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DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
Vitória
2010
CARLOS ALBERTO DE CASTRO FAGUNDES RODRIGUES
ABSTRACT
This graduation project tries to propose, through bibliographical studies, that the use of role
playing games (RPG) may have a therapeutic function. Jung worked in his works the concept of
individuation - a guiding concept of this work - where the individual, traces a path to seek inner
knowledge through awareness of his unconscious contents symbolized by the archetypal images.
The RPG, in this case, will be configured as a channel where the subject may direct their libidinal
force, treading the path of the hero myth to reach the final level of the individuation process: the
integration of the ego to the Self.
Keywords: individuation, archetypes, myth of the hero and role playing games (RPGs).
RESUMEN
Este documento es una propuesta para el uso de los juegos de rol (RPG), a través de estudios
bibliográficos para el desarrollo de intervenciones clínicas con el enfoque de la función de Jung
psicoterapéutico. Jung trabajó en sus obras el concepto de individuación - un concepto que guía
esta obra - en la que las huellas individuales de un camino en la búsqueda del conocimiento
interior a través de la conciencia de su contenido inconsciente, simbolizado por las imágenes
arquetípicas. El juego de rol, este caso se configura como un canal en el que el sujeto puede dirigir
su fuerza interior, recorriendo el camino del mito del héroe para alcanzar el nivel final del proceso
de individuación: la integración del ego al Self.
Palabras clave: individuación, arquetipos, el mito del héroe y los juegos de rol (RPG).
1. Introdução
A linguagem simbólica, a partir da perspectiva junguiana, é um campo de expressão humana
presente nas mais diferentes atividades culturais. Os arquétipos estão presentes tanto nas atividades
políticas e econômicas, quanto nas atividades lúdicas. Quanto a essas últimas, temos uma
sofisticação dos jogos disponíveis na atualidade, destacando-se o RPG, que pode servir como meio
de expressão psíquica ao inconsciente. O presente trabalho apresenta uma leitura dos RPGs como
possibilidades lúdicas simbólicas com potencialidades terapêuticas, segundo as quais os jogadores
podem experienciar diferentes imagens arquetípicas, reproduzindo o processo de individuação. O
trabalho estrutura-se em quatro partes principais: Na primeira parte apresentam-se os conceitos
junguianos básicos para a compreensão dos efeitos lúdicos terapêuticos, a saber: inconsciente
coletivo e pessoal, principais arquétipos, individuação, e mito do herói. Na segunda parte, assinala-
se o jogo RPG, esclarecendo as suas principais características e papéis. Na terceira, estabelece-se
um paralelo entre os pressupostos junguianos e o jogo. E finalmente, apresentam-se as conclusões
sobre o paralelo realizado, estabelecendo uma proposta de aplicação prática do método clínico
junguiano adaptado ao RPG.
2. A abordagem junguiana
2.1 – Breve histórico dos principais conceitos
Carl Gustav Jung (1875/1961) foi um médico suíço que sofreu grande influência da
psicanálise de Freud (1856/1939) para a elaboração de seus pressupostos teóricos. O primeiro
contato de Jung com a teoria freudiana se deu através da obra a Interpretação dos Sonhos (1899). A
partir desse trabalho, Jung construiu alguns pressupostos psicanalíticos dos quais jamais fugiria
durante toda a sua produtiva vida de pesquisador, pensador e psicólogo. A noção de um inconsciente
como fonte de motivações internas e o acesso a esse inconsciente através dos sonhos e imagens
pessoais são exemplos desses pressupostos. No entanto, a semelhança entre os pensadores para por
aí. Enquanto Freud pensava o homem como produto dos conflitos entre instintos inatos egocêntricos
e normas sociais coletivas (Freud, 1920), Jung descrevia a natureza humana como socialmente
construtiva, naturalmente simbólica e culturalmente complexa. Resulta daí um entendimento
otimista acerca do homem e de suas possibilidades culturais. Seu trabalho era inicialmente focado
em pacientes psicóticos, devido ao trabalho que exercia no hospital de Burghölzi, em Zurich; local
onde tiveram início as suas observações durante as análises dos sonhos de seus pacientes, os quais
forneciam imagens simbólicas e informações que eram semelhantes às mesmas produções de
antigos mitos religiosos. Levando em conta os dados obtidos, Jung questionou-se a respeito da
possibilidade de haver algo além do que foi apresentado pelos seus pacientes, e desenvolveu o
conceito de inconsciente pessoal e inconsciente intrapessoal ou coletivo.
O inconsciente pessoal é o conceito que mais se aproxima do formulado por Freud, mas não
podemos dotá-lo do mesmo significado, pois o inconsciente freudiano caracterizava-se por um
processo estanque no qual depositamos inconscientemente conteúdos sob a barreira do recalque,
que o ego não foi capaz de suportar “(...) onde seus conteúdos se reduzem a tendências infantis
reprimidas, devido à incompatibilidade de seu caráter.” (Jung, 1964 p.59). Para Jung, o inconsciente
é dinâmico e jamais se encontra em repouso; a energia libidinal não se caracteriza somente como
energia sexual, mas é também capaz de produzir conteúdos, de forma ativa. No inconsciente
encontramos todos os materiais psíquicos que se encontram sob a consciência e que não têm força
suficiente para alcançar seu limiar, que segundo Jung, seriam as sementes de futuros conteúdos
conscientes. O inconsciente coletivo, por sua vez, é a camada mais profunda do inconsciente, além
de ser dotado das características dinâmicas do individual. Nele encontram-se as imagens mais
universais e originárias dos seres humanos, “primordiais” de cada indivíduo. Segundo Burckhardt
(1852), o inconsciente coletivo representa a capacidade humana hereditária na qual a imaginação
dos indivíduos tende a se mostrar como era nos primórdios.
Durante sua carreira, Jung observou que as imagens primordiais estavam presentes nos
sonhos de seus pacientes psiquiátricos, caracterizando-se por correlatos de mitos, contos de fadas e
narrações de diferentes culturas que as denominam como um esquema comum a um conjunto de
representações coletivas e individuais: “É o modo de pensar primitivo e análogo, vivo ainda em
nossos sonhos, que nos restitui essas imagens ancestrais” (Jung, 1941 p.57). Somente em 1919 foi
utilizado o termo arquétipo para substituir o conceito de imagem primordial, termo que sofreu
mudanças significativas ao longo do tempo no desenvolvimento da teoria analítica.
Em um segundo momento do seu trabalho, Jung apóia-se nas teorias biológicas para auxiliá-
lo na definição e explicação do funcionamento dos arquétipos, já que para ele as representações não
eram passadas por aprendizagem para os indivíduos, mas suas estruturas eram inatas. As estruturas
congênitas, remontadas a tempos ancestrais, mantém as imagens primordiais de nossos
antepassados. Estas imagens são herdadas pelos indivíduos e encontram-se no inconsciente
coletivo, onde são passiveis de representações análogas dependendo da vivencia do organismo
(Humbert, 1985). Sendo assim, há uma separação entre a imagem arquetípica e o arquétipo em si,
pois o último transmite-se geneticamente, mas são as circunstâncias pessoais que vão encarnar a
imagem. Neste momento, a cultura possui um papel fundamental;
As representações arquetípicas que o inconsciente nos
transmite não devem ser confundidas como arquétipo em si.
São formações extremamente variadas que fazem referencia a
uma forma fundamental não representável de si mesma (Jung,
1949, p. 169)
Porém, mesmo após o conceito ter sofrido este arranjo, ainda não havia se estabelecido por
completo o conceito de arquétipo no pensamento junguiano, pois a idéia permanecia como um
esquema de modelo estanque. Para Jung, os arquétipos eram sistemas vivos dotados de forças
criadoras e fatores vitais para a economia psíquica. Foi então que o conceito de arquétipo
estabeleceu-se como psicossomático: unindo corpo e psique, instinto e imagem. É um fator
importante, pois, conforme a epistemologia junguiana, não se pode considerar a psicologia e suas
imagens como simples correlatos ou reflexos de impulsos biológicos.
Os arquétipos são presentificados em comportamentos externos, principalmente os que são
aglomerados em torno de acontecimentos marcantes da vida coletiva. Tal conceito baseia-se nas
teorias platônicas do mundo das idéias, no qual tudo que consideramos em nossa realidade pode ser
entendido como derivações de matrizes primordiais. Sendo assim, os arquétipos são moldes
inerentes ao ser humano desde o princípio da existência, os quais possuem a função de atuar como
fonte primordial para o amadurecimento da mente. Este caminho é fundamental para o alcance da
individuação..
É importante levarmos em consideração que o arquétipo em si é uma estrutura vazia, que
habita as profundezas de nosso inconsciente coletivo. Para que ele tome força criadora, tem de
haver uma ligação com aspectos do inconsciente individual que tenham numinosidade (conteúdos
simbólicos cheios de energia) para o individuo, de forma que as imagens arquetípicas sejam
formadas. Essas imagens se encontram nos bastidores de todos os nossos pensamentos, sentimentos,
emoções, intuições, sensações e atitudes. Normalmente eles se expressam através dos símbolos,
pois constituem sua composição estrutural oculta aos olhos humanos. Alguns destes arquétipos
conquistaram tamanha independência que se destacaram do âmbito da consciência individual, como
é o caso da persona, da sombra, da anima/animus, do Self e do próprio ego (um complexo
arquetípico peculiar, pois possui a propriedade de produzir consciência).
A persona se refere a uma “máscara” que a pessoa utiliza para se confrontar com a
sociedade, sendo um modo de se colocar em diferentes âmbitos. A sombra é tudo aquilo que uma
pessoa não tem desejo de ser. É o lado negativo da personalidade com o qual o individuo não tem
coragem de tomar contato. A anima e animus caracteriza-se pelo lado feminino do homem e
masculino da mulher, e componentes psíquicos benéficos assim que conscientizados. Por ultimo,
temos o Self, a imagem arquetípica mais importante da economia psíquica do individuo. É ele que
detém o potencial mais pleno do homem e a unidade da personalidade como um todo. O Self, como
um princípio unificador dentro da psique humana, ocupa a posição central de autoridade com
relação à vida psicológica e, portanto, do destino do indivíduo (von Franz, 1964).
Jung descreveu o contato seqüencial com esses arquétipos na vida pessoal dos indivíduos
como a tarefa essencial de desenvolvimento vital. Portanto, defendeu que faz parte do
desenvolvimento humano lançar-se na vivência e incorporação das imagens arquetípicas, tarefa
facilitada pela análise individual. A esse processo denominou individuação, conceito a ser discutido
a seguir.
2.2 A individuação
A individuação é o processo pelo qual o ser humano pode tornar-se um indivíduo, uma
totalidade, ou seja, representa a unidade interna. É um processo arquetípico que permite o
surgimento lento de uma personalidade cada vez mais ampla (Von Franz, 1964). Segundo Gorresio
(1997) a individuação é a jornada do ego na busca do aumento da consciência do Self. No entanto,
não devemos confundir a individualidade com uma busca egocêntrica e sim como um processo pelo
qual o ser humano chega ao autoconhecimento, e é levado a estabelecer contato com o seu
inconsciente, tanto pessoal como coletivo. Torna-se necessário fazer essa distinção para integração
dos arquétipos. Caso contrário, os conflitos continuam ou se intensificam. Quando chega a esse
centro, o ser humano realiza-se como individualidade, como personalidade.
Porém, para alcançar este objetivo, o individuo deve passar por um processo longo e
doloroso de identificação do ego com características pessoais que se encontram representadas nas
profundezas do inconsciente coletivo. Mas antes de abordarmos propriamente o processo de
individuação, devemos esclarecer o que seria o ego para Jung, dado que este tem um papel
fundamental durante este caminho. Pode-se considerar o ego como sendo uma parte desgarrada do
Self, porém sem ter todos os seus laços cortados. Seria como um arquétipo de iniciação. O Self tem
uma visão mais holística e suprema, sendo o núcleo da totalidade absoluta da psique (Jung, 1964),
organizando a emanação da ação reguladora do psiquismo. O ego, por outro lado, é o centro da
consciência e se assemelha a assuntos tais como identidade pessoal, manutenção da personalidade,
continuidade além do tempo, e mediação entre campos conscientes e inconscientes.
A ligação ego-Self é importante, dada a sua significação da transcendência da imagem
psicológica do individuo atribuindo um significado para a vida. A integridade do ego refere-se ao
seu contato com os temas arquetípicos, que através do seu caráter numinoso conferem ao ego forma
e significação (Whitmont, 1991). Através do processo de individuação, o ego reconhece a sua
dualidade, pois “em seu caráter original, o Sagrado indica igualmente o divino e o demoníaco”
(Tillich apud Jaffé, 1990) e deve ser considerado como aspecto do Self a ser incorporado à
consciência. Tal reconhecimento da dualidade do Self deve passar por outros três passos do
processo de individuação, que serão explicados a seguir: o desnudamento da persona, o confronto
com a sombra e a tomada de consciência da anima/animus.
Primeiramente temos a persona, que como o nome indica é uma máscara que os indivíduos
utilizam no contato social do dia-a-dia. A persona pode se referir à identidade sexual, um estágio de
desenvolvimento (tal como a adolescência), um status social, um trabalho ou profissão. Durante
toda uma vida, muitas personas serão usadas e diversas podem ser combinadas em qualquer
momento específico. Deve-se mostrar ao individuo que esta persona, esta máscara, nada mais é do
que um véu que recobre o inconsciente coletivo. Ela é um recorte arbitrário e acidental da psique
coletiva (Jung, 1981) que aparenta uma individualidade, e tenta convencer a si mesmo e aos outros
de sua autonomia e individualidade. Analisada a fundo e dissolvida, a persona nada tem de real. É
apenas um compromisso do individuo com a sociedade no cumprimento de alguns papéis como:
nome, título, trabalho, etc. Cabe ao sujeito essa conscientização e a percepção de que mesmo sendo
uma máscara da psique coletiva, essas escolhas revelam algo de individual. O maior problema está
quando uma pessoa se identifica de forma demasiadamente íntima com sua persona. Isto implicaria
uma falta de conscientização de um papel muito além do social e uma forma de rigidez e fragilidade
psicológica.
Após o contato com a persona, impõe-se no caminho de individuação a conscientização da
sombra. Todos nós temos uma sombra. Ela é a parte “escura” do ego na forma de qualidades e
atributos desconhecidos ou pouco desconhecidos. Esses atributos são de características
principalmente pessoais, sendo tendências e impulsos que são negados ou projetados nos outros.
São todos os pequenos pecados, como o apego material, intrigas, tramas, covardia, preguiça mental,
indiferença e fantasias irreais (von Franz, 1964), que o sujeito tende a relativizar, achando que
ninguém perceberá (e apenas ele próprio percebe na sociedade e nos outros). A sombra também se
comporta como um ato impensado ou impulsivo, que irrompe numa observação maldosa antes
mesmo de o sujeito ter tempo para pensar, cometendo uma má ação ou uma decisão equivocada. Os
impulsos da sombra encontram maior força quando o indivíduo encontra-se em grupo, pois se não
agir de modo irracional como a multidão, podem acha-lo tolo.
Jung adverte que não devemos tentar reprimir e subjugar a sombra a qualquer custo, pois
uma não conscientização da mesma pode levar a racionalizações e projeções de seus aspectos em
outros indivíduos. Este arquétipo tem de ser integrado à nossa personalidade consciente, pois tomar
ciência destes impulsos arrebatadores e direcioná-los origina a uma força criadora. Porém, o
analista suíço adverte que os conteúdos inconscientes aparecem envoltos em um campo enevoado e
obscuro, dificultando a identificação clara de onde começam e onde terminam. Dentro desse campo
mesclado está a sombra, aspecto tão obscuro quanto o campo inconsciente. Nele encontra-se tudo
aquilo que é desconhecido pelo ego, até mesmo as mais valiosas e nobres forças (Jung, 1964) que,
não obstante, devem ser incorporadas pelo ego. Renuncia-se, assim, a todo orgulho e vaidade para
viver plenamente tudo isto que parece sombrio e negativo.
Concomitantemente ao confronto com a sombra, há outra “figura interior” na psique
humana, chamada nos homens de anima e nas mulheres de animus. Ela é responsável pela mediação
entre o mundo interior e o Self. A anima é a personificação das tendências femininas na psique do
homem, são “os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao
irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e o relacionamento com o inconsciente”
(von Franz, 1964 p.177). O lado negativo deste aspecto causa mudanças emocionais e instabilidades
de humor no homem, além de incertezas e inseguranças. Uma anima mal estabelecida pode causar
ainda comportamentos compulsivos com relação ao sexo ou até mesmo uma atitude passiva frente a
outras mulheres, como submissão. Há, porém, características positivas da anima quando o homem
leva a sério os sentimentos, os humores e as fantasias. É ela que o ajuda a identificar os seus valores
interiores e mais emocionais quando sua lógica e seu pensamento racional são incapazes de definir
os fatos escondidos no inconsciente. A anima apresenta quatro estágios de desenvolvimento: 1. O
relacionamento instintivo e biológico; 2. A personificação de elementos sexuais em um nível
romântico e estético; 3. O amor elevado à grandeza da devoção espiritual; e 4. A sabedoria
transcendental de conteúdos divinos e puros.
O animus na mulher apresenta, assim como a anima masculina, conteúdos positivos e
negativos. Personifica-se em opiniões irracionais mantidas de forma rígida, imposições violentas,
frieza e obstinação. Outro aspecto negativo do animus é a passividade e a paralisação de todos os
sentimentos, uma insegurança e sensação de nulidade e vazio, “brutalidade, a indiferença, a
tendencia á conversa vazia, às idéias silenciosas, obstinadas e más” (vonFranz, 1964 p.193). São
aspectos depressivos e de fracasso, como se não houvesse outra saída a não ser a plena resignação à
falha.
Além dos aspectos negativos, deve-se salientar o aspecto positivo do contato com o
arquétipo, como a ligação com o Self através de atividades criadoras (Jung, 1875/1961) ), da
iniciativa, da coragem, da honestidade e da profundidade espiritual. Por meio do animus a mulher
passa a ter mais clareza da objetividade de suas ações e melhora a avaliação de suas convicções.
Assim como a anima o animus tem quatro estágios de evolução, são eles: 1. A personificação da
força física, 2. A iniciativa e a capacidade de planejamento, 3. A apresentação como um orador e 4.
A encarnação do pensamento (von Franz, 1964) como mediador de experiências.
Emerge desse contato múltiplo com os arquétipos o conceito de individuação como um
processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade (Jung, 1986). Tal
processo é representado pelo mito do herói-ego que busca a integração do coletivo com o
individual. Os elementos formadores do mito do herói são múltiplos e, portanto, passíveis de
diversas interpretações. O herói possui mil faces e o mito conta com um grande número de opções-
sígnicas para sua representação em uma história de vida. Porém, existe um modelo essencial do
qual os outros são apenas derivações (Campbell, 1990). O herói primordial caracteriza-se como um
temível matador de monstros, na mitologia clássica representado pela união de um Deus ou uma
Deusa com um mortal, simbolizando “a união das forças terrestres e celestes” (Chevalier &
Gheenbrant, 1989: 488). Este se torna um modelo prototípico a ser seguido pelos outros na
coletividade. Na individuação, essa é a fase de consolidação e estruturação do ego, que através da
imposição dos seus desejos e vontades, subjuga as tendências naturais e instintivas da psique. A
vitória sobre o monstro representa o triunfo do ego sobre a possibilidade de ser engolido pelo
inconsciente, mostrando a superioridade do ego e da psiquê em conter as energias psíquicas. Porém,
se o herói não se mostra verdadeiramente forte, sendo arrebatado por essa força primitiva, pode
voltar novamente renovado para enfrentar o monstro inconsciente. No fim dessa jornada ele retorna
ao ponto de partida, fazendo um círculo de aventura, realização e retorno, pois ele “abandona
deliberadamente determinada condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma vida mais
rica e madura” (Campbell, 1990, p. 132).
Estabelecendo-se um paralelo do mito do herói à personalidade, vemos a tentativa de
separação do ego infantil com relação ao inconsciente, pois primeiramente este via seu mundo
unido com o de seus pais. A primeira separação é com a mãe, quando o ego desperta seu principio
masculino, isto é, “sua capacidade de decisão, de atuação no mundo, de discriminação, de
competição e de poderio” (Serbena, 2006, p. 159), sendo expulso da matriz materna e se voltando
contra ela. Ele luta e mata o dragão representando o arquétipo da grande mãe e do feminino. Na luta
contra o dragão temos o simbolismo do renascimento do mesmo. Quando é engolido pelo monstro,
o ego renasce como uma estrutura num estado evolutivo mais avançado. Representando uma
personalidade mais plena, “o herói ganha o tesouro, que é o produto final do processo simbolizado
pela luta” (Neumann, 1992: 121). Esta batalha encena o temor do arquétipo masculino frente à
grande mãe castradora, destrutiva e agressiva.
Na próxima etapa o herói desafia as leis vigentes caracterizando a saída da inércia da libido
inconsciente e a tentativa de confirmar o poder criativo do ego, que é representado pelas muitas
tarefas advindas de um rei déspota e autoritário. Tendo vencido os desafios propostos pelo velho rei,
e a necessidade de transformação imposta pela individuação com o assassinato simbólico do pai,
entramos numa nova etapa da divisão da psique. O ego separa-se do inconsciente, como expressado
na mitologia referente aos gêmeos, mas que observamos ser a expressão das divergências entre o
ego e os conteúdos rejeitados na sombra. Assim, com os eventos externos passando a não serem
mais um problema, inicia-se uma nova crise. O guerreiro matador de monstros agora deve iniciar
uma nova jornada para criação de novos significados. “O seu objetivo agora é diferente, ele pode e
deve relacionar-se com o seu centro mais profundo denominado Self.” (Serbena, 2006, p. 165), pois
o mundo exterior já foi conquistado e eventos inconscientes estão o ameaçando.
Finalmente o processo se encerra quando o herói completa a sua missão e encontra a sua
complementação, que não ocorre sem um custo. O ego agora está pronto para um funcionamento
maduro, no qual a sua potencialidade se desenvolve ao máximo, em paralelo aos sacrifícios feitos
por esse mesmo ego. Desfeito das vaidades e amarras unilaterais, o herói-ego agora está
individuado. Está pronto para resignar-se a um papel secundário, entregando a sua ação a uma tarefa
transcendental, isto é, maior do que ele mesmo. Não é incomum que a individuação e a resolução da
trajetória do mito do herói culmine com o ego se deparando com questões transcendentais e mesmo
religiosas.
Toda a trajetória do mito do herói na tarefa da individuação pode ser representada
ludicamente, como uma forma de materialização simbólica do conteúdo inconsciente. A seguir,
passa-se a descrever o jogo do RPG como uma dessas possibilidades lúdicas. O RPG, acredita-se,
possui particularidades que podem servir como riqueza representativa a uma linguagem do
inconsciente coletivo, configurando-se como uma intervenção psicoterápica semelhante a um
processo analítico junguiano.
3. RPG
3.1 O jogo:
O RPG (Role Playing Game) ou Jogo de Interpretação, reúne vários indivíduos para
contarem uma história em conjunto, porém, diferente de outras atividades recreativas onde o sujeito
torna-se passivo na história, apenas ouvindo-a, no RPG ele é parte integrante do mundo e pode
alterá-lo a partir das ações de seu personagem. Ele faz acontecer, já que se encontra dentro do
mundo (Jackson, 1999). É um jogo cooperativo no qual não há ganhadores ou perdedores, sendo o
objetivo principal, contar uma boa história em conjunto para que todos possam se divertir.
Essencialmente, os RPGs são jogos nos quais um grupo de participantes conta uma história
de forma interativa. Cada jogador assume para si o papel de um personagem fictício e é responsável
por representá-lo e definir as suas ações dentro da história contada. O jogo, desta forma, toma corpo
a partir da interação entre os personagens e o ambiente fictício no qual estão inseridos. O resultado
de uma partida de RPG será, assim, uma narrativa ou história contada em grupo, em que as ações de
cada personagem protagonista são decididas de improviso pelo jogador que o interpreta.
Este atual trabalho estabeleceu que o RPG pode ser uma forma de conduzir o sujeito ao
processo de individuação, uma vez que é possível tomar consciência dos conteúdos inconscientes
através da vivência das imagens arquetípicas num ambiente fictício. Sendo assim, mesmo jogando-o
sem nenhuma função psicoterapêutica, acredita-se que o jogo de representação possa auxiliar os
participantes em seu processo de individuação, devido às projeções e interpretações arquetípicas
potencializadas pelo contato social com outros indivíduos na mesma condição. Acredita-se que o
próximo passo deste trabalho é o desenvolvimento do jogo, como intervenção, e a análise de seus
resultados. Longe de esgotar o assunto, objetivou-se oferecer uma proposta de interação entre os
aspectos lúdicos e clínicos, relacionando a perspectiva junguiana com o RPG.
ANEXOS
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artigos enviados não serão devolvidos, bem como não será justificada sua avaliação. Solicitamos
que sejam entregues em disquete (gravados em rtf - rich format text - ou doc, do Word 6.0 ou 7.0)
acompanhado de três vias impressas, obedecendo às seguintes normas:
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Wizard of the Coast, 2003.
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Como serão construído os personagens? Podem morrer? Cada jogador terá direito a apenas
um personagem por campanha?
Levar o RPG para o cenário terapêutico, pois de acordo com minha experiencia, o jogo pode ser
utilizado para ajudar o indivíduo a observar e reconhecer algumas caracteristicas de
comportamentos pessoais que são refletidos em seus personagens. Há a possibilidade de ajuda-lo a
reconhecer e integrar mais facilmente seus arquétipos ao consciente.
O RPG é um jogo que trabalha com simbolismo e arquétipos na construção de seus personagens.
Logo, a teoria junguiana, será a mais adequada para trabalhar num campo que já fornece
ferramentas para seu trabalho.
O jogo pode ser utilizado de diferentes formas, como mediador para ganho de habilidades
cognitivas e sociais, melhoria no aprendizado e etc. Porem, seu diferencial está na possibilidade de
imersão do jogador em um personagem fictício dentro de um mundo virtual onde o mesmo tem uma
ampla gama de possibilidade de ações. Não restringidas por barreiras sociais ou morais. Ele se torna
agente de mudanças no contexto do jogo e suas escolhas tem conseqüências diretas na história e no
mundo que se passam.
Acho que responder essas perguntas fica a cabo do GM, pois cada grupo é um grupo e será ele (o
coordenador) que estará mais por dentro dessas necessidades. Ele que será o responsável por
determinar numero de campanhas e duração da terapia.
Num primeiro momento, pensei que o cenário de fantasia medieval seria de melhor tom, devido ao
seu ar já heróico. Porem, me pergunto se ele dará condições plenas para os jogadores galgarem todo
o processo de individualização. Quem sabe num primeiro momento, quando temos a inflação do
ego, ele cumpra seu trabalho, mas quando devemos ter mais profundidade e imersão nos
personagens e jogadores, já acho que deixa um pouco a desejar. Neste caso, penso em até mesmo
jogar em cenários diferentes de acordo com a necessidade do grupo e do momento que estão.
Trabalhando com a idéia do professor Serbena, podemos utilizar o D&D para trabalhar a etapa do
herói solar e o Storytelling para trabalhar a etapa do herói lunar.
Acho que o inicio seria pela escolha e capacitação do Game Master ou narrador. Ele é a peça
fundamental, o muro de arrimo deste processo. Ele é o responsável por conduzir o grupo, de saber
quando deve-se mudar o não de campanha, quando um personagem morre ou não, quando trocar de
cenário, de quando dar um tempo no jogo e conversarem (a meta interpretação), por fornecer o local
apropriado e as ferramentas necessárias para o bom andamento da campanha e da terapia. Assim
sendo temos de tomar muito cuidado com a escolha do GM, ele terá de ser um psicologo com
experiencia clínica na área junguiana, domínio da teoria analítica e estar atento e preparado para dar
conta de qualquer conteúdo que poder emergir.
São momentos, decididos pelo narrador, em que a campanha seria suspensa para os jogadores
conversarem e serem feitos alguns apontamentos. Essas ocasiões serão estruturadoras das pontes do
personagem com o jogador, fornecendo a ele meios para analisar e perceber comportamentos
recorrente dentro e fora do jogo.