
palavra o espaço do arroz, cria rapidamente o espaço da personagem e fala, por exemplo, “Estou
aqui no arrozal, vendo...”, aí acontece uma cena, tal, e ela própria estabelece a passagem do
tempo. Diz assim: “Vou até a cidade agora ver o que está acontecendo lá”. Aí o ator dá duas
voltas e diz: “Chego na cidade...”. O código é muito variado, muito livre, existe uma liberdade
em relação ao uso da ficção, dado por aquela figura que organiza. É uma personagem narradora,
não é um mundo absoluto, é um mundo relativo ao narrador.

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Em várias épocas do teatro se encontram esses temas de relação temporal diferentes. Na maior
parte do teatro mundial daria para dizer que o drama, apesar de tão poderoso, hegemônico, é uma
exceção histórica. Exceção que se tornou a mais forte dominante. Hoje em dia mesmo num filme
americano convencional, mesmo que o cara pule de uma cena na Jamaica para outra em
Katmandu, há uma espécie de unidade dramática ocorrendo ali, atrás desse salto.

Ao longo da história do teatro, a gente não tem tempo para dar muitos outros exemplos, mas o
trato com o tempo é muito variado. Vou dar dois exemplos extremos para encerrar aqui. Teatro
grego: uma coisa grande, mas o pedaço que a gente tem conhecido se dá em torno do período
clássico em Atenas. Atenas vitoriosa, época de Péricles, e nos restaram três grandes
dramaturgos: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. A maioria das peças deles tem temas míticos de um
tempo não mais real... Claro, existem algumas peças, como Os persas, a partir de um tema
histórico recente, mas a maioria das que restaram são de um tempo que não se conhece.

Assim, por exemplo, temos uma peça muito famosa chamada Édipo rei. Édipo conta a história
de um mito de uma criança sobre a qual há uma maldição terrível de que um dia ela vai matar o
pai e dormir com a mãe. A gente sabe que essa criança é largada numa montanha, tem os pés
arrebentados porque estão presos a uma espécie de grampo, mas ela acaba sendo salva e cresce
em outro lugar... O que vai acontecer no mito depois é que, no fundo, ela vai realizar o destino,
pois acabou matando o pai numa encruzilhada e dormindo com a mãe, porque virou governante
de Tebas.

É um mito que, quando se vai procurá-lo, se encontra contado aos pedaços em Homero, Hesíodo,
na poesia lírica etc. Sófocles contou essa história no teatro. O que ele fez? Botou Édipo já adulto,
em Tebas, governando a cidade, aí chega a população e fala para ele: “Ó grande rei Édipo, você
que decifrou o enigma da esfinge, você que tudo vê, nos diga por que a peste seca as tetas das
vacas, seca o campo, faz a cidade toda morrer”. Aí Édipo começa a procurar a causa da peste, ele
chama gente para investigar o caso, chama Tirésias, um cego vidente que cultua Apolo, chama
Creonte... O que ele começa a descobrir? Que a culpa é de um maldito cara que matou o pai no

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passado, começa a descobrir que aquele maldito cara que matou o pai é ele próprio. A peça
termina com ele furando os próprios olhos.

Quando se olha essa peça, na sua estrutura formal, se vê que é toda uma peça que analisa o
passado, mas cada ação do presente tem um tempo muito estranho, porque é um tempo feito do
Édipo irritado com a má nova que vem para ele (quando o cara dá a má notícia, ele percebe que
ele tem a ver com o crime) e cada uma das figuras que vêm, como Creonte, traduz uma visão de
tempo completamente diferente. O cego Tirésias fala do tempo de um deus, Apolo. É um tempo
metafísico, que não tem duração. Creonte fala do tempo da pólis anterior. O pastor que salvou o
bebezinho da morte no penhasco, que salvou Édipo, fala de um tempo específico da história de
Édipo. Então as camadas temporais criam uma percepção completamente estranha do tempo ali.
E quem pressiona o espectador na história é o coro, que é o tempo da pólis, o tempo presente da
cidade. A peça era encenada no meio de um festival de Dionísio e vocês sabem que o festival
muda o tempo cotidiano. É a semana santa grega do deus Dionísio.

Teria muito o que falar, mas estou levantando para vocês verem como cada época, cada
momento do teatro, pensou essa perspectiva de modo muito diferente. Contemporaneamente, nas
últimas décadas, nos anos 1960 e 70 para cá, muito dessa reflexão sobre o tempo no teatro se
deslocou do campo da ficção e passou a se perguntar o que é o tempo do palco. “Vamos
descobrir novos tempos do palco, novos tempos da performance.” Vou contar só os casos de
duas peças muito esquisitas que trabalham com essa questão do tempo, uma dos anos 1960, outra
dos anos 1970. Para vocês verem como o problema é totalmente outro.

Há um grupo chamado Living Theater, que em 1960 montou uma peça assim: o público entrava
num teatrinho em Nova York, tinha quatro ou cinco caras meio hippies sentados no palco
olhando para a platéia. Aí um deles ia lá e pegava uma seringa, se picava com uma droga, botava
um som, sentava e ficavam ouvindo a música. Depois de 20 minutos, não acontecia nada, eles só
estavam ouvindo o som e tendo as sensações. De fato não estava acontecendo nada no palco.
Que relação com o tempo a gente tem nessa peça? Não tinha ficção acontecendo, eles estavam de
fato se drogando e ouvindo música em cena. O problema foi todo deslocado para a platéia. A

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platéia tem que resolver esse problema aqui. É uma cena que está num campo, digamos assim,
performático, da performance, interessa mais o presente do palco e da platéia do que a ficção,
mas é uma cena que trabalha com a perturbação do tempo comum do espectador.

Houve outro diretor de teatro muito importante nos anos 1970, que tenha talvez mais
radicalmente perturbado essa relação, não da ficção, mas do tempo do palco. Ele se chama Bob
Wilson. Ele começou a fazer peças cada vez mais longas, mas a questão não era só essa. Ele
chegou a fazer peças de 24 horas contínuas. O Zé Celso está com uma peça em cartaz de seis
horas. O Bob Wilson fazia uma de 24 horas em que o espectador entrava, podia ficar o tempo
que quisesse. Mas o curioso dessas peças é que, por exemplo, o ator ia atravessar o palco e às
vezes fazia uma travessia que durava duas horas. Talvez fosse muito chato, mas quem viu
percebeu que esse jogo do trabalho do ator com aquelas imagens que estavam sendo projetadas
no palco criava um completo distúrbio perceptivo no espectador, quase uma sensação de perda
de referência espaço-temporal radical. Isso não é exatamente ficção. Ele criou um fenômeno
presente de perturbação do tempo. O tempo era o seu tema.

Fico por aqui, mas esse assunto tão difícil que me pediram para falar um pouco vocês vêem que
a questão é complexa porque parte de um campo conjugado que envolve espetáculo, o que esse
espetáculo projeta, do ponto de vista de ficção, de imaginação, o tempo do público, o tempo
histórico no qual se insere isso e tudo vem conjugadamente. E cada época do teatro tentou
reinventar o teatro a partir da reinvenção dessas relações que se dão sempre no nível do espaço e
do tempo conjugadamente. Fico por aqui, obrigado pela atenção.

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Perguntas (feitas após as duas palestras do dia 08/11/2008, a de Silvio Chibeni e a Sérgio de
Carvalho)

Platéia − Eu queria fazer a pergunta para o professor Chibeni. Visitando a exposição, eu vi uma
observação de que a vinda do Einstein ao Brasil causou certa perplexidade pelo fato de que os
físicos e cientistas da época não estavam muito interessados porque ele era muito teórico e
também que, não sei se os físicos, os jornalistas, digamos, estavam procurando fatos mais
ligados à aplicabilidade das coisas. Isso se liga ao positivismo lógico. Eu gostaria que o
professor Chibeni comentasse isso.

Silvio Chibeni: A pergunta tem um contexto interessante. Na época, a fama de Einstein


dependia muito da relatividade geral, que é uma teoria extremamente distante de qualquer
aplicação prática até hoje. Mas foi a comprovação do desvio da luz pelo Sol, constatada no
eclipse em 1919, que realmente deu notoriedade a Einstein. Todo mundo que pensava em
Einstein pensava nesse caso, mas era um fenômeno muito bizarro, uma coisa que não tinha muito
a ver com a vida prática.

As coisas que Einstein estava fazendo que teriam repercussão tremenda na vida prática eram no
âmbito da física quântica e as pessoas não tinham reconhecido isso naquela época. De forma que
me parece que essa seja a explicação mais interessante do que aconteceu em termos de reação do
público com relação à presença dele aqui. Eu não sei se esse fator que você menciona tem
alguma coisa a ver. É claro que se vivia também o auge do positivismo; mas, por outro lado, a
teoria de Einstein que tem mais afinidade com o positivismo é a teoria restrita, que já estava
meio fora de cena, estavam pensando em outras coisas naquele momento. Não sei, vou pensar no
assunto. Obrigado.

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Platéia − Boa tarde. Parabéns pelas explanações que foram muito boas. Professor Sérgio, o
senhor, no início da sua fala, estava comentando que teve uma peça que aumentou a duração
por conta das interações da platéia e, embora tenha sido mais longa, deu a sensação de que foi
mais curta. Não sei se você já ouviu falar de [Mihaly] Csikszentmihalyi, que fala sobre a teoria
do fluxo.

Esse autor basicamente diz que, em algumas experiências, quando a gente está completamente
envolvido com relação à dificuldade da ação, com toda nossa capacidade envolvida nessa ação,
experimentamos um fluxo que, entre outros fatores, seria a questão do prazer e da felicidade. A
gente perde um pouco a noção de tempo, às vezes uma experiência que durou segundos, você
não sabe se durou meia hora ou vice-versa.

Então, de alguma maneira, está relacionada a essa questão do envolvimento. Parece-me que a
noção de tempo humana tem essa peculiaridade: dependendo do tipo de envolvimento, distorce
um pouco a noção de tempo. Eu não sei se dentro dessa linha do teatro tem mais algum autor
que fala sobre esse tipo de interação ou se apenas o próprio Csikszentmihalyi abordou esse
assunto...

Platéia − Durante a sua fala, eu também fiquei pensando nisso que ele falou e também na
relação disso com a questão da relatividade de Einstein, que eu ainda não entendo bem. Então
acho que o Silvio vai ter que ajudar. No entanto, a gente tem uma percepção diferente do tempo:
às vezes a gente pode ter a sensação de que não existe um tempo absoluto, às vezes passa
rápido, às vezes passa devagar. O teatro mexe com isso, como você mostrou, de jeitos muito
diferentes e, pelo o que eu entendo, do ponto de vista da física se entende que existe um tempo
que é de um jeito, mas a observação é que torna as coisas relativas. É isso? Aí vocês dois
completam.

Sérgio de Carvalho − É difícil isso, é um assunto que é muito intuitivo do modo como se trata
normalmente no teatro. Porque se discute muito, todo o artista de teatro discute a percepção do
tempo, como o público percebe a passagem do tempo. Eu estou vendo os meus atores

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trabalhando e eu sei que, se a cena estiver ruim, coletivamente a platéia vai olhar no relógio, se
contorcer, se ajeitar. A sensação da passagem do tempo no teatro é muito coletiva, mais do que
no cinema e em outras artes.

Quem está ao seu lado interfere na sua relação com o tempo. A gente costuma discutir muito
uma questão importante que é o ritmo. O ritmo é um conceito que se usa muito, até de modo
impreciso. As pessoas falam: “Ai, tem falta de ritmo”, mas isso é uma fórmula, às vezes falsa.
Mas ela traduz uma questão do ritmo no teatro, que às vezes sugere percepções variadas, com
muitas condicionantes. Quer dizer, não é uma repetição qualquer que estabelece o ritmo. Às
vezes uma cena acelerada, seguida de outra cena acelerada, depois de uma terceira cena
acelerada cria uma monotonia rítmica. Percebe-se que é preciso parar. Por isso é que às vezes
uma longa pausa mobiliza dependendo do caso.

Então, essa questão se liga a muitos fatores que eu não sei teorizar, mas parte da arte do diretor e
do bom teatro é lidar com isso. Acho que no cinema também, alguns teóricos importantes do
cinema e mesmo cineastas sempre falam do cinema como a arte de esculpir o tempo, de pensar o
tempo. Tem um livro de [Andrei] Tarkovsky, que é um diretor russo que trabalhou muito no
limite do tempo. Eu não conheço esse autor que você está citando, mas no nosso caso o debate é
sempre ligado à percepção, se envolve subjetividade, se envolve psicologia, se envolve
percepção, que é coletiva, eu acho que esse é o dado diferente.

Eu já vi a mesma peça brilhantemente encenada ser feita para dois públicos de classes diferentes
e a reação pode mudar muito, a relação com o tempo pode mudar conforme o contexto. Tem
muitos fatores envolvidos, mas são fatores sempre decisivos e não tem regra objetiva para isso.
No teatro clássico você ainda tinha algum campo de objetividade. Por exemplo, se você for
trabalhar com um ator antigo que está há mais de 40 anos na profissão e faz essas comédias
comerciais que tinha lá na Brigadeiro, esses grandes sucessos, o cara costuma achar que tem
regra mais definida. Por quê? Porque tem gênero mais definido, tem efeitos, tem truques que dão
certo para a platéia. Então, você vai ouvir de um ator antigo de comédia: “Comédia tem de ser:
alto, forte e brilhante”.

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Isso é um padrão, o ritmo tem que estar lá em cima, você vê que eles martelam o texto
aceleradamente e de repente criam quebras nisso. São fórmulas. É muito comum você ver nesses
atores o cara, por exemplo, fingir que está rindo fora do esquadro, fingir que esqueceu o texto
para criar uma cumplicidade com a platéia. É uma manha rítmica, ele rompe o tempo da ficção,
finge que se distraiu, ri com seu colega e cria uma cumplicidade com a platéia, mas você vê que
ele deslocou o tempo da ficção para o tempo do presente. Agora, num teatro mais experimental,
mais inventivo, essas fórmulas são mais abertas e mais tensionadas. Você não reproduz o acerto,
você inventa um novo.

Platéia − Boa tarde a todos. Eu vou fazer a mesma pergunta que aquela moça fez [pergunta
anterior]. Existe um tempo absoluto no Universo independente das pessoas? Sei lá, quando a
Terra estava se formando, a gente diz que faz bilhões de anos que o Universo existe. Se esse
tempo realmente existe independentemente da gente ou esse tempo faz parte do nosso
imaginário, da nossa psicologia. Eu queria entender se existe um tempo no Universo. A
pergunta é para o Silvio.

Silvio Chibeni − Esse é um ponto importante porque quando falam: “Ah bom! O tempo é
relativo segundo a teoria de Einstein”. As pessoas confundem essa afirmação, que de fato
decorre da teoria, com a de que o tempo é subjetivo, que depende da nossa percepção pessoal da
passagem do tempo. A teoria da relatividade não tem nada a ver com essa subjetividade que nós
sentimos enquanto seres concretos. Por exemplo, se uma palestra é chata parece que ela não
acaba nunca, se ela é interessante parece que passa mais rápido. Esse é um fenômeno
importantíssimo, por exemplo, na área que o Sérgio trabalha. O teatro lida com essas emoções,
com as formas pelas quais a gente reage à sucessão dos fenômenos em uma peça de teatro ou em
qualquer outro lugar.

Mas isso não é conseqüência da relatividade, quer dizer, a relatividade do tempo tem outra
intenção, não é isso. São aspectos objetivos do mundo, você põe um relógio em um foguete que

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está em movimento, ele vai andar mais devagar. Isso você pode constatar de forma experimental,
não é porque alguém achou que ele ia andar mais devagar que ele andou mais devagar. Então a
partir dessa teoria a gente tem certa base para dizer, se a teoria estiver correta, que o tempo não é
linear, ele não flui, como pensava Newton, de forma absoluta, ele depende de como os eventos
estão transcorrendo, mas não a psique humana. Isso é outra coisa.

Sim, o tempo é uma coisa importante na física, você não consegue fazer física sem o tempo.
Agora, a forma de você tratar teoricamente o tempo é que mudou com a relatividade. Antes ele
tinha um caráter linear, ele passava, como dizia Newton, de forma uniforme independentemente
de como as coisas estão acontecendo no mundo, ele chamava isso de tempo absoluto. Na
relatividade não tem mais esse tempo absoluto, a taxa de acontecimento das coisas depende do
estado de movimento dos objetos. Continuar existindo, do ponto de vista da teoria da física. A
presença ou não de seres humanos com sentimento não faz nenhuma diferença.

Platéia − Boa tarde. Eu gostaria de perguntar aos dois professores se a percepção do tempo e
do espaço como grandezas infinitas demonstraria a nossa limitação e a existência de Deus, ou
se simplesmente é um fato como outro qualquer (risos).

Silvio Chibeni − Você disse que a percepção do tempo seria como se ele fosse infinito?
Grandezas infinitas. Essa suposição de que tanto o tempo quanto o espaço são infinitos não está
respaldada na nossa experiência. A nossa experiência é sempre de algo finito, mesmo porque nós
também somos finitos, então isso depende de uma teoria que você tenha do mundo. Na teoria
atual, por exemplo, o espaço, segundo certas interpretações da teoria da relatividade geral, não é
infinito, ele é finito.

Agora, na teoria newtoniana o espaço era infinito e a mesma coisa vale para o tempo, que teria
começado no Big Bang, aí a gente está em um plano teórico, não há nenhuma possibilidade
experimental de resolver essas coisas nem uma conexão clara com a nossa percepção das coisas.
Nós podemos ter uma visão de mundo que tenha finitude ou não, tanto no seu aspecto espacial

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como temporal, mas isso não é preto no branco, não são coisas que se podem decidir de forma
definitiva. É até mais interessante que seja assim, a gente tem mais possibilidade de imaginar as
coisas e explorar alternativas.

Sérgio de Carvalho − Eu não sei mesmo responder a isso. Lembrei de uma frase de [Bertolt]
Brecht, que é um autor materialista de quem eu gosto muito, que está em um texto chamado
Círculo de giz caucasiano, que tive a oportunidade de dirigir. Tem um verso do poema que é
assim: “Muito tempo não é sempre”. É um pouco como Brecht entende as coisas.

Platéia − Eu queria perguntar para os dois debatedores se vocês vêem conexão entre as
rupturas que aconteceram no início do século XX, nessas concepções de tempo e de espaço no
teatro e na física. O professor Sérgio de Carvalho falou da questão da perspectiva e o quanto
ela foi importante para o drama no início do século XX, o rompimento com a questão da
perspectiva. Enfim, vocês enxergam relações entre essas rupturas que acontecem não só no
teatro e na física, mas também nas artes plásticas etc. e que tipo de relações vocês imaginam ou
percebem entre elas?

Sérgio de Carvalho − Eu não tenho conhecimento exato do quanto o debate sobre a física, que
estava em jogo no exato momento em que as vanguardas estavam debatendo, se infiltra no
campo do teatro. Eu sei que ele se infiltra de modo muito forte, antes de ser por via da física, por
via da psicanálise. Porque como a ênfase no debate sobre o tempo nas artes acabou sendo muito
ligado à subjetividade, você vê que não é só a subjetividade, mas tem dois motivos do que a
gente chama de epicização do drama, que ocorre no início do século XX.

Epicização quer dizer o quê? É quando você assume um caráter narrativo da fórmula ou quando
você quer representar para além da subjetividade num campo histórico. Por exemplo, se você
quer fazer uma peça sobre uma greve operária que pára metade dos Estados Unidos, não dá para
ser no campo privado só da família, ela tem que mostrar outras coisas. Então foi por uma razão
extra-subjetiva, como essa, ou foi por uma razão inspirada na psicanálise, intra-subjetiva? Como

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mostrar o que está acontecendo dentro da psique confusa de uma pessoa que está em
desagregação, ou como mostrar o tempo do sonho, ou a sensação da morte no teatro? Como o
palco objetiva isso que é tão interno? Ele vai ter que quebrar o espaço-tempo. Não vai usar o
cenário normal, ele vai ter que reinventar isso. Eu sinto que, por razões ligadas aos movimentos
sociais e por outro lado à psicanálise, isso foi muito forte.

No entanto, a maioria dos diretores no período era muito animada com a ciência. Brecht mesmo,
que eu acabei de citar, e tantos outros tinham uma confiança produtiva na ciência. A ciência
clarifica, ajuda. Existe um sentimento muito favorável em relação ao aprendizado científico.
Brecht mesmo quis fazer um teatro para crianças da era científica. Ele tem uma imagem
interessante, que dá para comparar um pouco com a idéia de Einstein, em que uma personagem
dele diz: “Tem dois tipos de teatro: um teatro é tipo carrossel. Você sobe no cavalinho e tem a
sensação que está andando, mas no fundo você está dando voltas pelo mesmo lugar. Mas tem o
outro teatro (esse o mais científico) que é tipo planetário. Você fica lá e tem a sensação de que
está parado, você não está fazendo nada, não tem grandes emoções, mas você está tentando
entender o movimento das figuras e percebe que esse movimento não é regular, tem alguma
irregularidade ainda que haja leis para ele”.

Então você vê que no caso dele e de outros que aplicaram a ciência eles tentaram descobrir leis
do movimento das pessoas na vida social, na vida psicológica, mas entendendo que esses
movimentos não são lineares, fáceis, previsíveis, tem algo de indeterminado neles. Você vê que
esse princípio da indeterminação chega ao debate da dramaturgia do período. Portanto existe um
fascínio e, em alguns casos como o de Brecht, um interesse pelo conhecimento da vida.

Silvio Chibeni − Eu quero concordar com o Sérgio que no início disse: “Olha, não é muito
trivial a gente ver a conexão entre rupturas num campo repercutirem de forma muito expressiva
em outro”. É claro que, como um empreendimento intelectual humano e artístico, é tudo
interligado em um certo nível, tem repercussões, especialmente no caso de aspectos tão
profundos da nossa compreensão do mundo como esses envolvidos tanto na relatividade como
na física quântica. Mas existe certa autonomia das áreas, elas têm uma dinâmica própria e só

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gradualmente é que as pessoas vão assimilando as transformações que ocorrem nas áreas que não
são aquelas, as áreas conexas que estão próximas.

No caso da física em particular, a sua forma de colocar é correta. Trata-se de grandes rupturas na
nossa compreensão do espaço e do tempo, da natureza da matéria, da luz e assim por diante. Mas
isso, voltando a uma pergunta anterior, na época não era muito percebido. Isso demora. Hoje em
dia, olhando para cem anos atrás, a gente percebe melhor a envergadura dessas alterações. Na
época as pessoas achavam aquilo estranho e só se preocupavam com talvez alguma coisa que
chamasse mais atenção, mas os atores do momento, com raras exceções, tinham menos
compreensão daquilo que estava acontecendo, sempre com a esperança de que alguma coisa
pudesse ainda ser recuperada da visão clássica.

Platéia − Eu queria fazer uma pergunta para o professor Silvio. Na sua palestra eu fiquei
tentando entender um pouco mais, porque são conceitos que são novos para quem não é físico.
As idéias novas que Einstein trouxe para a mecânica quântica, pelo o que eu entendi, tinham
muita resistência das pessoas. Para mim, que não sou física, ouvir sobre isso parece uma coisa
muito técnica, a gente meio que tropeça na parte técnica da física. Mas no fundo tem muito a ver
com uma visão de mundo, de como é o mundo, se tem coisas contínuas, se tem coisas em
pacotinhos, como é que funciona? Então, é uma coisa que entra muito em uma percepção
filosófica além das fórmulas físicas. Eu queria saber se você pode comentar isso mais um pouco
e, junto com isso, a questão do princípio da localidade do Einstein que tem que ser violada pela
mecânica quântica. Eu não entendo muito bem o que é o principio da localidade, por que tem
que ser violado e por que Einstein odiaria isso?

Silvio Chibeni − Ele tem vários textos, especialmente os não publicados, como cartas, em que
enfatiza muito esse ponto de que a física seria totalmente subvertida se a gente tivesse esses
processos de influência instantânea entre partes remotas do mundo, seria uma decorrência da
violação da localidade. Ele achava esse tipo de coisa insuportável na física. E foi em nome da
preservação da localidade que ele bancou a tese da incompletude da mecânica quântica; só que,

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como eu tentei indicar brevemente, quando se tentou completar a teoria quântica obedecendo
uma das metas dele, se encontrou de novo o problema da não-localidade.

De forma que hoje em dia a gente tem razões teóricas experimentais bastante fortes para,
contrariamente do que o Einstein queria, ter que aceitar, conviver ou refazer a física de uma
maneira em que partes distantes do mundo possam se influenciar de forma instantânea. Isso
realmente é uma coisa que começa a ser explorada agora e as pessoas ainda estão meio em
estado de choque: “Bom, mas o que fazer agora diante dessa situação?”. Nós não temos um
arcabouço teórico e filosófico inteiramente claro para lidar com esse tipo de característica dentro
da física. Podia voltar ao primeiro ponto que você colocou?

Platéia − Era a questão de como as idéias da física quântica no fundo são difíceis de aceitar
porque mudam a percepção do mundo de maneira instintiva e filosófica.

Silvio Chibeni − O principal problema era o conflito com as teorias da física clássica. Por
exemplo, para dizer que a luz não se comporta de forma contínua, pelo menos no caso do efeito
fotoelétrico, você precisa pressupor que a energia luminosa que chega vem em pedacinhos, em
bloquinhos. Isso era contra a teoria eletromagnética de [James Clerk] Maxwell, que tinha um
grande sucesso, as pessoas achavam que aquilo era a verdade definitiva sobre a luz. Então, a
percepção de que aquilo ali é inaceitável vinha principalmente dos físicos. Porque, como você
disse, isso era um aspecto meio esotérico com a coisa técnica, distante do dia-a-dia das pessoas.
Assim foram os próprios físicos, os colegas do Einstein, que mais reagiram contra a introdução
dos conceitos quânticos. Antes de Einstein, isso eu não mencionei por falta de tempo, aquela
mesma equação, E = hf, já tinha sido introduzida por [Max] Planck em 1900. Isso se costuma
dizer que é o início da física quântica.

Mas quando Planck introduziu isso para explicar não o processo de absorção de luz, mas sim o
processo de emissão de luz, outro problema que tinha na física, ele achou que aquilo ali era
totalmente desconectado com a realidade. Ele falou: “Eu estou usando essa equação, mas as

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coisas não são bem assim. Isso aqui é um truque matemático, é um ato de desespero”. E ele
continuou por mais de dez anos totalmente cético com relação à quantização na física.

Mesmo na década de 1920, quando tinha já outras razões, por exemplo, a explicação do efeito
Compton, que também recorria a essa hipótese do quantum de luz. As pessoas já estavam
ganhando Prêmio Nobel por isso, mas o grosso da comunidade dos físicos falava que aquilo não
podia ser assim. Einstein era um dos poucos que realmente acreditavam e levaram adiante a idéia
de que a luz tinha um caráter granular, assim como a matéria. Então mesmo na comunidade dos
cientistas havia uma grande relutância porque tem uma ruptura grande, como ele disse na outra
pergunta. Agora, eu acho que do ponto de vista da percepção geral do público a relatividade
mexe com coisas um pouco mais próximas do que as pessoas pensam. Como é que pode ter um
Universo que não tem fim, mas é finito? Se você vai em linha reta, você nunca chega, não acaba,
mas o Universo é finito. O que é isso? Isso mexe mais com a gente, né?

Platéia – Gostaria de fazer um comentário: o professor Silvio não falou, é claro, porque não há
tempo, mas hoje em dia existem teorias que juntam tudo, o desenvolvimento da mecânica
quântica, relatividade. O desenvolvimento da ciência é contínuo, não existe a mecânica
quântica, a relatividade, o movimento browniano, a mecânica estatística. Atualmente, nos
estudos da física, você trabalha com todas essas teorias, todas essas idéias conjuntamente para
explicar vários fenômenos.

Física é uma ciência experimental, então você não pode impor o modelo se você não puder
comprová-lo, se você não tem experimento. Tanto é que as idéias de Einstein só foram realmente
confirmadas quando houve a comprovação do desvio da luz naquele experimento. Hoje a gente
também está numa fase, tem o acelerador do Cern [Centro Europeu de Pesquisas Nucleares],
que várias pessoas devem ter escutado falar, eu acho que não em quebra de paradigmas, talvez
não tanto como foi na época de Einstein, que foi realmente uma quebra de paradigma entre a
teoria da relatividade, a mecânica quântica e a mecânica clássica e o eletromagnetismo de

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Maxwell, mas existem outros modelos, como, por exemplo, dimensões extras, teoria de cordas,
que talvez também serão novas visões, serão jeitos diferentes de você encarar o mundo.

Eu acho que a ciência não tem o papel de provar se Deus existe, não é essa questão, ela quer
entender o mundo. Se Deus existe ou não, se existe um ser supremo, isso não é um objeto da
ciência. Então se a teoria da relatividade vai provar que Deus existe ou o LHC [Large Hadron
Collider], isso é muito complicado e objeto de muita discussão. E o tempo absoluto que o rapaz
perguntou é o que o professor Silvio disse e na palestra passada foi discutido quando o
professor falou sobre aquele objeto que cai do mastro de um navio em movimento. Como é vista
essa queda do navio e de fora do navio?

Então é isso a relatividade que está dentro de tudo. Tem muitos aspectos, muita matemática por
trás, é complicado, mas eu acho que em termos muito gerais eu espero que o professor diga se é
certo ou não a minha visão particular sobre esse assunto. Eu acho que é isso. O importante é o
detalhe. A ciência serve para entendermos o mundo, nunca pensem que a ciência vai dizer se
Deus existe ou não. Ela pode, até, dizer que existe uma ordem no Universo que é bela, que é
perfeita, mas a ciência nunca vai chegar e falar: “Deus existe! Está comprovado”. Porque não
se pode comprovar a existência de Deus.

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