You are on page 1of 11

AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.

br/aurora

DA SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES AO
BRASIL POTÊNCIA:

Concepções do desenvolvimento 1964-1979

SAULO DE CASTRO LIMAi

Resumo: O presente artigo é um breve estudo sobre a tortuosa trajetória do


desenvolvimento brasileiro nas décadas de 1960 e 1970. Embora sejam lembrados como os
anos do “milagre” econômico, esse período foi marcado por uma constante correção de rota
pelo governo brasileiro. Por trás dos elevados índices de crescimento econômico, houve uma
variedade de projetos de desenvolvimento durante esses anos, que não permitem que se trate
do período militar como se fosse homogêneo. Do golpe de 1964 até o fim do governo de
Geisel, é possível perceber a dinâmica desse processo.
Palavras-chave: Substituição de Importações. II PND. Milagre Econômico. Geisel. Brasil
potência.

Abstract: The present article is a brief study about the tortuous path of the brazilian
development in the 1960’s and 1970’s. Thought them may be remembered by the economic
“miracle” years, this period was mark by a persistent route correction by the brazilian
government. Behind the high rate growth, there was a variety of development projects
during those years, which do not allow treat the period as a whole. From the 1964 coup to
the end of Geisel’s government is possible to realize the dynamism of this process.
Keywords: Imports Substitution. II PND. Economic Miracle. Geisel. Brazil Power.

INTRODUÇÃO fordista através da industrialização substitutiva


de importações, com grande participação do
Após a Segunda Guerra Mundial, capital externo, por meio da participação das
muitos países empreenderam um processo de empresas multinacionais no desenvolvimento
desenvolvimento acelerado de suas forças industrial destes países.
produtivas, através de projetos industrializantes O primeiro passo na industrialização foi
que se supunham capazes de superar o atraso o modelo de substituição de importações,
econômico e social em que se encontravam. A voltado majoritariamente para o atendimento
partir da década de 1930 esses países aos do mercado interno e viável para o Terceiro
poucos deixaram de desempenhar o papel Mundo enquanto o mercado mundial estava
exclusivo de fornecedores de matérias primas e desarticulado e o comércio estagnado como
produtos primários para as economias resultado da Depressão dos anos 1930. Mas a
desenvolvidas, configurando assim uma nova posterior expansão do comércio mundial e do
Divisão Internacional do Trabalho. A partir da sistema de crédito internacional abriu novas
Crise de 1929 e especialmente na década de possibilidades de desenvolvimento para os
1950 uma nova DIT começa a se caracterizar países da periferia, como pode ser observado
pela inclusão da periferia capitalista no círculo

34
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

em experiências bem sucedidas de países do instalavam no País para a produção de bens


Leste Asiático, como a Coréia do Sul. industriais, mas perdeu progressivamente o
Outro argumento importante a ressaltar fôlego a partir do início dos anos 1960. O
é a expansão das empresas multinacionais, crescente peso das importações na balança
especialmente norte-americanas, a partir da comercial causado por esse modelo foi o fator
década de 1950. Essa expansão se colocou culminante de sua exaustão: as necessidades de
como uma nova alternativa para o produtos importados, sobretudo bens de
desenvolvimento dos países periféricos, abrindo capital, aumentam em decorrência do próprio
possibilidades e também problemas para esses processo de desenvolvimento econômico. O
países. Já a partir dos anos 1970, as mudanças regime militar instaurado pelo golpe de 1964
no capitalismo mundial colaboraram para buscou alternativas ao modelo de substituição
tornar esse modelo inviável, orientando de importações que impulsionou
estratégias de desenvolvimento que não mais aproximadamente 30 anos de elevado
enfatizavam o mercado interno. A partir dessa crescimento econômico que caracterizaram a
década, a industrialização passa a ser financiada economia do País desde os anos 1930. Nesse
cada vez mais com créditos externos, sobretudo ínterim, o Brasil não participava intensamente
privados, advindos do sistema bancário do comércio internacional, dado que priorizava
internacional, a serem cobertos com divisas o mercado interno, adotando medidas políticas
provenientes de superávits de exportação. de caráter mais protecionista, o que criava um
É importante lembrar que a ambiente contrário às aspirações das
industrialização substitutiva de importações não multinacionais para exportar a produção. Sobre
altera substancialmente a dependência dos o modelo de industrialização por substituição
países periféricos, apenas a redefine em outros de importações, Bresser Pereira afirma que
termos. Segundo Altvater, “os países e/ou
regiões em processo de industrialização A industrialização brasileira realizou-se de
precisam tentar superar a parcialidade da acordo com esse modelo de
industrialização resultante de uma estratégia de desenvolvimento. A economia voltou-se
para dentro. O coeficiente de
recuperação do atraso” (ALTVATER, 1995, p.
importações, ou seja, a relação entre as
187). O objetivo era assim definido. importações e a renda, baixou
violentamente. Girava em torno de 22%
INDUSTRIALIZAÇÃO POR VIA DA no fim dos anos vinte e havia caído para
SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES aproximadamente 7% no início dos anos
sessenta. A industrialização realizou-se
Em primeiro lugar, quanto à com a substituição dos bens
industrialização brasileira, é importantíssimo anteriormente importados, enquanto que
considerar que esta foi concebida em larga as exportações permaneciam
medida com a participação do capital relativamente estagnadas. (BRESSER
multinacional, que deu sustentação mesmo a PEREIRA, 1973, p. 122)
projetos industrializantes de forte cunho
nacionalista, como os preconizados por Vargas Esse panorama mudou após 1964,
e Geisel. Fiori deixa isso claro na seguinte quando o regime militar passou a oferecer
passagem: “com Vargas, fez-se a opção que vantagens maiores às multinacionais, além de
Geisel levou às últimas conseqüências: uma garantias econômicas e políticas. Também foi
industrialização pesada realizada com o decisivo iniciada uma política de crédito que priorizava o
aporte do capital internacional” (FIORI, 1995, capital estrangeiro e oferecia incentivos às
p.80). exportações de manufaturados, em benefício
O modelo brasileiro de industrialização deste mesmo capital. Além, é claro, do baixo
via substituição de importações foi amplamente preço da mão-de-obra. Em 1974, Paul Singer
amparado pelas multinacionais que se escrevia que “a notória expansão de nossas
exportações nos últimos dez anos, não resultou

35
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

de nossa superioridade tecnológica” como


ocorreu com Japão e Alemanha, “mas da A indústria local deveria produzir bens em
abundância de nossos recursos naturais e do grande quantidade e vendê-los aos países
baixo custo de nossa mão-de-obra” (SINGER, ricos a baixos preços, viabilizando assim,
1977, p.91). Bresser Pereira traça um panorama com as divisas obtidas, a compra de
da situação política e econômica em que o tecnologia e os equipamentos necessários
à ampliação do processo acumulativo. Em
Brasil se encontrou no período pós-1964, em síntese, a condição essencial para o
uma extensa passagem de grande valia: funcionamento do modelo era que as
exportações deveriam crescer num ritmo
O modelo de substituição de importações
mais rápido do que as importações.
está definitivamente superado. O novo
(PIRES, 2003, p. 110)
modelo de desenvolvimento tem
características inteiramente diversas. No
plano político, o populismo, o O AJUSTE MILITAR
nacionalismo desenvolvimentista, e a
tentativa de atribuir a liderança econômica Para possibilitar um período de
e política do país à classe em ascensão dos expansão dentro dos novos moldes
empresários industriais são fenômenos exportacionistas preconizados pelo Governo
totalmente superados. Militar seria necessário combater a inflação,
No plano econômico, o coeficiente de reduzir o gasto público e ajustar a política
importações não está mais baixando. Pelo salarial em favor do capital, alterando
contrário, tende a aumentar. Nossa pauta substancialmente a concentração de renda
de exportações não permanece estagnada nacional. Para isso, o governo Castello Branco
nem quantitativa, nem qualitativamente.
Pelo contrário, nossas exportações
adotou o PAEG - Plano de Ação Econômica
aumentaram de uma forma dramática a do Governo, sob a orientação dos ministros
partir de 1966 e nossa pauta de Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos,
exportações diversifica-se rapidamente, que defendiam uma política monetária
com um grande crescimento da ortodoxa, que prezasse pelo controle dos
exportação de manufaturados. Alguns preços e limitasse o poder de compra. As
produtos estão ainda tendo sua políticas de ajuste criavam as condições
importação sendo substituída pela necessárias para a consolidação do modelo de
produção interna, mas o fator dinâmico acumulação resultando no “milagre”, quando as
do desenvolvimento industrial brasileiro altas taxas de crescimento foram impulsionadas
deixou de ser o processo de instalação de pelos setores beneficiados pelo regime e
novos setores industriais e conseqüente
substituição das importações por
também pelo endividamento externo. Todavia,
produção nacional. Baseia-se agora no também existiam efeitos colaterais: ampliação
crescimento do mercado interno e da dependência de importações (sobretudo de
externo e no aprofundamento dos setores máquinas e equipamentos), e uma piora
industriais já instalados. (BRESSER considerável na distribuição de renda que levava
PEREIRA, 1973, p.134) a um quadro de aumento da pobreza. Singer
(1977), afirma que as mudanças ocorridas na
O novo modelo que os militares política econômica após 1964 configuram-se
defendiam baseava-se na exportação de bens como resultado de um novo equilíbrio de força
industriais, sustentado pelo baixo nível de entre as classes. O PAEG pode ser
consumo interno e arrocho salarial, gerando compreendido como uma expressão nítida
assim altas taxas de acumulação. Dever-se-ia desse novo equilíbrio, que transferia o ônus do
abandonar o modelo de industrialização por combate à inflação para a classe trabalhadora,
substituição de importações e adotar um padrão através das reformas trabalhista e tributária,
de crescimento voltado para fora. Segundo além do aumento à repressão às entidades
Pires representantes de classe.

36
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

De qualquer forma, econômica e mas cria dependências em duplo sentido:


politicamente estavam criadas as bases para o depende da intenção dos países centrais de
crescimento. E o crescimento econômico no oferecerem uma parcela crescente de seus
período do “milagre” (1968-1973) baseava-se mercados internos às importações do Terceiro
na expansão do setor de bens de consumo Mundo e também depende do grau crescente
duráveis, situação retratada por Pires da do fornecimento externo de tecnologia,
seguinte maneira: “os resultados positivos equipamentos e até mesmo de algumas matérias
verificados na expansão 1968-73 deveram-se, primas. Ainda de acordo com Singer, sobre a
em princípio, à plena utilização da capacidade nova fase da industrialização brasileira:
industrial, que operava antes bem abaixo do
ideal, e, posteriormente, à expansão do setor de A política de industrialização adotada deu
bens de consumo duráveis” (PIRES, 2003, prioridade aos novos ramos de
p.129). exportação, limitando a substituição de
A indústria automobilística foi o grande importações a algumas indústrias de bens
propulsor do crescimento econômico brasileiro intermediários, sem estendê-la a setores
vitais, como o de equipamentos que
durante o período do “milagre”, puxando a
incorporam tecnologia de vanguarda [...]
produção dos bens de consumo duráveis, iniciamos, a partir de 1964, um novo ciclo
sobretudo através da larga difusão do consumo de nossa história econômica – o das
dos automóveis de passageiros. No Gráfico 1, exportações de produtos industriais – o
podemos observar a expansão do setor durante qual promete repetir os anteriores,
o período 1968-1974 e sua posterior estagnação trazendo prosperidade para determinadas
e até depressão após o ano de 1975, o que áreas e grupos, cujo caráter efêmero
confere um bom exemplo do desempenho decorre dos altos e baixos da economia
econômico do período: capitalista mundial, aos quais ele se
encontra inapelavelmente atrelado.
Gráfico 1 – Produção de automóveis de passeio (SINGER, 1977, p.94)
no Brasil 1965-1979 (em unidades)
Esse atrelamento cria uma situação de
fragilidade ante as oscilações do mercado
mundial, observada durante a crise de 1973: o
600 000 País não teve capacidade de restringir suas
500 000 importações quando sua capacidade de
400 000 importar sofreu uma queda, sendo obrigado a
300 000 recorrer ao endividamento externo ou ao uso
200 000 de reservas cambiais. Como se sabe, o ano de
100 000
1973 marcou o fim do longo período de
1965 1967 1969 1971 1973 1975 1977 1979 ascensão da economia capitalista mundial do
pós-guerra. A situação da economia brasileira
tornou-se bem delicada no período, pois o
Fonte:Adaptado de IBGE
crescimento acelerado de 1968-73 foi
impulsionado pelo crescente endividamento
Para Singer (1977), a orientação externo, decorrente da fase ascendente da
econômica pós-64 foi voltada inteiramente para economia mundial que agora se encontrava em
aproveitar as oportunidades que a nova meio a uma crise de desaceleração do comércio.
estratégia das multinacionais oferecia ao país, Para agravar o quadro, o Brasil era o 3º maior
ou seja, a posição de entreposto industrial, importador de petróleo, atrás apenas de
reservada a função de desenvolver a produção Estados Unidos e Japão.
que requer mão-de-obra abundante e recursos Para o Brasil, a interrupção do
naturais. Essa inserção pode parecer vantajosa, crescimento acelerado dos anos do milagre e a
própria crise energética mundial que se

37
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

desenhava foram momentos de redefinição da desenvolvimento nacional no contexto


política econômica e de planejamento. Se por político do pós-guerra, tinha em sua
um lado a economia perdia o ímpeto de localização geográfica na capital muito
crescimento que caracterizou o período mais do que uma coincidência, um desejo
anterior, agora a estratégia era assegurar um manifesto de influir nos rumos da política
nacional. De fato, na seqüência histórica,
crescimento razoável perante as circunstâncias
a ruptura institucional de 1964 reservou à
adversas. Carneiro (2002) aponta que os países ESG um importante papel, pois, a partir
subdesenvolvidos não exportadores de petróleo de suas formulações doutrinárias, foi
sofreram um duplo golpe em 1973: a elevação possível a um grupo de militares e civis
dos preços do petróleo e o aumento das taxas não somente elaborar um projeto político
de juros ocasionado pela ruptura dos acordos para o país, que articulasse de forma
de Bretton Woods. Tais países tiveram que coerente segurança com desenvolvimento
arcar com o aumento de preços dos produtos econômico, como também catapultar
industrializados importados dos paises muitos dos seus quadros à estrutura
desenvolvidos sem ter em contrapartida um estatal "pós-revolução", o que ficou
aumento nos preços de suas exportações. cristalizado na ascendência do general
Castelo Branco à Presidência da
Quanto aos juros, como os preços das República. Ele mesmo um esguiano.
exportações desses países declinavam, a carga (SANTOS, 2007, p.155)
de juros constante passou a requerer um maior
volume de exportações para seu pagamento. A preocupação com o tema “segurança
É nesse contexto que se inicia o acional” ocupa o centro dos debates da ESG
governo do General Ernesto Geisel, no ano de até fins dos anos 1960, quando a temática do
1974. Para compreender esse período que se “desenvolvimento” passa a constituir também
inicia tanto na política quanto na economia um importante ponto de discussão. É a partir
brasileira, é de grande importância conhecer destes dois temas que a idéia de Brasil potência
alguns princípios-chave que nortearam a ganha força dentro da ESG. De acordo com
atuação presidencial de Geisel, sobretudo suas Miyamoto (1981), é no período do governo
concepções de construção de uma nação- militar que a ESG encontra a oportunidade
potência, que serão expressos em diversos para implementar seu projeto de
momentos de seu governo, sobretudo no desenvolvimento e segurança, visando o
tocante à política de desenvolvimento. fortalecimento do poder nacional. Esse projeto
é desenvolvido principalmente a partir do
ERNESTO GEISEL E A CONCEPÇÃO governo Médici, quando o conceito de Brasil
DO BRASIL POTÊNCIA potência é mencionado oficialmente pela
primeira vez, no Plano de Metas e Bases.
A indicação do General Ernesto Geisel É também a partir do governo Médici
para a presidência constituiu um momento que a ênfase na projeção do potencial nacional
importante de mudança dentro do regime passa do plano territorial-estratégico para um
militar, por ser uma ruptura com a chamada plano econômico, reflexo do acelerado
“linha-dura”, representada nos mandatos de crescimento que o País experimentava à época.
Costa e Silva e Médici, e um retorno de um Mas é no governo Geisel que o projeto nacional
representante da ESG – Escola Superior de é levado adiante de forma mais consistente,
Guerra – ao topo da política nacional. embora o País atravessasse uma época de
A ESG é fundada em 1949, na então desaceleração do crescimento econômico após
capital da República, o Rio de Janeiro. De 1974. Paradoxalmente, as circunstâncias
acordo com Santos: adversas que se colocam no período, tanto no
plano externo quanto interno acabam
Esta escola, como um "centro misto de
estudos militares e civis", onde se
colaborando para a consecução de tal projeto,
elaboravam alternativas aos obstáculos do que ganhou forma mais acabada com o II Plano

38
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

Nacional de Desenvolvimento (II PND) para econômico, por meio da conclusão do


retomar o processo de crescimento através da processo de substituição na indústria de
internalização da produção de equipamentos, bens de capital (BOARATI, 2005, p. 36)
insumos industriais e energia, tendo como
objetivo principal reorganizar o parque Assim, considerando a importância do
industrial brasileiro. desenvolvimento de um amplo projeto nacional
Essa concepção de Brasil potência a pelo II PND, passamos para uma análise mais
partir do plano econômico é bem representada detida do Plano, compreendendo seus objetivos
por Boarati (2005, p.20) na seguinte passagem: e aspectos centrais, bem como sua
“A idéia básica que norteia a política econômica racionalidade econômica. Logo nos parágrafos
durante toda a década de 70 é a do ‘Brasil iniciais do I Capítulo do Plano, torna-se patente
Potência’”. Essa ênfase dada à potência a preocupação do Governo em demonstrar um
econômica é também um resultado da projeto nacional solidamente constituído, tendo
repressão sistemática aplicada pelo regime por base o acelerado desenvolvimento
militar aos seus opositores, o que supostamente econômico do País nos anos anteriores, em um
teria garantido a segurança necessária para a discurso impregnado de otimismo. Vejamos:
implantação de um projeto nacional com
O Brasil pode, validamente, aspirar ao
objetivos claramente definidos, uma vez
desenvolvimento e à grandeza.
afastadas as possibilidades de sucesso dos Na última década, principalmente,
projetos ditos “subversivos” pelo regime, que mostrou a Nação ter condições de realizar
assim conseguiram criar um ambiente de maior política de país grande, com senso de seu
“tranqüilidade”. próprio valor e consciência de
Como é apontado por Lessa (1988), responsabilidade — o habitual preço da
toda a confiança no destino grandioso do Brasil grandeza. Ao mesmo tempo, mostrou-se
de início dos anos 1970 é representada no II apta a realizar uma experiência de
PND, que seria o caminho para concluir a desenvolvimento eminentemente
condição de potência do País, “retomando a dinâmica, associando a vontade política,
idéia de Nação como um projeto a construir, pela mobilização nacional, à capacidade de
fazer, pela ação do setor público, da
cuja viga mestra agora terá, finalmente, sua iniciativa privada e da comunidade. Assim
concretagem concluída” (LESSA, 1988, p.53). pôde o País efetivar, em alto grau, o seu
Ao se enquadrar o II PND como uma potencial de crescimento e dimensão
dimensão do projeto de nação potência, entra- econômica.
se em conflito com a visão de que o Plano seria Até o final da década, estará o Brasil sob a
apenas uma resposta á crise econômica e égide de duas realidades principais: a
energética que se avultava no período, sendo consciência de potência emergente e as
sentida inclusive já no declínio das taxas de repercussões do atual quadro
crescimento da economia brasileira para o ano internacional. (II PND, 1974, p.23)
de 1974. De acordo com Boarati,
O Plano consistia em um amplo
mais do que uma resposta estrutural à programa de investimentos cujos objetivos
crise econômica que assolava a economia eram transformar a estrutura produtiva e
brasileira naquele período, o II PND pode superar os desequilíbrios externos, conduzindo
ser definido como uma estratégia o Brasil a uma posição de potência consolidada
integrada de desenvolvimento nacional no cenário mundial. Os quatro eixos centrais do
que poderia ser entendida, inclusive, II PND eram: modificações na matriz
como a percepção de que as taxas de
crescimento do período anterior não
industrial, ampliando a participação da indústria
poderiam ser mantidas, caso o país não pesada; acentuação da importância da empresa
realizasse um ajuste estrutural de sua privada nacional; desconcentração regional da
economia, autonomizando o crescimento atividade produtiva; melhoria na distribuição de
renda. Significava não apenas um plano de

39
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

crescimento econômico, mas um plano de insumos básicos e bens de capital. Ocorre,


reestruturação produtiva que transformaria o porém, que o atraso relativo destes setores
país, segundo a óptica de seus elaboradores, constitui o próprio estigma, no plano
denotando a aspiração à condição de Nação industrial, do subdesenvolvimento. Neste
potência, por meio de uma transformação sentido, o II PND propunha superar,
conjuntamente, a crise e o
estrutural.
subdesenvolvimento (CASTRO &
Carneiro faz uma sólida crítica ao Plano SOUZA, 1985, p.33).
na seguinte passagem:
A “opção de 74”, ainda conforme
O momento de realização do programa apontada por Castro & Souza (1985), seria um
foi inadequado em razão da conjuntura caminho para a recuperação do atraso
internacional recessiva e da desaceleração
industrial, o que para o autor seria uma
cíclica interna; o programa carecia de
maior articulação entre os investimentos, verdadeira transformação, tanto da economia
havendo um visível como de seu relacionamento com o exterior,
sobredimensionamento em particular no agindo diretamente sobre a formação de capital
que se referia aos bens de capital sob e atacando os problemas pela raiz. A autonomia
encomenda; recorreu-se excessivamente em setores básicos era perseguida e a crise
ao financiamento externo, ao mesmo energética conferia o caráter dos investimentos
tempo em que se descuidava da questão nesse campo, que marcaram o II PND.
energética, vulnerabilizando a economia a Investimentos em fontes alternativas de energia
novos choques externos; a manutenção como o etanol e a energia nuclear, além da
do crescimento acelerado a qualquer construção de usinas hidrelétricas foram
preço teve como justificativa última o
atendimento ao conjunto de interesses
realizados no período, denotando a
que sustentavam o regime autoritário preocupação com o abastecimento energético
convertendo o Estado no principal necessário para a implantação de um plano
instrumento desse desiderato industrializante que aspirava elevar o País à
(CARNEIRO, 2002, p.59) condição de desenvolvido.
Sobre tais investimentos, é importante
De acordo com Castro & Souza (1985), considerar que foram financiados em boa parte
esse programa concebe o Brasil como um país com capital externo através de empréstimos
em processo de desenvolvimento (notável pelos realizados junto a bancos estrangeiros que
anos de crescimento do “milagre”) que, no procuravam reciclar os petrodólares advindos
decorrer deste processo, teria sido atingido pela dos enormes lucros que os países exportadores
crise energética (dentre outros fatores de petróleo obtinham com a alta de preços de
exógenos) e face às novas circunstâncias era 1973. Dessa forma, com muita liquidez
uma redefinição da rota, desde que não disponível, o juro para empréstimos baixou
alterasse o objetivo principal de construção de consideravelmente, e tomar dinheiro
uma moderna economia industrial. Para o emprestado para financiar projetos de alto
autor, a economia brasileira entrava num custo parecia uma excelente alternativa, pois
período de “marcha forçada”. A nova política muitas vezes os juros eram até mesmo
propunha a reorientação do processo de negativos, favorecendo a tomada de
crescimento, ao tirar de foco a produção de empréstimos pelos países da periferia.
bens de consumo duráveis e buscar o Posteriormente, com a alta dos juros
desenvolvimento de setores pesados como comandada pelos EUA em fins dos anos 1970,
siderurgia, petroquímica, fertilizantes e metais o valor da dívida externa advinda dos
não ferrosos. Ainda segundo o autor: empréstimos que eram aparentemente fáceis
transformaram-se no pesadelo dos países
Finalmente, a nova política escolhia subdesenvolvidos, e o Brasil não fugiu à regra.
superar a atrofia de setores produtores de O episódio criou um pânico bancário no

40
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

sistema mundial, dado o perigo iminente da — Matérias-Primas para a Indústria


insolvência de tais países, que agora tinham Farmacêutica;
uma dívida muito maior a pagar caracterizando — Cimento, Enxofre, outros minerais não-
a Crise da Dívida. Assim, a opção por metálicos;
financiamento externo mostrou-se uma escolha Segundo consta no texto do II PND,
muito delicada dada a inconstância do mercado esses investimentos intensivos seriam
mundial em um período que se iniciava estratégicos, pois
marcado pela volatilidade e incerteza no cenário
externo. Por outro lado, deverá o País afirmar o
Retornando ao II PND, a opção de seu poder de competição em indústrias
desenvolvimento industrial pesado e intensivo altamente intensivas de energia elétrica,
adotada no ano de 1974 constitui um aspecto inclusive para exportação (a exemplo do
importante de um debate central na discussão alumínio), tendo em vista tirar proveito
dos seus amplos recursos em
do Plano: apesar da intenção de industrializar o
hidroeletricidade (II PND, 1974, p.17).
país e recuperar a economia do atraso em
setores básicos e estratégicos, o Brasil não Assim, o II PND pode ser considerado
estaria na contramão da história ao se analisar a também como um retorno à idéia de
conjuntura inaugurada com a crise do início da substituição de importações, ainda que não com
década? Ou seja, considerando dada a situação a mesma ênfase setorial do período anterior, no
de crise energética, o investimento em setores qual predominaram as substituições de
energo-intensivos constituiria um erro importações no setor de bens de consumo, uma
estratégico, pois a inviabilidade de tais setores já própria decorrência do aproveitamento da
era patente, e mesmo nos países centrais já era instalação das multinacionais discutida
visível a busca por alternativas que consistissem anteriormente. Com o II PND, a ênfase
em um padrão que fosse “menos fordista” o passava para o setor de bens industriais,
possível. O Brasil perseguia a consolidação de máquinas e equipamentos, com a finalidade de
um padrão fordista que se mostrava se evitar os gargalos causados pelo
enfraquecido em praticamente todo o mundo subinvestimento nesses setores, o que também
capitalista desenvolvido. colaborou para o fim do “milagre”. Isso fica
Porém as diretrizes apresentadas no expresso na passagem “(...) o fato de que a nova
Plano iam de encontro ao que poderia-se fase de substituição de importações se vai
chamar de um “fordismo tardio”, ou seja: acelerar, principalmente quanto à setores
“Desenvolvimento dos setores de base e, como básicos, para corrigir desbalanceamentos na
novas ênfases, particularmente da Indústria de estrutura industrial e para poupar divisas” (II
Bens de Capital, da Indústria Eletrônica de Base PND, 1974, p. 37).
e da área de Insumos Básicos” (II PND, 1974, Essa mudança de foco proporcionada
p.38). Tais investimentos em insumos básicos pelo II PND é um ponto importantíssimo para
preconizados pelo Plano seriam realizados nas a compreensão do período, e não ocorreu de
seguintes áreas: forma tranqüila. Para Corsi (2002), o setor de
— Produtos Siderúrgicos e suas matérias- bens de consumo duráveis, representado por
primas; uma parte considerável da burguesia brasileira
— Metais Não-Ferrosos e suas matérias-primas; não apoiava o plano, por ser retirado do foco
— Produtos Petroquímicos e suas matérias- dos investimentos prioritários para este setor.
primas; Há uma citação em Lessa (1988) que ilustra
— Fertilizantes e suas matérias-primas; bem esse quadro:
— Defensivos Agrícolas e suas matérias-
primas; (...) entre 1973 e 77, a participação dos
— Papel e Celulose; projetos de bens de capital aprovados

41
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

pelo CDI1 passou de 5% para 18%, em mudança de foco. Para Boarati, por exemplo, o
relação ao total dos investimentos fixos plano independe da crise, pois
previstos nos projetos. Os projetos de
insumos básicos (matérias-primas e bens Existem diversos elementos que
intermediários) aumentam sua demonstram que o projeto do II PND,
participação, em igual período, de 43,7% em linhas gerais, já estava pronto e seria
para 73,7%, relativamente ao total dos implementado independente da crise do
investimentos fixos aprovados. Em petróleo. Esta última seria responsável
decorrência da mudança de prioridades, somente pelo grau de urgência com que o
os projetos referentes às indústrias plano é apresentado à sociedade naquele
automotiva e de bens de consumo momento e pelo grande foco do plano em
perderam importância relativa, com suas uma política de energia que reduzisse a
participações caindo de 30% e 20,8% para dependência em relação à fontes externas.
5,5% e 2,6%, respectivamente. Outro (BOARATI, 2003, p. 36)
aspecto a refletir o acerto da política
adotada é a crescente participação da Sendo o II PND considerado ou não
indústria nacional no fornecimento de como uma resposta à crise internacional, os
equipamentos aos projetos aprovados investimentos em setores energéticos são um
pelo CDI, já que, em termos de valor
cresceu de 36% para 68%, entre 1973 e
ponto crucial para a realização do Plano como
1977. Por outro lado, a contribuição do um todo, constituindo um de seus principais
capital nacional no montante dos pilares de sustentação, e alimentando não
investimentos fixos aprovados evoluiu apenas o crescimento econômico, mas a
entre 1974 e 1977, de 76% para 91% ideologia do Brasil potência. Isso fica expresso
(Mensagem ao Congresso Nacional 1978 na seguinte passagem de Lessa:
apud LESSA, 1988, p.152)
A opção em matéria energética melhor que
Estes valores transparecem nitidamente outras ilustra a idéia de que o II PND fez
os reflexos dessa mudança de foco que tanto da “crise do petróleo” a justificativa para a
desagradou aos empresários do setor de bens proclamação serena e não traumática do
de consumo duráveis. projeto de potência nascido no interior do
aparelho do Estado. Em matéria de energia
optou-se por uma “revolução marginal”,
CONSIDERAÇÕES FINAIS demonstrada sua necessidade com o
argumento da crise. Porém, a mesma crise
O sonho do desenvolvimento, o não intimidou o suficiente para a adoção de
“milagre” havia esbarrado na atrofia dos setores políticas de contenção do desperdício e de
industriais básicos, havendo um descompasso conservação energéticas. Neste sentido, a
seu crescimento e o crescimento do setor de opção energética se inscrevia medularmente
bens de consumo duráveis, de tal forma que o na visão estratégica e ao mesmo tempo
crescimento do produto ficava condicionado à preservava a mística do milagre.
expansão das importações. Portanto, se Benevolente com os padrões correntes de
colocava como necessário atacar o déficit nos consumo e utilização de energia e arrojado
em seu projeto de longo prazo, o Príncipe
setores básicos da indústria, configurando a de ter considerado sua opção magnífica
ruptura com o modelo adotado pelos militares (LESSA, 1988, p. 105).
de 1964 até 1973.
Uma outra interpretação corrente é a de Por fim, é importante fazer algumas
que o Plano deve ser considerado como uma considerações que não devem ser esquecidas,
resposta à crise energética e econômica ainda que sejam aqui apenas brevemente
mundial, uma visão um tanto simplista e que introduzidas, dado o escopo deste trabalho.
desconsidera os condicionantes internos da Trata-se do cenário subjacente à esse quadro de
mudanças ocorridos na orientação da política
1
Comissão de Desenvolvimento Industrial

42
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

de desenvolvimento durante o período CASTRO, Antônio Barros de; SOUZA,


estudado: o Brasil vivia um período ditatorial e Francisco Eduardo Pires de. A Economia
isso acarreta enormes conseqüências. A Brasileira em Marcha Forçada. Rio de Janeiro, Paz
repressão desencadeada a partir de 1964 e e Terra, 1986.
intensificada em 1968 com o lançamento do
Ato Institucional n°5 (AI-5), serviu para CORSI, Francisco Luiz. A Questão do
silenciar as vozes opositoras do regime militar, Desenvolvimento à Luz da Globalização da Economia
exercendo enorme pressão inclusive sobre o Capitalista. In: Revista de Sociologia Política,
movimento operário, que somente volta a se Curitiba, 19, 11-29, nov. 2002.
manifestar novamente de maneira autônoma
em fins do Governo Geisel, com as greves de FIORI, José Luís. Em Busca do Dissenso Perdido:
1978 no ABC. O estrito controle sobre o Ensaios Críticos sobre a Festejada Crise do Estado.
movimento operário foi uma das chaves que Insight, Rio de Janeiro, 1995.
possibilitaram ao regime militar assegurar a
lucratividade dos investimentos na indústria. E INSTITUTO BRASILEIRO DE
em meio a torturas, mortes e desaparecimentos, GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas
é de suma importância lembrar que, IBGE Século XX. Disponível em
especialmente nas décadas de 1960 e 1970, o <www.ibge.gov.br/seculoxx/default.shtm>.
Brasil teve seu crescimento manchado de Acessado em 17/06/2007.
sangue.
LESSA, Carlos. A Estratégia de Desenvolvimento:
REFERÊNCIAS Sonho e Fracasso. Brasília, Funcep, 1988.

ALTVATER, Elmar. O Preço da Riqueza. São MIYAMOTO, Shiguenoli. O Pensamento


Paulo, Ed. Unesp, 1995. Geopolítico Brasileiro (1920-1980). São Paulo,
USP, 1981, 287p., Tese (mestrado) Programa de
BOARATI, Vanessa. A Discussão entre os Pós Graduação em Ciências Sociais (área de
Economistas na Década de 1970 sobre a Estratégia de Ciência Política), Faculdade de Filosofia,
Desenvolvimento Econômico II PND: Motivações, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo,
Custos e Resultados. São Paulo, FEA/USP, 2003, São Paulo, 1981.
109 p., Tese (Mestrado), Programa de Pós
Graduação em Economia, Faculdade de PIRES, Marcos Cordeiro. Dependência de
Economia e Administração, Universidade de Importações e a Crise da Mundialização: Crescimento e
São Paulo, São Paulo, 2003. Flutuação na Economia Brasileira 1980-2000. São
Paulo, USP, 2002, 381 p., Tese (Doutorado)
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. O Programa de Pós Graduação em História
Novo Modelo Brasileiro de Desenvolvimento. Econômica, Faculdade de Filosofia, Letras e
Revista Dados, Rio de Janeiro, n. 11, p. 122-145, Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
1973. São Paulo, 2002.

BRASIL. O II Plano Nacional de Desenvolvimento –


II PND: Lei n.º 6.151, de 4 de dezembro de 1974. SANTOS, Everton Rodrigo. Ideologia e
DOU de 6 de dezembro de 1974, 149 p. dominação no Brasil (1974-1989): Um Estudo Sobre
a Escola Superior de Guerra.In: Sociedade e
CARNEIRO, Ricardo. Desenvolvimento em Crise: a Estado, vol.22, n.01, Jan-Abr 2007.
Economia Brasileira no Último Quarto do Século XX.
São Paulo, Ed. Unesp, IE Unicamp, 2002. SINGER, Paul. A Crise do Milagre: Interpretação
Crítica da Economia Brasileira. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1977.

43
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

i
Mestrando pelo Programa de ~Pós-graduação em
Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências,
campus de Marília da Universidade Estadual Paulista -
UNESP

44

You might also like