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Scholem Aleichem:
uma vanguarda pedagógica
Vinte e cinco anos depois de encerrar suas atividades, o pioneiro Ginásio
Israelita Brasileiro Scholem Aleichem mantém-se como referência para
centenas de ex-alunos e profissionais da educação. Por Lilian Starobinas

A história do Ginásio Israelita Brasi-


leiro Scholem Aleichem é um
capítulo ainda pouco estudado na
trajetória da comunidade judaica de São
Combate ao fascismo
O fim da 2ª Guerra Mundial e da ditadura
do Estado Novo, em 1945, proporcionou
um momento de grande vitalidade para o
arrojado edifício da rua Três Rios, no
bairro paulistano do Bom Retiro.
A cultura ídiche estava presente nas
casas e nas ruas do Bom Retiro. Gerações de
Paulo, apesar da riqueza dessa experiência judaísmo progressista no Brasil, dado o imigrantes mantinham o idioma na edu-
e da influência que exerceu em outras ini- prestígio das forças principais de resis- cação de seus filhos, na comunicação com
ciativas pedagógicas no Brasil. Fundado tência e combate ao nazismo. A construção parentes no exterior, nos encontros sociais
em 1949, o gibsa buscava a disseminação do Instituto Cultural Israelita Brasileiro entre amigos. A partir de 1946, quando foi
dos ideais antifascistas e progressistas (icib), mais conhecido como Casa do suspensa a proibição do uso de línguas
no cenário social brasileiro, por meio de Povo, foi a materialização de uma home- estrangeiras, o ídiche voltou a circular com
uma educação pluralista e inovadora, nagem aos combatentes do fascismo. Ao mais liberdade em jornais como o Nossa
perfil que manteve até encerrar suas Voz e nos programas de rádio. O esforço
atividades, há 25 anos. de restaurar a vitalidade da língua por
Fruto da intensa atividade dos judeus Fruto da intensa meio de suas expressões artísticas –
progressistas em São Paulo, a escola surgiu atividade dos judeus teatro, literatura e música – estava ligado
pela necessidade de criar espaços que refle- à compreensão de que a destruição na
tissem seus valores e dialogassem com a progressistas em São Europa tinha aniquilado milhares de vidas,
sociedade a seu redor. É, portanto, repleta Paulo, escola surgiu pela bem como colocado em risco uma forma
de episódios que apontam para o compro- de representar e vivenciar o mundo.
misso com a cultura judaica, em sintonia necessidade de criar “A Casa do Povo e a escola surgiram para
com a cultura brasileira. Bem definiu espaços que refletissem reunir a população judaica que não se iden-
num discurso o professor José Sendacz, tificava com uma existência religiosa”,
personagem chave na orientação do perfil os seus valores e afirma Marcos Ajzenberg, aluno da segunda
judaico da escola, o desafio que tinham dialogassem com a turma do Scholem e atual presidente do
pela frente: “Encontrar a síntese, entre- icib. No currículo escolar, a ênfase era dada
laçar judaísmo e brasilidade na formação sociedade ao seu redor à história do povo judeu, à literatura ídiche
da alma juvenil. (...) Essas são as tarefas da e ao domínio do idioma. As histórias da
escola progressista israelita brasileira Lererin Tzipe, a talentosa professora Cecília
neste país”. invés de um memorial estático para Althousen, compuseram o repertório de
Estas palavras resumem, de forma contemplação, o icib se estruturou como centenas de alunos. A celebração das festas
singela, uma proposta educacional de 32 um centro de produção, reflexão e fruição judaicas ressaltava o caráter combativo e
anos de atividade ininterrupta, que de idéias e linguagens artísticas. O prédio os valores de liberdade associados a uma
deixou marcas inconfundíveis na comu- erigido em 1953, especialmente para esta leitura histórica da tradição. Segundo
nidade judaica de São Paulo, e cujo legado finalidade, foi projetado pelo arquiteto Jacob Frydman, em Nossa Voz, em 1954:
pedagógico ainda se faz presente nas Ernesto de Carvalho Mange. Milhares de “Precisamos educar as novas gerações
melhores práticas educacionais do país. pessoas estiveram na inauguração do judias no Brasil como verdadeiros judeus –

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Fotos: Acervo Memória ICIB


que tenham compreensão e conhecimento
da nossa história e tradição, que se estendem
como longa corrente das lutas de liberdade,
desde os tempos de Judá Macabeu até os
heróis do gueto (...). E, ao mesmo tempo,
educá-los como verdadeiros cidadãos
brasileiros, que tenham alto as aspirações
humanitárias do povo brasileiro”.
Como Sendacz, Frydman tinha grande
envolvimento com o icuf (Idisher Cultur
Farband), o movimento internacional em
prol da cultural ídiche. Fundado em 1937,
em meio ao I Congresso Internacional de
Cultura Judaica em Paris, respondia com
medidas práticas ao clima fascista de inti-
midação cultural. Saiu de lá a determi-
nação de criar um conjunto de insti-
tuições onde a cultura ídiche encontrasse
condições de florescimento e dissemi-
nação: centros de cultura, escolas e clubes
para articular os judeus que se identifi-
cavam com as causas progressistas e
semear nas novas gerações uma mentali-
dade universalista, a sensibilidade às
questões locais e internacionais, a mobili-
zação à luta pela paz e pela igualdade
entre os povos.

Universalismo X Sionismo
A glorificação do ídiche e a notável
ausência da língua hebraica ajudam a
entender, por outro lado, o que levou à
fundação de mais uma escola judaica na
cidade de São Paulo. Recém criado o
Estado de Israel, era intenso o debate
sobre a adesão às posições sionistas, e o
Scholem diferenciava-se pelo questiona-
mento desse modelo. Há registros de cele-
bração do 29 de Novembro, dia em que se No alto, cena de rua no Bom Retiro, em frente ao prédio do Instituto Cultural Israelita
votou na onu a criação do Estado, e o hino Brasileiro: aplicação à realidade brasileira da tradição judaica de justiça social foi um dos
de Israel era cantado em várias progra- pilares ideológicos do Scholem. Acima, Jacob Frydman em apresentação artística, tendo ao
mações. No entanto, outros conteúdos asso- fundo um retrato do escritor Scholem Aleichem, entre as bandeiras de Israel e do Brasil
ciados à educação sionista, como conheci-
mento da geografia e valores patrióticos, de vida. O ideal do novo homem judeu, comunidade judaica de São Paulo foi se
história do sionismo e literatura hebraica, ligado ao trabalho no campo, ao vigor aproximando cada vez mais da orientação
não tinham lugar numa escola que tinha físico, à capacidade de autodefesa, habi- sionista”, afirma Max Altman, presidente
por ideal formar judeus universalistas. tante da terra de seus ancestrais bíblicos e da escola entre 1968 e 1980. “A Casa do
O posicionamento da Casa do Povo em falante da língua hebraica, estava distante Povo, com suas posições críticas, tornou-se
relação a Israel oscilou em diversos dos valores e da auto-imagem que os cria- uma voz isolada na política comunitária. O
momentos, ao sabor do contexto político dores da escola tinham de si. Por outro Scholem não obtinha nenhum apoio
internacional. Em nenhum momento lado, a Guerra Fria contribuía para inten- material por parte das demais instituições.”
aproximou-se de aprovar a alternativa de sificar as cisões entre os judeus progres-
um “Lar Nacional Judaico” como único sistas e a comunidade, dadas a forte Vanguarda pedagógica
caminho para a vida judaica. As críticas às influência soviética neste grupo e a apro- Em meio a esses e outros conflitos, o
posturas sionistas reagiam, em parte, à ximação cada vez mais intensa entre os Scholem destacava-se como espaço de
negação do judeu da Diáspora e seu modo Estados Unidos e o Estado de Israel. “A experimentação educacional, inovando

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coordenou a pré-escola e mais tarde foi


professora de artes e teatro. “A gente se
formou aqui, não veio formada de outro
lugar. A gente se fez fazendo”.
A pediatra Frima Grinspun, que dirigiu
a escola entre 1962 e 1968, garantiu na
equipe um olhar atento ao desenvolvi-
mento das crianças e às necessidades dos
adolescentes. Nas apostilas de formação
de professores, preservadas por Marina
Sendacz, há vários textos sobre a relação
entre escola e comunidade, psicologia do
desenvolvimento e sexualidade – temas
avançados para a educação da época.
Também é visível o intercâmbio com
outras iniciativas educacionais impor-
tantes naquele momento, como o Colégio
de Aplicação e a Escola Experimental da
Lapa, entre outras. A chegada do diretor
Odenis A. Módulo, em 1969, reforçou o
reconhecimento do Scholem no circuito
das escolas de vanguarda. A atuação de
Berenice Ferman, de 1977 a 1979 e de Sara
Cunha Lima, de 1980 a 1981, ambas ex-
alunas e ex-professoras da escola,
permitiu que se mantivesse uma orien-
tação coerente com a trajetória da escola.
A existência desse espaço educacional
atraiu jovens professores, que, estimu-
lados pela liberdade que havia na escola,
se dedicaram a propor formas diferentes
de aprender. Antonio Dimas, professor
titular de Letras da usp, foi um compo-
nente da equipe que, em 1966, criou as
turmas de Ginásio do Scholem. “A inter-
disciplinaridade era um princípio já
naquela época”, afirma Dimas. “O currí-
culo de história era o pilar a partir do qual
decidíamos as atividades das demais
matérias. Se o tema era Civilização do
Açúcar, a literatura, a geografia, as artes
No alto, Dona Ilina Ortega ensaia alunos para a fanfarra e, acima, alunos na associavam seus conteúdos à proposta.”
aula de artes, em foto de 1969: diversidade e criatividade na educação Um estudo do meio na Bahia – de ônibus,
infantil derivaram de uma proposta pedagógica que consistia em valorizar o na década de 60 – foi parte da experiência
potencial dos alunos, sem levar em conta origem étnica, cultural ou social dessa turma. “A gente começava a estudar
antes mesmo de chegar à estrada. O
em termos metodológicos e nas opções experiência na militância comunista estudo do meio era um momento de
curriculares que adotava. Eliza Kaufman incitou em Eliza a necessidade de unir trabalho”, relembra Dimas.
Abramovich, diretora da escola entre teoria e prática, e a direção de uma escola A valorização da criatividade perpas-
1958 e 1962, foi um nome central na lide- como o Scholem apresentou-se como um sava toda a vida escolar do aluno. Nas
rança desse processo. Autodidata, reunia a terreno fértil para materializar ideais que paredes da pré-escola, as fotos mostram a
erudição das leituras à confiança no rompiam com a camisa-de-força do sistema produção das crianças, numa orientação
talento dos professores e orientadores que de educação formal. “O que me parece menos preocupada com a estética do
contratava. Apostava numa escola dinâ- importante no Scholem é essa não rigidez resultado do que com a liberdade de
mica, na qual os professores continuavam em relação à burocracia e titulações”, criação e a experimentação de técnicas
estudando e eram incentivados a criar. A afirma a escritora Fanny Abramovich, que variadas. A idéia de projetos temáticos

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também povoava a rotina das crianças: Um lugar para a utopia O alto custo do projeto, detalhista na
se o tema era “animais”, traziam-se Todo esse clima de trabalho coletivo e o variedade de profissionais que incluía,
fotos, traziam-se bichos, verificavam-se diálogo permanente com a produção demandava um aporte financeiro que a
hábitos e características das diferentes cultural reforçavam o contraponto ao escola nunca logrou. Uma política de
espécies, visitava-se o zoológico. Um baú nacionalismo incondicional propagado concessão de bolsas bastante generosa,
de fantasias que circulava entre as pela ditadura militar a partir 1964. por outro lado, dificultava ainda mais o
classes e os muitos pneus espalhados pelo Educar praticando internamente a liber- balanceamento dessa equação.
pátio compunham este cenário, onde dade de expressão e estimulando o pensa- O êxodo do Bom Retiro levou muitas
brincar era a ocupação principal dos mento crítico confirmava a coerência da famílias a transferirem seus filhos para
pequenos alunos. escola com suas raízes progressistas, e escolas em suas novas vizinhanças. Um
pavimentava a formação desses jovens certo esvaziamento ideológico das
A educação pelas linguagens artísticas para uma participação consciente na vida gerações de filhos de imigrantes também
A agitação cultural da Casa do Povo política do país. reduziu a procura por aquela proposta tão
chegava até o Scholem, fosse pelas intensas definida politicamente.
atividades do grêmio, fosse por convites A qualidade educacional do Scholem
dos profissionais da escola. Novos Baianos, se manteve até o final. Foi um apagar de
Belchior, Renato Teixeira foram alguns dos
A cultura ídiche estava luzes doloroso e traumático para os envol-
que se apresentaram na escola. “O Caetano presente nas casas e nas vidos. Após os 25 anos que nos separam
Veloso também veio conversar com os daquela data, o Scholem se mantém vivo
alunos do pré e foi lá em cima no 3º andar
ruas do Bom Retiro. nas pessoas que de alguma forma partici-
cantar com as crianças”, conta dona Ilina Gerações de imigrantes param dessa experiência: professores,
Ortega, professora de música. Ensinando alunos, diretores, pais. O legado de uma
música ídiche e folclore brasileiro, inves-
mantinham o idioma na vanguarda pedagógica não se perdeu. Os
tindo na iniciação musical e na concen- educação de seus filhos, caminhos abertos por tantos idealistas e
tração das bandinhas e dos corais, dona entusiastas ligados à Casa do Povo inspi-
Ilina é uma unanimidade entre seus
na comunicação com raram novas sendas, em busca de uma
alunos, alguns dos quais se destacaram parentes no exterior educação de qualidade no Brasil. Voltar os
mais tarde como músicos. olhos para estas histórias, recuperando a
O teatro era outro dos grandes trunfos, herança afetiva e desvelando a compe-
na esteira da tradição dos grupos profis- “Muitos pais e membros da mantenedora tência educacional, com iniciativas como
sionais e amadores em língua ídiche. A da escola eram militantes dos movimentos a que desenvolve agora o Grupo Memória
encenação dos contos de Scholem de esquerda e foram perseguidos pela dita- Scholem, é uma forma de compreender
Aleichem e outros autores era uma estra- dura”, afirma Max Altman. “Muitos filhos de melhor o diferencial desta escola que
tégia eficaz para popularizar esses textos militantes, não judeus, tiveram acolhida tantas raízes deixou 
entre os alunos. “Ética, cultura e humor são no Scholem, permitindo que recebessem
os principais legados da escola”, opina uma educação de alta qualidade e condi- A experiência pedagógica e cultural do Scholem será
Tatiana Belinky, que colaborou nas apre- zente com os valores políticos de suas tema do seminário Vanguarda Pedagógica: o legado
sentações dos primeiros tempos como famílias.” Esta convivência entre judeus e do Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, no
autora ou diretora. Obras de autores como não-judeus, brancos e negros e também próximo dia 21 de outubro, das 9h às 18h, no Centro da
Brecht, Shakespeare, João Cabral de Melo índios contribuía para um cotidiano Cultura Judaica, uma realização do Grupo Memória
Neto e Ariano Suassuna foram montadas escolar que incorporava as diferenças Scholem. A programação, voltada para profissionais da
pelas turmas, além de composições lite- dentro da sala de aula com naturalidade. área de educação, pesquisadores e estudantes, ex-alunos,
rárias das próprias crianças. A força do Mas a fama de “escola dos vermelhos” docentes e voluntários, e público em geral, abordará os
teatro aliava o trabalho de profissionais não fazia jus a todas as famílias que matricu- seguintes temas:
como Naum Alves de Souza, Isa Kopelman, lavam as crianças no Scholem. “Tinha meus Scholem Aleichem: uma escola progressista
Mira Haar, Raimundo Matos e Eduardo quatro filhos aqui e não era comunista”, Fundamentos de uma vanguarda pedagógica
Amos, entre outros, com a visão de que contou Tânia Furman, em depoimento de Linguagens e educação: o papel das artes
havia muito a aprender no ato de repre- 1999. “Escolhi uma excelente escola.” Mosaico das memórias: histórias marcantes
sentar. “Tive uma formação maravilhosa A entrada é franca.
no Scholem”, conta a atriz Débora Olivieri, Sobrevive a memória Inscrições pelo telefone 3227 4015, das 14h às 17h.
“era tudo muito abrangente, muito intenso, São muitas as conjecturas sobre os
com experiências que não ficavam só nos motivos que levaram ao fechamento do Lilian Starobinas é mestre em História
livros. Aprendi tudo de uma maneira Scholem em 1981, apesar dessa memória Social e doutoranda em Educação na Univer-
muito aberta, com muita troca. As aulas festejada e de tantos feitos concretos. A sidade de São Paulo. Colaboraram Cássio
de português, a feira de ciências, no fundo, aliança de vários fatores levou à inviabili- Schubsky, Gisele Kolber K. Hamadani e
tudo era uma forma de representação.” dade da manutenção da escola. Daisy Perelmutter

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