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Tudo Que Você Gostaria de Saber Sobre Lacan e Ousou Perguntar a Slavoj Zizek: Psicanálise e Cinema
Resumo: O grande interesse da psicanálise pelos filmes que desenham uma realidade
subjetiva pode, efetivamente, colocar em perspectiva os conceitos psicanalíticos. Não se
trata, porém, de uma interpretação dos filmes pela psicanálise. Pelo contrário, trata-se de,
mediante uma análise formal da linguagem cinematográfica, esclarecer certos conceitos
freudianos e lacanianos através dos filmes, utilizados como ilustração. Tendo como norte a
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proposta de Slavoj Zizek, este artigo busca evidenciar os procedimentos do cinema e como
aí aparecem os conceitos lacanianos de Grande Outro, objeto a, sujeito barrado e fantasia.
Sendo o principal objetivo deste sutura, ou seja, uma relação entre a es-
texto dar uma visão geral da teoria trutura significante e o sujeito. Entre-
lacaniana aplicada ao cinema por
^ ^ tanto, o próprio conceito de sutura
Zizek, esta, entretanto, não pretende assinala a falha, a abertura da estrutura,
ser exaustiva. Nesta perspectiva, ao mesmo tempo em que possibilita que
selecionamos alguns textos à guisa de se (mal) perceba a totalidade da repre-
introdução e procuramos realizar uma sentação. Neste sentido, a sutura
análise do filme A Moça do Brinco de ^ ^ designa o ponto de intersecção que se
Pérola da forma preconizada por Zizek. insere como sua própria ausência
Segundo ele não basta dizer que a dentro da Ordem Simbólica.
história do cinema desdobra sua essên- Qual é, então, a implicação desse
cia, nem que é um bric-à-brac de conceito na teoria do cinema e em que
soluções sobredeterminadas. É preciso, consiste, no cinema, a lógica elementar
segundo ele, que haja uma análise da sutura?
conceitual. Ressoando as palavras de ^ ^ Num primeiro momento, diz
Lévi-Strauss em relação à análise dos
^ ^ Zizek, o espectador é confrontado com
mitos, Zizek enfatiza que uma teoria do um plano, e o absorve de forma ime-
cinema deve dar o passo da mul- diata e imaginária. Não sabe ainda o
tiplicidade empírica à articulação da que significa, encontra-se na posição
totalidade concreta dentro da qual cada passiva diante do grande Outro que
solução particular funciona.12
^ ^ está oculto atrás da imagem. Podemos
Zizek toma emprestado o conceito identificar aqui o S1, ainda sem oposi-
de sutura, um termo que Lacan usou e ção, à espera de um S 2. O segundo
que Jacques-Alain Miller13 conceituou, plano, S2, complementar, em vez de
do qual se utiliza para mostrar os efeitos significar S1, representa o sujeito, que é
de significação do sujeito, do objeto e transferido do nível da enunciação ao
da fantasia na própria estrutura da nível da ficção. É, portanto, a sutura, a
linguagem cinematográfica. presença-ausência da imagem que cria
Já dissemos anteriormente que o o efeito de realidade fantasmática, que
Simbólico é um circuito que não se emoldura o Real, articulando minima-
fecha (A), o que quer dizer que faltará mente significado e significante. Nessa
sempre um significante que definiti- sutura entre o visível e o invisível, a
vamente completaria a cadeia signifi- fantasia ganha seu valor de verdade. É
cante. Quanto ao Real, é este impos- aqui suficiente lembrar que esse valor
sível de significar. Entretanto, posso de verdade advém de uma ficção
nomeá-lo. O Real dá forma ao indizível, discursiva construída pelo próprio
mas escapa à sujeição radical e plena sujeito e que lhe fornece uma ficção, a
do significante. Nomear o Real signifi- fantasia, como suporte. A realidade
ca, justamente, metaforizá-lo, o que só fantasmática, ou o efeito de realidade
é possível de dentro da própria Ordem do cinema, não vem senão desse
Simbólica. Se não temos acesso ao Real, emolduramento do Real pelo Simbó-
ao menos podemos tocá-lo pelo signifi- lico. O intervalo entre o Real e o
cante, contorná-lo. Podemos fazer uma Simbólico é mediado por uma relação
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12 ZIZEK, S. The Fright of Real Tears -Krzysztof Kieslowski-Between Theory and Post-Theory, p.25. London:
BFL, 1995. ^
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13 Citado por Zizek, idem.
14 Na sutura, a diferença entre imagem e sua ausência é mapeada dentro da diferença intra-pictorial entre
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dois planos. ZIZEK op.cit. p.32. Exemplo dado por Zizek é a absoluta certeza que os espectadores têm do
rosto do Bebê de Rosemary, que jamais foi representado, mas que se tornou uma imagem justamente por sua
ausência. No segundo plano que está ausente, quando os personagens se debruçam sobre o berço o sujeito
pode representar o bebê numa imagem que esteve sempre ausente. Vale lembrar a frase de Casablanca Play
it again, Sam, que Rick nunca pronunciou, mas que todo mundo ouviu.
15 LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p.91, 1998.
16 A câmera obscura é um artifício óptico simples para ajudar os pintores. Ela projeta a imagem de um objeto
na tela. Consiste essencialmente de uma câmara escura tendo uma pequena abertura em um dos lados com
uma lente, através da qual um objeto externo é formado na face oposta da câmera. Enclypaedia Britannica.
17 LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. p. 94, 1998.
18 LACAN, J. Idem, p. 94.
tação de seu próprio desejo. O que ela onde o corporal se dá a ver no lugar
pode saber, no encontro com a obra do do significante. O obstáculo sexual que
seu patrão, das coordenadas de seu aparece entre os personagens mostra
desejo: coordenadas já inscritas nos que a sublimação é a suspensão sempre
ladrilhos pintados por seu pai? Vemos adiada da satisfação sexual, em nome
que no final do filme, o enigma por trás do amor à arte e da ilusão fantasmática
da construção fantasmática permanece de completude. Não é difícil aceitar
intacto. A entrega final dos brincos de que, como bem demonstra o filme em
pérola não demonstra, suficientemente, relação ao sexual, embora o corpo esteja
a permanência do enigma do desejo do implicado, mesmo como um signifi-
outro? cante emoldurado num quadro, ele
E quanto à sublimação? continua sempre enigmático. O corpo
Michel Silvestre22 ressalta que a não tem no filme o peso do real, o corpo
sublimação é um processo circular, está lá para ser representado, a falta de
como o circuito da pulsão: sempre objeto não é para ser substituída por um
retorna. Não devemos esquecer que o corpo: a falta de objeto é para ser
traço próprio da sublimação é a falta contornada pela pintura. A não -
do objeto. Daí a sublimação ser um relação sexual é emoldurada em cores,
circuito que se apóia no gozo. Quanto pérola e luz: o objeto sexual é impos-
ao objeto, trata-se da construção de um sível, mas não sua representação. Weber
objeto por uma via particular que procede de forma a evidenciar a falta
produz um objeto sublime, uma obra de radical do objeto e a impossibilidade da
arte. Essa produção tem um nexo relação sexual com a intocabilidade e
estreito com a impossibilidade de a inacessibilidade do corpo: o close-up
satisfação da pulsão, o que implica que das mãos na mesa misturando tintas é
o objeto do desejo se apresenta numa difícil de esquecer. Mãos tão próximas
série infinita de objetos substitutos. e tão intocáveis, inacessíveis. As tintas
Griet constrói com Vemeer a via se misturam, as mãos não. O que torna
particular de um objeto sublime, a sublimação complexa é que não se
substituto do objeto pintado por seu trata de recalcar a pulsão sexual, mas
pai: o quadro da moça do brinco de relançar a pulsão. O paradoxo da
pérola, vindo direto do Real para o sublimação se encontra justamente no
Simbólico. fato de que, ao mesmo tempo em que a
Segundo a psicanálise, a sobreesti- pulsão é relançada, ela busca escapar
mação do objeto produz uma ilusão do registro pulsional. A cena paradig-
denominada amor, justamente porque mática que desvela esse paradoxo é a
o obstáculo à satisfação é sempre sexual. exibição da boca erotizada, mas aban-
Mas, segundo Lacan, nem roda subli- donada em proveito do significante; a
mação é possível. Há algo na coisa que pintura dos lábios úmidos é no quadro
resiste à sublimação, pois há uma certa que ficariam registradas suas coorde-
dose de satisfação direta que é exigida nadas.
pela pulsão: esta satisfação impossível Assim, na sublimação, o que está
de ser sublimada aparece no corporal em jogo é a produção de um signifi-
da relação sexual com o namorado, aí cante adequado ao sentido. Não fica
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claro que Griet e Vermeer estão em ZIZEK, S. Tout ce que vous avez toujours voulu
busca do sentido da arte e na busca por savoir sur Lacan sans jamais oser le demander a
Hitchcock. Paris: Navarian, 1988.
um objeto que possa ser colocado de
forma sublimada no lugar vazio de das
Ding?
Endereço para Correspondência:
Rua São Clemente, 397/402 - Botafogo
22260-001 Rio de Janeiro - RJ
Keywords
Tel.: (21) 2539-9106
Psychoanalyse Cinema Imaginary
Real Symbolic Subject Big Other
object a Fantasy
Abstract
Psychoanalysis is mostly interested in
moving pictures that put in perspective the
fundamental psychoanalytical concepts.
Cinematographic language provides a rich
illustration of the fundamental concepts of
the lacanian theory, rather than an object
for interpretation. Having the analytical
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proposal of Slavoj Zizek to analyze the
lacanian concepts in moving pictures in
the background, the kernel of this essay is
to highlight the movie makers proceeding
where the lacanians concepts comes to light
such as the Big Other, Object a, Barred
Subject and Fantasy.
Bibliografia
CARRIÈRE, J-C. A linguagem secreta do cinema.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
ENCICLOPÉDIA BRITÂNICA. London:
William Benton, 1963.
LACAN, J. Ciência e verdade. In: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
SILVESTRE, M. Mañana el psicoanálisis. Buenos
Aires: Manantial, 1987.
STRAUSS, L. Antropologia cultural. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
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ZIZEK, S. The Fright of Real Tears Krzysztof
Kieslowski. Between Theory and Post-Theory.
London: BFL, 1995.