Professional Documents
Culture Documents
php
/Cultura
O trivial miúdo (e graúdo) do mundo
20 de abril de 2011 | 0h 00
Terremotos recorrentes (parece castigo..., diz uma amiga...) no Japão; mudanças políticas
radicais, com direito a confronto político em forma de tempestade de pedra no chamado
mundo árabe; e transgressão inclassificável no Brasil. Neste nosso país, onde os juristas
de bela tradição romana, aperfeiçoada na Faculdade de Direito de Coimbra que o
Marquês de Pombal queria destruir em nome das luzes, vivemos um gesto que é a um só
tempo crime, loucura, covardia, vingança e celebrizarão patológica. Ou seja: é um ato
irredutível que fala de múltiplas carências coletivas, mas que se realizou, como tudo o
que é humano, individualmente. Num outro pedaço do mundo, a terra e os sistemas
políticos se sacodem; na nossa casa, estremecemos todos porque não somos capazes de
nos pensar também como ingratos, covardes, canalhas e loucos varridos. Se Deus existe e,
mais que isso, é brasileiro, o que significa esse massacre insano de crianças num lugar
sagrado: uma escola? Debaixo de Deus, pensamos que uma lei vai conter esses gestos
insanos.
Ainda vivemos a plenitude daqueles etnocentrismos que garantem um país tropical, sem
preconceitos, repleto de santos, abençoado por Deus e bonito por natureza. O insólito
amplamente divulgado e batido obriga a pensar seriamente nos problemas a serem
corrigidos, remediados e evitados. A autovisão otimista não exclui o olhar realista, ela
apenas impede o risco da recaída num otimismo fora de ordem. De qualquer modo,
atordoa testemunhar essa celebrização por meio de um ato inclassificável numa
sociedade na qual a celebrização que aristocratiza e permite tratamento diferenciado é
moeda corrente e a malandragem, o "eu não sabia" e o crime constam como um bom
método para obtê-la. É preciso repensar - e a mídia tem o dever de dar o exemplo - o
modo de lidar com essas fraturas que surgem a contragosto num Brasil mais igualitário e
livre, mas sem os seus remédios usuais deste estilo de vida: o bom senso e a
internalização de limites por meio de um sistema educacional primário eficiente e
universal.
****
"Somos afinal "mudernos", temos um pouquito de tudo!" Foi o que me disse faz uns dias,
um amigo português - estou na dúvida se devo chamá-lo de Manuel ou de Joaquim - ao
se referir ao Portugal dos fados, do bacalhau e das belas amizades e, hoje, das contas a
pagar.
1 de 2 20/04/2011 13:12
O trivial miúdo (e graúdo) do mundo - Estadao.com.br http://www.estadao.com.br/noticia_imp.php?req=not_imp708661,0.php
De fato, como viver num mundo horizontal e mais igualitário, vendo-o por meio de
critérios verticais e hierárquicos? Como ver o Portugal moderno e liberal, se o método
para julgá-lo passa por altos e baixos, cristãos e judeus, ricos e pobres, todos ilimitados
porque o horizontal é balizado por fronteiras, mas o vertical contém o que conhecemos
de sobra neste nosso abençoado Brasil: o mais ou o menos; e, mais que isso, o "mais ou
menos" que, pressupondo múltiplos pontos de vista (e verdades), tudo justifica e impede
atribuir responsabilidades e definir prioridades permitindo adiar. Ou seja: escolher não
escolher!
Poucos enxergam - tem a ver com o tal "liberalismo". Com esse estilo de vida cujo
princípio básico é não gastar mais do que se ganha. Com a obrigação de
permanentemente ser obrigado a calibrar interesses individuais e coletivos. E disso
decorre algo odioso e patético: somos obrigados a escolher; temos que admitir que os
recursos são escassos; que o mundo se transforma e não vai para onde queremos; que o
ganho de hoje pode ser a perda de amanhã; e - valha-nos Deus! - que existem mesmo
limites. Limites, bom senso, equilíbrio, suficiência, competição e eficiência. Tudo o que o
estilo de viver hierarquizado inibe e esconde, pois o Rei pode tudo. Talvez até mais do
que Deus.
Vi, com a clareza dos marginais, como a crise portuguesa falava do Brasil, tal como a
nossa hiperinflação sanada pelo maldito Plano Real falava de Portugal. Essa entrada
tardia no mundo em que estado e sociedade se equilibram. Num universo onde a
competição e a inércia (entre nós também chamada de jeitinho ou malandragem)
começam a ser depuradas das suas consequências negativas. Não é fácil o confronto das
velhas tradições, lidas como princípios imutáveis e naturais, no confronto com o universo
do mercado no qual tudo que se pensava como sólido se desmancha no ar. Ou assim
parece.
2 de 2 20/04/2011 13:12