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O trivial miúdo (e graúdo) do mundo
20 de abril de 2011 | 0h 00

Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo

Terremotos recorrentes (parece castigo..., diz uma amiga...) no Japão; mudanças políticas
radicais, com direito a confronto político em forma de tempestade de pedra no chamado
mundo árabe; e transgressão inclassificável no Brasil. Neste nosso país, onde os juristas
de bela tradição romana, aperfeiçoada na Faculdade de Direito de Coimbra que o
Marquês de Pombal queria destruir em nome das luzes, vivemos um gesto que é a um só
tempo crime, loucura, covardia, vingança e celebrizarão patológica. Ou seja: é um ato
irredutível que fala de múltiplas carências coletivas, mas que se realizou, como tudo o
que é humano, individualmente. Num outro pedaço do mundo, a terra e os sistemas
políticos se sacodem; na nossa casa, estremecemos todos porque não somos capazes de
nos pensar também como ingratos, covardes, canalhas e loucos varridos. Se Deus existe e,
mais que isso, é brasileiro, o que significa esse massacre insano de crianças num lugar
sagrado: uma escola? Debaixo de Deus, pensamos que uma lei vai conter esses gestos
insanos.

Ainda vivemos a plenitude daqueles etnocentrismos que garantem um país tropical, sem
preconceitos, repleto de santos, abençoado por Deus e bonito por natureza. O insólito
amplamente divulgado e batido obriga a pensar seriamente nos problemas a serem
corrigidos, remediados e evitados. A autovisão otimista não exclui o olhar realista, ela
apenas impede o risco da recaída num otimismo fora de ordem. De qualquer modo,
atordoa testemunhar essa celebrização por meio de um ato inclassificável numa
sociedade na qual a celebrização que aristocratiza e permite tratamento diferenciado é
moeda corrente e a malandragem, o "eu não sabia" e o crime constam como um bom
método para obtê-la. É preciso repensar - e a mídia tem o dever de dar o exemplo - o
modo de lidar com essas fraturas que surgem a contragosto num Brasil mais igualitário e
livre, mas sem os seus remédios usuais deste estilo de vida: o bom senso e a
internalização de limites por meio de um sistema educacional primário eficiente e
universal.

****

"Somos afinal "mudernos", temos um pouquito de tudo!" Foi o que me disse faz uns dias,
um amigo português - estou na dúvida se devo chamá-lo de Manuel ou de Joaquim - ao
se referir ao Portugal dos fados, do bacalhau e das belas amizades e, hoje, das contas a
pagar.

O Manuel dramatizava a dívida e a dúvida (só antropólogos como o Marcos Lanna


perceberam como essas palavras não têm nada a ver com o futuro, mas com um passado
estabelecido quando uma pessoa recebe algo de outra). Ele se referia ao Portugal que se
amarrou ao globo pela Europa, e assim contraiu uma enorme dívida. Poupo-me de expor,
no economês que permeia as páginas mais técnicas e sérias dos jornais, os detalhes da
coisa. Mas posso afiançar que os portugueses a consideram feia e vergonhosa - quase um
fim de mundo, exatamente como fazemos no Brasil.

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E aí temos um problema trivial: quem é o responsável pelo desastre, a esquerda ou a


direita? O governo ou a oposição? O passado ou o presente? O rei ou o papa? O antigo ou
o moderno? Todos - dizem Manuel e Joaquim -, menos nós e os do nosso partido, grupo
ou coalizão. Pois lá, como aqui, há acordos e coalizões de modo que no universo do
consumo que individualiza, produz autoestima e iguala, espatifou-se a clara, honesta e
boa para culpar divisão do mundo entre certos e errados. Entre uma esquerda (dos
puros) e uma direita (dos ímpios). "Veja, diz-me o Manuel com o rosto pálido, em que
enrascada (os "r" dobrados vão por conta de sua fala) estamos metidos!"

De fato, como viver num mundo horizontal e mais igualitário, vendo-o por meio de
critérios verticais e hierárquicos? Como ver o Portugal moderno e liberal, se o método
para julgá-lo passa por altos e baixos, cristãos e judeus, ricos e pobres, todos ilimitados
porque o horizontal é balizado por fronteiras, mas o vertical contém o que conhecemos
de sobra neste nosso abençoado Brasil: o mais ou o menos; e, mais que isso, o "mais ou
menos" que, pressupondo múltiplos pontos de vista (e verdades), tudo justifica e impede
atribuir responsabilidades e definir prioridades permitindo adiar. Ou seja: escolher não
escolher!

Poucos enxergam - tem a ver com o tal "liberalismo". Com esse estilo de vida cujo
princípio básico é não gastar mais do que se ganha. Com a obrigação de
permanentemente ser obrigado a calibrar interesses individuais e coletivos. E disso
decorre algo odioso e patético: somos obrigados a escolher; temos que admitir que os
recursos são escassos; que o mundo se transforma e não vai para onde queremos; que o
ganho de hoje pode ser a perda de amanhã; e - valha-nos Deus! - que existem mesmo
limites. Limites, bom senso, equilíbrio, suficiência, competição e eficiência. Tudo o que o
estilo de viver hierarquizado inibe e esconde, pois o Rei pode tudo. Talvez até mais do
que Deus.

Vi, com a clareza dos marginais, como a crise portuguesa falava do Brasil, tal como a
nossa hiperinflação sanada pelo maldito Plano Real falava de Portugal. Essa entrada
tardia no mundo em que estado e sociedade se equilibram. Num universo onde a
competição e a inércia (entre nós também chamada de jeitinho ou malandragem)
começam a ser depuradas das suas consequências negativas. Não é fácil o confronto das
velhas tradições, lidas como princípios imutáveis e naturais, no confronto com o universo
do mercado no qual tudo que se pensava como sólido se desmancha no ar. Ou assim
parece.

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