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INTRODUÇÃO AO

DIREITO ALTERNATIVO BRASILEIRO

Lédio Rosa de Andrade

Agradecimentos

Algumas vezes os agradecimentos representam a satisfação a uma tradição, a um costume, e


servem apenas para executar estas formalidades. As palavras seguintes não pretendem cumprir
qualquer ritual ordinário, mas expressar os mais sinceros sentimentos do autor, tornados públicos
não para promover ou ser promovido, mas, sim, para registrar a gratidão de quem, em relações sem
interesses, movidas só pelo ideal comum de luta em busca de uma nova sociedade, pouco deu e
muito recebeu.
Agradeço:
A minha mãe, Cecília Martins Rosa, pelo carinho, pelo apoio, pela torcida e por ter
proporcionado, mesmo com suas dificuldades pessoais, todos os livros e artigos brasileiros,
necessários para a confecção da tese.
A Silvia, Karina e Lidiane, por toparem participar, sem qualquer reclamação ou condição,
de todas as aventuras de um irrequieto marido e pai, abandonando a certeza do cômodo cotidiano,
bem como distanciando-se de seus parentes e amigos queridos, por vários anos, o que, por certo, as
fez sofrer em silêncio.
Aos meus irmãos, Arnaldo Rosa de Andrade, pelo companheirismo da convivência em
Barcelona, e Léo Rosa de Andrade, pela últimas e preciosas sugestões.
Ao professor Dr. Óscar Correas, primeiro por ter sido responsável por minha apresentação
junto ao Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais, da Universidade de
Barcelona, condição necessária inicial, que me permitiu ser aceito no programa de doutorado em
Filosofia Jurídica, Moral e Política. Em segundo lugar, pelos doze meses compartidos em
Barcelona, quando nasceu uma forte amizade, responsável por várias cenas e barbacoas, sempre
regadas por um bom Rioja; encontros, para mim, de grandes aprendizagens e alegrias.
Ao professor Dr. Juan Ramón Capella, não só por ter-me aceito no curso de doutorado,
mas, principalmente, por ter possibilitado, em nossas entrevistas, a absorção de um pouco de sua
imensa sabedoria e, ademais, por ter sido e ainda ser um exemplo de ser humano, comprometido
com as causas das gentes. Com ele aprendi a ser menos dogmático e a perceber meus próprios erros.
Ao professor Dr. José Antonio Estévez Araujo, meu orientador, pelo tempo que me foi
dedicado, pelos ensinamentos transmitidos, pela orientação indispensável à redação da tese doutoral
e, fundamentalmente, por seu exemplo de humildade e por ser um grande intelectual, capaz de viver
sem preconceitos. Orientador, professor e hoje um grande amigo.
Ao professor Dr. José Eduardo Faria, por seus inúmeros conselhos e palavras de incentivo,
vindos de longe, que não só elucidaram confusões intelectuais, como serviram de encorajamento
nos momentos difíceis. Foi uma honra, mais uma vez, ter podido aprender com este grande
intelectual brasileiro.
Ao amigo, magistrado Almílton Bueno de Carvalho, por ter contribuído, de uma forma
inestimável, para o aperfeiçoamento deste trabalho, com suas críticas e sugestões, como membro
fundador do movimento do Direito Alternativo, cuja história foi por ele vivida e traçada.
Ao amigo de infância, Márcio Luiz Aguiar, por ter gerido, de maneira desinteressada, meus
interesses no Brasil, com competência jamais alcançada por mim. Dele, em todos os assuntos, só
recebi boas notícias.
A Cibele Cristiane Schuelter, ex-aluna, agora amiga, pelos inúmeros favores realizados no
Brasil.
Ao companheiro Nelson Ubaldo, fiel amigo, responsável pelo apaziguamento da saudade
do Brasil, com suas constantes correspondências e chamadas telefônicas.
Ao magistrado espanhol Perfecto Andres Ibañez, um democrata, pelas orientações e
sugestões bibliográficas dadas em relação ao estudo comparativo entre o movimento alternativo
brasileiro, o espanhol e o italiano, bem como por sua amabilidade e amizade.
Ao companheiro Héctor Claudio Silveira Gorski, pelas conversas e valiosas opiniões sobre
o uso alternativo do Direito italiano.
Ao recém-amigo Luiz Herkenhoff Coelho, por ter-me introduzido no fascinante mundo da
informática e, posteriormente, por ter de aturar minhas constantes dúvidas sobre o tema.
A José Leandro Farias Benitiz e Nicolau Apóstolo Pítsica, pelas colaborações.
A todos os professores do curso de doutorado, pelos conhecimentos transmitidos.
Aos inúmeros amigos que, de forma anônima ou expressa, prestaram apoio e ânimo nestes
três anos de estudos.
Ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, pelo reconhecimento da importância do meu
aperfeiçoamento intelectual.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, por terem
financiado meus estudos em Barcelona, Espanha.
À Universidade de Barcelona, por ter-me aceito e ensinado.
A Janete Aparecida Gaspar Machado, pelas sugestões finais antes da publicação.

Prefácio

Muito mais do que honrado, senti-me envaidecido pelo convite feito para apresentar a
presente obra. A razão é uma, só pode ser uma: a amizade que me une a Lédio: companheiro de
caminhada, parceiro de luta, irmão de utopia!
No ano de 1990 conheci Lédio, quando iniciava, no Brasil, o movimento do Direito
Alternativo: época de forte tensão, de crítica feroz, de velada perseguição, tudo porque a estrutura
de poder daqueles que mantinham o monopólio do saber jurídico, sempre e sempre, comprometidos
com a mantença do status quo, restava fortemente abalada. Lédio, desde logo, foi companheiro na
caminhada em busca do novo abalador da velha estrutura: esteve presente em todos os momentos
de debate, seja no plano teórico, seja no prático, em que se procurou nova racionalidade e novos
compromissos do operador jurídico.
E ele se tornou militante de primeira linha, enfrentando, com dignidade e galhardia, todas as
formas, agressivas ou não, de ataques recebidos. A maneira com que se portou foi uma: a resposta
da competência e da seriedade. Por ser parceiro de luta sofreu, como poucos de nós, as
conseqüências emergentes do combate ideológico-jurídico travado. Todavia, a certeza de que é
impossível “servir a dois senhores” e de que aqueles que ousam se comprometer com a maioria
excluída recebem a ira dos “ventríloquos de todo o poder” (na feliz expressão de Edmundo Lima de
Arruda Jr.), fez dele esteio inabalável.
Mas acima de tudo, Lédio é irmão de utopia: compartilhamos do mesmo sonho: a busca
incessante de uma sociedade que permita que todos, absolutamente todos, tenham vida digna e em
abundância. Este sonho (quiçá delírio) faz com que, no espaço específico de nossa atuação (o
jurídico), se procure um fio condutor que permita a democratização do saber (e, por decorrência do
poder) e o conseqüente compromisso com a maioria excluída, sujeito de toda barbárie.
Fruto de preciosa experiência (na caminhada e na luta) e reflexo da “esquerdizante” utopia,
é que explode o presente livro - uma espécie de síntese de tudo que tem se passado, nos últimos
anos, na alternatividade jurídica na América Latina. Tenho certeza de que esta obra já nasce
clássica: será referencial obrigatório a todos aqueles que pretendem discutir o novo que se produz
em nossa terra.
Esta é uma obra como poucas: reúne, no mesmo autor, a figura do militante (o operário da
atuação prática) e do teórico (o pescador da práxis). Aqui reside a grandeza maior deste livro. O
leitor tudo testemunhará!
Inverno de 1996

AMÍLTON BUENO DE CARVALHO

Sumário

Introdução 15

Capítulo I - Realidade socioeconômica brasileira 19


1. Brasil oficial 22
2. Brasil real 37
2.1. O problema da fome 38
2.2. As desigualdades sociais e econômicas 43
2.3. Matança de crianças pobres, um terrorismo de Estado 63
2.4. Direito e realidade social 81
3. Excurso 103

Capítulo II - História do Direito Alternativo Brasileiro 105


1. História cronológica do Direito Alternativo 105
2. História ideológica do Direito Alternativo 112
2.1. Amílton Bueno de Carvalho 113
2.2. Edmundo Lima de Arruda Jr. 125
2.3. Magistrados 132
2.4. Promotores de Justiça 138
2.5. Advogados 139
2.6. Professores 149
2.7. Estudantes 174
2.8. Estrangeiros 177

Capítulo III - Resultados obtidos 185


1. Jurisprudência alternativa 186
2. Produção teórico-prática 223

Capítulo IV - Identidades e diferenças com os europeus 235


1. A Itália e o uso alternativo do Direito 236
2. A Espanha e Jueces para la democracia 274

Conclusão 299
Bibliografia 333

Introdução

A história da humanidade é construída com lutas. A tendência - talvez esperança - é uma


evolução, não para terminar as divergências de interesses, mas a barbárie entre os seres humanos. Já
se peleou, e ainda se luta, contra todos os tipos de ditaduras e exploração de uns sobre outros.
Milhares de guerras existiram, incluindo duas mundiais, e muitas estão acontecendo, sempre em
nome da libertação e da democracia. Após a derrubada do nazismo e do fascismo, o mundo respirou
aliviado, pensando ter triunfado a racionalidade diante do obscurantismo. Pode-se pensar ter o
processo de democratização evoluído constantemente, pois inúmeras ditaduras militares
desapareceram, isto em países capitalistas desenvolvidos, como Espanha e Portugal, passando por
países comunistas, como Rússia e Alemanha Oriental, chegando ao terceiro mundo, como Brasil e
Argentina. O resultado de toda essa beligerância foi a democratização formal das instituições.
Dificilmente permanecem, na atualidade, no arcabouço jurídico-político de um país, a proteção
oficial a institutos puramente repressivos, como a escravidão ou a segregação. Contudo, outros,
como a pena de morte, continuam existindo em nome da democracia.
Entretanto, juntamente com essa nova estrutura jurídico-política estatal, teoricamente livre e
democrática, sintetizadora de todas as conquistas da humanidade, enfrenta-se uma realidade brutal e
selvagem, que permite pensar serem inoperantes todos esses proclamados triunfos da razão, e se
terem perdido pela história tantas lutas, sofrimentos e mortes. Ainda se vivencia o exercício da
violência de forma cruel. A prática de genocídio planificado segue existindo no mundo moderno. A
matança motivada por crenças religiosas ou por diferenças étnicas preenchem os noticiários a cada
dia. As tribos africanas matam-se com armas vendidas pelos países desenvolvidos, considerados
mais civilizados. A miséria, a fome e o descalabro social crescem assustadoramente, enquanto
alguns poucos ficam cada vez mais ricos. Morre-se de fome com a mesma simplicidade com que se
ganha dinheiro. Aprofundam-se as diferenças sociais, mesmo nas nações ricas. Não bastasse tudo
isso, o terrorismo se alastra, e grupos xenófobos, neonazistas e neofacistas, se avolumam e voltam à
vida pública, inclusive com a força do voto popular. Vê-se que nada, nenhuma conquista
democrática, nenhuma razão está garantida, e o futuro tende mais para o convívio com violência
entre as pessoas e menos para a consolidação de liberdades.
No confronto de objetivos no seio da sociedade, uns em busca de privilégios e outros de
uma comunidade democrática, surge o movimento do Direito Alternativo no Brasil. Pretende ser
mais uma forma de luta existente e posta à disposição daqueles desejos de permanecer digladiando-
se contra a violência, a exploração, a miséria e todas as demais formas desabonadoras da pessoa
humana. Em um país onde o Estado e as instituições jurídicas mais servem para regredir as
conquistas histórias, permitindo e ampliando as desigualdades sociais, a exploração desenfreada e a
escravidão fática das camadas populares, do que para possibilitar igualdades e liberdades, iniciou
esse movimento, dentro do âmbito jurídico, não com o propósito de criar uma sociedade ideal, mas,
sim, de possibilitar a transformação da Ciência do Direito em mais um meio de liça, na defesa do
que se costuma chamar as grandes conquistas da humanidade.
Sob uma postura que comparte seus objetivos, pretende o presente trabalho estudar o
Movimento do Direito Alternativo, apresentando sua história, seu conteúdo teórico, sua ideologia,
sua localização no contexto histórico, efetuando algumas análises de sua doutrina em nível de
crítica.
Desenvolve-se o trabalho com base em pesquisa bibliográfica e análise de dados. Sua
estrutura está organizada da seguinte forma: no primeiro capítulo, apresentar-se-á uma visão geral
sobre o Brasil, priorizando-se o aspecto socioeconômico, para chegar-se a um tema particular, qual
seja, a politização do Poder Judiciário. Muitos estudos já foram elaborados neste campo, havendo
vários livros publicados. Entretanto, todas essas obras estão situadas dentro das Ciências Sociais, e,
quase sempre, sem qualquer vinculação com a Ciência Jurídica. O presente trabalho talvez não seja
o pioneiro, mas por certo é um dos poucos a tentar demonstrar a responsabilidade do mundo do
Direito para com as condições de vida da população. É uma forma de colocar em questão a tão
falada e buscada neutralidade jurídica, até hoje não sustentada, eficazmente, pela Teoria do Direito.
O capítulo é elaborado sobre dados estatísticos. É pacífico, entre os pesquisadores brasileiros, serem
as estatísticas oficiais precárias e insuficientes - quando não destorcidas - em especial para
demonstrar problemas sociais do país. Tendo-as como referência não-conclusiva, há a possibilidade
de se elaborar um estudo analítico capaz de sustentar algumas conclusões e permitir a formulação
de algumas hipóteses, sempre tendo-se em mente ser a situação real mais grave do que os dados
apresentados. No segundo capítulo, estudar-se-á a história do movimento do Direito Alternativo,
isso a partir de dois pontos de vista. Inicialmente, descrever-se-ão os fatos cronologicamente, para,
em seguida, demonstrar o conteúdo, ou ideologia, dos escritos alternativos. No terceiro capítulo,
buscar-se-á levantar todos os resultados obtidos até o momento, como produção teórica,
transferência de ideologia, organização popular e jurisprudência. Por último, no quarto capítulo,
como prática de Direito comparado, realizar-se-á um estudo para verificar os pontos em comum e as
divergências entre o movimento brasileiro e os dois movimentos análogos existentes na Europa
(Itália e Espanha).
Como medida propedêutica, cabe esclarecer alguns pontos importantes para todo o
desenvolvimento do estudo. O primeiro diz respeito à situação legal do magistrado na estrutura
judiciária brasileira. Como se verá, os julgadores exercem a função jurisdicional com bastante
liberdade, com suficiente garantia e, o mais importante, de uma forma bastante ampla, até com
capacidade para anular qualquer ato de poder, incluídos os dos chefes dos demais Poderes de
Estado, uma vez não respeitadas as normas vigentes e/ou a Constituição Federal. Isso dá-se por
vários fatores, sendo os mais importantes: 1) concurso público honesto, para o acesso à
magistratura, ressalvados os membros dos tribunais que são oriundos do Ministério Público e da
Ordem dos Advogados do Brasil, bem como os ministros dos tribunais superiores, todos nomeados
por outras formas; 2) as garantias constitucionais da vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de salários e 3) controle difuso da constitucionalidade das leis, que permite ao juiz
de Direito, no julgamento de um caso concreto, declarar inconstitucional qualquer lei, independente
de seu nível hierárquico (aí incluídas as legislações federais e a própria Constituição no caso de
inconstitucionalidade de um artigo frente a um princípio constitucional), sem ter que buscar um
Tribunal Constitucional. Há problemas estruturais, como a insuficiência financeira do Poder
Judiciário, contudo isso não afeta a liberdade e a autonomia no ato de julgar. Portanto, os
magistrados dispõem de ampla possibilidade de interferência e podem exercer efetiva influência na
construção da história do Brasil e na consolidação de sua democracia. Não atuam de forma mais
contundente por opção ou confinamento ideológico. Já os juristas alternativos assumem,
explicitamente, uma postura ideológica e exercem suas atividades pautados por compromissos com
o postulado.
Outra questão a ser ressaltada é a posição do autor como membro ativo do movimento do
Direito Alternativo. Isso poderia levar a uma perplexidade metodológica, confundindo-se o sujeito e
o objeto em análise. Tenta-se evitar essa situação, mas, dada a inexistência da neutralidade
científica, impossível consegui-lo no todo, como haveria comprometimento ainda que outros
valores professasse o autor. Assume-se o fato como sendo da natureza mesma da produção
intelectual.
Esclarece-se que todas as citações em espanhol não serão traduzidas, para manter a
fidelidade aos textos originais.
Por fim, é demasiado importante deixar bem claro um ponto. Como será visto, tanto os
movimentos europeus, como o brasileiro são identificados, ideologicamente, como de esquerda.
Houve, inclusive, uma forte ligação entre o italiano e o Partido Comunista daquele país. Esse fato
poderá levar algumas pessoas a cometer um grande equívoco, qual seja, identificar o Direito
Alternativo com o chamado comunismo real. Não se deve negar - não há motivos para isso - que o
pensamento de Marx possui forte influência entre os intelectuais alternativos. Esse fenômeno,
entretanto, dá-se em relação a vários outros pensadores, porquanto o movimento não propugna a
aderência dogmática a qualquer doutrina ou corrente de pensamento. Sua luta é por liberdade e
igualdade, velhas e utópicas bandeiras de luta. Em assim sendo, seu repúdio, seu desprezo, sua
aversão às ditaduras totalitárias comunistas são tão fortes como o asco tido contra as ditaduras
militares autoritárias sul-americanas. O inimigo comum está bem identificado: todo tipo de
ditadura, seja militar, civil, econômica, social, ou ideológica. Nenhuma é melhor, ou pior do que a
outra. São iguais. Todas devem ser combatidas.
Com seus erros e acertos, o movimento do Direito Alternativo é uma possibilidade de
exercitar a combatividade pessoal e de classe, em prol de propósitos comuns, como os de erradicar
a miséria, combater a violência, a exploração e lutar por democracia.

CAPÍTULO I

Realidade socioeconômica brasileira

Qualquer reflexão geral sobre o Direito que despreze a realidade socioeconômica do país
onde o mesmo é aplicado estará fadada a ser um mero exercício intelectual sobre a irrealidade,
gratuita ficção, uma ilusão, uma quimera sem a mínima importância para as pessoas e para a
história real. A ideologia jurídica dominante pretendeu demonstrar, sempre sem êxito, a autonomia
do mundo jurídico, a neutralidade e a objetividade da aplicação do sistema normativo. De fato, ela
constitui-se em um discurso ideológico com base em ficções jurídicas distantes da realidade fática1.
Com muita propriedade Manuel Calvo García afirma:
“A pesar del ingente esfuerzo teórico encaminado a mostrar la no «contaminación»
material de la decisión jurídica, excluyendo la posibilidad de tener en cuenta cualquier
tipo de fundamento político o social en la misma, la propia evolución del derecho se está
encargando de demostrar la futilidad de este esfuerzo teórico. Las transformaciones del
derecho desbordan necesariamente las posibilidades del canon hermenéutico tradicional,
provocando un claro desplazamiento desde lo que podríamos llamar de economía
dogmática de la imprecisión, que caracteriza el método jurídico tradicional, hasta una
especie de economía política de la imprecisión a la que parece abocada la aplicación del
derecho en el estado social.”2
Queiram ou não os juristas, o Direito não é uma ciência pura, autônoma, um método
racional, objetivo, universal e imutável, capaz de garantir segurança, neutralidade e objetividade
jurídica, ou seja, permitir ao julgador encontrar, sempre, a única, a verdadeira e justa solução para
cada caso concreto. Em lugar de um método perfeito, o Direito é um discurso, uma retórica,
buscando convencer os cidadãos do bom uso do poder, da justeza no emprego da violência
organizada. Nesse contexto, as decisões jurídicas não possuem fundamentos científicos, não são
verdades absolutas, pois são fundamentadas em critérios morais, sociais, econômicos ou, de forma
clara, em critérios políticos-ideológicos. “Pero, en este caso, cuando se afirma que «el derecho» es
«ideológico» se está diciendo que el derecho es parcial; se está diciendo también que es parcial el
estudio del derecho (y en ambos casos parcial tiene que ver con apropiación de partes desiguales
del producto social), y se está diciendo al mismo tiempo que el estudio del derecho se presenta
como una falsa figuración de la realidad que cierra el paso a su conocimiento verdadero.” 3 E isso
não é a “desgraça” do Direito. Faz parte da dialética social, desde que encarado dessa forma, sem
subterfúgios, sem estigmatizações e sem patranhas ideológicas.
Direito e realidade socioeconômica estão interligados. Mais ainda, são partes de um todo;
uma interage com a outra. As condições de vida da população demarcam a realidade de fato, ou
seja, as relações de poder na sociedade. E estas são permitidas, organizadas, impostas e justificadas
pelo Direito. Fala-se em poder de forma ampla, incluindo o poder econômico, o poder político, o
poder simbólico, o poder midiático, o poder ideológico, o poder da coerção, entre outros, e não sob
a visão liberal, que o considera só como violência física ou sua ameaça, formas de restringir a
liberdade individual, motivo pelo qual deve o Estado erradicar, exclusivamente, do seio da
sociedade este tipo de poder. Torna-se importante aclarar este ponto, pois falar-se-á, a seguir, em
justiça social e em liberdade, conceitos tidos como incompatíveis pela doutrina jurídica liberal, mas
que em realidade não o são. O poder econômico, sim, limita a liberdade de quem está na posição
mais débil e deve estar na mira do Direito, pelo menos do Direito Alternativo.
“Aunque la doctrina constitucional considere que lo que resulta conflictivo son las
exigencias de la libertad individual y de la justicia social, éstas son, en principio,
compatibles. La tensión y la incompatibilidad vienen dadas en realidad por la admisión
del carácter ilimitado de la acumulación de la propiedad. Este carácter ilimitado de la
acumulación de propiedad determina que determinadas personas adquieran suficientes
poder como para adoptar decisiones que afectan a la libertad de otras personas o incluso el

1
Sobre o tema, ver a importante obra: CALVO GARCÍA, Manuel. Los fundamentos del método jurídico : una revisión
crítica. Madrid, Editorial Tecnos, 1994, 299 p.
2
Ibid., p. 250.
3
CAPELLA, Juan Ramón. Sobre la extinción del derecho y la supresión de los juristas. Barcelona, Fontanella, 1970, p.
11. (Pensamiento, nº 31).
bienestar general. El conflicto real no es, pues, entre libertad individual y justicia social,
sino entre ésta y la libertad de la propiedad.”4
Alguns dados, a seguir apresentados, demonstrarão como a concentração da propriedade,
entendida lato sensu, impede a realização de justiça social. Ela está divinizada, pois “la concepción
de Dios está íntimamente atada a la concepción de propiedad y de propietario: «[...] el concepto de
propiedad, igual que es el centro de gravedad y la raíz de todo nuestro sistema jurídico, así también
es la urdimbre de toda nuestra estructura civil y mental. Hasta nuestro concepto teológico está a
menudo forjado según este modelo, y Dios se representa a veces como el gran propietario del
mundo.”5
Essas asseverações não diminuem nem aumentam a importância do Direito, apenas buscam
explicitar os fatos, evitando o emprego de um discurso falso, patranheiro, edificado sobre o
poderoso argumento de ser científico. Não se pretende aprofundar uma discussão filosófica ou
metodológica sobre o Direito, muito menos tentar esboçar uma nova teoria jurídica. Deseja-se, isto
sim, dar algum significado social ao Direito e isso só pode ocorrer interligando este com a realidade
fática e com a vida das pessoas. Há que se ter presente serem as verdades jurídicas, assim como as
verdades científicas, totalmente provisórias. O pensador italiano Antonio Gramsci contribui ao
esclarecimento de tão difícil tema: “Si las verdades científicas fueran definitivas, la ciencia habría
dejado de existir como tal, como investigación, como sucesión de nuevos experimentos, y la
actividad científica se reduciría a una divulgación de lo ya descubierto. Cosa que no es verdad, por
suerte para la ciencia. Pero si las verdades científicas no son tampoco ellas definitivas y perentorias,
también la ciencia es una categoría histórica, un movimiento en continuo desarrollo.”6
Por esse motivo, ou melhor, com base nessa concepção de Direito, efetuar-se-á, neste
capítulo, uma espécie de radiografia social e econômica do Brasil, para permitir ao leitor verificar
quais as conseqüências da aplicação do Direito e, sobretudo, quais os pressupostos jurídicos e,
principalmente, socioeconômicos que deram causa ao surgimento do movimento do Direito
Alternativo.

1. BRASIL OFICIAL

O Brasil7 é uma República Federativa, com 4.973 municípios que compõem 26 estados e
um Distrito Federal, a capital do país. Está situado na América do Sul, entre os paralelos 5º16'20''
de latitude Norte e 33º44'32'' de latitude Sul. Possui uma área total de 8.511.996,3 km 2 e está
dividido em cinco regiões, da seguinte forma: Norte, 3.851.560,4 km2, 45,25%, formada pelos
estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Amapá e Tocantins; Nordeste, 1.556.001,1
km2, 18,27%, estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e Bahia; Sudeste, 924.266,3 km2, 10,85%, estados de Minas Gerais, Espírito
Santo, Rio de Janeiro e São Paulo; Sul, 575.316,2 km2, 6,76%, estados do Paraná, Santa Catarina e

4
ESTÉVEZ ARAUJO, José Antonio. La constitución como proceso y la desobediencia civil. Madrid, Trotta, 1994, p.
110-111.
5
GRAMSCI, Antonio. Antología. 11ª Edição. Trad. de Manuel Sacristan. México, Siglo XXI, 1988, p. 302-303.
(Biblioteca del pensamiento socialista. Serie los clásicos.).
6
GRAMSCI, Antonio. Introducción al estudio de la filosofía. Trad. de Miguel Candel. Barcelona, Crítica, 1985, 218 p.
(Serie General. Estudios y ensayos, v. 145.).
7
Os dados que seguem são os mais recentes possíveis de obter e pertencem à: FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Brasil em números. Rio de Janeiro, Centro de Documentação e
Disseminação de Informações - CDDI, Vol. 2, 1993, 107 p.
Rio Grande do Sul; e Centro-Oeste, 1.604.852,3 km2, 18,86%, estados do Mato Grosso do Sul,
Mato Grosso, Goiás e o Distrito Federal.
Do total do território nacional, 78,03% não alcançam a altura de 500 m e só 0,54%
ultrapassa os 1.200 m. Seus pontos culminantes são: o Pico da Neblina (3.014 m), o Pico 31 de
Março (2.992 m), ambos na Serra Imeri (fronteira Amazonas/Venezuela) e o Pico da Bandeira
(2.890 m) na Serra Caparaó (divisa dos Estados Minas Gerais/Espírito Santo). A distância entre os
pontos extremos, leste-oeste, é de 4.319,4 km. Disto resulta ser o país cortado por quatro fusos
horários, e a maior parte de sua área estar três horas atrasadas em relação ao meridiano de
Greenwich.
Sua linha divisória pode ser repartida em duas partes, 32,03%, ou seja, 7.367 km, com o
Oceano Atlântico e 67,97%, 15.719 km, com países limítrofes, assim estabelecido: Venezuela,
6,47%, 1.495 km; Guiana, 6,94%, 1.606 km; Suriname, 2,56%, 593 km; Guiana Francesa, 2,83%,
655 km; Uruguai, 4,34%, 1.003 km; Argentina 5,46%, 1.263 km; Paraguai, 5,79%, 1.339 km;
Bolívia, 13,52%, 3.126 km; Peru, 12,95%, 2.995 km; e Colômbia, 7,11%, 1.644 km.
O clima brasileiro, tendo em vista o tamanho continental do país, é bastante variado. No
aspecto térmico, as médias anuais mais elevadas (26º a 28ºC) ocorrem no interior da região
Nordeste e ao longo do médio e baixo rio Amazonas. Já os menores valores (menos de 18ºC)
ocorrem nas regiões serranas do Sudeste e em quase toda a região Sul. Temperaturas máximas
absolutas, superiores a 40ºC, são registradas em terras baixas interioranas do Nordeste; nas
depressões, vales e baixadas do Sudeste; no Pantanal e áreas rebaixadas do Centro-Oeste; nas
depressões centrais e no vale do rio Uruguai, na região Sul. As mínimas absolutas, com valores
negativos, são comuns nos cumes do Sudeste e em grande parte da região Sul, onde ocorrem geadas
e, esporadicamente, um pouco de neve. No aspecto hídrico, as áreas mais chuvosas estão
localizadas no litoral do Pará e parte ocidental do Amazonas, onde os totais pluviométricos são
superiores a 3.000 mm anuais. O Nordeste é a região menos chuvosa, com valores inferiores a 500
mm anuais. O país possui uma vasta e densa rede hidrográfica, composta por rios, em sua maioria,
de grande extensão, largura e profundidade, o que significa um grande potencial de navegação e
geração de energia elétrica. A capacidade de geração de energia hidrelétrica, em 1990, segundo
dados da ELETROBRÁS, era de 255.000 MW, mas a potência nominal instalada no mesmo ano era
só de 58.630 MW.
O Brasil possui duas das maiores reservas biológicas intactas que ainda existem no planeta
terra, não obstante estarem submetidas a grandes devastações. Tratam-se da floresta equatorial
Amazônica, a maior de todas, com 3.000.000 km2, e do Pantanal Mato-Grossense.
A população brasileira fala um só idioma em todo o seu território, o português, não
existindo dialeto, havendo, somente, diferenças fonéticas e alguns vocábulos típicos de cada região,
o que não impede uma perfeita compreensão idiomática entre seus habitantes. Os poucos idiomas
indígenas sobreviventes são quase linguas mortas, falados por pouquíssimas pessoas e
desconhecidos da população em geral. Este fato, somado à inexistência de movimentos
nacionalistas, de caráter regional, com pretensões de independência, ressalvado um, de conteúdo
discriminador (econômico e étnico) em relação às regiões Norte e Nordeste do Brasil, de origem
européia, situado no Sul do país, mas insignificante, mesmo nesta região, permite uma boa
integração da população. Em 1991, ano do último censo nacional 8, o país contava com 146.917.459
habitantes, com uma taxa média geométrica de crescimento anual de 1,87%. Vem ocorrendo um
grande êxodo da população rural para os centros urbanos, tendo aquela decrescido nos últimos dez
anos (38.566.297 de habitantes em 1980 para 36.041.633 em 1991.), enquanto esta continua
crescendo acima do devido, não obstante ter ocorrido um decréscimo na taxa de natalidade no
período (80.436.409 de habitantes em 1980 para 110.875.826 em 1991). Na década de 60/70, a taxa
média de fecundidade era de seis filhos por mulher; na década de 70/80 diminuiu para quatro e

8
A UNICEF estima em 156,6 milhões de pessoas a população do Brasil em 1993. ESTADO mundial de la infancia -
1995. Barcelona, UNICEF, 1995, p. 74.
meio e na década de 80/90, reduziu para menos de três. No ano de 1991 houve 3.719.471
nascimentos, representando uma taxa bruta de natalidade de 25,34%. No mesmo ano ocorreram
969.158 óbitos, significando um taxa bruta de mortalidade de 6,60%. Está ocorrendo um
envelhecimento gradual da população, tendo a porcentagem de pessoas com mais de sessenta anos
aumentado de 6,4% em 1981 para 7,7% em 1990.
Do total da população, em 1992, havia 90.222.835 eleitores. Estes são formados pelos
maiores de 18 anos e menores de 70 anos, sendo o voto obrigatório, e pelos analfabetos, pessoas
acima de 70 anos e jovens com idade entre 16 a 18 anos, todos com voto facultativo, estando
vedado o alistamento eleitoral aos estrangeiros e aos que estejam cumprindo serviço militar
obrigatório.
O quadro seguinte oferece um panorama geral dos dados referentes à população brasileira,
inclusive sua distribuição pelas grandes regiões do país. São dignos de serem realçados dois pontos,
a saber: a) tendência à urbanização, o que ocasiona a criação de enormes favelas na periferia das
grandes cidades e b) baixa densidade demográfica, principalmente, nas regiões Norte e Centro-
Oeste.

Quadro 1
População residente, masculina, feminina, rural e urbana, participação
relativa das grandes regiões no total do país, taxa de urbanização
e densidade demográfica. Dados referentes ao ano de 1991.

PÁGINA 24 DO LIVRO

A população do Brasil entra no mercado de trabalho muito cedo. No ano de 1990 havia 7,5
milhões de crianças e jovens, entre 10 e 17 anos de idade, trabalhando nos mais diversos ramos de
atividades. Deste total, 40% são constituídos por crianças de 10 a 14 anos. Os adolescentes de 15 a
17 anos, normalmente, trabalham 8 horas ou mais por dia e recebem, quando muito, um salário
mínimo (100 reais, mais ou menos 106 dólares, atualmente. Em 1990, era bem menos.).
Naquela data, a população economicamente ativa masculina era de 64,5% e a feminina de
35,5%. Em termos numéricos, a população ativa era de 113.629.000 pessoas (55.256.000 homens e
58.373.000 mulheres), mas só 64.468.000 pessoas (41.600.000 homens e 22.868.000 mulheres)
possuíam atividades econômicas. Destas pessoas ativas economicamente, um pouco mais de
quarenta milhões eram empregadas, quatorze milhões trabalhavam por conta própria, dois milhões e
oitocentos mil eram empregadoras, cerca de cinco milhões não eram remuneradas e dois milhões e
trezentos mil estavam desocupadas. O número de trabalhadores legalmente empregados, com
carteira de trabalho assinada pelo empregador, girava em torno de quarenta milhões no ano de 1990.
Em idade ativa, mas não economicamente, havia 49.161.000 pessoas (13.656.000 homens e
35.505.000 mulheres). Estima-se em 60 mil o número de trabalhadores escravos9.
Um fator crucial, para se entender as gritantes diferenças sociais existentes no Brasil, é a má
distribuição de renda, neste momento entendida como o valor recebido a título de vencimentos. O
próprio governo não esconde estes dados, e a tabela a seguir reproduzida demonstra bem a ínfima
renda mensal da maioria dos trabalhadores brasileiros. É de ser ressaltado existir 19.887.495 de

9
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços : direitos humanos no brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1996,
p. 171.
pessoas recebendo salário inferior ao mínimo legal previsto em lei, diante da inércia das Delegacias
Regionais do Trabalho.

Quadro 2
Pessoas de 10 anos ou mais e valor do rendimento médio mensal das mesmas,
por situação do domicílio, segundo as classes de rendimento mensal.

PÁGINA 26 DO LIVRO

Os dados acima transcritos10 devem ser analisados, levando-se em consideração um fator


muito importante, qual seja, a cotação do dólar na semana de 23 a 29 de setembro de 1990, período
de referência da investigação realizada pelo IBGE. Naquela época, a moeda brasileira era o
cruzeiro, e o dólar teve, na semana em questão, um valor médio de Cr$ 88,7611. Portanto, da força
de trabalho existente no país, quase quarenta e seis milhões não tinham rendimento; mais de sete
milhões ganhavam um salário mensal equivalente a vinte e quatro dólares e meio; vinte e sete
milhões possuíam um ordenado de mais ou menos oitenta dólares, enquanto só dois milhões
percebiam um estipêndio médio aproximado dos dois mil, seiscentos e cinqüenta dólares. A vida do
trabalhador piorou muito no ano seguinte12, pois 2,5 milhões perderam o emprego, e o salário
mínimo, que era de US$ 63 em janeiro, baixou para US$ 40 no final do ano. Na atualidade, o
salário mínimo está fixado em R$ 100, um pouco mais de US$ 100, mas o custo de vida subiu
muito, em decorrência da política econômica do Governo. Agrege-se a isto um aumento de
desemprego registrado nos anos de 1990 a 1993, de 3,7% para 6,8%. Nesse mesmo período, o
número de trabalhadores com carteira de trabalho assinada caiu de 58% para 50% 13. Para se ter uma
idéia real da dimensão destes dados, não se pode cometer o equívoco de pensar ser o custo de vida
no Brasil baixo. Ao contrário, não é tão inferior ao dos países europeus e, inclusive, relativamente a
alguns produtos essenciais, superior, como vestuário e aluguel. O mesmo dá-se em relação aos
Estados Unidos da América, onde o custo de vida da classe média é inferior ao da brasileira 14. Este
fato foi confirmado em notícia veiculada em jornal eletrônico: “PREÇOS NO BRASIL SUPERAM
OS DA EUROPA E DOS EUA. Os brasileiros estão pagando mais do que os americanos, os
franceses e os alemães por roupas, eletrodomésticos, carros, CDs e até refeições em restaurantes.”15
Interessantes os dados sobre a organização sindical brasileira. Os profissionais da
agricultura e indústria rurais conquistaram o direito legal de organização e sindicalização no ano
1903, sendo este direito expandido a toda categoria profissional no ano de 1907. 16 Como já visto, no
ano de 1990 existia em torno de quarenta milhões de trabalhadores empregados. Os dados sobre a
sindicalização são referentes ao ano de 1989, mas o período de um ano não mudou muito esta

10
A tabela foi retirada da seguinte obra: FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA
-IBGE-. Pesquisa nacional por amostra de domicílios. Rio de Janeiro, Departamento de Editoração e Gráfica, Vol. 14,
1990, Número 1 - Brasil e Grandes Regiões, p. 51.
11
A fonte foi o CD-ROM Folha de São Paulo, 1994, programa Cotações do dólar.
12
Ver: NÍTOLO Miguel Roberto. No limiar do quarto mundo. Problemas brasileiros. São Paulo, nº 298, jul./ago., p. 12-
15.
13
A VIDA dos brasileiros. Folha de São Paulo. São Paulo, 22 mar. 1996. p. 2.
14
Sobre o assunto ver: Os preços muito loucos da era do real. Veja. São Paulo, v. 28, nº 29, p. 18-24, jul. 1995.
15
PREÇOS no Brasil superam os da Europa e dos EUA. Jornal Eletrônico UFRJ. NCE Notícias, 288, 16 nov. 1995, O
Globo - 1, 12 nov. 1995.
16
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça : a política social na ordem brasileira. 3ª edição, Rio de
Janeiro, Editora Campus, 1994, p. 18. Neste livro pode-se encontrar uma noção geral sobre a história da política social do
Estado brasileiro.
situação. Existiam 9.833 sindicatos no Brasil, dos quais 5.354 eram urbanos, divididos em 1.532 de
empregadores, 277 de agentes autônomos, 3.108 de empregados, 359 de profissionais liberais e 78
de trabalhadores autônomos; e 4.479 eram rurais, compartidos em 1.627 de empregadores e 2.852
de trabalhadores. É de ser realçado que os sindicatos de empregadores possuíam um total de
555.534 associados (207.154 urbanos e 348.380 rurais), enquanto que os sindicatos de obreiros
possuíam 6.456.926 filiados (4.589.593 urbanos e 1.867.333 rurais), não atingindo 30% da
categoria, ou seja, uma grande massa de trabalhadores não se encontrava sindicalizada e não podia
lutar, como ainda hoje não pode, de forma organizada, por suas reivindicações e direitos. Do total
de sindicatos de empregados urbanos, trabalhadores rurais, trabalhadores autônomos e profissionais
liberais, só 21% declaram-se filiados a centrais sindicais. Deste número, 73% estão filiados à
Central Única dos Trabalhadores - CUT -, 23% à Central Geral dos Trabalhadores - CGT - e 4% à
União Sindical Independente - USI.
O número de acidentes de trabalho vem diminuindo no país. De 1.137.124 em 1987, houve
uma diminuição para 640.520 casos de acidentes de trabalho registrados em 1991.
Os brasileiros habitam, normalmente, em casas, não obstante o número de apartamentos vir
crescendo constantemente, como corolário da concentração da população nos grandes centros
urbanos. Há um total de 35.578.857 domicílios particulares permanentes, dos quais 83,1% são
casas, 10,1% apartamentos, 5,3% rústicos e 1,4% quartos ou cômodos. Do total de domicílios,
66,9% são próprios, 17,7% são alugados e 15,2% são cedidos, emprestados, etc. O abastecimento
da rede geral de água chega a um pouco mais de vinte e seis milhões de domicílios. O lixo é
coletado em quase vinte e três milhões de residências, e trinta e uma mil recebem iluminação
elétrica. 73,7% possuem televisão, 84,3% têm rádio, 71,1% estão equipadas com geladeira e 96,4%
com fogão.
A saúde pública é atendida de forma curativa por 35.701 estabelecimentos, dos quais
23.858 são públicos e 11.843 particulares. No setor hospitalar há uma prevalência de hospitais
particulares (5.155) em relação aos públicos (1.377). Isso implica que 28% dos leitos disponíveis
para internação estão nos nosocômios do Estado e 72%, nos particulares.
Legalmente, o ensino oficial está dividido em três sistemas básicos: regular, supletivo e
especial. O primeiro abrange a educação pré-escolar, os ensinos de 1º e 2º graus, de graduação,
também chamado de 3º grau e pós-graduação. O segundo está subdividido em vários cursos com
características próprias. Uns possuem o objetivo de regularizar a escolaridade para jovens e adultos
que não foram à escola na idade própria. Outros buscam aperfeiçoamento ou atualização para quem
concluiu o ensino regular, mas se afastou da atividade escolar. Pretendem formar mão-de-obra. O
terceiro é um tipo de ensino especial para deficientes ou superdotados. Existem por volta de 1.200
destes estabelecimentos, abrangendo uns 88 mil alunos.
A taxa de analfabetismo vem caindo, mas o número de analfabetos ainda é alarmante. Dos
131.317.000 de pessoas de 5 anos de idade ou mais, em condições de alfabetização, no ano de 1990,
existiam 15.310.000 de homens e 15.276.000 de mulheres analfabetos. A freqüência à escola está
diretamente relacionada com a renda da família. Quanto mais pobre, menos as crianças estudam.
Das famílias com renda de até salário mínimo, só 2,7% das crianças de 0 a 3 anos e 17,4% das de 4
a 6 anos, freqüentam creches, maternais ou pré-escolas. Nestas mesmas famílias, a taxa de
escolarização das crianças de 5 a 6 anos é de 15,9%, sendo que 12% das crianças em idade escolar
entram na escola, mas não conseguem ali permanecer. Na área rural, há mais dificuldades de acesso
à educação, pois, além dos problemas financeiros, existem menos escolas, principalmente de 2º grau
em diante. A escolaridade de crianças de 10 a 14 anos, na zona urbana, é de 90%, enquanto que na
zona rural é de 70%.
A estrutura do ensino brasileiro pode ser observada no quadro seguinte.

Quadro 3
Estabelecimentos de ensino, professores e matrículas efetuadas,
segundo o grau e dependência administrativa - 1989.
PÁGINA 29 DO LIVRO

Algumas curiosidades sobre o ensino de 3º grau devem ser mencionadas. As universidades


públicas são gratuitas, e as particulares, por óbvio, pagas. Entretanto, tendo em vista uma melhor
formação nos graus anteriores (melhores colégios, professores particulares, etc), bem como por
participação em cursos preparatórios para o vestibular e, inclusive, de idiomas, os filhos das
famílias mais ricas, normalmente, ingressam nas universidades gratuitas, enquanto os jovens de
origem mais humilde, quando conseguem chegar ao 3º grau, quase sempre vão para
estabelecimentos pagos. Dos alunos matriculados nas universidades públicas gratuitas, 50%
pertencem a famílias com renda superior a dez salários mínimos, 6% de famílias com renda até dois
salários mínimos e 1% com renda de até um salário mínimo17. Há um menor número de estudantes
universitários nas instituições públicas do que nas privadas, entretanto aquelas possuem um maior
número de professores, inclusive melhor qualificados (18,4% têm doutorado e 25,6%, mestrado), e
estas um número menor de docentes, com pior qualificação (4,9% com doutorado e 15,4%
mestrado). Isto significa que nas escolas públicas e gratuitas, mantidas com dinheiro público, onde
estudam os filhos das famílias mais ricas, há uma média de um professor para cada grupo de 7,2
alunos. Já nas escolas privadas, onde estão os jovens procedentes das famílias mais humildes, há
uma média de 14,6 alunos por professor.
O governo gasta 18 vezes mais, por aluno, no ensino superior, uma média de US$ 2,5 mil
por estudante/ano (onde estão os filhos dos ricos), em relação ao ensino primário, US$ 149 por
estudante/ano (onde estão os filhos da classe média e pobre, pois os outros estão nas escolas
particulares) e ensino secundário, US$ 144 por estudante/ano. Com políticas educacionais desta
espécie, não é de se estranhar ter a UNICEF qualificado a educação básica brasileira, comparada
com a potencialidade econômica do país, como a pior do mundo, estando atrás de países como
Somália, Etiópia e Haiti, conhecidos como a desoladora trindade da miséria18. No ensino, como em
outros setores, o dinheiro público é gasto para subsidiar quem não precisa, agravando a perversa
situação social do país.
“Considerando os gastos públicos nos três níveis de educação, constata-se que, no
agregado, as famílias mais ricas terminam ficando com o dobro do que recebem as
famílias de mais baixa renda. E como as últimas têm um tamanho médio bem maior que
as primeiras, verifica-se que uma criança que nasce em família de alta renda recebe, em
média, quatro vezes mais em subsídios do governo para sua educação, do que uma criança
oriunda de família pobre.
Por causa de distorções desse tipo, os gastos per capita representariam hoje apenas US$
110 por ano para os segmentos mais pobres e US$ 737 para os segmentos mais ricos o
que reforça e amplia o círculo vicioso da reprodução da pobreza.”19
Como já visto, o Brasil possui um vasto território e uma baixa densidade demográfica.
Além disto, é de ser sublinhado que a grande maioria das terras brasileiras são férteis, propícias ao
cultivo, sendo o clima diversificado, possibilitando a exploração econômica de uma grande
variedade de culturas. Todos estes fatores favoráveis transformaram o país num dos grandes
exportadores de alimentos do mundo, mas, paradoxalmente, como se verá, seu povo passa fome.
Não se planta para alimentar a população, mas para enriquecer os fazendeiros. Os fazendeiros

17
Ver: FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito : os juízes em face dos novos movimentos sociais. 2ª Edição, São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1992, p. 101.
18
EDUCAÇÃO básica é a pior do mundo. Folha de São Paulo. São Paulo, 31 jul. 1994, p. A-9.
19
Ibid., p. 102.
recebem dinheiro subsidiado do Banco do Brasil para plantar. Após a colheita, eles obtêm lucro e
investem no mercado financeiro. Para a plantação do próximo ano, recebem, novamente, dinheiro
barato do governo, não arriscam os lucros já obtidos, conseguem novos e voltam a aplicar no
mercado financeiro, gerando um ciclo vicioso de enriquecimento com dinheiro público.
Os principais amanhos são de: cana-de-açúlcar, mandioca, milho, soja, arroz e café. Das
frutas, ressaltam laranja, limão, manga, goiaba, maracujá e tangerina. A agricultura brasileira vem
mantendo uma taxa anual de aumento. No ano de 1991, em relação ao ano anterior, foi registrado
um crescimento proporcional de 27,80% do arroz; 8,46% na segunda safra e 29,66% na terceira, da
batata-inglesa; e 25,53% na primeira safra, 19,57% na segunda e 24,13% na terceira, do feijão. Em
relação ao ano de 1987, houve uma redução de 2,9 milhões de toneladas de trigo, devido à
diminuição da área plantada e ao uso de tecnologia inadequada, ademais de problemas climáticos de
estiagem e geadas. Também houve uma redução na produção total de cereais, leguminosas e
oleaginosas, de 22%, em comparação com o ano de 1989, que chegou a 71,8 milhões de toneladas.
O quadro da página seguinte permite uma visão panorâmica da produção agrícola brasileira.

Quadro 4
Área colhida, produção obtida, rendimento médio obtido e principal produtor,
segundo os principais produtores agrícolas das lavouras temporárias – 1991

PÁGINA 32 DO LIVRO

O Censo Agropecuário de 1985 registrou 195.095.029 ha (1.950.950,29 km2) de pastagens


naturais e 74.094.402 ha (740.944,02 km2) de pastagens plantadas nos estabelecimentos
pesquisados. De todo o efetivo pecuário, o maior rebanho é o bovino que em 1990 atingiu
147.102.314 cabeças (mais de uma por pessoa) e vem apresentando crescimento. A produção de
alimentos de origem animal também é bastante grande e poderia permitir uma alimentação digna
para toda a população, sem que um único brasileiro necessitasse passar fome. Os dados que seguem
podem comprovar esta possibilidade.

Quadro 5
Efetivo pecuário e avícola, segundo as grandes regiões – 1990

PÁGINA 32 DO LIVRO

Quadro 6
Produtos de origem animal – 1990

PÁGINA 33 DO LIVRO

Além da alimentação proveniente da agricultura e de animais, existe a oriunda da pesca.


Não há dados quantitativos, mas a pesca brasileira é bastante variada, prevalecendo a captura de
peixes (89% da produção) dividida em 50 espécies de água doce e 100 de água do mar. A pesca de
crustáceos também é importante, destacando-se a do camarão.
Na década de setenta (regime militar), houve uma expansão de indústrias de bens de capital,
bem como grandes investimentos em infra-estrutura de transportes, comunicações e energia. Foram
criadas indústrias de alta tecnologia, como a bélica, a aeronáutica, a de informática e a nuclear.
Falou-se no milagre brasileiro, em um grande desenvolvimento do país. O resultado acabou sendo
o grande endividamento do Brasil, um enorme gasto em indústrias nucleares, hoje funcionando
precariamente, e um agravamento dos índices sociais negativos, como ficará amplamente
demonstrado adiante. Com a crise econômica da década de oitenta, não mais houve crescimento
industrial, e os investimentos foram efetuados na modernização tecnológica. Mais recentemente, no
ano de 1991, foi registrada uma redução de 0,5% no volume produzido, em relação ao ano anterior.
As diminuições mais representativas ocorreram na produção mecânica (11,4%) e vestuário (15,7%).
Os dados mais positivos foram referentes à indústria química, com um aumento de 4,3%, e de
produtos alimentícios, com um acréscimo de 4,1%.
Não obstante seu tamanho continental, o país gira sobre transporte rodoviário de carga e
passageiros, com uma rede viária de mais de 1,6 milhão de km. A rede ferroviária só chega a 30 mil
km.
Em termos de comunicações, o Brasil possui uma alta tecnologia, sendo os serviços de boa
qualidade, estando disponíveis ao público as mais recentes descobertas, como o telex, o fax, a
telefonia móvel, a internet, etc. Entretanto, o uso destes sistemas é restrito a uma parcela pequena da
população. No ano de 1991, só havia 10.780.512 terminais telefônicos instalados, sendo atendida
uma ínfima parcela de domicílios.
No ano de 1991, a receita arrecadada foi de Cr$ 46.564.809.000.000, ou seja, US$
43.571.450.360,2520. Da receita total, 45,8% diz respeito à arrecadação correspondente às operações
de crédito, mas este valor é gasto, em quase sua totalidade, no pagamento, ou melhor, na rolagem da
dívida pública. As despesas realizadas pelos órgãos de administração, no mesmo ano, chegaram a
Cr$ 45.889.233.000.000, equivalente a US$ 42.939.293.534,20. Deste total, 0,71% foi gasto com o
Poder Legislativo e órgãos auxiliares; 1,32% com o Poder Judiciário; e os 97,95% restantes com o
Poder Executivo, sendo 1,48% para a Presidência da República e 98,51% com os Ministérios.
O volume de exportações é bem maior que o volume de importações, mas o balanço de
pagamentos de 1987 a 1991 só apresentou resultados positivos no ano de 1988. Como ilustração, no
ano de 1991, o saldo comercial foi de 10,6 bilhões de dólares, mas no balanço de pagamentos foi
apurado um déficit de mais ou menos 4,7 bilhões de dólares. As mercadorias mais exportadas são:
matérias-primas, como o estanho, o ferro, o manganês, o aço bruto, além de alimentos, como o
açúcar, o café, o cacau, a soja e a laranja. Os produtos mais importados são: o petróleo, as máquinas
e os equipamentos para a indústria.
No corrente ano, houve um acréscimo de 40% em relação ao ano de 1994 nas remessas,
feitas ao exterior pelas multinacionais, de juros e dividendos. Chegou-se a um recorde histórico de 4
bilhões de dólares. Nesse mesmo período, os investimentos realizados pelas empresas estrangeiras
foram de 3,5 bilhões de dólares21.
O Produto Interno Bruto brasileiro a preços de mercado, em 1991, era de quase 165 trilhões
de cruzeiros, um pouco mais de 154 bilhões de dólares. A renda per capita vem diminuindo, pois o
PIB, nos últimos anos, apresentou um desempenho abaixo do esperado, e o crescimento
populacional possui um ritmo bem maior do que o crescimento da economia.
Para finalizar esta parte do estudo, é importante mencionar os dados sobre o Brasil contidos
no Informe Sobre Desenvolvimento Humano de 1995, elaborado pela ONU.22 Com base no índice
de desenvolvimento humano - IDH - as Nações Unidas colocam o Brasil, entre todos os países, no
63º lugar. Já em relação só aos países em desenvolvimento, a ONU efetua uma tricotomia: 1) Alto
desenvolvimento humano; 2) Desenvolvimento humano médio, excluída a China e 3)
Desenvolvimento humano baixo, excluída a Índia. Nessa divisão, o Brasil aparece como o último

20
A conversão foi efetuada pelo valor do dólar em 31 de dezembro de 1991.
21
REMESSA de lucro bate recorde. Jornal Eletrônico UFRJ. NCE Notícias, 287, 8 nov. 1995, FSP - 1 (Folha de São
Paulo, 04 nov. 1995).
22
INFORME sobre desarrollo humano 1995. México, Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD),
1995, p. 81, 154-155 e 177-216.
do primeiro grupo23. De forma aparente, essa posição pode permitir entusiasmos, pois o Brasil está
entre os países em desenvolvimento no grupo qualificado como de alto desenvolvimento humano.
Entretanto, de forma lamentável, um estudo um pouco mais aprofundado, pode demonstrar ser o
entusiasmo falso porque esta colocação dá-se devido ao sistema de cálculo do IDH. Ele mede o
índice de desenvolvimento humano com base em uma média, ignorando as desigualdades internas
dos países, e isso, seguramente, leva a enganosas interpretações, pois o grande excesso dos ricos,
somado às enormes deficiências dos pobres, chega a uma média razoável. Observe-se o conceito do
IDH constante no informe: “El índice de desarrollo humano (IDH) mide el adelanto medio de un
país en lo que respecta a la capacidad humana básica. El IDH indica si las personas tienen una vida
larga y saludable, poseen educación y conocimientos y disfrutan de un nivel de vida decoroso. El
IDH se refiere a la condición media de todos los habitantes de un país; las desigualdades en la
distribución entre diversos grupos de la sociedad deben ser calculadas por separado.”24
Os dados mais relevantes encontrados no informe sobre o Brasil são: esperança de vida ao
nascer, 66,3 anos; taxa de alfabetização de adultos, 81,9%; taxa de matrícula combinada de todos os
níveis de ensino, 70%; PIB real per capita US$ 5.142; IDH 0,804; oferta calórica diária per capita,
2.824; jornais diários, 6 exemplares por 100 habitantes; televisores, 21 por 100 habitantes;
mortalidade infantil, 58 por 1.000 nascidos vivos, dados referentes a 1992; crianças totalmente
imunizadas contra: tuberculose, 98% e sarampo 84%, período de 1990-1993; 7,3 casos de Aids por
100 mil habitantes; 847 e 3.448 habitantes, respectivamente, por médico e enfermeiro, 1988-1991;
população em situação de pobreza (1990) urbana, 38%; rural, 66%; dívida externa, 1992, 121,1
bilhões de dólares; superfície: florestada, 5,8%; cultivável, 7,0%; regada, 4,7%, no ano de 1992;
desflorestamento (1980-1989), 3.650.000 ha/ano, sendo o reflorestamento, no mesmo período, de
449.000 ha/ano; taxa média de inflação em 1992, 991,4%. Outra fonte informa haver sido a inflação
média desse ano de 1.149,1%25. Não bastasse a crueldade dos dados, a situação do Brasil, em
relação ao desenvolvimento humano, piorou no ano de 1996 em relação ao ano de 1995. De um
IDH de 0,804 em 1995, passou para 0,797 em 1996. 26 “Esse índice deixa o Brasil no fim da fila de
um ranking mundial de 55 países, atrás de Botsuana, no sul da África, Peru e Panamá.”27
A UNICEF, em sua publicação Estado Mundial da Infância (1995)28, com poucas
diferenças, repete os dados acima mencionados. Alguns mais representativos merecem ser
mencionados: dos 145 países citados, Niger se destaca como o de maior taxa de mortalidade de
menores de 5 anos, com 320 por mil. Em ordem descendente, iniciando-se pelo nº 1, Niger, o Brasil
está colocado na 63ª posição, com 63 mortes por mil. A taxa de mortalidade infantil, de 0 a 1 ano, é
de 52. Ambos os dados de 1993. Nesse mesmo ano nasceram 3.590.000 crianças e morreram
226.000 com idade de 0 a 5 anos, ou seja, uma a cada, mais ou menos, dois minutos. 11% das
crianças nascem com baixo peso. População de crianças de até um ano, com imunização completa,
1990-93: TB, 98%; DPT, 75%; poliomielite, 66%; e sarampo, 84%. População abaixo do nível de
pobreza absoluta, 1980-1989, urbana, 9%; rural 34%.
Os dados apresentados demonstram não ser o Brasil uma grande potência econômica, mas
suas condições naturais (geográficas, climáticas, etc.), bem como sua população, podem permitir
um bom desenvolvimento para o país e a construção de uma grande nação. Entretanto, como se
23
Essa situação piorou, pois no informe relativo ao ano de 1996 o Brasil desceu para o grupo denominado médio
desenvolvimento urbano, ocupando a primeira posição. Ranking IDH (Índice de desenvolvimento humano). Folha de S.
Paulo. São Paulo, 16.7.96, Caderno 1, p. 8.
24
INFORME sobre desarrollo humano 1995, Op. cit., p. 81 (grifo do autor). Maiores detalhes sobre a forma de calcular o
IDH, inclusive com fórmulas, podem ser encontrados nas folhas 154-155 do informe.
25
ILHA de miséria. IstoÉ. São Paulo, nº 1.228, abr. 1993, p. 36.
26
SITUAÇÃO do Brasil piorou, aponta a ONU. Folha de São Paulo. São Paulo, 18 jun. 1996, p. 1-6.
27
PARA ONU, Real alterou pouco a miséria. Folha de São Paulo. São Paulo, 18 jun. 1996, p. 1-7.
28
ESTADO mundial de la infancia 1995. Barcelona, UNICEF, 1995, 97 p.
verá, as condições impostas pelo capitalismo internacional e nacional, ao contrário de facilitar a
edificação de uma sociedade igualitária e justa, vêm mantendo o povo brasileiro em uma das mais
terríveis condições socioeconômicas do planeta.

2. BRASIL REAL

Nenhum país seria melhor do que o Brasil para permitir a demonstração da existência do
que Serge Latouche chamou de “planeta dos náufragos”29. Existe um planeta ou uma sociedade dos
“ganhadores”, formado por pessoas com acesso aos bens e aos serviços, que chegaram à
modernidade e usufruem de seu desenvolvimento. Essas em nada perdem para os cidadãos dos
países ricos; ao contrário, talvez vivam em melhores condições, pois consomem as mesmas coisas
e, ainda, podem aproveitar as belezas naturais brasileiras e o excesso de espaço do país, bens raros
na Europa, no Japão e em outras nações ricas. Há, também, o planeta dos náufragos, ou uma
sociedade de “perdedores”, um imenso contingente de pessoas excluídas, não-consumidoras, em
condições subumanas de vida. Estes fatos ocorrem em um país considerado a décima economia do
mundo, onde, em teoria, há um Estado Liberal de Direito. Não se está analisando um pequeno e
pobre país africano, mas uma possível grande potência. Esta “nação do futuro” não possui uma
imagem internacional muito boa, todavia. Veja-se como a Anistia Internacional começa seu
informe anual de 1995 em relação ao Brasil: “Centenares de personas fueron ejecutadas
extrajudicialmente por la policía y por los «escuadrones de la muerte». Hubo informes de torturas y
malos tratos a detenidos en las comisarías de policía y en las cárceles. Periodistas, activistas de
derechos humanos, colaboradores de la iglesia y fiscales que investigaban violaciones de derechos
humanos cometidas por la policía recibieron amenazas de muerte.”30
Não se pretende fazer a apologia do pessimismo, desabonar a imagem do Brasil ou negar a
possibilidade de seu crescimento. Trata-se, tão-só, conforme afirma o autor francês, “de hacer
observar que, si bien a veces represento el papel de profeta de la desgracia, no lo hago para
contribuir al advenimiento de estas desgracias sino para intentar conjurarlas. La política del avestruz
no me parece la mejor para limitar las probables catástrofes. Alertar a la opinión pública contra
unos eventuales peligros es deber del intelectual, mucho más que destilar euforias ante los medios
de comunicación.”31 O vão otimismo diante de uma sociedade que marginaliza a maior parte de si é,
para dizer o menos, uma grande conivência. Os alardeadores de ânimos buscam, em realidade,
resignação e subserviência. Não desejam mudar nada, pois beneficiam-se da desgraça alheia.
Assiste razão a Gramsci quando afirma:
“Hay que observar que muchas veces el optimismo no es más que una manera de defender
la pereza propia, la irresponsabilidad, la voluntad de no hacer nada. Es también una forma
de fatalismo y de mecanicismo. Se espera en los factores ajenos a la propia voluntad y
laboriosidad, se los exalta, y la persona parece arder en ellos con un sacro entusiasmo. Y
el entusiasmo no es más que una externa adoración de fetiches. Reacción necesaria, que
debe partir de la inteligencia. El único entusiasmo justificable es el acompañado por una
voluntad inteligente, una laboriosidad inteligente, una riqueza inventiva de iniciativas
concretas que modifiquen la realidad existente.”32

29
LATOUCHE, Serge. El planeta de los náufragos : ensayo sobre el posdesarrollo. Trad. de Emma Calatayud Herrero.
Madrid, Acento Editorial, 1991, 216 p. (Signomás, 10).
30
INFORME 95. Amnistía Internacional, Madrid, 1995, p. 82.
31
LATOUCHE, Serge.Op. cit., p. IX-X.
32
GRAMSCI, Antonio. Antología. Op. cit., p. 355.
2.1. O problema da fome

Nenhum país pode se considerar desenvolvido tendo uma parte de sua população passando
fome. Nesse tema, o Brasil apresenta dados às vezes contraditórios, mas, mesmo os mais otimistas
demonstram uma realidade tétrica. Por esse motivo inicia-se a análise deste assunto com os
diagnósticos do próprio governo, mais especificamente, com as informações33 do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada -IPEA- uma fundação pública vinculada à Secretaria de
Planejamento, Orçamento e Controle da Presidência da República.
Partindo do conceito de Segurança Alimentar como “o acesso por todas as pessoas e em
todos os momentos a uma alimentação suficiente para uma vida ativa e saudável.”34, o IPEA
apresenta o seguinte quadro da realidade brasileira:
Quase trinta e dois milhões de pessoas35, um contingente equivalente a toda a população da
Argentina, passam fome diariamente. O panorama geral da indigência 36 no país e por regiões pode
ser assim resumido, no tocante ao número de pessoas, no ano de 1990: Brasil: 31.679.095, 100%;
Norte: 685.204, 2,1%; Nordeste: 17.288.528, 54,6%; Sudeste: 7.982.453, 25,2%; Centro-Oeste:
1.640.597, 5,2% e Sul: 4.082.314, 12,9%. Metade desses seres humanos está nas cidades, e uma
parcela significativa, 17,3 milhões, está localizada no Nordeste. Esta região também predomina na
indigência rural (mais de 60%). Ressalte-se ser o consumo de alimentos maior nas áreas rurais (em
média 7,5%), em relação às zonas urbanas, isto devido à facilidade de acesso a alimentos naturais,
que não passam pelo mercado.
Realidade dramática também vivem os silvícolas. A Fundação Nacional do Índio - FUNAI -
estabeleceu o conceito de Terra Indígena como o espaço físico ocupado por grupos tribais, com
posse permanente, mas sem a propriedade37. Foram estabelecidas por todo o Brasil 509 áreas
indígenas, com uma superfície total ocupada de 9.419.108 ha (hectares), ou seja, 94.191 km 2, 1,1%,
da superfície do país. Entretanto, “a situação é crítica no Centro-Oeste e Nordeste, onde 84,62% e
83,9% dos índios, respectivamente, estão famintos. No Sudeste, 48,82% passam fome e, no Sul,
46,62% têm dificuldades para achar alimentos. Não por acaso, as tribos do Norte, embrenhadas na
selva e isoladas do contato com o branco [portanto, longe do mercado], sofrem menos. Apenas
3,16% passam fome. No total, dos 129.858 índios pesquisados, mais da metade, 58,73%, têm
alimentação insuficiente.”38 Para exemplificar, pode-se citar o fato de 400 índios caingangues
viverem na mais absoluta miséria, com suas crianças morrendo de desnutrição e desidratação, com

33
PELIANO, Anna Maria T. M. (coord.) O mapa da fome : subsídios à formulação de uma política de segurança
alimentar. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro, Documento de Política nº 14, Serviço Editorial,
1993, 24 p.
34
Ibid., p. 3.
35
A FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), no ano de 1985, falava em 40% da
população brasileira passando fome, mais ou menos 53 milhões de pessoas. Ver nota 1, pp 15-16, in ANDRADE, Lédio
Rosa de. Juiz alternativo e poder judiciário. São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, 143 p. Não há qualquer fato político,
econômico ou de qualquer outra ordem que justifique esta brusca diminuição do triste quadro; ao contrário, tudo indica
um progressivo aumento, pois o arrocho salarial e a perda do poder aquisitivo são uma constante. De todas as formas, 32
milhões de pessoas passando fome todos os dias é uma realidade brutal e injustificada. Dados mais recentes esclarecem:
“Um em cada três brasileiros não tem renda suficiente para atender às necessidades tidas como básicas. São 41,9 milhões
de pessoas vivendo abaixo do nível de pobreza. Uma parte delas é indigente e não tem renda suficiente para comer.”
POBRES somam 41,9 milhões. Folha de São Paulo. São Paulo, 18 jun. 1996, p. 1-6.
36
ISTO é Brasil. Diário Catarinense. Florianópolis, 06 fev. 1994, Diário Especial, p. 2.
37
Na época do descobrimento do Brasil pelos portugueses (1500), a população autóctone era de 2,5 a 5 milhões de índios.
Iniciou-se um genocídio, e as tribos nativas foram sendo exterminadas, por matanças generalizadas e por enfermidades
importadas da Europa e da África, restando, na atualidade, pouco mais de 300 mil indígenas. Ver: TERNON, Yves. El
estado criminal : los genocidios en el siglo XX. Trad. de Rodrigo Rivera. Barcelona, Península, 1995, p. 360-365.
(Historia, ciencia, sociedad, 242).
uma taxa de mortalidade infantil de 140 óbitos para cada mil nascimentos, com 100% das crianças
até cinco anos acometidas de verminose, 50% de anemia e 48% com peso abaixo do normal, às
margens do rio da Várzea, na região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, divisa com Santa
Catarina, uma das regiões mais ricas em alimentos do país, onde a fertilidade da terra dispensa até o
uso de adubos. Na mesma região, no outro lado do rio, vivem os colonos alemães, italianos, russos e
poloneses, com uma taxa de mortalidade de 16 mortes para mil nascimentos, com fartura de comida
e sem miséria. Os problemas dos índios começaram com a chegada dos primeiros colonos alemães,
por volta de 1824, e, cinqüenta anos depois, com a imigração italiana. Os colonos davam cachaça
aos índios, embriagando-os, com o propósito de usurpar suas terras, o que conseguiram. Hoje os
nativos vivem em favelas e formam bolsões de miséria.
Esses dados são relevantes, pois, como o próprio governo reconhece, não há falta de comida
no país, podendo ser alimentados não só os índios, mas toda a sua população.
“O Brasil produziu nos últimos sete anos uma média de 59 milhões de toneladas de grãos
(arroz, feijão, trigo, milho e soja). A disponibilidade interna desses produtos e dos demais
alimentos tradicionalmente consumidos no país é superior às necessidades diárias de
calorias e proteínas de uma população equivalente à brasileira. Dispõe-se de 3.280 Kcal e
de 87 gramas de proteínas per capita/dia para uma recomendação de 2.242 Kcal e 53
gramas de proteínas, respectivamente (FAO).

Em outras palavras, a fome que aflige 32 milhões de brasileiros não se explica pela falta
de alimentos. O problema alimentar reside no descompasso entre o poder aquisitivo de um
amplo segmento da população e o custo de aquisição de uma quantidade de alimentos
compatível com a necessidade de alimentação do trabalhador e de sua família.”39
Esse é um ponto importantíssimo a ser aprofundado. Se a natureza, virgem e/ou trabalhada
é pródiga em alimentos, permitindo uma produção superior às necessidades, por que há tanta gente
passando fome no Brasil? Não é porque 24 milhões de toneladas de grãos são desperdiçadas todos
os anos, simplesmente indo para o lixo, ocasionando um prejuízo de 5,4 bilhões de dólares, dinheiro
suficiente para comprar 234,7 milhões de cestas básicas de 36 quilos40. Ora, se o problema reside no
“descompasso” entre o poder aquisitivo de uma grande parte do povo e o custo de aquisição dos
alimentos, o mesmo não é de ordem natural (terras inférteis, clima hostil, etc.), mas, isto sim, criado
pelo homem. Em palavras bem claras, os alimentos estão mal distribuídos. É evidente a existência
de outros problemas, como a perda por deficiência de armazenagem, de transporte e de manuseio,
mas o tema central é a capacidade aquisitiva, pois mesmo com extravio de comida, sobra o
suficiente para todos. O fato de 90% da produção localizar-se nas regiões Sul, Sudeste e porção
meridional do Centro-Oeste, e 60% da população faminta habitar as regiões Norte e Nordeste, não
impede uma solução para o tema. Portanto, bastam iniciativas que distribuam, em termos
civilizados, a renda nacional. Isso se pode fazer com um pouco de vontade política, e a fome
terminaria em poucos dias. Por que não se procede desta forma? Porque algumas pessoas não
querem. Por certo esta afirmação será ridicularizada, e muitos juristas e economistas virão com
inúmeras e mirabolantes teorias para justificar a impossibilidade dessa distribuição. Serão palavras
bonitas, talvez eruditas, mas só palavras. Em realidade, quem estabelece o poder aquisitivo e o
preço dos alimentos não é nenhum ente sobrenatural mas, única e exclusivamente, o Direito e o
mercado e ambos são instituições criadas pelos seres humanas, por aquelas pessoas em posição de
mando na sociedade, e funcionam de acordo com seus interesses.

38
TEIXEIRA, Paulo César. Órfãos do paraíso. Crianças caingangues morrem de fome em região riquíssima na produção
de alimentos no RS. Isto É. São Paulo, nº 1.346, p. 31, jul. 1995.
39
PELIANO, Anna Maria T. M. (coord.). Op. cit. p. 4.
40
ISTO é Brasil. Diário Catarinense. Op. cit., p. 1.
A relação de produção, compra e venda de alimentos, não é gerida por uma “mão invisível”,
mas por inúmeras mãos de seres humanos, visíveis, que plantam, colhem, armazenam, estocam,
circulam, pagam ou sonegam impostos, determinando preços. Como atos humanos, podem ser
modificados e transformados por vontade própria ou por imposição. O valor do salário mínimo é
fixado pelo governo, aprovado pelo parlamento, publicado no Diário Oficial, portanto, uma norma
jurídica perfeita e acabada. Os preços dos alimentos são, alguns, tabelados por lei e/ou estão sujeitos
a inúmeras normas, como o Código do Consumidor. Se são leis ou ordenamentos subordinados a
elas, são Direito, e se são Direito, dizem respeito também ao Poder Judiciário. Este deve agir para
proteger os interesses da sociedade, pois falar em soberania popular, capacidade do povo para gerir
seu destino na sociedade tecnológica e massificada do capitalismo moderno, é pura retórica, pois,
como adverte o professor da Universidade de Barcelona, Juan Ramón Capella, “de hecho, los
ciudadanos son impotentes para definir cualquier asunto concreto: ya se trate del modo de proceder
a la construcción del mercado único europeo, del sistema de estímulos fiscales de su propio país, de
decidir su política económica o, siquiera, la efectividad de los llamados derechos sociales y de las
leyes laborales, ecológicas o sanitarias con que está decorativamente adornado su sistema
jurídico.”41
O problema não pára na falta de decisão política. É muito mais grave, pois “no modo de
existir vigente, as pessoas têm estado alheias não unicamente aos andamentos sociais. São estranhas
a si próprias. Jamais reuniram seu foro interior. Não têm contato consigo mesmas e sequer estimam
a valia desse não sabido encontro reservado.”42 No atual estágio do conhecimento humano, falar em
autonomia do Direito e do mercado, da neutralidade dos mesmos, só pode ser um ato de muita má-
fé ou da mais absoluta ignorância. Sobre isto, Norbert Reich não permite dúvidas:
“La circunstancia de que en un Estado capitalista el derecho se encuentre condicionado
por el sistema económico, aunque no coincida por completo con él, constituye un lugar
común en la doctrina, hasta el punto de que no merece la pena discutir mucho tiempo
sobre ella. Tampoco ello es una novedad exclusiva del derecho actual, sino que ese
condicionamiento del derecho, junto a un simultáneo reconocimiento de su relativa
autonomía, está presente a lo largo de toda la evolución del sistema jurídico (...) El
derecho es uno de los medios decisivos para que el Estado pueda organizar los procesos
de mercado (regulación) y para que pueda intervenir en ellos (manipulación).”43
Ademais, os processos de mercado são uma prática de poder.
“El liberalismo en general, y la Nueva Derecha en particular, proyectan una imagen de los
mercados como mecanismos de coordinación «desprovistos de poder», y al hacerlo
olvidan la naturaleza distorsionadora del poder económico en relación con la democracia.
La realidad del llamado «libre mercado» está hoy en día caracterizada por complejos
patrones de formación de mercados, estructuras monopolísticas y oligopolísticas, los
imperativos del sistema de poder corporativo y de las corporaciones multinacionales, la
lógica de los bancos comerciales y de la rivalidad económica de los bloques de poder.
Este no es un mundo en el que se sostenga fácilmente la idea de que los mercados son
mecanismos libres, sensibles a las elecciones colectivas.”44
Em um estudo sociológico sobre os fatos, não se tem muita dificuldade para se chegar à
conclusão de que há uma enorme concentração econômica, um lucro empresarial injustificável, uma

41
CAPELLA, Juan Ramón. Los ciudadanos siervos. Madrid, Editorial Trotta, 1993, p. 125.
42
ANDRADE, Léo Rosa de. Liberdade privada e ideologia. São Paulo, Editora Acadêmica, 1993, p. 104.
43
REICH, Norbert. Mercado y derecho. Trad. de Antoni Font. Barcelona, Editorial Ariel Derecho, 1985, p. 29.
44
HELD, David. Modelos de democracia. Trad. de Teresa Albero. Madrid, Alianza Universidad, 1991, p. 303-304. (AU
Ciencias sociales, v. 691).
apropriação de mais-valia criminosa, ou seja, não se tratam de problemas setoriais, circunstânciais
ou passageiros. Os sistemas econômico, social e político é que não prestam, pois não funcionam
para atender aos interesses de toda a população. Bem ao contrário, conforme afirma David Held, “la
democracia está inmersa en un sistema socioeconómico que garantiza sistemáticamente una
«posición privilegiada» a los grandes intereses económicos.”45 Daí surgem os dados sociais
assustadores e estes não só são de responsabilidade dos políticos e economistas, mas, também, em
grande parte, dos juristas. Entretanto, os dados até o momento mostrados e os que serão
apresentados a seguir, pouca coisa re-presentaram no mundo do Direito e dos juristas,
primordialmente, nos corredores forenses, pois a vetusta e desgastada desculpa de serem os
problemas sociais alheios à Justiça ainda continua justificando essa conivência.
Como será demonstrado no final deste capítulo, todas essas questões sociais criaram uma
demanda popular por justiça social que acabou chegando, por falta de solução nas outras esferas de
poder, ao Poder Judiciário, politizando-o e exigindo resoluções para problemas até então tidos como
não-jurídicos. A maioria dos juízes se negou ou não foi capaz de atender a esses clamores, criando
um clima tenso e de conflito no próprio Poder, surgindo, disso, o movimento do Direito Alternativo.

2.2. As desigualdades sociais e econômicas

Por certo, situações de fome, desigualdade social e miséria não são temas autônomos; bem
ao contrário, estão, totalmente, interligados. Não obstante, para efeitos didáticos, aparecem
separados neste estudo, a fim de permitir ao leitor uma melhor análise, tanto global como
particularizada, de cada assunto.
A desigualdade social é um quadro visível no cotidiano da sociedade, passível de ser
comprovado empiricamente, entretanto, é tratada como natural ou inexistente. Não há culpados,
ninguém é responsável. O Estado impessoal, regulado por lei, não assume sua parte. As classes
ricas, tampouco. Por palavras se transfere a responsabilidade para o livre mercado, para a falta de
competência dos perdedores. Assim, ela torna-se não só suportável, mas, também, parte comum do
são corpo social. “Las desigualdades sociales y económicas que son el resultado del juego
impersonal de las fuerzas del mercado son mucho más aceptables que aquellas que proceden
visiblemente de una discriminación causada por el gobierno.”46 Entretanto, Estado impessoal e livre
mercado são partes de um mesmo todo, construído por homens e mulheres, chamado sistema
capitalista e ideologia burguesa, e assim devem ser analisados. A situação social é drástica e
continua maculando a imagem do país no exterior. Basta ver o dito a respeito do Brasil, na edição
de 1994, do anuário O Estado do Mundo. “Y en el plano social, el horror continúa. El cólera, que se
cierne casi exclusivamente sobre los más pobres, se ha instalado en la vida cotidiana. Además, en
São Paulo, la policía daba muerte, con ocasión de una revuelta, a 110 reclusos desarmados,
dominando con armas automáticas un motín producido en la penitenciaría de Carandiru. Y como no
se habían construido ni los depósitos, ni las cisternas, ni los acueductos prometidos, el Nordeste se
ha visto castigado con la peor sequía que conociera en cuarenta años la región.”47 Até mesmo a
pelagra, enfermidade conhecida como a doença da fome extrema, encontra-se na pauta do dia. “A
pelagra - doença da fome extrema- está voltando à região do agreste pernambucano. A pelagra é
conhecida como a 'doença dos quatro d': diarréia, dermatite, demência e 'death' (morte em inglês).
No mundo, só foram localizados casos entre refugiados de guerra e em algumas regiões

45
Ibid., p. 245.
46
ELSTER, Jon. Uvas amargas : sobre la subversión de la racionalidad. Trad. de Enrique Lynch. Barcelona, Península,
1988, p. 132-133. (Ideas, v. 4.).
47
EL ESTADO del mundo. Anuario económico y geopolítico mundial. Edición de 1994. Madrid, Akal, 1994, p. 95.
paupérrimas da Índia. Só no ano passado, porém, 86 doentes foram confirmados entre 125
moradores de Bezerros, no agreste pernambucano.”48
De novo tomam-se as informações fornecidas pelo próprio governo, que reconhece: “é
inegável também que, nos anos 80, se acentuou o contraste entre ricos e pobres e se multiplicaram
os sinais de exclusão social no Brasil.”49 Como prova disto, enumera: 1) concentração de
rendimentos ocorrida entre 1981 e 1990; 2) proliferação de novas favelas e adensamento das antigas
nas grandes cidades; 3) ocupação dos espaços públicos pelas chamadas “populações de rua” e o
crescimento da violência urbana. Além destas formas de violência, com estatísticas disponíveis,
existem outras, não contabilizadas, mas com a mesma gravidade, como: 1) violência da espera,
ocorrida nas filas para consultas, exames ou internações na rede pública hospitalar, com milhares de
enfermos necessitando dormir na rua para obter uma autorização de atendimento, quando muitos
morrem, e os que conseguem são pessimamente atendidos; e 2) violência do percurso, ou seja, o
risco diário de vida sofrido por milhões de trabalhadores, submetidos às modalidades de transporte
cada vez mais precárias e inseguras. O resultado do agravamento da desigualdade social é,
reconhece o governo, o “acirramento da violência como forma perversa de protesto social”. 50
Entretanto, como mencionado há pouco, ao Poder Judiciário tais fatos não interessam, pois são
juridicamente irrelevantes.
O Brasil era um país agrícola no período do pós-guerra, e sua industrialização e urbanização
tiveram início em meados dos anos 50. Nessa época, a população urbana representava 36,2% do
total, o setor agropecuário absorvia 60%, e o setor industrial, 13,7% da economia nacional. A
indústria participava no Produto Interno em 24,1%, e a agropecuária, em 24,3%. Nas três décadas
seguintes, houve a industrialização, com a implantação de empresas voltadas para a produção de
bens de capital, insumos básicos e bens de consumo duráveis. O PIB teve uma taxa de crescimento
médio de 7,4% ao ano. Como resultado, no ano de 1980, a população urbana passou a representar
67,6% do total; o setor agropecuário foi reduzido para menos de 30%, e o setor industrial ampliado
para 24,9%. Houve uma inversão em relação à participação no PIB, passando a indústria a
representar 40,6%, e a agropecuária, só 10,2%. A euforia nacional era grande frente ao “vigoroso
processo de crescimento”, sendo o país considerado, no final da década de oitenta, a 10ª economia
capitalista do planeta.
Foram, entretanto, conquistas aproveitadas por poucos, pois a situação social piorou
sensivelmente, como vinha ocorrendo já desde a implantação do regime militar ditatorial em 1964 e
sua política de contenção de salários, de total cerceamento dos direitos e liberdades civis
(principalmente sindicais) e endividamento externo. Uma conseqüência perversa, entre tantas
outras, foi a brutal concentração de renda no período de 1960 a 1980, que perdura até hoje, quando
os 50% mais pobres da população economicamente ativa diminuíram sua participação na renda de
17,4% para 12,6% e o 1% mais rico aumentou a sua de 11,9% para 16,9%. Na última década, a
concentração continuou aumentando, passando os 10% mais ricos, de uma participação na renda de
46,6% para 53,2%, e os 50% mais pobres reduziram sua participação de 13,4% para 10,4%.51
Recente pesquisa de amostra por domicílio, realizada pelo IBGE no ano de 1993, demonstra um
agravamento desse quadro. “No período de dez anos entre 1983 e 1993 os 10% mais pobres da
população brasileira ficaram mais pobres e os 10% mais ricos ficaram mais ricos. De acordo com os
dados da PNAD, a participação dos 10% mais pobres no total dos rendimentos pessoais no Brasil

48
BIANCARELLI, Aureliano. Doença da fome extrema volta ao Nordeste. Folha de São Paulo. São Paulo, 06jul. 1994,
p. 3-4.
49
OLIVEIRA, Jane Souto de. (org.) O traço da desigualdade social no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, Divisão de Gráfica/Departamento, 1993, p. 7. Os dados que seguem são
retirados desta obra.
50
Ibid., p. 8.
51
Ver: NÍTOLO, Miguel Roberto. Op. cit., p. 13.
caiu de 0,9% para 0,7% no período. Em compensação, os 10% mais ricos tiveram um aumento de
sua participação na renda de 48,1% para 49,8%. A parcela de 1% mais rica da população, que
detinha 14% de toda a renda pessoal em 83, passou a deter 16% em 93.”52 Em realidade, o
“crescimento econômico” serviu para ampliar os contingentes populacionais em situação de miséria
absoluta e para transformar o país num dos mais concentrados perfis de distribuição de renda
existentes. Isto é de fácil comprovação. Basta ter presente a renda per capita dos ricos das regiões
Centro-Oeste e Sudeste do país, de US$ 20.800, superior à média dos ricos residentes nos países
mais desenvolvidos do planeta, como Estados Unidos e Japão, e a renda per capita média dos
pobres da região Nordeste, de US$ 396, inferior à renda média estipulada para os níveis pobres do
mundo, de US$ 500. Na escala internacional, os ricos brasileiros estão bem posicionados entre os
mais ricos do planeta, enquanto os pobres estão pessimamente localizados entre os mais pobres53.
A partir da década de oitenta, acabou o “sonho”, e o país mergulhou em uma profunda crise
com hiperinflação, passando a taxa média de evolução anual do PIB real para tão-só 1,5%, tendo o
PIB per capita declinado de US$ 3.000 (1980) para US$ 2.856 (1990). O absurdo da concentração
de renda também pode ser observado nos seguintes fatores 54: a) 80% da população está excluída do
mercado de consumo; b) a participação dos salários na renda nacional era de 56,6% no ano de 1949;
de 50% no ano de 1980 e de só 35% em 1989; c) o setor financeiro já é dono de 15% do PIB
nacional e d) em Botsuana, um dos países mais atrasados da África, os 20% mais ricos ganham até
23 vezes mais do que os 20% mais pobres, enquanto no Brasil a diferença chega a 27,3 vezes mais.
Esta diferença parece ser bem maior, bastando ver o quadro 2.
As brutais diferenças sociais não são fruto só da concentração de renda. Um outro fator
importante é a má distribuição da terra e a falta de uma reforma agrária. O Brasil é um país de
8.511.996,3 km2, e 80% desta imensidão de terras, ou seja, 6.809.597 km2, pertencem a 10% de
fazendeiros. Existem fazendas, de propriedade de uma só pessoa, maiores que países. Isto faz do
Brasil uma das nações com maior índice de concentração da propriedade da terra, na atualidade.
Nesse tema ocorre uma grande contradição no discurso dos defensores da propriedade
privada como um Direito Natural. Natural significa um direito do ser humano pelo simples fato de
ser um ser humano. É prévio ao Estado e ao Direito. É algo assim como o respirar (em relação ao
comer já se não pode mais falar), um direito essencial à própria vida. Ora, se realmente a
propriedade é um Direito Natural então, dentro de sua lógica, seria um Direito de todos, pois já se
acabou a época em que se afirmava, no discurso católico, não terem os negros alma e, portanto, não
possuírem direitos. Não mais se pode aceitar serem algumas pessoas inferiores (como as mais
variadas formas de escravos), sem personalidade jurídica, negando-se-lhes a qualidade de sujeitos
do Direito Positivo e, também, de sujeitos do intitulado Direito Natural. Os dados apresentados,
entretanto, demonstram o contrário, ou seja, ser este “direito natural” só para uns poucos, e isto
significaria serem uns mais naturais em relação aos outros.
Os vinte maiores latifúndios somam 17 milhões de hectares (170.000 km2) de terras férteis.
O total destas imensas áreas representam, mais ou menos, 85% do solo agricultável, enquanto os
minifúndios ocupam apenas 9,5%. No ano de 1980, as 5% maiores propriedades rurais do país
representavam 69,3% de sua área55. Cinco anos antes, o número de imóveis com menos de 10
hectares era de 3.085.841. Houve uma diminuição de 1.521.980. Por outro lado, os grandes imóveis,
com mais de 10 mil hectares, aumentaram, passando de 2.174 em 1985 para 4.481 em 1990.
Aconteceu, portanto, uma brutal concentração da propriedade imóvel, acarretando, por óbvio, um

52
RENDA fica mais concentrada. Folha de São Paulo. São Paulo, 21 mar. 1996, p. 4.
53
Dados retirados de FARIA, José Eduardo. O poder judiciário no Brasil : paradoxos, desafios e alternativas. Trabalho
preparado a pedido do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Inédito, 1995, p. 14.
54
ISTO é Brasil. Diário Catarinense. Op. cit., p. 4-7.
55
BECKER, Bertha & EGLER, Claudio A. G.. Brasil uma nova potência regional na economia-mundo. 2ª edição. Rio de
Janeiro, Bertrand Brasil S.A., 1994, p. 194. A situação atual é, ainda, de mais concentrada.
aumento do número de latifúndios e uma diminuição do número de minifúndios. É de conhecimento
geral que qualquer nação desenvolvida, rica, com um pouco de justiça social, só chegou a esta
condição após resolver o problema da distribuição da terra. Mesmo o Estado de Bem-estar, uma
versão moderna do capitalismo, é incompatível com um país construído sobre uma estrutura
latifundiária. O Brasil jamais resolverá seus problemas sociais e econômicos sem antes efetuar uma
profunda reforma agrária. Defender essa proposta, durante a ditadura militar, ocasionava prisão,
tortura e até morte. Hoje virou plataforma demagógica de muitos políticos. Promessas de campanha
eleitoral, tão-só.
Comparando-se os quadros seguintes, ambos fornecidos pelo próprio governo, pode-se
constatar a violenta injustiça no reparto do solo brasileiro.

Quadro 7
Área total e distribuição das áreas aproveitáveis
Brasil - 199056

PÁGINA 48 DO LIVRO

Quadro 8
Estabelecimentos rurais, área e pessoal ocupados
Por grupo de área total - 1985.57

PÁGINA 49 DO LIVRO

Já entre os julgadores, a Associação dos Magistrados Brasileiros, após realizar um


diagnóstico do Judiciário58, quando ouviu 3.927 juízes de primeiro grau em atividade (30%),
constatou que 43,1% deles colocam a reforma agrária como uma das políticas públicas prioritárias.
Entretanto, enquanto ela não é efetivada, continuam julgado em favor dos grandes latifundiários,
pois entendem ser função do julgador só cumprir a lei.
Além da concentração da propriedade, pode-se constatar que, dos 147 maiores latifúndios,
120 deles, com uma área de 8.513.906 hectares, são improdutivos, e estão à espera de valorização,
em prática da especulação. Enquanto isto, milhares de trabalhadores não possuem terra para
trabalhar e, muitas vezes, são mortos quando tentam conquistar um espaço para exercerem seu
laboro. Um “estudo que o Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) está elaborando
indica que os 167 milhões de hectares de terras improdutivas do Brasil poderiam transformar em
consumidores 4,2 milhões de famílias indigentes. Essas famílias correspondem à metade das que
têm renda inferior ao custo da cesta básica (cerca de R$ 100, variando regionalmente).” 59 Outro
fator importante a ser destacado diz respeito aos proprietários dessas áreas com mais de 100 mil
hectares. Segundo o Incra60, do total (147) desses latifúndios, 71 pertencem a pessoas físicas (4
estrangeiras e as demais brasileiras) e 76 a pessoas jurídicas (duas estrangeiras). Estas poucas
pessoas são proprietárias de 27.830.766,8 hectares, ou seja, 278.307 km2.

56
ESTATÍSTICAS cadastrais anuais - 1990. Ministério da Agricultura e Reforma Agrária. Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária - Incra, p. 1.
57
BECKER, Bertha & EGLER, Claudio A. G. Op. cit., p. 67.
58
DIAGNÓSTICO do Judiciário. Jornal do Magistrado. São Paulo, ano VI, nº 30, out. 1995, p. 16.
59
MAIORIA das famílias indigentes vive no campo. Folha de São Paulo. São Paulo, 25 dez. 1994, p. 1-12.
60
ESTATÍSTICAS cadastrais anuais - 1990. Op. cit., p. 109 e 145.
Isso cria um dos maiores conflitos sociais hoje existente no Brasil: a luta entre os sem-terra
e os latifundiários. Aqueles, miseráveis e sem ter onde trabalhar, invadem latifúndios improdutivos,
e estes, com base no documento de propriedade, socorrem-se de seus pistoleiros profissionais e/ou
do Poder Judiciário, para retomarem as terras, o que conseguem, no mais das vezes, mediante
violência praticada por seus empregados/assassinos e/ou pela Polícia Militar contra os posseiros.
Esses grandes proprietários de terras usufruem do exercício da violência monopolizada do Estado.
Para desalojar milhares de famílias, a polícia usa a força, e o resultando vem sendo a morte de
muitos brasileiros, incluindo-se mulheres e crianças. Desde 1985 foram mortos 979 trabalhadores,
250 nos últimos cinco anos61.
Esta luta, entretanto, é mais antiga, e cenas de sangue e violência se repetem
freqüentemente. A última ocorreu no dia 10 de agosto do corrente ano. “Al menos 40 personas
resultaron muertas ayer y otras 200 heridas en un enfrentamiento entre campesinos y policías
brasileños en el Estado de Rondonia, en la frontera con Bolivia. La violencia se originó cuando
cerca de 300 policías intentaron desalojar a más de 700 familias que habían tomado una hacienda.
Estas muertes son el último capítulo en el conflicto de los campesinos brasileños sin tierra, que
desde hace 15 años luchan por la posesión legal de áreas productivas. Esta guerra se ha cobrado
más de 700 vidas.”62 A grande imprensa brasileira fala em doze ou treze mortos, incluindo uma
menina de 7 anos, morta com um tiro pelas costas 63. Não se pode entrar em um debate desumano
para discutir se foram doze ou quarenta mortos. Com base nas revistas citadas, pode-se chegar à
seguinte conclusão: O juiz da comarca de Colorado d'Oeste deferiu mandado de reintegração de
posse em favor de dois fazendeiros, expedindo ofício à Polícia Militar, determinando a expulsão dos
posseiros. O professor Paulo Sérgio Pinheiro explica bem a questão jurídica: “O juiz Glodner Luiz
Pauletto, determinou, pasmem, uma ação de reintegração de posse imediata a um proprietário
particular de terras pertencendo à União! Com base nesse mandado, no dia 9/8, entre 3h e 4h
(segundo relatório da PM), em plena escuridão, a PM investe com bombas de iluminação e gás
lacrimogêneo. Eram mais de 180 homens, alguns encapuzados do Centro de Operações Internas
(COI), como se fossem enfrentar combatentes. Quem era o 'inimigo'? Famílias, homens e mulheres,
simples, com suas crianças.”64 Tendo em mãos um mandado de reintegração de posse, os
fazendeiros contrataram ônibus para levar os policiais. 187 policiais militares foram para perto do
local onde estavam os posseiros e montaram um acampamento. Armados com revólveres,
metralhadoras, escopetas e gás lacrimogêneo, os militares, vestindo coletes à prova de bala e
capuzes pretos, foram cumprir, de forma ilegal, pois agiram de madrugada, a ordem judicial. Os
posseiros encarregados da defesa do acampamento, armados com 28 espingardas velhas, dois
revólveres calibre 22, três garruchas, duas carabinas e bombas artesanais, ao verem um grupo de
pessoas armadas e encapuzadas, estouram alguns rojões para avisar os demais companheiros. Deu-
se início a um tiroteio, no qual morreram posseiros, incluindo a criança já mencionada e dois
policiais, em circunstâncias não esclarecidas, sendo possível, aliás, que tenham sido atingidos por
tiros disparados por seus próprios companheiros de farda. Desse momento em diante, houve um
massacre. Os militares disparam bombas de gás e suas armas, para todos os lados. Muita fumaça,

61
TERRA manchada de sangue. IstoÉ. São Paulo, nº 1.350, ago. 1995, p. 20-22.
62
MUEREN 40 personas en un choque entre policías y campesinos brasileños. El país. Madrid. ago. 1995,
6/Internacional, p. 11. De fato, nos últimos 28 anos, houve 1.681 assassinatos de trabalhadores rurais como resultado dos
conflitos no campo, dos quais só 26 foram julgados pela Justiça Criminal, ocorrendo apenas 15 condenações. Ver:
FARIA, José Eduardo. O poder judiciário no Brasil : paradoxos, desafios e alternativas. Trabalho preparado a pedido do
Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Inédito, 1995, p. 60.
63
Ver: BARROS, Andréa. Muitos tiros pelas costas. Veja. São Paulo, v. 28, nº 33, ago 1995, p. 37-38. TERRA manchada
de sangue. IstoÉ. São Paulo, nº 1.350, ago. 1995, p. 20-22. BÉRGAMO, Mônica. Executados, torturados e humilhados.
Veja. São Paulo, v. 28, nº 36, sep. 1995, p. 38-41.
64
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Corumbiara, conspiração? Chacina. Folha de São Paulo. São Paulo, 25 set. 1995, caderno 1,
p. 3.
gente (mulheres e crianças) correndo para buscar abrigo. Muitos posseiros foram mortos pelas
costas, quando já dominados e prostrados ao solo, com tiros à queima-roupa. Outros foram
espancados e torturados. E, por fim, houve seqüestros com desaparecimento de pessoas. Para
enfrentar os únicos armados e que ainda resistiam, os policiais agarraram as mulheres do
acampamento e as fizeram de escudo humano. Mesmo após terminar a expulsão, outros posseiros
foram mortos como vingança pelos policiais falecidos. Terror, puro terror, o acontecido. Os
posseiros estão sendo processados por desobediência e resistência (sic) e os policiais, investigados
por um tenente-coronel. O final desta história é previsível. Como todas as outras iguais, os policiais
colocarão a culpa no Poder Judiciário. Este, por sua vez, culpará os policiais, e ninguém será
responsabilizado por esses crimes. Aliás, o Ministro da Agricultura, o banqueiro José Eduardo de
Andrade Vieira, já apontou os culpados. Para ele, a culpa é do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária -INCRA- órgão subordinado ao seu Ministério, da ONU e de ONGs. Teve a
petulância (um banqueiro administrando a agricultura de um país, dela sendo credor) de fazer as
seguintes declarações a um dos maiores jornais do Brasil: “A ala radical, ideológica do Incra
gostaria mesmo de confiscar, espoliar o proprietário (...). Eu acho que a ONU e essas ONGs que
andam por aí prestariam um grande serviço à humanidade se, em vez de perturbar os países do
Terceiro Mundo, perturbassem os governos dos países do Primeiro Mundo para que pagassem
preços justos pelos produtos agrícolas importados.”65
Erraram todos aqueles que pensaram ter sido esse o último episódio da triste e selvagem
história da terra brasileira. Nova chacina foi produzida em Eldorado dos Carajás, no estado do Pará,
no dia 17 de abril de 1996. Dessa vez foram cerca de vinte sem-terra mortos e, aproximadamente,
51 feridos. Os jornais noticiam terem os policiais agido não só por ordem do governador do Estado,
mas, também, por determinação dos fazendeiros locais, de quem receberam dinheiro. A violência
monopolizada do Estado, representada pela Polícia Militar, agora age na qualidade de assassina
profissional, a soldo de latifundiários, contra a população. Eis o Estado de Direito brasileiro,
funcionando direito para proteger interesses específicos. Os métodos utilizados foram os mesmos:
muita violência, superioridade de armas, para uma carnificina planejada e executada com perfeição.
“Recolhidos num posto do Instituto Médico-Legal de Marabá, os corpos de Eldorado dos
Carajás trazem as marcas de um massacre. Manchas roxas informam que tomaram chutes
e pontapés, enormes buracos de bala e manchas de pólvora comprovam que foram dados
tiros à queima-roupa, membros mutilados e cabeças arrebentadas denunciam uma
selvageria além de qualquer razão ou limite. Os homens e as mulheres atacados na
floresta, que deixaram sangue e pedaços de cérebro espalhados pelo chão e pela relva, são
esses brasileiros chamados de sem-terra, cidadãos que andam descalços, têm as roupas
sujas de barro e só costumam ser notícia sob a forma de cadáver.”66
No Estado do Pará, o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida, dono da construtora CR
Almeida, comprou uma fazenda no município de Altamira, por apenas seis milhões de reais, com
quatro milhões de hectares, ou seja, uma área superior a dois El Salvador ou dois Estado do
Sergipe67. Ele está dentro da lei. A Polícia Militar, o Governador do Estado e os Juízes, por certo,
lhe protegerão contra os sem-terras. “Em 1993, a força policial foi mobilizada 142 vezes para
defender o cumprimento de ações de despejo em favor dos proprietários de terras. Segundo os
dados da CPT, em dezesseis dessas ocorrências, os PMs agiram junto com pistoleiros de aluguel
contratados por latifundiários.”68

65
ANDRADE Vieira ataca Incra, ONU e ONGs. Folha de São Paulo. São Paulo, 25 set. 1995, caderno 1, p. 7.
66
SANGUE em Eldorado. Veja., São Paulo, v. 29, nº 17, abr. 1996, p. 34-43.
67
Ibid. p. 43.
68
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços : direitos humanos no Brasil. Op. cit., p. 143.
Essa violência institucionalizada, legalizada e protegida, dá razão a um dos militares
representantes da lei em Rondônia, que após utilizar Alzira, uma das mulheres do acampamento,
como escudo humano, deu-lhe uma cotovelada na boca, quebrando-lhe a dentadura e gritou em seu
ouvido: “Vocês são ratos, o fazendeiro tem dinheiro para comprar e matar todo mundo.”69 Essa é a
triste realidade de um país, de sua violência monopolizada, de sua justiça e de seu povo.
Esse dinheiro, entretanto, desaparece quando se trata de pagar dívidas contraídas junto ao
Banco do Brasil. Esses fazendeiros70 fazem fortuna com dinheiro público. “São os grandes
fazendeiros, milionários do campo habituados a tomar dinheiro barato do crédito rural do Banco do
Brasil e a não pagar o que devem. Em números absolutos, eles são poucos, apenas 18.000 num
universo de 3,5 milhões de agricultores brasileiros. Mas eles impressionam pelas dimensões de suas
fazendas, seu confortável estilo de vida e, principalmente, pelo tamanho dos débitos pendurados no
banco.”71 Eles possuem o apoio da poderosa bancada ruralista no Congresso Nacional, o que lhes
permite ser caloteiros sem maiores dificuldades. Dos 331.000 agricultores com acesso ao crédito
rural, 95% pagaram suas dívidas. Entretanto, 5% deles, exatamente os mais ricos, tornaram-se
inadimplentes.O Banco do Brasil emprestou em torno de 15,7 bilhões de dólares. Os caloteiros
ficaram devendo 3,4 bilhões. Desses maus pagadores, 25% são, exatamente, os grandes
latifundiários. Dois exemplos esclarecem bem o tema. Érico Ribeiro, o maior plantador de arroz do
planeta (5 milhões de sacas por ano), proprietário de fazendas no Brasil e no Uruguai, de um
frigorífico, de várias empresas e aviões, com um faturamento, em 1994, de 210 milhões de dólares,
deve cerca de 33 milhões de dólares ao Banco do Brasil. Ele não paga o empréstimo efetuado com
dinheiro da população e ainda zomba de toda a nação, quando diz ser a culpa da dívida do governo,
pois importa arroz pagando 6 reais a saca de 50 quilos e não compra as suas ao preço de 20 reais. O
maior devedor é um ex-reitor da Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Norte,
Domingos G. de Lima, homem próximo ao governo, que acumulou uma dívida de quase 70 milhões
de dólares. Muitos deles são conhecidos por imporem aos seus trabalhadores rurais um regime de
semi-escravidão. O Poder Judiciário não é capaz de cobrar essas dívidas com a mesma agilidade
com que executa pequenos devedores.
Trata-se de um grande ágape nacional, com poucos convidados, onde o bolo repartido é o
dinheiro da população, ora com serviços públicos, ora com empréstimos subsidiados, ora com
favorecimentos, ora com corrupção, e tantas outras formas. A nação assiste, pasmada, a esse
espetáculo de dilapidação de sua riqueza, feita à luz do dia, com o conhecimento e participação das
autoridades constituídas. A Justiça oficial, tão severa contra muitos delitos, pequenos furtos, por
exemplo, nada faz, a tudo assiste, pois neutralidade, muitas vezes, se confunde com conivência.
A desigualdade social entre pessoas é agravada, dependendo da região do país. Por
exemplo, a taxa de mortalidade infantil, em 1989, no Brasil, era de 45 óbitos por mil crianças
nascidas vivas. Entretanto, na região Nordeste era de 75,2 e na região Sudeste era de 33. A
mortalidade infantil dá-se menos por fatores biológicos e físicos, e mais por fatores sociais, como:
condições ambientais, oferta de serviços de saúde, educação da mãe, renda familiar, deficiências
nutricionais e baixo peso, por desnutrição, ao nascer. Como conseqüência destes fatores sociais,
ocorrem óbitos ocasionados por diarréia (principal causadora de morte infantil), infecções
respiratórias agudas - IRA, doenças infecciosas intestinais - DII, desnutrição - DNA (das crianças
brasileiras com menos de 5 anos, 15,4% sofrem de desnutrição crônica e 2% de desnutrição aguda,
sendo atingidas, comumente, as filhas de famílias pobres.) e prematuridade - PRM. Portanto, este
número de morte está, diretamente, relacionado com a política social e econômica do país.

69
BÉRGAMO, Mônica. Executados, torturados e humilhados. Veja. São Paulo, v. 28, nº 36, sep. 1995, p. 40. (grifo do
autor).
70
Muitos sequer fazem parte dos velhos e novos latifundiários. São oriundos das burguesias industrial, bancária e
comercial, bem como de multinacionais. Entraram no ramo da agricultura por estarem próximos ao poder e desfrutarem
dos créditos públicos, ou seja, dinheiro do contribuinte.
71
A TURMA do calote. Veja. São Paulo, v. 28, nº 20, mai. 1995, p. 30.
Quando se fala em diminuição da mortalidade infantil, isto é reflexo do desenvolvimento da
tecnológica dos países ricos, como a descoberta de vacinas, e não de uma melhora socioeconômica
interna do país. Um exemplo comparativo ratifica esta afirmação. “Uma das regiões mais pobres do
planeta é o sul da Ásia, onde está um país chamado Sri Lanka. Sua renda per capita é de US$ 540 -
a brasileira é de US$ 2.770. Lá, em 1960, de cada mil crianças que nasciam, 130 morriam antes de
completar cinco anos. Hoje, são apenas 19, número próximo dos países do Primeiro Mundo.
Vejamos o Brasil. Apesar de ostentar uma renda per capita várias vezes maior, apresenta uma
mortalidade infantil que o coloca em 83º lugar no planeta. Traduzindo: 226 mil vidas por ano.
Traduzindo mais: uma a cada dois minutos.”72
Também, a esperança de vida muda devido ao local de residência da pessoa. No ano de
1990 era estimada em 65,6 anos para o país. Entretanto, na década de oitenta, foi constatada uma
diferença de 23,5 anos de vida entre os mais pobres da região Nordeste (51,5 anos) e os mais ricos
da região Sudeste (75 anos).
Em termos de emprego em geral, em 1990 configurou-se um novo perfil de inserção no
mercado de trabalho urbano em relação à década de oitenta, tendo como características distintivas:
1) perda da importância relativa do trabalho assalariado em contraposição ao trabalho autônomo; 2)
crescimento de formas de “emprego” sem vínculo contratual e 3) redução generalizada dos níveis
de cobertura social.
Nos últimos dez anos, o rendimento médio (em salários mínimos) das pessoas ocupadas não
variou e permaneceu estabelecido em 4,9 salários mínimos, mais ou menos 500 dólares. No entanto,
esse dado deve ser interpretado com muita cautela, pois a diferença entre os menores e os maiores
salários é enorme, e a maioria da população, em idade de trabalho, ganha até dois salários mínimos,
conforme dados constantes na tabela da página 16. As diferenças e desigualdades começam a
aparecer em uma análise em nível setorial, pois, no mesmo período, os obreiros das indústrias de
transformação tiveram uma perda de 15,5% em seus rendimentos, enquanto os empregados na
prestação de serviço e no comércio estabelecido obtiveram um ganho de 9,7% e 8,2%,
respectivamente. Já em relação à forma de inserção, houve uma perda generalizada para todos os
empregados particulares: 23,9% para os trabalhadores em ocupação de nível superior e gerenciais;
17,9% para os de nível médio e 14,7% para os manuais, os que menos recebem. Obtiveram ganhos,
entretanto, os empregadores (4,6%), os empregados públicos e os empregados autônomos. Em
resumo, os maiores salários conseguiram ganhos, e os menores, perdas, ocorrendo um processo de
“nivelamento por baixo” dos rendimentos dos trabalhadores da economia formal (ou setores
organizados) urbana. As maiores perdas foram para os obreiros do setor privado (-15,7%). “Importa
ressaltar que este processo se efetivou, em realidade, num contexto de forte concentração de
rendimentos. Entre 1981 e 1990, apenas os 20% mais ricos lograram elevar sua participação relativa
na apropriação do rendimento, sendo mais expressivos os ganhos dos 10% mais ricos. Além disso,
observou-se, também, um movimento de reconcentração no topo da pirâmide, passando os 5% mais
ricos a se apropriarem de 35,4% dos rendimentos (contra 31,9% em 1981) e o 1% mais rico, de
13,9% (contra 12,1% em 1981)”73. Isto significa que 10% dos mais ricos se apropriam de 48% do
total de rendimentos, sendo, segundo admite o próprio IBGE, um sistema de concentração de renda
perverso, talvez o mais perverso em comparação com qualquer outro país. O índice Gini brasileiro
era (e ainda é) muito alto: 0,620 no ano de 1.990.74 É importante ter em conta que se está
mencionando a apropriação de rendimentos contabilizados, oficiais, e não dos informais, dos
enormes lucros obtidos na especulação, agiotagem, corrupção, negociatas com dólares, venda de
72
DIMENSTEIN, Gilberto. É tão fácil. Folha de São Paulo. São Paulo, 18 dez. 1994, Opinião, p. 1-2.
73
OLIVEIRA, Jane Souto de. (org.). Op. cit., p. 32. Existem pequenas diferenças nestes números, dentro do próprio
IBGE, mas todos confirmam o enriquecimento do 1% dos ricos. Por exemplo, na obra: SABOIA, Ana Lucia, RIBEIRO,
Rosa. e CERVINI, Rubens A. (Coords.). Crianças & adolescentes : indicadores sociais. Rio de Janeiro, Fundo das Nações
Unidas para a Infância, UNICEF, Departamento de Editoração e Gráfica, vol. 4, 1992, p. 13, consta que a participação
percentual na renda total do país dos 50% mais pobres era, em 1981, de 13,4% e de 11,2% em 1990 e a do 1% mais ricos
de 13% no início da década passada e de 14,6% no início da presente.
drogas e toda uma imensidade de negociações financeiras não declaradas ao fisco e, portanto, não
incluídas nos dados oficiais do governo.

Quadro 9
Apropriação de renda pelos 10% mais ricos

PÁGINA 57 DO LIVRO

Considerando pobreza como insuficiência de renda, sua dimensão vem aumentando nos
últimos anos. O IBGE, para qualificar a pobreza absoluta, utiliza uma linha de pobreza única,
equivalente, em valor per capita, a 1/4 do maior salário mínimo vigente no país em 1980 (há muitos
anos inferior aos US$ 100). O número de pobres evoluiu de 29,4 milhões em 1980 para 39,2
milhões em 1990. Em proporção à população total, houve um decréscimo de 34,8% para 27,0%.
Essa redução proporcional, entretanto, como reconhece o próprio IBGE, não é real: “O efeito da
redução da proporção para o País como um todo resulta do processo de urbanização, que continua
acelerado, e do fato que uma linha de pobreza única não leva em consideração os diferenciais de
custo de vida entre áreas urbanas e rurais. Nessas condições, a simples ocorrência de migração
rural-urbana significativa tem o efeito de reduzir, provavelmente de forma indevida, a proporção
global de pobres.”75
Está-se falando de pobreza só como insuficiência de renda, não se considerando, por
exemplo, o déficit de infra-estrutura social, o que agravaria muito a situação. Existem cidades,
como Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde o percentual de pobreza é superior aos 50% e os
serviços públicos são precários, criando uma situação de violência e intranqüilidade muito perto de
uma guerra civil, condições sociais também consideradas juridicamente irrelevantes para o Direito
e para o Poder Judiciário.
Há uma prestação de serviços públicos seletiva, de acordo com a renda familiar do
domicílio. Por ilustração, dos domicílios com renda de até um salário mínimo mensal, só 33,7%
tinham, no ano de 1990, instalações sanitárias adequadas (fossas sépticas ou rede geral), 56,1%
tinham coleta de lixo e 52,4% eram ligados à rede geral de água, com canalização interna. De forma
bem diferente era o atendimento aos domicílios com renda mensal superior aos dez salários
mínimos. Destes, 90% possuíam rede de esgoto e mais de 95% eram atendidos pela coleta pública
de lixo e pelo abastecimento de água. O Brasil é um país com um elevado gasto no setor social.
Entretanto, “41% da população que vive nos domicílios mais pobres recebem apenas 20% dos
gastos sociais do setor público, enquanto 16% da população que habita os domicílios mais ricos
absorvem 34% desses mesmos gastos.”76 As camadas mais pobres da população,
proporcionalmente, pagam mais pelos programas sociais destinados a diminuir a pobreza. Mas,
paradoxalmente, as camadas mais ricas se beneficiam mais desses programas. Vê-se que no dia-a-
dia a igualdade dos cidadãos, declarada em lei, não é observada sequer pela administração pública,
na hora de oferecer os serviços pagos com o dinheiro dos contribuintes. Estes, como será visto,
normalmente, não são os mais ricos, pois, mesmo sendo inaceitável, as pessoas mais aquinhoadas,
no Brasil, acabam pagando menos impostos. Entretanto, recebem mais dinheiro do governo, não só
através dos serviços públicos, mas, também, por intermédio de financiamentos subsidiados para
suas empresas, para seus latifúndios e, até mesmo, para seus gastos supérfluos. Soma-se a isso uma
outra poderosa forma de transferir dinheiro público para as contas bancárias dos achegados ao

74
Este índice é considerado uma das melhores medidas para averiguar as desigualdades na distribuição de renda,
considerando o valor 0 (zero) como perfeita igualdade e o valor 1 (um) como máxima desigualdade.
75
Ibid., p. 34.
76
FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito : os juízes em face dos novos movimentos sociais. Op. cit., p. 101.
poder: a corrupção. Do valor total investido pelo governo em obras, na aquisição de bens e
serviços, 40% é consumido em corrupção77. No ano de 1994, só em relação aos contratos em
execução, esta porcentagem representou 20 bilhões de dólares. A corrupção é maior nos seguintes
ministérios: Transportes, Bem-estar social, Integração Regional e Saúde. Três ministérios
diretamente relacionados com as classes pobres.
O atendimento diferenciado também é praticado em relação às regiões do país. As regiões
Sul e Sudeste, mais ricas, recebem tratamento convencional em 80% da água produzida, enquanto
na região Nordeste, mais pobre, só 69,4% da água é tratada. O restante é tratada parcialmente ou
não o é, ocasionando a possibilidade de transmissão de inúmeras doenças.
O problema do lixo também é muito sério. Dos resíduos sólidos, 76,3% são depositados em
vazadouros, 22,1% em aterros sanitários ou controlados e 1,7% tratados em usinas de
compostagem, reciclagem ou incineração. De fato, os depósitos de lixo, a céu aberto, acabaram
convertendo-se em fonte de renda e de alimentação para muitas famílias, a ponto de ocasionar
mutações genéticas em crianças, conforme denuncia o professor francês Serge Latouche: “Ya en
ciertos basureros de las favelas de Brasil se han producido mutaciones espontáneamente: los niños
llegan a digerir detritus estropeados normalmente incomestibles.”78
O problema é sério ao ponto de uma das maiores revistas79 do país publicar uma
reportagem, ilustrada com grandes fotografias coloridas, mostrando algumas famílias, com muitas
crianças, alimentando-se de ratos caçados nos depósitos de lixo. Uma destas fotos foi publicada em
vários países ricos, causando indignação, enquanto no Brasil as autoridades resolveram não
incomodar o Sr. Presidente da República, omitindo de seu conhecimento esse fato. “Uma imagem
do Brasil que surpreendeu o mundo na semana passada foi sonegada ao presidente Itamar Franco.
Na manhã de segunda-feira, os burocratas da Radiobrás acharam tão repulsiva a foto estampada na
primeira página do jornal O Globo que decidiram censurá-la no resumo diário das notícias enviado
ao Palácio do Planalto.” Os assessores tentaram poupar o Presidente de ver uma notícia dantesca,
documentada por fotografia. “ A foto mostrava Edileusa Félix, de 24 anos, e Damião da Silva, de
30, comendo ratazanas assadas na brasa num lixão de Timbaúba, a 100 quilômetros do Recife.”
Após serem publicadas em vários jornais do planeta, algumas vozes, até então caladas, resolveram
se indignar. Entretanto, essa hipocrisia foi desmascarada por um dos moradores do lixão, de
maneira muito simples, ao afirmar: “Eu como esses bichos há mais de quinze anos, mas só agora a
televisão resolveu filmar.”
O incrível disto tudo, o que permite pensar-se na possibilidade de construção de um mundo
melhor, é a postura ética dessa gente80. “Os favelados também não atacam o gado e os porcos que
pastam pelas redondezas. A ética do lixão impede que se toque em bens alheios. 'Esses bichos têm
dono, e a gente tem de respeitar o que é dos outros', diz José Pedro da Silva, pai de três filhos.” Esta
postura talvez seja juridicamente relevante para o Direito Tradicional e para os juristas, pois esses
favelados respeitam a propriedade privada alheia e continuam comendo ratos no correr dos seus
dias.
Não se trata de um caso isolado, pois várias famílias vivem nestas condições. Uma
entrevista efetuada pelo jornal Folha de São Paulo com a catadora de lixo Maria das Dores da
Conceição elucida o assunto:

77
CORRUPÇÃO consome 40% dos investimentos da União. Diário Catarinense. nº 3.175, 27 dez. 1994, p. 1, capa.
78
LATOUCHE, Serge. Op. cit., p. 134.
79
A DIETA proibida : onze famílias matam a fome comendo rato num lixão de Pernambuco, numa cena que a burocracia
escondeu de Itamar. Veja, São Paulo, v. 27, n. 43, p. 88-89, out. 1994.
80
É possível pensar-se exatamente o contrário, ou seja, ser esta ética, em realidade, a comprovação mais cabal da eficácia
dos meios de manipulação de massa. De qualquer forma, a postura destas gentes é um exemplo a ser resgatado e
divulgado.
“F.S.P.- Você come os ratos que vivem no lixo? M.D.C.- Como. Eu e todo mundo aqui.
Não temos condições de comer outra coisa, então comemos rato para não morrer de fome.
F.S.P.- Como é que vocês comem o rato? M.D.C.- A gente pega o rato, joga na fogueira e
raspa o cabelinho. Depois abre a barriga, tira as tripas, a cabeça e os pés, lava, põe sal e
cozinha na brasa. Faço com batata, cabeça de galinha, o que vier no lixo. F.S.P.- Alguém
já foi mordido por um rato ou passou mal depois que comeu? M.D.C.- Nunca ninguém
passou mal por causa da comida. A gente sente uma dor de cabeça às vezes, mas é do sol.
Dor de barriga mesmo nunca deu. Nós somos mais ratos do que os próprios ratos.”81
Se comer rato não for suficiente, há mais. Esses indigentes mortos de fome não comem o
gado alheio, mas se alimentam de órgãos humanos jogados nos depósitos de lixo por hospitais
imprudentes. “Favelados de Olinda (6 km de Recife, PE) estão comendo pedaços de carne humana
recolhidos no lixo hospitalar (...). 'Já encontramos seringa, dedo, tripa, braço e até um nenê' (feto),
afirma Solange (...). A catadora Leonildes Cruz Soares, 65, e seu filho, Adilson Ramos Soares, 39,
afirmam que comeram um seio encontrado por ele em meio aos detritos. 'Não tinha o que comer e
comi isso mesmo', justifica a mulher. Ela mora em um barraco no lixão, com 7 de seus 10 filhos.” 82
O fato, de calamitoso passa a ser muito trágico ao ler-se a resposta dessa anciã à pergunta do
jornalista, se sabia o que estava comendo: “Quando comecei a fritar a carne apareceu uma gordura
amarela. Aí as pessoas me disseram o que era, mas eu não tinha o que comer e comi isso mesmo.
Com fome entra tudo. Passei um bocado de dia sem saber o que era almoço.” 83 O inusitado foi a
atitude das autoridades, pois resolveram fazer algo. A Secretária da Saúde de Olinda determinou
rigorosa fiscalização nos lixões da cidade e, após tomar conhecimento do resultado da mesma,
efetuada pelos técnicos da Vigilância Sanitária, admitiu existir lixo irregular, criticou os infratores e
afirmou ser possível a interdição das instituições de saúde que cometeram essas irregularidades,
pois esses detritos deveriam ser lacrados e enterrados em local próprio. Ter famílias morando nos
lixões e se alimentando das comidas ali catadas não foi considerado irregularidade. Esse tipo de
atitude oficial já virou rotina, e a sociedade civil assiste, impotente e/ou indiferente, a essa forma de
governar sua vida. Brutalizou-se a sociedade. Muito poucos pensam em viver em comunidade,
respeitando o outro, o diferente. A competição desenfreada, a prática arrivista tornou-se a regra
generalizada. Até “parece que sea un cruel destino de los humanos este instinto que los domina de
querer devorarse los unos a los otros, en vez de hacer que converjan las fuerzas unidas de todos para
luchar contra la naturaleza y hacerla cada vez más útil para las necesidades de los hombres.”84
Para finalizar este quadro patético, cabe mencionar que o Brasil possuía, em 1990, 20,2
milhões de analfabetos (18,7%), percentual muitas vezes superior ao da Argentina (4,5%) ou Cuba
(5,5%). Soma-se à quantidade de analfabetos a evasão escolar, pois a permanência dos alunos no 1º
grau é de apenas 22 para cada 100 que ingressam (só 20% dos alunos matriculados na 1ª série
conseguem concluir a 8ª série), porcentagem muito inferior à de Cuba, onde 91 de cada 100 alunos
cumprem toda a trajetória escolar dessa fase. Mais uma vez os legalistas olvidam o texto
constitucional, que estipula a obrigatoriedade e gratuidade do ensino fundamental, inclusive para as
pessoas que não tiveram acesso na idade própria.
Existe, até certo ponto, de uma forma bastante difundida, uma prática retórica exercida por
pessoas ideologicamente identificadas como de direita, de acusarem os autores estudiosos dos dados
sociais brasileiros de esquerdistas, como se esta realidade fosse traçada pelas críticas, e não pelo
sistema que lhe dá causa. Até mesmo os dados fornecidos pelo próprio governo não escapam desse
preconceito. Para prevenir esta espécie de absurdo, torna-se importante uma rápida análise do livro
81
SOMOS mais ratos do que os próprios ratos. Folha de São Paulo. SãoPaulo, 18 out. 1994, Cotidiano, p. 3.
82
GUIBU, Fábio. Indigentes comem carne humana em Olinda. Folha de São Paulo. São Paulo, 16 abr. 1994, Caderno 1,
p. 12.
83
Ibid.
84
GRAMSCI, Antonio. Antología. Op. cit., p. 8.
coordenado por João Paulo dos Reis Velloso85, ex-ministro do planejamento de um ditador militar.
Esse homem, por certo, não é um esquerdista, bastando ver suas palavras expressas na primeira
página da apresentação da obra acima mencionada: “No fundo, a Revolução Industrial, realizada na
Inglaterra a partir de 1780, e no continente a partir do início do século XIX, só veio a legitimar-se
no pós-Segunda Guerra Mundial. Foi então que a Europa conseguiu efetivar, simultaneamente, o
desenvolvimento, a democracia, o welfare state e a economia de mercado. Com isso, o capitalismo
social mostrou ser capaz de assegurar a 'abundância para o grande número' (ou o que Adam Smith
denominava 'opulência universal'), em clima de democracia de massas.”86 Diga-se, em excurso, ser
esse ufanismo do capitalismo europeu exagerado, até mesmo, se dito por um europeu. Ademais,
ignora toda a vasta bibliografia crítica moderna, na qual o desmoronamento do Estado do Bem-
estar está demonstrado de forma convincente. Soma-se a isto o desconhecimento da própria
realidade, pois uma das maiores revistas brasileiras publicou um artigo com o seguinte título.
“Miséria na riqueza. Deserdados pelo Estado do bem-estar social e acossados pelo desemprego, os
pobres já constituem 15% da população européia”.87 A reportagem não fala de imigrantes, mas de
alemães, franceses, espanhóis, etc. Esse mito do modernismo europeu é o discurso moderno de
grande parte da direita brasileira.
Pois bem, este livro não nega os dados apresentados neste estudo, ao contrário, os ratifica e
complementa. A proposta de solução para os problemas nacionais é divergente, pois ela acredita no
desenvolvimento equilibrado, no crescimento sustentado, do país e em um capitalismo social,
idealismos muito distantes da realidade, quanto à possibilidade de acabar com os desequilíbrios
socioeconômicos. “O Brasil não é desigual apenas em termos de renda. É muito desigual
socialmente: o pobre é discriminado. Como ilustração, diz-se ser a Justiça, no país, tardia e às vezes
falha, salvo para o pobre, que dela não consegue escapar.”88 Reconhece: a) existência de 39,2
milhões de pobres no ano de 1990; b) ser não-pobre a pessoa cujo rendimento familiar per capita
for superior a 1/4 do salário mínimo de agosto de 1980, ou seja, em termos atuais, quando o salário
mínimo está em seu mais alto nível em relação ao dólar, uma família de quatro pessoas, cujo
rendimento mensal total for de US$ 110, não é considerada pobre; c) 2/3 da força de trabalho
brasileira possuem menos de quatro anos de escola; d) a transferência de apenas 3% da renda dos
não-pobres para os pobres seria suficiente para retirar estes do nível de pobreza absoluta, elevando
suas rendas familiares per capita de US$ 225 (valor médio) para US$ 417 (nível de renda
correspondente à linha de pobreza.); e) que as características da pobreza brasileira facilitam sua
perpetuação e que, “nesse contexto, pode-se falar numa patologia da pobreza, aberração que
determina, no Brasil, a exclusão de quase 40 milhões de pessoas da vida econômica, social e
política, limitando suas esperanças de alcançar, no horizonte de suas existências, padrões mínimos
de bem-estar.”89 e f) em termos de mobilidade social, nos últimos anos, vem ocorrendo um descenso
generalizado, ou seja, a classe média está se tornando pobre, e esta, miserável, enquanto os ricos
cada vez ascendem mais. Muitos outros dados poderiam ser mencionados, mas cair-se-ía em
repetição. Vê-se, pois, ser esta análise sociológica do Brasil não o resultado de uma postura
ideológica de esquerda, mas, infelizmente, fruto de uma realidade cruel ocasionada por fatores bem
mais à direita.

85
VELLOSO, João Paulo dos Reis e ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. (Orgs.) Pobreza e mobilidade social. São
Paulo, Nobel, 1993, 198 p. (Fórum nacional. As bases do desenvolvimento moderno.).
86
Ibid., p. 7.
87
WAACK, William. Miséria na riqueza. Veja. São Paulo, v. 28, nº 11,mar. 1995, p. 64-68.
88
VELLOSO, João Paulo dos Reis e ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. (Orgs.). Op. cit., p. 12.
89
Ibid., p. 75.
2.3. Matança de crianças pobres,
um terrorismo de Estado

O pior com que se pode deparar um analista dos problemas enfrentados pelas crianças
pobres brasileiras não é a crueldade dos dados, mas a cínica trivialização do assunto. Como será
demonstrado a seguir, morre no Brasil, a cada um minuto e meio, uma criança de fome. Somam-se
a estas, milhares de outras, assassinadas por pistoleiros profissionais, os esquadrões da morte, e/ou
por agentes policiais, quase três por dia. Toda esta brutal violência institucionalizada não mais
revolta as gentes, não mais ocasiona repulsa ou asco, não mais faz chorar ou sofrer. Viram dados,
divulgados vez por outra, sem sentimento, sem emoção, criticados por alguns e, inclusive,
aplaudidos por muitos outros. A indiferença social vai além do desumano. O descaso do governo já
se tornou um terrorismo de Estado. Repleta de razão, a manchete da revista espanhola Tiempo de
hoy, ao denunciar em letras garrafais: “MATANZAS DE NIÑOS POBRES: LIMPIEZA ÉTNICA
A LA BRASILEÑA. La mayoría de los brasileños de clase media consideran normal la eliminación
física de los pobres que pueblan sus ciudades. Brasil vive en realidad una guerra civil, en la que el
bando perdedor está formado por 32 millones de muertos de hambre. Los asesinos de niños no son
simples matones, sino extremistas convencidos de su «misión».”90
A violência, em si, é cruel e inaceitável, mas o grande silêncio institucional e social talvez
seja ainda pior. Quando um grupo terrorista qualquer faz explodir uma bomba, matando uma dezena
ou mais de pessoas, seguramente será notícia de primeira página em todo o mundo, com vários atos
de protesto, repulsa e censura. Criam-se polícias especiais e até tribunais antiterrorismo, com
enormes gastos, mas para os causadores das milhares de mortes de meninos e meninas nada se faz 91,
até porque seria necessário atacar o próprio sistema. Não se defende a violência terrorista, mas não
se pode entender e, muito menos, concordar com o silêncio sobre a matança de crianças, muito mais
numerosa e ferina. Por serem vítimas pobres e por não estarem lutando de forma organizada contra
a ordem estabelecida, não importam aos governos, aos meios de comunicação e à própria
população, nem sequer a quem dispõe de alfabetização e recursos financeiros para comprar jornal.
Do descaso, da indiferença, chega-se, inclusive, à conivência. “La mayoría de los brasileños
practica una omisión silenciosa. Dicen: 'Yo no mato a los niños', pero 'tampoco me importa que
sigan vivos.'“92
Completamente mudo e alheio ao problema, está o Direito. O Estatuto da Criança e do
Adolescente, lei maior sobre o tema, após muitos gastos com reuniões onde os doutos juristas
debateram, profundamente, o assunto, foi elaborado para legislar um país de fantasia e nunca o
Brasil. Nele estão estabelecidas penas para os governantes e os pais que permitirem o sofrimento de
uma criança. A lista de “direitos” é enorme, os deveres da sociedade, do governo e das famílias,
também. Tudo está previsto, desde proibir a infelicidade das crianças e dos adolescentes, até obrigar
a solução para seus problemas. Só não se mencionou a realidade do país. As matanças continuam e
a fome se alastra e não há um único jurista tradicional, muito menos entre os juízes, pedindo, como
um bom positivista, formalista e legalista, o cumprimento da legislação. Os que assim agem são
criticados e menosprezados, são os alternativos ao “bom, racional, metodológico e científico”
Direito.

90
“Matanza de niños pobres: limpieza étnica a la brasileña”, Tiempo de hoy, n. 589, agosto de 1993, p. 65.
91
Por certo, existem campanhas sociais e, até mesmo, o governo desenvolve políticas contra a fome. Entretanto, com raras
exceções, todas são paliativas, mais para beneficiar os promotores e menos as vítimas. Não ataca a raiz do problema, o
sistema econômico e social, a concentração de riqueza e poder na sociedade, motivo pelo qual afirma-se que nada é feito.
Ressalte-se, entretanto, o reconhecimento a muitos grupos de pessoas, voluntárias, fora do âmbito do governo, que se
dedicam a combater todos estes problemas.
92
“Matanza de niños pobres: limpieza étnica a la brasileña”. Op. cit.,p. 67.
O IBGE, órgão do governo federal, possui uma publicação anual intitulada Crianças &
adolescentes: indicadores sociais, donde se retirou os dados seguintes93. Já de início é interessante
ver como este órgão governamental qualifica a situação geral do país e de sua juventude, pois fica
claro ter o governo plena consciência do problema, apesar de não atacá-lo de forma contundente,
com uma política estrutural, capaz de ir à raiz de sua origem, para poder iniciar sua solução.
“Pobreza, Família e Crianças em Situação de Risco. A combinação entre estagnação
econômica e piora na distribuição de renda é trágica, quando se considera os níveis de
pobreza já existentes no país. O crescimento da renda na década de 80, além de ter sido
modesto, foi distribuído de forma muito desigual. As conseqüências deste processo
atingiram de forma bastante grave toda a população, principalmente às crianças e
adolescentes. Em 1990, no Brasil mais da metade da população infanto-juvenil - 58,2% -
era pobre. Os resultados nocivos desta situação de pobreza têm efeito direto sobre a vida
das crianças nos seus aspectos mais fundamentais: saúde, nutrição e educação.”94
O Brasil, tradicionalmente, é reconhecido como um país de jovens. Esta situação, a partir da
década de oitenta, vem mudando, devido ao declínio da fertilidade e o prolongamento da vida
média. A proporção de jovens e adolescentes está entre 38% a 41%, igual a Cuba e a Argentina,
inferior a África (45%) e superior a Europa e a América do Norte (mais ou menos 20%). No ano de
1989, a população de brasileiros com idade entre 0 a 17 anos era de, aproximadamente, 59 milhões.
As regiões mais pobres do país, Nordeste e Norte, possuem maior população de crianças e jovens,
respectivamente, 47,5% e 47%, isto devido à alta fecundidade nas famílias pobres e a migração dos
adultos para os centros industriais, à procura de trabalho. Este fato agrava a situação social, pois
75% das crianças e adolescentes com domicílio no Nordeste vivem em famílias com um rendimento
per capita de até salário mínimo. Do total de brasileiros nesta faixa etária, em 1989, 27,4% viviam
em famílias com renda per capita de até 1/4 do Salário Mínimo; 23,1% de 1/4 a 1/2 do S.M; 21,5%
de 1/2 a 1 S. M; 14,6% de 1 a 2 S. M. e 12, 4% mais de 2 S.M. No ano de 1990, cerca de 32
milhões de crianças e adolescentes viviam em famílias com rendimentos iguais ou inferiores a
1/2 salário mínimo. Tendo em vista o salário mínimo ser, desde há muito, inferior aos 100 dólares,
normalmente, em torno dos 70 dólares, verifica-se, com perplexidade, que 50,5% da população
jovem brasileira vive em famílias com renda per capita de, mais ou menos, 30 dólares mensais, ou
3.600 pesetas. Como podem comer, vestir, estudar, tomar remédios, divertir-se, com este valor?
Simplesmente não podem. A revista Isto É95 afirma ser o gasto médio mensal de um filho de família
de classe média, em São Paulo, no mês de agosto de 1995, de R$ 771 (em torno de 811 dólares).
Este valor é subdividido da seguinte forma: R$ 300 para colégio, R$ 200 para vestuário e
alimentação, R$ 120 para lazer, R$ 50 para natação, R$ 50 para um curso de idiomas, R$ 34 para
dentista e R$ 17 para médico. Admitindo-se que uma criança pobre não tenha direito a colégio,
lazer, natação, curso de idioma e, inclusive, dentista, mesmo assim o gasto médio é de R$ 217 (US$
228) com alimentação, vestuário e médico. Tendo em vista que a renda per capita, do ano de 1989
até o ano de 1995 não variou muito em relação às famílias pobres, vê-se ser impossível sustentar um
filho com só 30 dólares mensais. É uma verdadeira incógnita: saber como as pessoas pertencentes a
este seguimento social conseguem viver. A solidariedade 96 aí existente, certamente, é uma forma
importante de possibilitar a sobrevivência. São os chamados vínculos de necessidade, ou seja:

93
Foram consultados os dois últimos volumes. SABOIA, Ana Lucia & RIBEIRO, Rosa. (Coords.). Crianças &
adolescentes : indicadores sociais. Rio de Janeiro, Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE,
Departamento de Editoração e Gráfica, vol. 3, 1991, 76 p e SABOIA, Ana Lucia, RIBEIRO, Rosa. e CERVINI, Rubens
A. (Coords.). Crianças & adolescentes : indicadores sociais. Rio de Janeiro, Fundo das Nações Unidas para a Infância,
UNICEF, Departamento de Editoração e Gráfica, vol. 4, 1992, 159 p.
94
SABOIA, Ana Lucia, RIBEIRO, Rosa. e CERVINI, Rubens A. (Coords.). Op. cit., p. 11.
95
O ELO indissolúvel. IstoÉ. São Paulo, nº 1.350, p. 39, ago. 1995.
“en el trastornado nacimiento del mundo contemporáneo se originaron los vínculos de
clase de los trabajadores, lo que Thompson ha llamado la economía moral de la multitud:
convicciones acerca de cómo el mundo es, cómo son los que están al otro lado y qué se
puede esperar de ellos; y, en consecuencia, valores (o virtudes) de solidaridad y de ayuda,
capacidad de resistencia, un tejido de comunicación; un universo entero de
sobreentendidos que permitía a las gentes hacer frente a la adversidad social y soportarla;
y combatirla, también, para modificarla. Los vínculos de la necesidad ponen en común,
también ellos, los problemas de cada uno.”97
Além disso, 60% das crianças menores de um ano vivem em domicílios cujas condições de
saneamento são inadequadas ou precárias. Todas estas crianças e jovens nascem e vivem em
condições subumanas e muito cedo entram no mercado de trabalho, para ajudar na manutenção da
família. A maioria é explorada e recebe salários inferiores ao mínimo legal. São formas comuns de
arrecadar dinheiro, a prática de pequenos furtos, o envolvimento com drogas e a prostituição das
meninas. Esse tipo de vida acarreta um baixo índice de escolaridade, pois mesmo quando há vagas
disponíveis, a evasão escolar é grande (de cada 1000 alunos só 25% concluem a 8ª série). Ademais,
durante a 1ª série, 1/4 dos alunos é reprovado. Disso resulta um analfabetismo de 21% da população
entre 7 a 17 anos.
Atualmente, mais de 7 milhões de crianças em idade escolar estão fora da escola, ou seja,
45,1% das crianças e adolescentes brasileiros; 31,7% destes só trabalham e estão transformados em
cidadãos sem futuro, pois não poderão se qualificar para almejar um emprego melhor. Há uma
espécie de condenação prévia à pobreza. Esses meninos e meninas sem escola serão trabalhadores
braçais, com um rendimento mensal muito baixo. O filho de uma família pobre constituirá, com
quase 100% de possibilidade, uma outra família pobre, cujos filhos também não estudarão e farão
parte, como ele, do excedente de mão-de-obra barata. Assim se constitui um ciclo vicioso de
formação e continuação da miséria. Somente casos excepcionais escapam dessa condição. Isto dá-se
não só por falta de estudo, mas, talvez em maior medida, por inexistir qualquer outra oportunidade
passível de lhes tirar da miséria. Para os juristas, entretanto, todos são iguais perante a lei e isto é o
juridicamente relevante.
Os motivos da evasão escolar são os mais variados, como: necessidade de trabalhar, falta de
escola, falta de dinheiro para o material escolar, falta de vagas, curriculum distante da realidade da
criança, discriminação racial e social, etc. Um ponto estritamente relevante diz respeito à merenda
escolar. Quando há, os alunos não só vão para a escola, como levam irmãos e irmãs, que, muita
vezes, ficam escondidos atrás de cercas ou muros à espera de um pouco de sopa a ser trazida pelo
irmão aluno, quando pode entrar mais de uma vez na fila da alimentação. De forma lamentável, o
processo de distribuição de merendas é precário e no mais das vezes não há. Muitos alimentos se
perdem por deterioração, pois ficam estocados até estragarem. Além disso, muito dinheiro
destinado à compra de alimentos para essas crianças acaba sendo desviado por corrupção. É uma
dolorosa realidade, sabida por todos, mas desprezada pelas autoridades competentes.
Disso tudo, resulta ser o analfabetismo proporcional à renda familiar, conforme comprova o
gráfico seguinte.

Quadro 10
Taxa de analfabetismo das pessoas de 7 a 17 anos por
rendimento mensal familiar per capita - Brasil 1989

PÁGINA 68 DO LIVRO
96
A maioria das pessoas que participam dos comitês de campanha contra a fome ganham menos de cinco salários
mínimos, e a maior parte dos doadores de alimentos pertencem à classe média baixa. ATIVISTA ganha salário mínimo.
Folha de São Paulo. São Paulo, 25 dez. 1994, Brasil, p. 1-12.
97
CAPELLA, Juan Ramón. Op. cit. p. 139.
Dados terríveis são os relativos ao trabalho das crianças e dos adolescentes. Eles servem
para demonstrar as desigualdades sociais mais perversas. Em 1990 havia trabalhando 2.873.523
crianças com idade entre 10 a 14 anos e 4.425.822 adolescentes na faixa de 15 a 17 anos (número
de pessoas superior à população da Suíça e duas vezes à do Uruguai). 95% dessas crianças
trabalham em regime clandestino. “Crianças com idade entre 7 e 17 anos já representam 30% da
força de trabalho nos canaviais de Pernambuco, sendo que 59% deles não sabem ler nem
escrever.”98 Recorde-se a proibição constitucional referente ao trabalho das crianças com menos de
14 anos, esquecida pela sociedade, pelo governo e pelos juristas legalistas. É de ser considerado que
essas crianças e adolescentes, normalmente, trabalham em subempregos, não legalizados, sem
proteção da previdência social, com alta taxa de insalubridade, em longas jornadas de atividade
(uma média de 62 horas semanais) e com um estipêndio inferior ao salário mínimo (42,4% dos
trabalhadores menores do sexo masculino recebem o equivalente a 0,3 salários mínimos e 91% do
total não percebe um salário mínimo.99), quando não, apenas, ajudam os pais, sem qualquer
rendimento, ou seja, são exploradas. Esse tipo de trabalho é incompatível com a atividade escolar.
Mesmo no setor formal da economia, os jovens com a mesma escolaridade e capacidade técnica dos
adultos, ganham salários inferiores.
Voltando aos quadros, o seguinte demonstra um panorama geral e desolador sobre o tema
em estudo.

Quadro 11
Características do trabalho de crianças e
adolescentes de 10 a 17 anos – 1990

PÁGINA 69 DO LIVRO

Tais condições laborais levam muitos empresários a preferir esse tipo de força de trabalho,
pois menos remunerada, inobstante ter a mesma ou maior capacidade de produção dos adultos,
permitindo uma obtenção maior de mais-valia, ampliando os lucros do proprietário dos meios de
produção. Estudos da OIT referentes ao ano de 1980 colocam o Brasil, em relação à taxa de
atividade infantil (18%), em condições inferiores a países como a Indonésia (11,1%), Marrocos
(14,3%) e República Dominicana (15,5%).
Saliente-se ser a prática de exploração da mão-de-obra infantil uma atividade corriqueira,
sem qualquer repressão por parte do Direito Penal, inobstante causar terríveis danos a toda a
sociedade e, em particular, a milhares de crianças.
Conhecidos os dados mais gerais sobre a infância e a adolescência brasileira, chega-se à
parte mais difícil: analisar o genocídio ou o “massacre dos inocentes”.100 Essas crianças estão
submetidas aos mais variados tipos de violência. No ano de 1988, um milhão de pessoas se
declararam vítimas de agressão física; 20% deste total eram crianças e adolescentes, sendo 61%
meninos e 39% meninas. Os agressores foram: pessoas conhecidas (52%), pessoas desconhecidas
(27%), parentes (18%) e policiais (3%). Há, também, a institucionalizada, ou seja, aquela que faz
parte do cotidiano do país e tem origem no sistema socioeconômico vigente. Pode ser subdividida
em muitas formas de violência, como a miséria, a fome, a mortalidade infantil, a falta de assistência
98
ISTO é Brasil. Diário Catarinense. Op. cit., p. 6.
99
CASTRO, Daniel. Salário de 91% das crianças não chega a R$ 70. Folha de São Paulo. São Paulo, 29 out. 1994,
Cotidiano, p. 3-4.
100
Título da obra: MARTINS, José de Souza. (Coord.), Ethel Volfzon Kosminsky, Lara Ferraz, et. al. Massacre dos
inocentes : a criança sem infância no Brasil. 2ª edição, São Paulo, Hucitec, 1993, 216 p.
médica, habitacional, educacional, a exploração no trabalho, na criminalidade e na prostituição, as
torturas e toda sorte de violência praticadas nas delegacias de polícia e, inclusive, nos centros
oficiais de atendimento às crianças e aos adolescentes, chegando-se à discriminação e ao
preconceito social, entre tantas outras. Como dados preliminares, transcrevem-se alguns números
publicados pela revista espanhola Tiempo de hoy: No Brasil, “unos 200.000 niños morirán este año
por subnutrición, mientras que los alimentos que se desperdician por defectos de producción o de
comercialización superan anualmente los 4.000 millones de dólares, sin contar otros mil millones
que van a la basura de los más ricos.”101
Existe, também, a violência física direta, exercida não só pelos pais e familiares, mas,
sobretudo, pelos assassinos profissionais, que, assim como o ETA dispara na nuca de policiais,
crivam os corpos dessas crianças de balas, matando-as a sangue frio, individualmente ou em grupos,
sem a mínima possibilidade de defesa. A mesma revista antes mencionada, falando sobre a chacina
da Candelária, praça da cidade do Rio de Janeiro onde foram assassinadas nove crianças no ano de
1993, menciona outros fatos: “En julio de 1990, los denominados escuadrones de la muerte
asesinaron a siete niños en la Bajada Fluminense, un suburbio tenebroso de Río de Janeiro. En
noviembre de 1991, fusilaron a seis en la Favela de Nova Jerusalem, y en julio de 1992 ejecutaron a
otros seis en la Favela Mandala.”102 No ano de 1992, segundo a maior rede de televisão do país,
mais de mil foram assassinadas por policiais ou matadores pagos por comerciantes e outros
membros das classes altas103. Dados mais recentes são apresentados pelo jornal El País,104 ao relatar
terem morrido, no ano de 1994, 1.221 menores em conseqüência de atos violentos, representando
um incremento de 10% em relação ao ano anterior. Esses assassinos conseguem realizar com seus
atos, também, uma espécie de linguagem educativa, para conquistarem respeito e intimidar suas
prováveis próximas vítimas. Isto fica bem claro na seguinte denúncia elaborada pela Anistia
Internacional:
“El 18 de junio se hallaron los cadáveres semidesnudos de dos niñas y un niño de edades
comprendidas entre los 12 y los 15 años, delante de la iglesia de Santa Cecilia, en el barrio
de Bras de Pina, en Río de Janeiro. Los cuerpos habían sido dispuestos de manera que
formaban una cruz sobre el asfalto. Todos presentaban heridas de bala en la cabeza, en el
pecho y en las extremidades y el niño tenía las manos atadas detrás de la espalda. Las
características coincidían con las de las ejecuciones perpetradas por los «escuadrones de la
muerte», los cuales, según informes, reivindicaron la autoría de 1.200 homicidios en Río
de Janeiro entre septiembre de 1993 y junio de 1994. El 90 por ciento de esos casos quedó
sin resolver.”105
Para estudar o tema da violência contra as crianças no Brasil, torna-se imprescindível iniciar
com o livro de Gilberto Dimenstein, jornalista brasileiro, que efetuou um trabalho de campo, vendo
de perto a realidade e conversando diretamente com essas crianças. Nessa obra, pelas palavras
escritas e fotografias mostradas, pode-se sentir o desespero, a perplexidade, o mal-estar, o
sofrimento não só das vítimas, mas de todo aquele com coragem para se aproximar desta brutal
realidade. Já no prefácio, pode-se notar seu sentimento:

101
MATANZA de niños pobres: limpieza étnica a la brasileña”, Op. cit., p. 67.
102
Ibid., p. 66.
103
Ver nota 1, pág. 16, do livro ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz alternativo e poder judiciário. São Paulo, Editora
Acadêmica, 1992.
104
TRES niños asesinados cada día en Río de Janeiro durante 1994. El país. Madrid, 5 abr. de 1995, p. 4.
105
INFORME 95. Amnistía Internacional, Op. cit., p. 82-83.
“Me invadía una confusa mezcla de emoción y perplejidad el constatar que la mayoría de
las personas no tienen ni la más remota idea, no puede imaginarse el grado de perversidad
al que están sometidos estos niños abandonados.
Es inevitable la perplejidad - y, menos mal que es inevitable. Una buena parte de mi
trabajo como periodista se viene desarrollando en Brasilia donde he tenido la oportunidad
de conocer una administración perversa, movida por los hilos de la corrupción, el tráfico
de influencias, la demagogia, el abandono y la incompetencia. Un ambiente moralmente
desolador, oculto bajo un cierto barniz de buenas maneras.”106
Dimenstein, um jornalista político com atividade próxima aos membros do governo e aos
parlamentares, aqueles que compõem, como parte das elites, um pedaço do planeta vencedor,
conheceu, bem de perto, uma fração do planeta dos náufragos brasileiros e, comparando-os,
indignou-se como se indignaria qualquer pessoa com sentimento. “En la etapa de recogida de datos
para este libro me encontré con frecuencia delante de niños desnutridos que me contaban,
tranquilamente, cómo habían sido torturados bárbaramente o habían visto torturar a sus amigos o
asesinados de un tiro a quemarropa. Esta realidad no tiene nada que ver con el universo de las
teorías pedagógicas de Piàget sobre la educación de los niños, se trata sencillamente, de otro
mundo.”107 Também não tem nada a ver com as teorias jurídicas. Este “outro mundo” também o é
para o Direito. Não se pense que os juízes de menores (sempre há as solitárias exceções) levam em
consideração esta realidade, para justificarem suas decisões. Não! Para eles, isto seria não Direito,
uma ofensa à Ciência Jurídica. Entretanto, o mundo dos náufragos não pode ser separado do mundo
vencedor dos políticos e juízes. Estão interligados, fazem parte da mesma sociedade, representam a
luta de classes e, talvez, um dia possam ser dissolvidos em um só mundo, o mundo de todas as
pessoas. “Estos mundos están mezclados - no podemos separar la imagen del niño agredido y
abandonado de la del burócrata o el ministro que viven sostenidos por el comercio de favores y el
tráfico de influencias, que cultivan la incompetencia - la corrupción reproduce y fortalece el
subdesarrollo. La temática de este libro hace referencia a la parte mas sórdida de la realidad social
brasileña, fruto precisamente de la indiferencia y la negligencia de las élites y de sus
gobernantes.”108 Também não pode ser separada da figura do juiz de Direito, de seus códigos, de
suas leis e de suas decisões.
Voltando à análise da realidade social brasileira, torna-se importante salientar ser a
violência exercida não só contra menores delinqüentes, mas, também, contra os suspeitos de
delinqüências e os potencialmente delinqüentes. “Se puede afirmar y demostrar que existe hoy en
Brasil un auténtico proceso en crecimiento de exterminio de menores, delincuentes o supuestamente
delincuentes, y que esta política cuenta con la aprobación y el apoyo de amplios sectores de la
sociedad, especialmente el de aquellos que se sienten amenazados por la inseguridad ciudadana en
los grandes centros urbanos, cuenta, sobre todo, con la participación, el apoyo o la connivencia de la
policía.”109 Aqui há um ponto muito importante a ser analisado, qual seja, o grande preconceito
existente no conceito de menor delinqüente, ou seja, as crianças caçadas e executadas pelos
esquadrões da morte.
Em termos gerais, menor (criança e adolescente) é toda pessoa que não atingiu a maioridade
penal, ou seja, dezoito anos. Delinqüente é quem pratica uma ato tipificado como delito. Portanto,
menor delinqüente é toda pessoa, com menos de dezoito anos, que pratica um delito. Este conceito
jurídico demonstra, de forma clara, agirem os grupos assassinos não contra a delinqüência em geral,
mas contra certo tipo de delito. Em palavras claras, os crimes praticados contra o patrimônio de seus
106
DIMENSTEIN, Gilberto. Los niños de la calle en Brasil : la guerra de los niños. Asesinatos de menores en Brasil.
Trad. de Francisco Ramo Binaburo, Madrid, Editorial Fundamentos, 1994, p. 11 (Colección ciencia).
107
Ibid., p. 12.
108
Ibid., p. 12.
109
Ibid., p. 15.
patrões e por pessoas pobres. Isto porque existem muitos menores delinqüentes nas famílias ricas,
desde aqueles que conduzem veículos embriagados, passando por um imensurável número de
drogados e/ou traficantes, e se chegando aos violadores das empregadas domésticas, todos imunes
às ações dos justiceiros. Filho de rico compra droga pesada à vista, com dólares, não necessita
furtar. Viola as empregadas domésticas em sua própria casa, local inacessível à polícia sem um
mandado judicial. Quando, eventualmente, é expedido, não mais há provas. Esses delitos, em
verdade, sequer chegam ao conhecimento da polícia. Quando chegam, os processos são arquivados
pelos mais diversos motivos. Poucos chegam ao Poder Judiciário. Destes, raros têm seus autores
denunciados e, quando têm, terminam em absolvição. Portanto, os matadores não agem contra o
crime, mas em defesa do patrimônio de seus pagadores, repita-se.
De forma simples e brutal, pode-se assim resumir a situação: milhares de crianças vivem
nas ruas brasileiras. Para sobreviverem, praticam pequenos furtos e/ou atividades laborais na
economia informal. Muitos são utilizados por traficantes de drogas e pela própria polícia, que lhes
estimula à prática do furto e do roubo, para se apoderar dos objetos conseguidos. As meninas são
levadas à prostituição e, quando engravidam, praticam aborto clandestino, todos por formas
grosseiras. O Brasil, com mais de 800 mil meninas prostitutas, é considerado o 1º país da América
Latina e o 2º no planeta em prostituição infantil. Na cidade de Belém, a faixa etária dessas crianças
já caiu para 8 anos. A ONU já qualificou o Brasil como um grande pólo do turismo sexual infantil,
onde meninos e meninas servem para saciar os apetites sexuais de turistas e executivos dos países
industrializados110. Essas meninas sabem da existência dos esquadrões de extermínio e possuem
plena consciência da possibilidade de serem mortas a qualquer momento. De fato, o são.
Matadores profissionais atuam impunemente (para cada 100 crimes, em geral e não só
homicídio, em média, apenas 20 processos são iniciados e terminam, quase sempre, em prescrição
ou absolvição, mormente, quando a vítima é pobre), com o apoio das classes média e alta,
amparados e protegidos pela própria polícia. “Calcula-se que no Brasil existam 1 milhão de
policiais particulares, contratados por comerciantes, industriais, banqueiros ou simples moradores.
Representam cinco vezes o número do efetivo do Exército. Pelo menos 400 mil seriam clandestinos,
não tendo nenhum treinamento.”111 Muitas vezes são policiais, os assassinos. Vários são os casos de
crianças que estão em suas casas (barracos) e são arrancadas de suas camas, à força, por policiais ou
matadores, para serem, em frente de sua família, fuziladas. Severamente ameaçadas e com medo de
morrer ou de perder os demais filhos, muitas mães nada fazem, sequer reclamam os corpos de seus
progênitos no Instituto Médico Legal. Muitas professoras que trabalham nos bairros pobres das
grandes cidades vêem desaparecer vários de seus alunos (de cada 10 mortes, uma é do sexo
feminino112), normalmente, achados mortos nas estradas, crivados por balas, com vestígios de
tortura. “Algunos de estos niños acaban muriendo después de haber sufrido una lenta y bárbara
tortura, con auténticos detalles de sadismo, sus cuerpos aparecen con señales de quemaduras de
cigarros, sus carnes desgarradas a navaja, con los ojos arrancados y los órganos genitales
amputados.”113
Qualquer pessoa envolvida com essas crianças e elas mesmas, caso denunciem ou possam
servir de testemunhas em processos, para punir os matadores, são ameaçadas, seqüestradas e/ou
mortas. Nas grandes cidades brasileiras, o homicídio é a principal causa de mortes de crianças e
adolescentes. “Em 1993 foram assassinadas no Brasil cerca de cinco crianças por dia, média cinco

110
ONU cita Brasil como pólo de turismo sexual. Folha de São Paulo. São Paulo, 21 jun. 1994, Cotidiano, p. 3.
111
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços : direitos humanos no Brasil. Op. cit., p. 74.
112
Atualmente o número de assassinatos de meninas vem crescendo. BRANDÃO, Nilson.Grupos matam mais meninas.
Folha de São Paulo. São Paulo, 09 jul. 1994, Cotidiano, p. 3.
113
DIMENSTEIN, Gilberto. Los niños de la calle en Brasil : la guerra de los niños. Asesinatos de menores en Brasil. Op.
cit. p. 23.
vezes maior que a das crianças mortas na Bósnia.” 114 O dinheiro para financiar a matança sai dos
comerciantes, empresários e membros das classes ricas. Há uma insegurança social muito grande.
Ocorreram 50.029 crimes na cidade de São Paulo no ano de 1989. Na cidade de Rio de Janeiro, o
índice de criminalidade foi pior naquele ano. Ocorreu um homicídio por hora, oito furtos por
minuto, sessenta e um roubos e, ainda, cento e vinte e três roubos/furtos de automóveis, por dia.
Soma-se a isto a repressão policial, responsável, só na cidade de São Paulo, pela morte de uma
pessoa a cada seis horas, ou seja, 4 pessoas ao dia, 120 ao mês e 1.460 ao ano115.
“O município de São Paulo registrou em 1994 uma média de 554 assassinatos por mês.
Indicando uma evolução, o mês de dezembro registrou uma média diária de quinze
assassinatos. A média do Rio é 270. A polícia de Nova York registra 150 homicídios
mensais. A região da Grande São Paulo, em janeiro de 1995, registrou 639 assassinatos, o
que significa, comparando-se com o mesmo mês de 1993, um acréscimo de 44%. O
crescimento populacional foi de 1,6%.”116
Membros da sociedade civil, alguns assustados e sem proteção do Estado, muitos outros por
convicção ideológica, apóiam-se em seguranças particulares e/ou nos grupos de extermínio, em
busca de segurança pessoal ou para seu patrimônio. No Estado de São Paulo, um dos matadores
mais conhecidos e perigosos recebeu, da prefeitura local, o título de cidadão de São Bernardo, por
seu trabalho de limpar a cidade. Em algumas cidades importantes, por pressão dos comerciantes e
empresários, principalmente, do ramo hoteleiro, o governo determina a atuação policial em
determinadas regiões, onde qualquer pessoa (criança ou adulto) é detida se não possuir boa
aparência, sem qualquer outro motivo. Trata-se de um novo tipo de segregação ou um novo
apartheid. As pessoas pobres estão proibidas de passear nas regiões nobres das cidades e, ao mesmo
tempo, obrigadas a vender sua força de trabalho ao capital. Quem ousa negar-se a isto pode ser
preso por vadiagem. Revive-se, de uma forma adaptada ao capitalismo moderno, o dito por
Thoreau: “Si un hombre pasea por el bosque por placer todos los días, corre el riesgo de que le
tomen por un haragán, pero si dedica el día entero a especular cortando bosques y dejando la tierra
árida antes de tiempo, se le estima por ser un ciudadano trabajador y emprendedor. ¡como si una
ciudad no tuviera más interés en sus bosques que el de talarlos!” 117 Só na cidade de Rio de Janeiro,
no ano de 1989, 2.052 crianças foram presas por suspeitas generalizadas, levadas à Delegacia de
Menores e confinadas como vagabundas. A mentalidade é muito simples: “La represión o el castigo
al infractor no resuelven la situación. Estos niños van del Juzgado de Menores a la Funabem y
rápidamente están de nuevo en la calle repitiendo el mismo ciclo, por tanto, argumentan los
exterminadores, [com a concordância de boa parte da sociedade] no sirven de nada las prisiones, ni
las palizas propinadas, la única solución es acabar con ellos.”118
O livro de Gilberto Dimenstein também fala dos juízes. Estes, normalmente, só mandam as
crianças e adolescentes, quando presos pela polícia e levados aos Juizados de Menores, aos centros
de detenção de menores, quase sempre de péssimas condições. Mesmo os centros de internações em
condições de habitabilidade destroem a personalidade da criança, pois são instituições totais. Na
falta destes, são levados para as prisões comuns, com a desculpa de serem colocados em celas
especiais, que não existem. Quando não prendem, soltam os menores.

114
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços : direitos humanos no Brasil. Op. cit., p. 81.
115
FARIA, José Eduardo. O poder judiciário no Brasil : paradoxos, desafios e alternativas. Op. cit., p. 60.
116
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços : direitos humanos no Brasil. Op. cit., p. 74.
117
THOREAU, Henry D. Desobediencia civil y otros escritos. Trad. de Mª Eugenia Díaz. Madrid, Tecnos, 1987, p. 5
(Colección clásicos del pensamiento, v. 32.).
118
DIMENSTEIN, Gilberto. Los niños de la calle en Brasil : la guerra de los niños. Asesinatos de menores en Brasil. Op.
cit., p. 114.
Existem duas passagens interessantes. O juiz da cidade paulista de São Bernado, quando
procurado por uma cidadã ameaçada por “Esquerdinha”, o criminoso agraciado com o título de
cidadão daquela cidade, informou já conhecer as atividades criminosas do mesmo, mas não possuir
instrumentos legais para agir. Seu conselho foi: “Tenéis dos alternativas dijo el juez a la hermana y
sus acompañantes continuar en la misma situación en la que estábamos o llevar adelante una
denuncia con la seguridad de morir en cualquier esquina.”119 A omissão foi o caminho seguido. No
Estado da Bahia, a advogada Itana Viana, então diretora da Fundação de Assistência a Menores
daquele Estado, resolveu fazer algo. Vendo a terrível situação das casas de detenção de menores,
determinou o fechamento da pior delas e deliberou a distribuição de preservativos entre os internos,
tendo em vista o alto índice de AIDS. Esse ato ofendeu e alvoroçou a elite baiana. Frente a isto, o
juiz de menores da Capital do Estado processou a advogada por “estimular a sexualidade entre os
menores”. É algo, efetivamente, hipócrita. Matar as crianças não é problema, que morram de AIDS
também não. Entretanto, prevenir enfermidades ofende a “moral pública”. Preferível a omissão.
Como se pode ver, o Poder Judiciário costuma estar alheio a todos estes terríveis e graves
problemas, pois, para ele, não são assuntos do Direito. Portanto, irrelevantes.
Dimenstein, como bom repórter, resume bem a problemática: “Si gobernadores, abogados,
religiosos y otras personas que cuentan con apoyos sociales, se sienten impotentes a la hora de
enfrentarse a los grupos de exterminio o a los policías corruptos que abusan del poder, podemos
imaginar lo que pueden sentir las víctimas, actuales o potenciales, los niños, absolutamente
desprotegidos, sin contactos con el poder, ni acceso a los medios de comunicación, y ni siquiera
tienen una ropa 'decente' para presentarse en público o entrar en una dependencia de la
Administración.”120
Talvez o mais triste disto tudo é saber que 30% das crianças entrevistadas disseram desejar
serem policiais quando crescerem, pois poderão “roubar com impunidade”.
Estudos também interessantes são encontrados no livro coordenado por José de Souza
Martins, intitulado Massacre dos inocentes.121 Essa obra não se ocupa dos chamados menores
carentes e/ou abandonados. O estudo centra sua atenção nas crianças com família, mas com sua
infância perdida, pois pelas condições econômicas são forçadas a adentrarem no mercado de
trabalho muito precocemente, tornando-se adultos antes do tempo. “O tema da criança abandonada
aponta um problema social, uma 'doença' da sociedade. Já o tema da criança sem infância indica um
problema sociológico, uma mutação da sociedade, que se manifesta como problema social, mas que
é, também, um problema político.”122 Ambos são, também, problemas jurídicos e devem ser
tratados como juridicamente relevantes.
Existem vários tipos de criança sem infância. No meio rural: a) filhos de posseiros; b) filhos
de pequenos agricultores proprietários e c) assalariados. No meio urbano: a) os de rua e b) os
assalariados. Todos começam a trabalhar com tenra idade, normalmente, aos dez anos, mas muitos
com idades inferiores.
Os filhos dos posseiros e pequenos agricultores trabalham na lavoura, sem salários, durante
longas jornadas. As meninas também, quando menos, cuidam da casa e dos irmãos menores. Estão
sujeitos às ações dos assassinos pagos pelos grandes fazendeiros e muitos são mortos juntos com os
pais no processo de tomada da terra pela força. Só na região do Amazonas, nos anos de 1985 a
1988, foram registradas, mais ou menos, 810 mortes em conflitos de terra123. “Além do fato de que
os assassinos objetivam a desorganização dessas unidades de produção camponesa, ressalta o grau

119
Ibid., p. 62.
120
Ibid., p. 67.
121
MARTINS, José de Souza. (Coord.), Ethel Volfzon Kosminsky, Iara Ferraz, et. al. Op. cit.
122
Ibid., p. 13.
123
Ibid., p.46.
de perversidade, de crueldade com que os crimes são cometidos, sendo eliminadas crianças,
pequenos animais, destruídos utensílios domésticos. Registram-se inúmeros casos de tortura, de
violência sexual contra mulheres e homens, de degolas, enforcamentos, queima de cadáveres.”124
Esses criminosos são “acobertados pelas autoridades locais - delegados de polícia, juízes, polícias
militar e federal.”125 Os assalariados trabalham na colheita das plantações de cana-de-açúcar, arroz,
milho, soja, feijão, algodão, amendoim, batatinha (nas quatro últimas com menos de dez anos),
coleta de lenha e de ovos, com grande rotatividade de emprego, sem qualquer proteção social e com
salários miseráveis. Por ilustração126, no ano de 1988, mês de outubro, um adulto recebia de quinze
a vinte cruzados por metro de cana-de-açúcar cortado. Nessa mesma época, uma criança recebia de
dez a doze cruzados por metro, ou seja, US$ 0,03. Trabalhando duro todo o dia, uma criança
conseguiria cortar, no máximo, 100 metros, ou seja, US$ 3. Ora, legislação laboral, condições de
trabalho, proteção à criança são temas jurídicos, mas por um motivo qualquer, tais fatos não
interessam ao Direito e aos juristas.
Um estudo127 comparando esses adolescentes bóias-frias com os filhos de famílias
burguesas da cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, constatou relevantes diferenças físicas entre eles,
respectivamente: peso: 34 e 49 kg; altura: 142 e 155 cm; circunferência do braço: 20 e 24 cm; dobra
de pele tricipital: 6 e 11 mm; pescoço: 18 e 20 cm; ingestão de nutrientes: energia: 1.474 e 1.919
Kgcal; proteína: 51 e 80 g; lípides totais: 61 e 88 g; carboidratos: 183 e 207 g; ferro: 8 e 10 mg;
cálcio: 376 e 685 mg; retinol: 224 e 596 ug; ácido ascórbico: 31 e 95 mg; riboflavina: 0,76 e 1,28
mg; tiamina: 0,59 e 9,78 e niacina: 9 e 12 mg. Esta situação piora, por certo, em relação às crianças
e aos adolescentes abandonados. A conseqüência disto na vida adulta já foi verificada, pois, por
falta de alimentação adequada, um em cada quatro brasileiros não atinge a altura de 1,61 metro
(homem) e 1,53 metro (mulher). Está-se criando uma espécie de sub-raça, força de trabalho em uma
agricultura não mais direcionada a atender as necessidades das famílias dos agricultores, mas, isto
sim, do capital.
As crianças de rua saem em busca de dinheiro para ajudar no sustento da família,
envolvem-se em furtos, outros delitos e/ou trabalham na economia informal. Todas são vítimas de
um mesmo processo, “que é o da supressão da infância, em nome dos interesses e da lógica de um
opção política de desenvolvimento econômico, que mutila no berço aqueles que poderiam um dia
construir a sociedade nova.”128 São, em realidade, um grande excedente de mão-de-obra barata ou
exército industrial de reserva, apto para atender aos interesses das empresas e elites dos países
pobres, ou seja, substituir a mão-de-obra adulta por um preço menor e, ainda, como trabalho
clandestino, suprimir os direitos conquistados pelas classes trabalhadoras. Não se tratam, pois, de
casos isolados, ou da ação de alguns empresários e fazendeiros cruéis. É o exercício de uma política
geral, planificada e executada para atingir fins claros e interesses conhecidos. “O Brasil tem sido
um dos laboratórios de experimentação dessa receita que faz com que uma sociedade tecnológica e
socialmente atrasada possa competir com sociedades mais desenvolvidas e modernas. A fórmula
encontrada foi essa, de aumentar a mão-de-obra sobrante, subempregada ou desempregada, para
reduzir ainda mais os custos da força de trabalho e tornar a produção do país pobre competitiva em
face da produção do país rico.”129
Todos os problemas relacionadas com as crianças não são setoriais, bem ao contrário, são
estruturais e representam o resultado do funcionamento dos complexos sistemas de relacionamento

124
Ibid., p. 47-48.
125
Ibid., p. 44.
126
Ibid., p. 112-113.
127
Ibid., p. 91.
128
Ibid., p. 12.
129
Ibid., p. 15.
humano originários do capitalismo contemporâneo. Essas estruturas são poderosas e tornam
impotentes (quase totalmente) os Poderes de Estado e a própria sociedade civil para consumarem
qualquer modificação em seu funcionamento.
“Se puede afirmar que si se convocara un referéndum popular para el reconocimiento del
«derecho» de los niños a crecer en las condiciones adecuadas y a desarrollar su
personalidad emocional e intelectual, con toda seguridad el ciento por ciento de las
respuestas serían afirmativas. No sólo porque el tema de los niños es de lo que despiertan
los buenos sentimientos sino porque sería difícil sostener lo contrario. No obstante, este
derecho, que existe así en la consciencia de la gente común, no puede ser realizado
«jurídicamente». El legislador puede aprobar una ley que sancione el carácter fundamental
de este derecho [Estatuto da Criança e do Adolescente], pero ello no cambia en nada la
realidad. Las condiciones práctico-materiales para la realización de esta necesidad
fundamental no son, de hecho, reductibles al mero reconocimiento jurídico. En el mejor
de los casos el legislador puede destinar fondos para la asistencia a la infancia
abandonada, para la construcción de albergues, para contribuir a los gastos de las familias,
etc., pero no puede ir más alla de tales ayudas económicas.”130
Diante de toda essa ferocidade, tudo o que se pode fazer hoje em defesa das crianças
brasileiras já vem tarde, pois os danos sofridos por gerações são irrecuperáveis. Está-se eternizando
um submundo, destruindo uma parte da sociedade civil, em frente à população e às autoridades,
pela população e pelas autoridades, sem que isso sensibilize mais ninguém. Elas não possuem
direito à escolha, não há alternativas em suas vidas. Isto é o caos da própria ordem estabelecida,
aquela protegida pelo Direito com tanto afinco. Entretanto, há de ter um outro caminho, se não
partindo dos sentimentos das pessoas, pelo menos de um apelo a alguma racionalidade, à
compreensão de que ao destruir o presente, matando o futuro de parte tão grande da sociedade, está
comprometendo o seu próprio porvir. Termina-se com a transcrição das palavras do professor Juan
Ramón Capella, que sintetiza com maestria a triste visão patrocinada pela miséria e pela
diferenciação social.
“Pero la miseria de verdad la vi en la escuela. Me habían enviado a un colegio privado en
un barrio elegante, con inmensos jardines, edificios falsogóticos de soleadas aulas y
muchos campos e instalaciones. Y en un pabellón aparte, el de «la escuela gratuita»,
daban clase a muchachos muy distintos de mis compañeros y de mí mismo: flacos, con el
pelo enteramente rapado (lo que les daba un lastimoso aspecto de huérfanos), usaban una
bata distinta de la nuestra. Teníamos prohibido hablar con ellos y no era infrecuente ver
que les golpeaban.
Mi primera conclusión fue ésta: por nada del mundo querría ser uno de ellos.
Me costó algún tiempo comprender que pertenecer o no a su grupo era cosa enteramente
aleatoria. Salvo que uno acepte la suposición de que el mundo está gobernado por un dios
subnormal o maligno, hay que concluir que un chico de siete u ocho años nada pueda
haber hecho para merecer ser incluido en cualquiera de las dos categorías que las batas, el
rapado y los malos tratos diferenciaban tan nítidamente ante mí.
Tu primera impresión probablemente será distinta pero dudo que menos viva. Trabar
conocimiento con las diferencias sociales es tan importante como hacerlo con la muerte y
la enfermedad que la prefigura.”131

130
BARCELLONA, Pietro. Postmodernidad y comunidad : el regreso de la vinculación social. Trad. de Héctor Claudio
Silveira Gorski, José Antonio Estévez Araujo e Juan Jamón Capella. Madrid, Trotta, 1990, p. 105.
131
CAPELLA, Juan Ramón. El aprendizaje del aprendizaje : fruta prohibida. Una introducción al estudio del derecho.
Madrid, Trotta, 1995, p. 9-10.
2.4. Direito e realidade social

Existem inúmeras teorias sobre o conceito de Direito, mas há um ponto em comum em


todas elas, qual seja, considerarem a norma ou a lei emanada do Estado como parte dele. Sobre isto,
não há divergências. Portanto, ao se falar de leis, está-se falando de Direito e, em conseqüência, de
uma questão atinente ao Poder Judiciário. Antes de se adentrar na análise do Poder Judiciário e de
sua reação frente aos problemas sociais até agora estudados, três pontos merecem atenção
particularizada, a saber: 1) quem se aproveita da miséria?; 2) a legislação do imposto de renda e 3)
a ideologia dos parlamentares. O primeiro deixará claro servir à sombria realidade socioeconômica
brasileira, ao enriquecimento de algumas pessoas, incluídos muitos parlamentares. O segundo
demonstrará como a legislação brasileira, em grande parte, é elaborada para manter a estratificação
social, e o terceiro evidenciará ser isto corolário da ideologia dos legisladores.
Quem detém o poder de fazer as leis é a classe rica, exatamente aquela aproveitadora da
pobreza alheia. Não existe, por mera eventualidade, a permissão legal para a aviltante concentração
de renda e para a propriedade de enormes latifúndios, enquanto se impede uma legislação sobre
reforma agrária ou redistribuição da renda nacional. Tudo tem seu sentido e segue sua lógica.
1) Quem se aproveita da miséria? Todos estes dados socioeconômicos até o momento
apresentados aparentam demonstrar uma sociedade caótica, autófaga, à beira de sua destruição. Para
muitos assim o é, mas para outros representa bem o contrário, pois é necessária a uns poucos que
conseguem acumular capital às custas da pobreza de outros. Isto porque existe a indústria da
miséria, ou seja, pessoas enriquecendo, aproveitando-se dos milhões de miseráveis existentes no
país. Já foi mencionada a exploração do trabalho alheio, incluindo-se o de crianças em tenra idade,
bem como a corrupção com dinheiro público. Somou-se a isto o apossamento de terras mediante
violência privada e/ou estatal. Há um grupo social, quase uma classe, locupletando-se com dinheiro
público, com as facilidades encontradas na lei e no governo da nação. Tudo isto representa uma
prática terrível, a ser combatida veementemente. Entretanto, no tocante à relação
enriquecimento/miséria, nada se compara à crueldade dos exemplos a seguir mencionados. Trata-se
de uma ofensa a todo um povo, um desrespeito à condição de ser humano, praticados por pessoas
pertencentes às instituições públicas, à elite econômica brasileira, sem um mínimo de
constrangimento, com uma grande dose de arrogância e venalidade.
A região Nordeste é uma das mais pobres do país, e seu povo é severamente castigado não
só pela falta de dinheiro e trabalho, mas, também, pela violenta seca que, constantemente, assola o
local, destruindo as plantações, matando o gado e demais animais domésticos, devastando cidades e
alastrando a fome em grandes proporções.O interessante é o fato de o clima do Nordeste brasileiro
ser menos árido do que o de Israel, um país construído no meio do deserto, mas hoje uma potência
agrícola. Sob seu solo existe concentrada uma reserva de água equivalente a vinte baías da
Guanabara. O problema da seca não é de difícil solução, bastando a construção de adutoras para
distribuir todo este manancial de água às regiões carentes. Além disto, existem técnicas simples
para armazenar as chuvas torrenciais que ocorrem no meio do ano. A perda atual é de 90%.
Para combater este problema, o Governo Federal criou, no ano de 1909, o Departamento
Nacional de Obras contra a Seca -DNOCS. Entretanto, durante todos esses anos, a questão não foi
solucionada, pode-se até dizer que quase nada foi feito. É de se perguntar por que isto ocorre? A
resposta é muito singela: porque tem gente importante ganhando dinheiro com a sede e a fome de
9,5 milhões de nordestinos afetados pela seca. Como isto ocorre? A resposta também é simples. O
DNOCS, em seus 83 anos de vida, já gastou um valor superior a 20 bilhões de dólares, mas só 20%
desta quantia (como de qualquer outra remetida ao Nordeste) foi, efetivamente, gasta para atender à
população rural. O restante deste dinheiro se perde em corrupção e em atividades perfeitamente
lícitas, como, por exemplo, a utilização das máquinas do DNOCS não para perfurar poços e
construir açudes com o propósito de atender às vítimas da seca, mas, de forma vil, na construção
destas obras em grandes propriedades de prefeitos, deputados, senadores, grandes fazendeiros,
empresários e até concessionárias de multinacionais, bem como clubes sociais e condomínios de
luxo da alta burguesia, isto para abastecer piscinas, lavação de automóveis e o gado pertencente a
estas pessoas e grupos importantes.
“A indústria da miséria prospera no Brasil. Não bastasse a vergonha de o país ainda não
ter resolvido o problema da seca, de abrigar 32 milhões de pessoas que passam fome, de o
serviço de saúde pública ser infecto, é nauseante constatar, como ocorreu na semana
passada, que há gente, muita gente, poderosa e bem de vida, que se aproveita desses
problemas para auferir vantagens. No início do mês, Kaíke Nanne, chefe da sucursal de
VEJA no Recife, descobriu que o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, o
DNOCS, estava perfurando três poços nas terras do deputado Inocêncio Oliveira, do PFL
pernambucano, presidente da Câmara Federal.”132
O Presidente da Câmara dos Deputados, assim como vários outros parlamentares
envolvidos neste tipo de atividade, se apegaram à legalidade para justificar seus atos. Dizem que
senadores e deputados também são cidadãos brasileiros e podem usar serviços públicos. O senador
Ney Maranhão, conhecido em todo o país por declarar, em rede nacional de televisão, ser um
sonegador de impostos, não só argumentou ter agido corretamente, como reclamou dos serviços
prestados pelo órgão público. Trata-se de um enorme descaramento. De 1988 até abril de 1993 133,
dos 4.000 poços furados pelo DNOCS, 3.000 foram feitos em terras particulares, em especial de
políticos, como os senadores Ney Maranhão e Mansueto de Lavor, chegando-se até a propriedade
do pai do atual vice-presidente da República Marco Maciel. O próprio diretor-geral do DNOCS,
Luís Gonzaga Nogueira Marques, utilizou as máquinas públicas do órgão por ele dirigido, para
construir um poço a fim de abastecer a piscina de sua residência. Em toda sua existência, o mesmo
órgão governamental furou 25.000 poços134, 18.000 para atender interesses particulares. Também
construiu 800 açudes, mas menos de 300 foram para matar a sede da população, enquanto os outros
500 foram feitos em fazendas de ricos fazendeiros. Um destes, de nome José Carlos Teixeira, em
um extremo de avareza, chegou a cobrar ingresso a fim de permitir o acesso em seus açudes.
Além dessas obras, existem outras realizadas em regime de cooperação, ou seja, os cofres
públicos pagam a metade do custo, e os proprietários beneficiados, a outra metade, com o
compromisso de darem acesso aos açudes aos vizinhos necessitados. Entretanto, após a construção,
esses ricaços não permitem a entrada de qualquer pessoa em suas propriedades.
Na indústria da miséria, há os que vivem da seca, mas também há os que vivem da fome135.
Nos anos de 1986 a 1990, o governo gastou 1,3 bilhão de dólares para combater a fome. Deste
montante, a maior parte não virou comida para os necessitados mas, sim, foi consumida pela
indústria da fome, pela corrupção e pelo desperdício.
“A fome, essa vergonha, engorda senhores confortavelmente assentados numa próspera
rede de clientelismo. No ano passado, uma CPI da Câmara dos Deputados fez uma
devassa nos cinco maiores programas do governo destinados a combater a fome.
Descobriu-se que de cada 10 dólares que saem de Brasília apenas 3 materializam-se na
mesa dos carentes em forma de comida. 'O restante vai para manter a indústria da fome',
diz a deputada Marcia Cibilis Viana (PDT-RJ), relatora da comissão. 'Esses programas
servem apenas para enriquecer os empresários e ajudar os políticos nas campanhas
eleitorais com distribuição de cestas básicas.”136

132
SOARES, Guilherme. A indústria da miséria. Veja. São Paulo, v. 26, nº 17, abr. 1993, p. 16.
133
Ibid., p. 17.
134
NANNE, Kaíke. Os que vivem da seca. Veja. São Paulo, v. 26, nº 17, abr. 1993, p. 24.
135
BOSCO, Silvania Dal. Os que vivem da fome. Veja. São Paulo, v. 26, nº 17, abr. 1993, p. 28-29.
136
Ibid., p. 28.
Quarenta e oito por cento de todos os alimentos comprados pelo governo no ano de 1993
eram fornecidos por apenas três empresas, Nutrimental, Nutricia e Liotécnica. Todas vendiam os
produtos por preços até dez vezes superior ao mercado. Havia políticos e familiares destes
envolvidos, quando não empregados, dessas empresas. Chegou-se ao absurdo da Fundação de
Assistência ao Estudante - FAE - comprar, para a merenda escolar, arroz-doce a um preço 1.000%
superior ao normal. Nesse mesmo ano, 30.000 toneladas de alimentos estavam apodrecendo em
armazéns por todo o Brasil. 15.000 toneladas foram, simplesmente, enterradas porque se
deterioraram. Todo este volume de comida poderia alimentar umas 300.000 crianças durante todo
um ano. No ano anterior, o governo só destinou à merenda escolar 150 milhões de dólares, mesmo
sendo de 690 milhões de dólares a previsão orçamentária. A conseqüência disto foi que as 30
milhões de crianças em todo o país receberam merenda escolar para 58 dias, dos 200 dias do ano
letivo.
Um exemplo concreto é a melhor forma de expressar esta situação desesperadora. “Na
escola rural da cidade de Virgem da Lapa, no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres
do Brasil, a fome tem o poder de esvaziar as salas de aula. A merenda escolar enviada pelo governo
federal acabou há dois meses. Por esse motivo, metade dos cinqüenta alunos desistiu de freqüentar
as aulas. 'Essas crianças não têm o que comer em casa', diz a professora Teonilia Gomes Pereira.
'Sem merenda é um desastre. Tem menino que desmaia de fome.'“137
Vê-se, pois, não se tratar de problemas setoriais de um sistema, mas de uma ação
generalizada e planificada, constante, com o propósito nítido de locupletação de uns poucos,
possível de ser executada devido à prepotência, ao poder, à ingerência de parlamentares e à
participação das classes dirigentes deste país.
2) O Imposto de Renda - IR. Uma das funções principais da legislação tributária é a
distributiva. Em um país como o Brasil, com os níveis de concentração de renda já demonstrados,
deveriam as normas sobre o imposto de renda buscar, pelo menos, aliviar este problema, cobrando
mais impostos dos ricos e menos dos pobres. Bem ao contrário, demonstrar-se-á que o imposto de
renda para a pessoa física é pago bem mais pela classe média e bem menos pelos ricos. Não se
falará sobre os impostos das pessoas jurídicas, em que a sonegação chegaria a cifras astronômicas.
Existem no país 460 pessoas milionárias138, com um patrimônio mínimo pessoal de 19
milhões de dólares, ou seja, um para cada 326.000 brasileiros. O patrimônio médio dessa gente é de
58 milhões de dólares. No ano de 1994, o país arrecadou de imposto de renda pago por pessoas
físicas, aproximadamente, 12,9 bilhões de dólares. Os 460 felizardos pagaram, juntos, um total de
32,5 milhões de dólares, ou 0,25% do total. Esses ricos, em média, ganharam oitenta vezes mais
dinheiro do que um cidadão de classe média, mas pagaram onze vezes mais, quando muito.
“Juntos, eles detêm um patrimônio avaliado em 26,7 bilhões de dólares, maior que a soma
dos PIBs do Uruguai, Paraguai e Bolívia. Ou 6% do PIB brasileiro. Selecionando-se o
topo do topo, isto é, os cinqüenta mais ricos entre os 460, descobre-se que a fortuna deles,
somada, roça os 12 bilhões de dólares. Examinando quanto pagam de imposto, descobre-
se que deixaram uma ninharia para o Leão: apenas 32,5 milhões de dólares. Enquanto a
classe média paga 1 real de imposto para cada 10 reais de patrimônio, o clube dos 460
recolhe apenas 1 real para cada 821 de patrimônio. É quase uma provocação.”139
Destes endinheirados, quatro, de cada dez, declara ter uma renda mensal de apenas US$
1.500. Estariam incluídos na faixa dos 10 a 20 salários mínimos da tabela de página 16. Este
milagre ocorre por vários motivos. Primeiro, por pura sonegação, sem qualquer punição. Depois,

137
Ibid., p. 29.
138
Os dados seguintes, sobre o imposto de renda das pessoas físicas, foram retirados de: MENDES, Daniela. O milagre de
amansar o leão. Veja. São Paulo, v. 27, nº 45, nov. 1994, p. 106-114.
139
Ibid., p. 107.
com base na lei, ou melhor, nos benefícios da lei. Qualquer cidadão comum, assalariado, de classe
média, fora da isenção legal, está obrigado a pagar uma alíquota que vai de um mínimo de 15%,
passa por 26,6% e chega até 35% de imposto de renda. Já o empresário não tem salário, isto é coisa
de pobre, ele ganha dividendos, cuja alíquota do imposto de renda é de só 8%. Portanto, um cidadão
classe média, ao ganhar US$ 1.000 deverá pagar US$ 350, enquanto o cidadão rico, sobre o mesmo
valor, apenas pagará US$ 80. Os privilégios não param por aqui, pois todos são iguais perante a lei.
Um cidadão classe média, quando sai de férias com a família, se poupou algum dinheiro, efetua
uma pequena viagem e paga todos os gastos, incluindo vários impostos, sem qualquer dedução. Já o
cidadão rico, sem qualquer dificuldade, viaja com os seus para o exterior, hospeda-se em hotéis
cinco estrelas, come nos melhores restaurantes, efetua compras para todos e paga os valores com o
cartão de crédito da empresa. Quando retorna ao Brasil, obviamente munido de todas as notas
fiscais, abate todos os gastos do imposto de renda, pois são despesas dedutíveis. O mesmo benefício
legal pode ser usado em suas despesas normais de manutenção da casa, de suas festas e inúmeras
outras. “'O dono da empresa abate seu aluguel, seu carro, sua criadagem, o chofer e quando precisa
de 50.000 reais para dar um presente à amante pede ao contador, que arruma uma nota fiscal de
despesa', diz o ex-secretário Osiris Silva.”140
Alguns exemplos deixarão as coisas mais claras. Olacyr de Moraes, empresário da
empreiteira Constran, do Banco Itamarati e o maior produtor de soja do planeta, com um patrimônio
de 52 milhões de dólares em 1992, com uma renda mensal estimada de US$ 120.000, pagou de
imposto de renda, durante todo o ano, o valor de uma renda mensal, quando qualquer trabalhador,
com um salário razoável, paga um valor igual a três rendas mensais. O Deputado Federal Wigberto
Tartuce, do Partido Trabalhista Brasileiro, do Distrito Federal, com um patrimônio de 19 milhões de
dólares, pagou apenas US$ 2.000 no ano, menos do que paga qualquer engenheiro iniciante
empregado em sua construtora. O difícil de explicar é como pode, com o que declara ser sua
pequena renda mensal, manter uma casa de 3.000m2, com 63 cômodos, avaliada em 6 milhões de
dólares, com onze carros na garagem. “O maior proprietário de terra do país, Pedro Aparecido
Dotto, dono de 2,1 milhões de hectares [21.000 km2] no Acre, área equivalente a um país como El
Salvador, paga tanto imposto quanto um metalúrgico do ABC.” 141 O empreiteiro Cecílio do Rego
Almeida, um dos homens mais ricos do Brasil, com um patrimônio de 515 milhões de dólares em
1992, possuía uma renda estimada de só US$ 8.000 e pagou no ano um valor de US$ 15.500 de
imposto de renda, valor inferior, por certo, ao pago por qualquer Ministro dos Tribunais Superiores
ou Desembargadores dos Tribunais estaduais. O irmão pobre deste, senador pelo Estado do Amapá,
Henrique Rego Almeida, com um patrimônio de 215 milhões de dólares, pagou no ano de 1992
apenas US$ 14.000, pois sua renda estimada chega a US$ 10.000.
Outros exemplos se multiplicam. É de se ter bem claro ser a legislação sobre o imposto de
renda apenas um exemplo. Os privilégios das camadas ricas encontram-se em todos os Códigos e
leis vigentes, são estruturais, fazem parte do arcabouço jurídico. Legislação favorável às classes
pobres são meros enunciados, intenções, projetos sem eficácia. Estão aí os preceitos constitucionais,
o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código do Consumidor para comprovar.
Todas as ilustrações, em sua maioria, são práticas legais, com base na legislação vigente, a
ponto de um dos privilegiados alegar: “'Concordo que deveria pagar mais, mas não posso fazer nada
diante de uma legislação falha em relação às grandes fortunas', diz Monteiro de Carvalho, um dos
poucos a reconhecer que paga pouco.”142 Isto é uma enorme orgia legal, aproveitada por poucos, às
custas da população.
Que dizem os juristas e os juízes sobre isto? Que o Direito é neutro? Que todos são iguais
perante a lei? Que as normas em vigor são de responsabilidade exclusiva do legislador? Que o visto

140
Ibid., p. 110.
141
Ibid., p. 111.
142
Ibid., p. 109.
até agora faz parte da segurança jurídica? Que a miséria e os privilégios não são problemas legais?
Se as respostas às perguntas forem afirmativas, para que servem, então, os juristas e os juízes?
3) A ideologia dos parlamentares. Não se pretende efetuar uma análise do sistema
representativo de governo, mas, tão-só, demonstrar que, na prática, os legisladores são oriundos
e/ou financiados, em grande maioria, pelas classes ricas e, por isto, legislam atendendo aos desejos
destas, distanciados dos interesses das camadas populares. Não é sem motivo a inversão de milhões
de dólares nos processos eleitorais. Esta noção é importante, para se entender o caráter elitista de
boa parte da legislação.
No Congresso Nacional, os parlamentares estão organizados mais para atender interesses
corporativos, particulares de uma classe ou grupo de interesses, e menos para colocar em prática os
programas partidários. De fato, os partidos e seus programas são decorativos, com raras exceções, e
não servem para pautar as condutas políticas dos deputados e senadores. “Um bom caminho para
fazer um raio X é o estudo das bancadas que se formam para proteger uma parcela de empresários,
uma categoria profissional ou uma corporação. São forças que representam interesses
freqüentemente mais sólidos às vezes até no sentido material que os simples programas
partidários.”143
Os atuais 513 deputados e 81 senadores tomaram posse em fevereiro de 1995. Antes de se
analisar a formação de seus diversos blocos de interesses, é importante um rápido repasso sobre a
formação da legislatura anterior, referente à Câmara dos Deputados, deixando-se o Senado de lado,
pois formado pelo sistema majoritário, com três senadores por Estado, sempre foi composto por
parlamentares reacionários, ressalvadas raras exceções. Esta retrospectiva sobre a composição do
Poder Legislativo demonstrará, de forma cristalina, que os processos eleitorais não mudam a
composição ideológica do parlamento, ou seja, os grupos de interesses organizados mantêm sua
representatividade.
O gráfico seguinte demonstra, com clareza, a formação elitista da Câmara, com 39% de
empresários e apenas 5% de trabalhadores. O problema não é só este, pois trata-se de uma divisão
por profissões, e os demais parlamentares, como os advogados, médicos, economistas e
engenheiros, normalmente, não são representantes dos obreiros, mas de famílias importantes, de
empresas, de categorias profissionais, enfim, representam interesses outros, e não os das classes
pobres. Isso dá-se, entre outros motivos, pelo preço de uma eleição, ou seja, o valor mínimo
necessário a ser gasto por um candidato para poder eleger-se. A soma é vultosa e dificulta muito a
vitória de uma pessoa não financiada pelo poder econômico. Há uma perda de democracia com este
tipo de eleição, sem dúvida, mormente quando se coloca o processo eleitoral como seu sinônimo.

Quadro 12
Composição, por profissão, da Câmara dos Deputados
Legislatura 1990-1994144

PÁGINA 89 DO LIVRO

O quadro 2, de novo, demonstra ser a população em idade de trabalhar formada por


obreiros, pois do total de 113.629.325 pessoas, só 2.268.399 ganham mais de 20 salários mínimos.
Há, no mínimo, uma falha de representação, pois não se pode conceber um empresário
representando um trabalhador no Poder Legislativo. Estaríamos frente ao velho exemplo da raposa
dentro do galinheiro.

143
ESPERANDO FHC. Veja. São Paulo, v. 28, nº 5, fev. 1995, p. 28.
144
Gráfico elaborado pelo autor com dados retirados de: FORÇA de classe. Veja. São Paulo, v. 23, nº 45, nov. 1990, p. 43.
Não é demais lembrar ser a democracia, em especial nos países do terceiro mundo, quase
sinônimo de eleições livres e diretas. Existindo, em um determinado país, um sistema representativo
não declaradamente corrupto, mesmo funcionando com base na força do dinheiro, na manipulação
da mídia, no nepotismo governamental e no voto direcionado, comprado e fiscalizado, afirma-se
tratar-se de uma democracia, sendo insignificante sua condição socioeconômica.
“'Democracia' ya no se entiende como un término subversivo que hace temblar a las clases
dominantes, principalmente porque las clases dominantes se lo apropiaron. En Occidente,
democracia ha llegado a significar democracia burguesa; ya no se define según criterios de
participación e igualdad sino por la existencia de algunos rasgos políticos formales:
elecciones, una constitución y reglas acordadas para el discurso político. Se da por sentado
que un sistema con estructura democrática es democrático, cualquiera sea el nivel de salud
mental e igualdad que experimenten sus ciudadanos.”145
Sem maiores divagações, o quadro 12 demonstra como a maioria da população brasileira,
composta de pessoas pobres, estava, na legislatura passada, pouco representada na Câmara dos
Deputados e como as classes ricas, de pequeno número de pessoas, controlavam grande parte das
cadeiras de deputado federal. Isto repete-se na atual legislatura. Se este fato demonstra a
ineficiência do sistema representativo, é problema teórico/prático a ser estudado em outro trabalho.
Entretanto, representa, sem a mínima margem de dúvida, a impossibilidade de se elaborar uma
legislação social no Brasil, pois acreditar que os parlamentares eleitos com o dinheiro dos ricos
possam legislar contra seus interesses é, no mínimo, uma grande ingenuidade. Não se trata só de
dinheiro, mas, também, de ideologia. A maioria dos deputados, ou faz parte, ou está identificada
com as classes ricas e, portanto, obrará para transformar em norma jurídica obrigatória a toda
sociedade, os interesses de seus pares e/ou financiadores. O sistema representativo e o sistema
partidário vigentes não só distanciam a população da gestão da sociedade, da participação nas
relações de poder, como conseguem conciliar o sufrágio universal, igual e secreto, com o
desenvolvimento e manutenção de uma sociedade desigual. À população cabe pressionar para
conseguir espaços na legislação e ampliar a capacidade de luta na dialética do poder, em prol de
seus interesses.
O atual Congresso Nacional está composto por 594 parlamentares. Destes, 307 foram
reeleitos. Aparentemente, houve uma renovação de 287 dos membros. Entretanto, não é assim, pois,
destes, 59 são ex-parlamentares e 22 ex-governadores, ou seja, velhos políticos do sistema. Em
realidade, parlamentares debutando na profissão existem 152. Necessário sublinhar serem, muitos
destes novos, filhos ou parentes dos antigos. Apenas trocam os membros de famílias ou grupos
importantes.
Dos blocos de interesses, o maior é o ruralista, formado por proprietários de terras, muitos
latifundiários, interessados na reforma tributária, para diminuir os impostos da agricultura e
aumentar os recursos. Somente este grupo controla 16,6% do parlamento. Como votam unidos em
torno dos interesses de sua classe, pode-se notar a importância que possuem no jogo político e na
aprovação dos projetos do governo. Esta importância significa, de fato, uma poderosa força de
pressão, pois este percentual, muitas vezes, é decisivo para a aprovação de uma lei. O segundo
maior é o das empreiteiras (10,4% do parlamento), empresas de construção civil que, em sua
maioria, enriqueceram com dinheiro público, construindo obras para o governo, normalmente
superfaturadas. Ademais, muitas delas estão envolvidas em denúncias de corrupção nas
concorrências públicas e liberação de verbas. O bloco sindicalista, em tese defensor dos
trabalhadores, é composto por apenas 35 parlamentares e controla só 5,9% dos legisladores. Não
pode atuar, sequer, como contrapeso aos interesses das elites. Os grupos de interesses e as forças de
pressão política estão assim distribuídos na atual legislatura:

145
WOLFE, Alan. Los límites de la legitimidad : contradicciones políticas del capitalismo contemporáneo. Trad. de
Teresita Eugenia Carbó Pérez. 2ª Edição. México. Siglo Veintiuno, 1987, p. 24 (sociología y política).
Quadro 13
Parlamentares divididos por bloco de interesses
no atual Congresso Nacional146

PÁGINA 92 DO LIVRO

Diretamente ligados aos interesses do capital, estão os seguintes blocos: ruralista,


empreiteiras, comunicações, donos de hospitais, privatista, banqueiro, montadoras, usineiros,
mineradoras, transportes, multinacionais e escolas privadas, num total de 327 parlamentares, ou
55% do Congresso Nacional. Os 267 parlamentares representantes dos demais blocos de interesses
não são representantes das classes pobres e/ou trabalhadoras. Ao contrário, muitos estão, também,
vinculados ao capital ou, no mínimo, aos interesses de sua própria classe, como o evangélico, saúde
pública, estatal, judiciário, educação, municipalista, previdência, católicos e funcionalismo. Entre os
classificados como outros, também não se encontram muitos parlamentares populares. Portanto, a
sorte e o futuro da população carente brasileira, dos milhões de pobres e miseráveis, como, também,
de toda a classe obreira, não pode depender do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, pois “el
Parlamento ha experimentado asimismo una transformación y ha dejado de ser un centro de
decisiones para pasar a ser la sede donde se formalizan decisiones que se han adoptado en
negociaciones a puerta cerrada en otro lugar.”147 Tampouco pode-se esperar muito do Poder
Executivo, pois este, nos últimos trinta anos, esteve nas mãos de ditadores militares ou de políticos
de direita, incluindo um corrupto mundialmente conhecido. Ademais, 80% das leis em vigor no país
são de sua iniciativa.
O Brasil, na atualidade, é governado por um Presidente social democrata que se uniu com a
direita para chegar ao poder e defende uma política neoliberal, afirmando: “Não acredito muito nas
estatísticas sobre o Brasil. Não acho que existam os 32 milhões de miseráveis. A miséria do Brasil
está em bolsões localizados: no interior do Nordeste e na periferia das grandes cidades. Precisamos
atualizar o mapeamento desses bolsões”148. A melhor forma de não resolver os problemas sociais é
não acreditar neles. O Senado Federal é presidido pelo ex-presidente José Sarney, latifundiário e
político de direita, tendo como grande obra de seu governo elevar a inflação para perto de 100% ao
mês. O presidente da Câmara é Luís Eduardo Magalhães, filho do senador Antônio Carlos
Magalhães, o mais representativo político da direita retrógrada baiana. Todos, com exceção do
Presidente Fernando Henrique Cardoso, pelo menos até assumir a chefia do Poder Executivo,
serviram à ditadura, pertencem à classe rica e defendem os interesses do capital. Quanto ao Poder
Judiciário, por mais que se negue, ele também exerce uma função política e não é em favor das
classes trabalhadoras e/ou miseráveis.
“Los derechos iguales de personas desiguales no eliminan la desigualdad sino que la
consagran. Así, para el burgués es esencial el derecho de propiedad de medios de
producción. Este derecho está siempre constitucionalmente protegido y es defendido por
el Estado: todos sus funcionarios - los administradores, los policías y los jueces - se
ocupan de mantenerlo. Pero los trabajadores no son empresarios, no tienen medios de
producción, ni este derecho de propiedad privada es esencial para ellos. No hay que
confundir el derecho de propiedad de las empresas con las empresas. Para los trabajadores
es esencial tener trabajo. Y tienen el derecho burgués al trabajo. también declarado

146
Quadro confeccionado pelo autor, com informações retiradas de: ESPERANDO FHC. Op. cit., p. 28.
147
ESTÉVEZ ARAUJO, José Antonio. La constitución como proceso y la desobediencia civil. Op. cit., p. 130.
148
VIAGEM às idéias do líder nas pesquisas. Veja. São Paulo, v. 27, nº 34, ago. 1994, p. 27.
constitucionalmente. Por los instrumentos del Estado burgués - los administradores, los
policías y los jueces - no están concebidos para asegurar que nadie se quede sin trabajo.
Así se llega a que los trabajadores tienen derecho al trabajo pero no tienen trabajo. Su
derecho está vacío. Este vacío viene determinado en la realidad social porque el acceso a
los recursos productivos no se halla vinculado, en las sociedades capitalistas, a la simple
cualidad de ser persona, sino a la condición de «propietario» (de cosas o de fuerza de
trabajo).”149
Focando-se o Direito e a realidade social, torna-se necessário trazer ao debate o significado
latente, a ideologia oculta, no ato de julgar e no que se julga.
Na década de oitenta, os principais conflitos resolvidos pelo Poder Judiciário foram
referentes às seguintes categorias:150 questões trabalhistas, problemas criminais, separação conjugal,
desocupação de imóvel, pensão alimentícia, conflito de vizinhança, conflito pela posse da terra,
cobrança de dívida e herança. Dizem respeito a três áreas distintas do Direito, quais sejam:
Trabalhista, Criminal e Civil.
“A intervenção da justiça, conforme apurou pesquisa da Pesquisa Nacional de
Amostragem Domiciliar (PNAD) em 1991, é preponderante nos conflitos por pensão
alimentícia (73,4%), questões trabalhistas (66,6%) e nos conflitos de posse da terra
(51,3%). Mas em relação ao conflito entre vizinhos (85%) e problemas criminais (72%)
foi bastante alto o percentual das pessoas que não recorreram ao judiciário. No conjunto
de todos esses conflitos, apenas 33% das pessoas envolvidas em algum tipo de conflito
buscaram o judiciário para a solução de seus problemas. Não espanta portanto que,
conforme pesquisa de opinião, do Datafolha, publicada em 12/3/94, 35% dos brasileiros
tivessem considerado o judiciário como 'regular', 25% como 'ruim e péssimo' e apenas
25% como 'ótimo e bom'“.151
Os conflitos sob análise do Poder Judiciário são neutralizados, historicamente, e perdem sua
relação com o contexto socioeconômico do país. De forma clara, para decidir os conflitos acima
narrados, os julgadores, simplesmente, desconsideram toda a realidade do país, todos os dados até o
momento analisados. Não se admite o conflito geral da sociedade, sua divisão em interesses
antagônicos. Os conflitos jurídicos não possuem relação com os conflitos sociais. Cria-se uma
realidade, uma falsa realidade, e, desse mundo de fantasias, onde os fatos são trocados por
conceitos, nascem as decisões judiciais. Crianças morrendo de fome, desigualdade social,
concentração de renda, exploração, miséria tudo o que foi descrito neste capítulo são considerados
fatos juridicamente irrelevantes, sem importância para a Ciência Jurídica. Em termos de Teoria do
Direito, os julgadores brasileiros são extremamente formalistas e legalistas e sua prática jurídica
encontra amparo nas teorias do século XIX, em especial na escola da exegese. Ainda se está no
tempo de ser dever do julgador cumprir a lei e ponto final; como se o Poder Judiciário não tivesse
uma função social. O Direito é tido como universal, neutro, completo, perfeito, aplicado à uma
sociedade harmônica, com a função de resolver microconflitos sociais individuais, sem espaços de
não-Direito. Os livros jurídicos publicados, normalmente, cingem-se a uma análise de leis,
discorrendo o autor sobre cada artigo das mesmas, de forma descritiva, pretensamente lógica,
explicando o conteúdo da norma. Esse tipo de obra seria atual no século XVIII, um pouco defasada
no século XIX, mas inaceitáveis no século XX. Os juristas brasileiros ainda não passaram pela crise
da concepção tradicional do método jurídico, ocorrida em fins do século passado. Sequer
observaram a autocrítica de Rudolf von Jhering. Em termos de filosofia jurídica, os julgadores

149
CAPELLA, Juan Ramón. Op. cit., p. 193-194.
150
Ver: DEMO, Pedro. Cidadania Menor : algumas indicações quantitativas de nossa pobreza política. Rio de Janeiro,
Vozes, 1992, p. 42 e seguintes. (Coleção debates sociais e políticos).
151
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços : direitos humanos no brasil. Op. cit., p. 34-35.
brasileiros estão bastante atrasados em relação às modernas teorias. Não se está falando só das
teorias mais recentes, como a Nova Hermenêutica (Betti e Gadamer), Hermenêutica Construtivista
(Dworkin), Nova Retórica (Perelman), Neoempirismo (Peczenik), entre tantas outras. Até mesmo o
positivismo jurídico de Kelsen e sua revisão sociológica, efetuada por Hart, onde se admitem
espaços de não-Direito no método jurídico, são teorias muito avançadas para a quase totalidade dos
juízes do Brasil.
Por certo, todas estas teorias são conhecidas de muitos julgadores, mas estes as guardam a
sete chaves, as ignoram em suas práticas, pois o legalismo formalista ainda é a melhor forma de
conseguir os objetivos almejados. Com esta postura ideológica, não é de se estranhar o
distanciamento entre o Poder Judiciário e as aspirações de Justiça da sociedade civil. Por este
motivo, o Direito Alternativo, em termos de crítica jurídica, muitas vezes, assume posições
antiformalistas, a exemplo (sem se confundir com os mesmos) do movimento do Direito livre
(Ehrlich e Kantorowicz), da jurisprudência de interesses (Heck) ou do realismo jurídico (Holmes e
tantos outros), para recordar aos juristas nacionais as grandes transformações ocorridas na Teoria do
Direito no fim do século passado e no início deste, tão esquecidas na atualidade.
De uma forma bem geral, pode-se afirmar que o Brasil, nas últimas duas décadas,
caracterizou-se pela transferência da população rural para os centros urbanos e pelo
empobrecimento da sociedade. Estes fatores criaram novos conflitos sociais, ampliando as faixas de
miséria na população e a necessidade de uma maior intervenção assistencial do Estado, quase
sempre inexistente. No período ditatorial (1964-1985), as demandas sociais por justiça foram
reprimidas pela violência praticada pelo regime. Entretanto, com o fim da ditadura e o início da
redemocratização do Estado, houve uma explosão de reivindicações por direitos, até então
sufocados. Os Poderes Executivo e Legislativo não foram capazes de atender a esta demanda por
justiça social, e a população foi bater nas portas do Poder Judiciário, com pedidos individuais ou de
forma organizada, com pleitos coletivos. Surgiram vários movimentos sociais organizados e
associações populares (sem-terra, aposentados, mutuários, consumidores, etc.), também sindicatos,
com muitos membros e força política, capacitando-os a exigir do Judiciário resolução para ações
coletivas, em que se discutiam problemas relacionados com os conflitos gerais da sociedade e não
só entre partes. “Longe de se reduzirem exclusivamente a meras controvérsias interindividuais com
um objetivo bem definido, uma parte expressiva dos conflitos hoje identificáveis na sociedade
brasileira tem feições marcadamente coletivas e classistas. Isto decorre, entre outros motivos, da
organização de certos setores da sociedade civil, especialmente a partir da década de 70, quando
alguns grupos explorados (economicamente) e oprimidos (social e culturalmente) começam a
alargar um espaço público paralelo (e clandestino) em relação ao espaço político tradicional e
formal.”152 Também surgiram muitos escritórios de assessoria jurídica popular, ampliando o acesso
à Justiça, bem como ajuizando processos inéditos, para os quais o Direito não possui uma resposta
ou solução. Questões sempre tidas como políticas (reforma agrária, questão salarial, etc.) foram
levadas ao mundo neutro do Direito e dos Tribunais. Houve uma politização da Justiça brasileira,
ou seja, não foram alguns juízes que resolveram assumir uma postura política, mas, ao contrário, foi
a sociedade que levou problemas políticos aos juízes, exigindo destes uma atitude não-formalista e
legal, mas política, para resolver os graves problemas sociais existentes. Os melhores estudos sobre
os conflitos e movimentos sociais e a postura dos juízes face aos mesmos foram efetuados pelo
jurista/sociólogo José Eduardo Faria, que proporciona a seguinte síntese da situação:

“Alguns movimentos comunitários, religiosos e corporativos foram especialmente


constituídos, nesse período, para reivindicar benefícios sociais coletivamente fruíveis, nos
campos da saúde, moradia, educação, transporte, etc. Nestes casos, evidentemente, a
solução natural não é um ato de adjudicação (típico do Judiciário), mas a implementação
de políticas públicas. Trata-se de uma solução que exige não só o reconhecimento de um
152
FARIA, José Eduardo. O poder judiciário no Brasil : paradoxos, desafios e alternativas. Op. cit. p. 25.
direito subjetivo e de um dar/entregar ou obrigar a dar/entregar alguma coisa ou alguma
quantia de dinheiro, mas um fazer ou prover um serviço público contínuo, ininterrupto e
impessoal. Serviços públicos requerem meios, isto é, receitas para seu custeio e
competência ou poder para sua efetividade (desapropriação, policiamento, fiscalização,
etc.). Como esses meios são escassos, dada a crise fiscal do Estado, esses movimentos
comunitários, religiosos e corporativos encontraram no Judiciário um canal institucional
para o encaminhamento de suas reivindicações, procurando criar impasses que obrigassem
a negociação. Agindo desse modo, eles não só puseram em questão o dogmatismo do
paradigma jurídico prevalecente e os procedimentos tradicionais das instituições
judiciárias, mediante a instrumentalização política das ações e recursos previstos pelo
Código de Processo Civil, com vistas à conquista de direitos concebidos numa perspectiva
muito mais material do que formal, como também acabaram contribuindo para o
alargamento dos mecanismos judiciais de ação coletiva (caso da ação civil pública criada
pela Lei nº 7.347/85), amplamente utilizados por grupos organizados na defesa de
interesses difusos, classistas e corporativos.”153
Como exemplo destes novos tipos de demandas jurídicas, podem-se citar: pedidos de
indenização contra o Estado, efetuados por familiares de pessoas mortas e desaparecidas durante o
regime militar; lides envolvendo invasões de terras, ocupações de edifícios públicos e privados,
estando de um lado os proprietários, defendendo seus interesses com base em um título legal e, do
outro, os posseiros, reivindicando a função social da propriedade e a prevalência da posse coletiva
contra um documento formal; mutuários contra o sistema financeiro de habitação; inquilinos contra
os proprietários, discutindo os aumentos de aluguéis e ações de despejo; segurados contra
seguradoras; correntistas contra os bancos; consorciados contra as empresas de consórcios (todas
estas empresas se beneficiam de inúmeras leis protecionistas do capital, que permitem, entre outras
coisas, a cobrança de juros usurários, o aumento desproporcional das prestações, etc.); devedores
vítimas do desemprego, dos aumentos abusivos de preço nas compras a crédito, das mais variadas
políticas econômicas do governo, contra os credores; ações de empresários contra trabalhadores
para evitar greves, comícios, piquetes e outras atividades de interesse da classe obreira; pais de
alunos contestando os valores das mensalidades escolares, fixadas pelas escolas particulares; causas
em defesa da ecologia; associações defensoras dos direitos humanos exigindo respeito aos presos;
institutos jurídicos como o mandado de segurança individual e coletivo, a ação popular, a ação civil
pública, o habeas-corpus, o habeas-data, entres outros, foram usados massivamente; e tantas outras
poderiam ser mencionadas.
O vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, de uma forma entusiasmada,
reconhece esta politização: “Por intermédio desses e de outros instrumentos, os magistrados de
todos os graus de jurisdição se viram instados a decidir sobre questões politicamente relevantes,
desde a privatização de empresas estatais até o confisco da poupança popular, passando pela
legitimidade dos gastos públicos e a constitucionalidade dos tributos, com o que começaram a
incomodar os poderosos, dentro e fora do governo, habituados a ditar regras ao povo sem receio de
nenhuma contestação no âmbito judicial.”154
Esta contestação judicial aos poderosos é de toda duvidosa. Tendo de decidir demandas
jurídicas desta natureza, o Poder Judiciário passou a enfrentar um grande desafio: o de participar,
concretamente, da construção da história do Brasil, ficando responsável, em grande parte, pela
construção de uma democracia real, com o propósito, entre outros, de acabar com o abismo
existente entre a igualdade formal dos cidadãos perante a lei e a desigualdade socioeconômica entre
eles. Pode negar-se a assumir este papel, mantendo-se como uma instituição hermética, com

153
Ibid., p. 26.
154
LEWANDOWSKI, Ricardo. A quem aproveita um judiciário fraco? O Estado de São Paulo. São Paulo, 19 jun. 1995,
opinião.
funções técnico-formais, exercitando uma interpretação só exegética das leis, aplicando justiça
corretiva, o que ocasionará mais perda de legitimidade e do monopólio da função de dirimir
conflitos, ou pode aceitar esta nova função, avocando sua obrigação de efetivar justiça distributiva,
recuperando sua legitimidade e a totalidade de seu ofício. Há uma luz no fim do túnel, pois o atual
Presidente do Supremo Tribunal Federal, a maior Corte de Justiça do país, ministro Sepúlveda
Pertence, por suas declarações, demonstra ter superado o estreito legalismo e formalismo e possuir
uma visão mais moderna sobre a função de julgar. Afirmou: “Desde que se superou a mentira de
que um juiz, particularmente um juiz constitucional, é um puro técnico capaz de extrair uma norma
supostamente de um único sentido válido de um fato, desde que essa ilusão foi desfeita, a verdade é
que o juiz é um homem, enquanto cidadão, com crenças, convicções, tendências conscientes e
inconscientes. Muitas vezes está inteiro dentro de uma decisão. Então é óbvio que não se julga na
Lua.”155
Um único homem156, mesmo sendo presidente do S.T.F., não resolverá a problemática
judiciária, mas sua postura é muito importante, mesmo estando o senhor ministro do lado da
minoria, pelo valor simbólico que representa. Fala-se em minoria em termos de atividade prática,
pois no discurso, uma média de 73,7% dos julgadores brasileiros entendem que o juiz não deve ser
um “mero aplicador da lei”.157 Esta contradição dos magistrados de, por um lado, demonstrarem: a)
consciência da função conservadora do Poder e b) uma visão ampliada da função de julgar e, de
outro, praticarem o contrário, ou seja, agirem de forma reacionária e estreita, já foi apontada pelo
autor em trabalho anterior158. Aliás, esta contradição vira paradoxo ao constatar-se que dos 73,7%,
só 37,7% dos entrevistados na mesma pesquisa responderam sim à pergunta: O compromisso com a
justiça social deve preponderar sobre a estrita aplicação da lei? Chega-se à seguinte conclusão:
dos 73,7% que afirmaram não dever o juiz só aplicar a lei, 36% estão contra um compromisso com
a justiça social. De pronto surge uma indagação: se estes magistrados estão contra a aplicação cega
da lei e contra um compromisso com a justiça social, com que e/ou com quem estão
comprometidos?
Portanto, o importante é o estudo da reação do Poder Judiciário, como um todo, frente a
esta invasão política em sua tranqüila função de só aplicar a lei, sem qualquer responsabilidade
social. Isto porque, mesmo provocado a assumir funções importantes no seio da sociedade, o
Judiciário não abdicou de suas tradicionais funções: 1) máquina repressiva; 2) máquina ideológica e
3) máquina de recuperar judicialmente, em favor das classes hegemônicas, as concessões
legislativas feitas em prol da classe obreira. Isto será melhor visto no capítulo III.
De uma forma bastante genérica, para efeitos acadêmicos explicativos, é possível
sistematizar a relação entre Poder Judiciário e conflitos sociais, bem como sua reação às novas
demandas por justiça social advindas da sociedade civil, nos últimos vinte e cinco anos, da seguinte
forma159:

Quadro 14

155
FALCÃO, Joaquim. O Supremo e a mentira. Folha de São Paulo. São Paulo, 23 jun. 1995, Tendências/debates, p. 1-3.
156
“Em 1990, havia apenas 5164 juízes no Brasil. (...) Enfim, enquanto no Brasil há um juiz em média para cada 29 542
habitantes, na Alemanha a relação é de um juiz para cada 3448 habitantes, na Itália de um para 7692 e na França de um
para 7142.” DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços : direitos humanos no Brasil. Op. cit., p. 35.
157
Este foi o resultado de uma pesquisa realizada nos Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco e
Goias, quando foram entrevistados 529 juízes. Ver: SADEK, Maria Teresa. (coord.) A crise do Judiciário vista pelos
juízes. Relatório de pesquisa. Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo. São Paulo, 1994, 14 p.
158
Ver: ANDRADE, Lédio Rosa.Op. cit., p. 42-46.
159
Esquema elaborado pelo autor.
PÁGINA 100 DO LIVRO

A grande maioria dos julgadores, em nome da segurança jurídica, da neutralidade do


Poder e da certeza do Direito, não aceitou o desafio proposto ao Poder Judiciário. A posição
assumida por quase todos os juízes de Direito, Desembargadores e Ministros foi a de preservação
do formalismo e do legalismo, pois, segundo eles, “não cabe à Justiça resolver probleminhas
sociais, mas garantir o primado da Lei.”160 Agem sob o discurso de defesa da legalidade. Esta
ideologia é bastante forte, não só por ser totalmente hegemônica entre os juristas, a única ensinada
na totalidade das faculdades de Direito, mas, também, por chegar a convencer, até mesmo, juristas
críticos. Muitos destes dedicam longo tempo de estudos tentando demonstrar não ser o
cumprimento cego da lei a função do juiz, sem perceberem que os legalistas não são cumpridores
cegos da lei. Se a premissa é falsa, toda a teoria também o é, não havendo necessidade de contrapô-
la. Isto pode ser demonstrado com poucos exemplos. Em termos genéricos, o legalismo cai por terra
ao ser constatado que os legalistas, simplesmente, escolhem as leis que devem ser cumpridas e as
que não devem ser cumpridas. Por ilustração, o Código Comercial de 1850, o Código Civil de 1916,
a Parte Especial do Código Penal de 1940 e o Código de Processo Penal de 1941 são, quase sempre,
rigorosamente, interpretados ao pé da letra, em um exegetismo extremado. Já o Código de Defesa
do Consumidor de 1990, a Lei de Execuções Penais de 1984, o Estatuto da Criança e do
Adolescente de 1990, a própria Constituição Federal de 1988, normas modernas, em condições de
regular, em certa parte, os conflitos coletivos, com conteúdos de natureza social e distributiva, são
abertamente desrespeitadas, não obedecidas, ignoradas. Ora, para certas leis, os legalistas gritam
pelo cumprimento automático e total; para outras, não só se calam, mas agem contra a lei. Portanto,
o cumprimento da lei fica condicionado ao conteúdo da norma e à concordância destes juristas com
o mesmo. O que isto significa? Uma opção ideológica e política.
“Em todo o Brasil, entraram na primeira instância da justiça comum 4 209 623 processos
em 1990 e foram resolvidos, no mesmo período, apenas 2 434 842, ou seja, 57,5%. (...) Na
aplicação das sentenças, segundo pesquisa recente de Sérgio Adorno, há uma
desigualdade jurídica, com marcado viés racial, na atribuição das sentenças: as penas são
extremamente mais pesadas para os réus não brancos do que para os réus brancos. Nas
áreas rurais, onde o judiciário está mais sujeito - como a Polícia Civil e Militar - à
influência dos proprietários de terra locais, em particular nos caos relacionados com os
militantes sindicais e índios, a polícia local é menos rigorosa na investigação, os
promotores estão menos dispostos a abrir inquérito, e os juízes, muitas vezes ligados às
elites locais, encontram desculpas para arrastar os processos em casos envolvendo
pistoleiros contratados pelos proprietários de terra para eliminar posseiros ou ativistas
sindicais.”161
Como se pode ver, não existe um legalismo geral, para todas as normas jurídicas, mas um
discurso sobre o legalismo só aplicado aos textos legais convenientes. Se em termos gerais o tema
dá margem a outras discussões, exemplos específicos retiram toda possibilidade de dúvida. Nenhum
jurista honesto pode negar ser o princípio do devido processo legal um dos dogmas mais importante
do Direito contemporâneo. É a expressão maior da segurança jurídica, da neutralidade do Direito,
pois nenhuma pessoa pode sofrer as conseqüências do ordenamento jurídico, do monopólio da
violência do Estado, sem ser devida e regularmente processada. Ser devida e regularmente
processada significa a necessidade imprescindível de a pessoa fazer parte de um processo legal,
onde deve ser individualizada, qualificada, identificada e citada, para exercer o Direito sagrado da
ampla defesa. Nem mesmo no processo kafkiano o réu perdeu estes direitos. Sem eles, está-se

160
FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito : os juízes em face dos novos movimentos sociais. Op. cit., p. 68.
161
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços : direitos humanos no Brasil. Op. cit. p. 36-37.
falando de violência pura, de não-Direito, pois é inaceitável um ser humano sofrer os corolários de
uma decisão judicial (que pode significar prisão, espancamento, perda de bens e, até mesmo,
morte), sem integrar um processo, ou melhor, o processo onde a decisão foi tomada.
Pois bem, para os legalistas as coisas não são bem assim. Para eles, é possível um cidadão
ser expulso, por intermédio da violência policial, de uma determinada área de terra, tendo seus bens
destruídos, sem participar de um processo, sem ter a oportunidade de exercer sua defesa. Isto vem
ocorrendo em processos de reintegração de posse, ajuizados por fazendeiros contra posseiros. Por
serem várias famílias, os esbulhantes, há dificuldade de qualificar e citar a todos. Também existem
empecilhos processuais em relação aos prazos, devido ao elevado número de réus.
As dificuldades dos fazendeiros estão sendo resolvidas pelos juízes, em total colisão com as
normas processuais civis (texto expresso e princípios gerais), ao decidirem: a) não ser necessária a
individualização e qualificação dos réus; b) não haver necessidade de citação individual de cada réu
e c) proibir a presença de todos os réus na audiência, sem prejuízo da publicidade162. Com base
nestas decisões, determina-se a expulsão de qualquer pessoa que esteja sobre a área em litígio, não
importando em que condições!
Como se pode falar em certeza jurídica nesses termos? Qual a segurança jurídica dos
cidadãos brasileiros quando podem ser retirados violentamente de um determinado local, sem saber
o porquê, o como isso ocorreu? Como pode uma pessoa sofrer as conseqüências de uma decisão
judicial sem participar do processo; sem ser qualificada, citada; sem exercer o direito de defesa?
Tais decisões não são lógicas, sob qualquer ponto de vista jurídico e, muito menos, formais. Vê-se,
sem qualquer dúvida, ser o formalismo e o legalismo jurídico uma postura ideológica, a serviço de
classes sociais bem conhecidas.
Portanto, a reação do Poder Judiciário aos conflitos sociais, aos novos movimentos e
associações, foi o de continuar a manter sua tradicional postura, não aceitar sua participação nestas
polêmicas e negar sua responsabilidade pela situação socioeconômica do país.
Não obstante, algumas partes do Poder Judiciário foram sensíveis aos novos tempos e à
necessidade de uma atitude renovada, moderna e ajustada ao contexto histórico. Vários foram os
julgadores que abandonaram o tecnicismo, o dedutivismo, o formalismo e o legalismo, para
assumirem uma posição alternativa, em busca de uma Justiça distributiva. Muitos tomaram uma
postura voltada a mudanças sociais, à justiça real, à igualdade de fato. O Direito Alternativo não
possui o monopólio dessas atitudes. O próprio uso alternativo do Direito163 não é uma prerrogativa
só dos juristas alternativos. Muitos juízes agiram individualmente, em nome de um jusnaturalismo
teológico, de um Direito Natural, ou, até mesmo, de um conceito genérico de Justiça. Outros
seguiram os passos de alguns magistrados espanhóis e organizaram a corrente Juízes para a
Democracia. Entretanto, o maior grupo a se organizar como oposição direta aos juristas
tradicionais, à ideologia jurídica dominante, foi o Movimento do Direito Alternativo, cuja história e
pensamento serão apresentados no próximo capítulo.

3. EXCURSO

O autor escreveu o presente trabalho na cidade de Barcelona, Espanha, local onde residiu
por três anos. Ao terminar o capítulo, pensou ter apresentado um panorama geral da tétrica
realidade socioeconômica brasileira. Entretanto, ao retornar ao Brasil, constatou ser este capítulo
um tema sempre em aberto, pois, diariamente, ao abrir qualquer jornal ou assistir a qualquer
noticiário televisionado, sempre se depara com matérias novas a serem estudadas. As injustiças

162
FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito : os juízes em face dos novos movimentos sociais. Op. cit., p. 65-70.
163
Este termo, conforme será demonstrado no capítulo IV, é, equivocadamente, utilizado no Brasil como significando o
uso do Direito Positivo de forma diferente da pretendida pelo legislador e pela classe dominante.
sociais, a violência contra a população pobre tornaram-se tão triviais como os favorecimentos a
pequenos grupos, as negociatas de políticos, o nepotismo. Tudo sempre com dinheiro público.
Afirma o governo não existir dinheiro para a reforma agrária, para a merenda escolar, para
projetos sociais, para o salário mínimo, entretanto, destina bilhões para salvar bancos em
dificuldades envolvidos em fraudes, com enriquecimento privado de seus donos, perdoa dívidas de
ruralistas latifundiários e usineiros, para aliciar o congresso nacional e permite a corrupção
desenfreada.
Noticia-se por todo o país que a Polícia Militar recebeu dinheiro de fazendeiros para matar
os sem-terra. Noticia-se que policiais civis, descontentes com seus estipêndios, pressionaram os
superiores não com movimentos grevistas, mas, simplesmente, matando crianças e adolescentes,
escolhidos ao acaso, criando uma nova forma de reivindicação salarial.
O Presidente da República diz querer implantar o neoliberalismo, mas seu governo cinge-se
a satisfazer grupos de interesses setoriais, travestidos de deputados e senadores. A nação vai à
deriva e está-se construindo ou solidificando o que Gilberto Dimenstein intitulou “Democracia em
pedaços”, em seu último livro.
Num país que se pretende Estado de Direito, a Constituição Federal é violada
constantemente. As leis e decisões judiciais, além de interpretadas ao gosto dos poderosos, são
cumpridas pela polícia em conluio com assassinos profissionais. Os grandes corruptos do país estão
soltos. Os ricos sonegadores de impostos vivem no esbanjamento. Os responsáveis por grandes
fraudes recebem dinheiro para “salvar” o sistema financeiro. Os enormes devedores do erário
público são perdoados ou não executados. Tudo sem punição, sem responsáveis. As pessoas simples
e honestas apenas observam. O Poder Judiciário diz cumprir seu dever condignamente, os juristas
estão satisfeitos com a ordem legal. Os alternativos são acusados de serem contra a lei.
Este é, sem dúvida, um capítulo sem fim. Mas já não escandaliza. Ninguém se interessa.
Não produz repulsa. Parece até que todos estão acomodados, satisfeitos com o presente, não
preocupados com o futuro. A história atual tornou-se o ponto de chegada, e não o ponto de partida.
Mas isso também não tem importância.

CAPÍTULO II

História do Direito Alternativo Brasileiro

Para se poder debater o fenômeno jurídico, ou corrente de pensamento, ou movimento


jurídico denominado Direito Alternativo, faz-se necessário, como medida propedêutica, um estudo
de sua história. Este, entretanto, para viabilizar uma discussão mais a fundo, deve ser realizado em
duas partes. A primeira diz respeito aos acontecimentos concretos, aos fatos ocorridos desde as
primeiras reuniões de alguns juízes gaúchos para discutir suas práticas profissionais, até a formação
de um grupo organizado de juristas, em nível nacional, envolvendo várias áreas profissionais
(magistrados, promotores de justiça, advogados, professores, estudantes, etc.). Trata-se, pois, de
uma descrição histórica/cronológica. A segunda se aparta do mero relato, para buscar os fatores
ideológicos que deram causa a todos os acontecimentos. É, portanto, uma tentativa de demonstrar
quais os motivos de cada ação, as fontes justificadoras (um passar a limpo, desnudar) de cada
atitude hoje denominada alternativa.

1. HISTÓRIA CRONOLÓGICA DO DIREITO ALTERNATIVO164

No dia 25 de outubro de 1990, um importante jornal brasileiro chamado “Jornal da Tarde”,


de São Paulo, publicou um artigo, escrito pelo jornalista Luiz Maklouf, intitulado “Juízes gaúchos
colocam direito acima da lei”, com o propósito nítido de ridicularizar um grupo de juízes de Direito
do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, liderados165 pelo magistrado Amílton Bueno de Carvalho, e
que se reunia, esporadicamente, para discutir a Ciência Jurídica a partir de uma visão crítica, assim
como debater novas formas de aplicação do Direito positivado.
Ao contrário do pretendido pelo órgão de imprensa166, o artigo não desmoralizou, senão
divulgou a existência de magistrados não-ortodoxos, possuidores de uma percepção crítica do
Direito, e o mais importante, de juízes de Direito inconformados com a prestação jurisdicional, com
a prática tradicional do Poder Judiciário, em especial com o encaminhamento dos problemas
sociais, com um mínimo de organização. Muitos outros juízes também descontentes com a “ordem
estabelecida” começaram a comunicar-se com os magistrados gaúchos e também escreveram
muitos artigos em outros jornais, em defesa dos mesmos.
Esses juízes foram denominados juízes alternativos167, e o tema passou a tomar parte de
todas as discussões nos meios jurídicos, em particular no debate acadêmico. O juiz Amílton era
(como hoje segue sendo) convidado para dar conferências, com impressionante freqüência, em
universidades, associações profissionais e congressos (de estudantes, advogados, juízes, etc.) e em
demais atividades onde houvesse discussão jurídica. Hoje em dia, muitos outros juristas fazem o
mesmo.

164
A fonte dos dados é o saber pessoal, decorrente da participação do autor, um dos primeiros juízes não-gaúchos a
compor o movimento, isso já no ano 1990. Em todo o texto, a palavra autor servirá para identificar quem escreve este
trabalho.
165
Por falta de um vocábulo melhor, utiliza-se, aqui e em todo o trabalho, a palavra líder. Ela não quer significar, de
nenhuma forma, chefe, dirigente, guia, ou pessoa a ser seguida. Isso iria contra a própria essência do Direito Alternativo.
Amílton, como, posteriormente, alguns outros juristas alternativos, é destacado pelo valor de sua contribuição ao
movimento, pela importância de sua participação, chamando a atenção da imprensa e do público em geral. Também, pela
forma destacada de atuação na organização dos congressos, dos livros e da revista de Direito Alternativo.
166
Aconteceu com essa reportagem o que se chama “Teoria do efeito perverso”, ou seja, quando se praticam algumas
atitudes visando a determinado fim, mas os resultados das mesmas levam a outros fins, diametralmente opostos aos
pretendidos.
167
Não houve um congresso, sequer uma reunião, para deliberar sobre essa denominação. Em realidade, o nome Direito
Alternativo surgiu antes da organização do movimento e foi posto pela grande imprensa nacional. Após a primeira
reportagem sobre o movimento dos juízes gaúchos, citada anteriormente, os jornais começaram a chamar de Direito
Alternativo a organização dos magistrados do Sul do país. Isso ocorreu, certamente, pelo fato de o juiz Amílton Bueno de
Carvalho, principal alvo de ataque da imprensa e dos apressados juristas defensores do “Direito”, ser professor na Escola
Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul, de uma cadeira intitulada Direito Alternativo, isso desde o início de 1990.
Não é errado dizer ser o mês de outubro de 1990 o início do Direito Alternativo168, ou do
movimento de Direito Alternativo, hoje mais consolidado. Isso porque a notícia sobre a publicação
do artigo mencionado, levando ao público conversas tidas em off – o repórter permaneceu em Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, por três dias, sendo recebido informalmente, prática hospitaleira comum
dos gaúchos, participando, nessa condição, de vários “bate-papos” descontraídos – foi recebida por
telefone, quando Amílton e vários outros juristas críticos (Roberto Aguiar, José Geraldo de Souza,
Miguel Baldez, Miguel Pressburger, José Reinaldo Lopes, Jackson Azevedo, Edmundo Lima de
Arruda Júnior) estavam reunidos na casa da juíza laborista Ilce Marques de Carvalho, em Salvador,
Bahia, quando da realização do III Encontro Nacional da “Nova Escola Jurídica”.169. Ali mesmo,
após a chamada telefônica, decidiu-se fazer algo: o I Encontro Internacional de Direito Alternativo,
em Florianópolis, Santa Catarina, de 04 a 07 de setembro de 1991. Além disso, já antes do
congresso, foi publicado o livro “Lições de Direito Alternativo 1”. Assim nasceu o movimento de
Direito Alternativo.
Torna-se importante conhecer os fatos anteriores, que levaram a grande imprensa a desejar
destruir e/ou desmoralizar esses magistrados170 , bem como os acontecimentos fora da magistratura.
Em 1964, como é de conhecimento histórico, instalou-se no Brasil, via golpe de Estado, um regime
ditatorial militar. Os aparelhos de violência do Estado funcionaram incessantemente, matando,
torturando e perseguindo pessoas, em especial intelectuais, militantes políticos, operários e
estudantes contrários à ideologia imposta. Também os aparelhos ideológicos foram ativados com
abundância, disseminando no seio da sociedade civil a doutrina da segurança nacional, base teórica
legitimadora do regime militar. As faculdades de Direito, nesse período, foram mais positivistas do
que nunca, cingindo-se a transmitir os conteúdos das normas postas, sem qualquer discussão ou, até
mesmo, sem maiores problematizações hermenêuticas. O bom aluno era quem decorava as leis.
Fora dessa prática, caía-se em subversão. Nesse contexto histórico, ressalvados os magistrados
anteriores ao golpe, foram recrutados os julgadores das décadas seguintes, até o fim do regime de
força, no ano de 1985.
Na época da ditadura, pensar era perigoso, expressar o pensamento quase um suicídio 171.
Mesmo sob o terror, muitos juristas em geral e magistrados em particular, não estavam
conformados com seu labor e, mesmo sem expressar, sofriam profundas angústias pessoais diante
de tantas injustiças sociais e atos de violência.

168
Não se pode negar a existência de uma prática e de uma teoria jurídica crítica muito antes dessa data. Vários juristas
participaram da história de resistência à ditadura e à opressão, sofrendo as mais diversas conseqüências, como tortura e
morte. Não se deseja, fique claro, o monopólio da luta contra o Direito Oficial ou contra a violência organizada e
legalizada. Muito menos se pretende ser o primeiro movimento neste sentido. Entretanto, o início de um (mais um)
movimento organizado, com uma denominação específica, “Direito Alternativo”, conhecida em todo o Brasil e, também,
no exterior, com produção acadêmica própria, com uma revista periódica, com uma certa unidade de propósitos, deu-se a
partir deste mês. Horácio Wanderlei Rodrigues, ao contrário, entende ter-se estruturado o movimento já na década de
oitenta, obtendo, entretanto, notoriedade nacional a partir da reportagem mencionada. “Direito com que Direito?”, in
Lições de Direito Alternativo 2, São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, p. 178-207.
169
Esse pedaço de história encontra-se na apresentação ao livro “Lições de Direito Alternativo 1”. Op. Cit., elaborada por
Edmundo Lima de Arruda Jr.
170
Uma breve história sobre essa fase pode ser encontrada no texto “Atuação dos Juízes Alternativos Gaúchos no
Processo de Pós-Transição Democrática (ou uma Práxis em Busca de uma Teoria)”, de Amílton Bueno de Carvalho
publicado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, em Seleções Jurídicas, Seminário Nacional de Direito Alternativo,
1993, p. 29-32.
171
Há um fato histórico muito importante para a compreensão da magistratura brasileira, mas, até o momento, totalmente
esquecido ou escondido. Por volta do ano de 1975, o então magistrado da ativa, hoje companheiro alternativo, João
Baptista Herkenhoff, participava de um Congresso Nacional dos Magistrados. Na sessão plenária do encontro propôs uma
moção, a ser aprovada pelos presentes (juízes, desembargadores e ministros), pedindo, única e exclusivamente, a volta do
Estado de Direito (a expressão Democrático de Direito não foi apresentada). Sua proposta recebeu três ou quatro votos de
apoio, sendo rejeitada pela grande maioria, quase totalidade, dos magistrados presentes, que negaram apoio a um pedido
de restituição à sociedade do sistema jurídico justificador da própria existência dos mesmos, o Estado de Direito.
Com o fim do período militar, teve início o processo constituinte. No estado do Rio Grande
do Sul (o fato também ocorreu em outros estados), a Associação dos Juízes promoveu encontros e
debates para colher sugestões à elaboração da Constituição. Nesses encontros, muitos magistrados
começaram a manifestar seus descontentamentos, frustrações e angústias, pensando, na maioria das
vezes, estarem solitários. Viram, então, com surpresa, existirem muitos outros em situação análoga.
Alguns pontos eram comuns em suas propostas à Assembléia Constituinte, como reforma
agrária e urbana, limitação dos ganhos econômicos e outros temas possíveis, para buscar Justiça
social. Além disso, havia um clima de pessimismo e frustração na magistratura de primeira
instância, em relação à atividade jurídica. Isto devido: 1) ao anacronismo da legislação; 2) à rigidez
processual e a conseqüente ineficácia social da prestação jurisdicional; 3) ao caráter,
exclusivamente, exegético da cultura jurídica dominante, ficando, o julgador, totalmente vinculado
à lei e à jurisprudência dos tribunais; 4) ao total descompasso entre a realidade socioeconômica do
Brasil e o discurso jurídico que, distante e alienado, permitia (como ainda permite) o crescimento da
injustiça social, tratando-a como problema alheio ao seu trabalho; 5) aos mais variados benefícios
usufruídos pelos Tribunais de segunda e terceira instância como: o uso de carros oficiais para fins
particulares, o empreguismo de parentes, isenções fiscais e muitas outras regalias; 6) o descrédito
popular no Poder Judiciário, acarretando perda de legitimidade. Toda essa situação permitiu um
crescente aumento de tensão no ânimo de um número expressivo de juízes, levando-os até a um
grito de denúncia que acabou permitindo a organização do movimento alternativo.
Fora do Rio Grande do Sul houve um congresso nacional, na cidade de Recife,
Pernambuco, também para debater o processo constituinte. Entretanto, foram os magistrados
gaúchos (comuns e trabalhistas) que criaram um grupo de estudos para polemizar as instituições
jurídicas e analisar formas de comprometer o Direito com a construção de uma nova sociedade. As
exigências para um juiz participar do grupo eram apenas duas: no lado ideológico, o socialismo e,
no lado profissional, ser um julgador atuante, ter os serviços rigorosamente em dia, bem como ser
íntegro. Após o artigo jornalístico, o grupo de estudos se diluiu e teve início o Direito Alternativo.
Alguns juristas críticos não-magistrados (como Edmundo Lima de Arruda Júnior, Antônio
Carlos Wolkmer, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Clèmerson Merlin Clève, entre outros) já
falavam de Direito Alternativo no ano de 1987, tendo sido alinhavado um ensaio por Edmundo
sobre o tema, para apresentação no I Seminário Direito e Sociedade, Florianópolis, Santa Catarina,
naquele ano. Ademais, vários juristas apresentavam posições ideológicas em comum em vários
congressos e compartiam o desejo de aproximar a prática jurídica dos movimentos sociais.
Após o episódio com Amílton Bueno, alguns juristas não-magistrados presentes no
congresso da Bahia foram até a cidade de Porte Alegre, onde mantiveram uma aproximação com os
juízes gaúchos, que perdura até hoje. Dessa forma o movimento transcendeu à magistratura e se
estendeu a todos os demais ramos da atividade jurídica, tais como ministério público, advocacia,
ensino (docência e discência), etc.
Em junho de 1991 realizou-se o IV Encontro Catarinense de Estudantes de Direito - ECED
- na cidade de Blumenau, Santa Catarina, tendo como tema central o Direito Alternativo. Em nível
nacional, houve o XIII Encontro Nacional de Estudantes de Direito - ENED -, em Teresina, capital
do Estado do Piauí, no mês de julho de 1991, também centrado no Direito Alternativo. O primeiro
grande impacto nos meios jurídicos brasileiros foi o I Encontro Internacional de Direito
Alternativo, em Florianópolis, Santa Catarina, em setembro de 1991. A previsão de participantes era
de, no máximo, quatrocentas pessoas. Quando se chegou a mil e duzentas inscrições, os
organizadores tiveram que limitar o número de assistentes por falta de espaço físico. Nesse encontro
decidiu-se pela criação de uma comissão central organizadora do movimento, hoje transformada no
Instituto de Direito Alternativo - IDA. Ainda no mesmo ano ocorreram: o I Seminário Cearense
sobre Direito Alternativo, outubro, em Fortaleza, Ceará e o I Fórum Regional sobre Direito
Alternativo, novembro, em Natal, Rio Grande do Norte.
Realizou-se, novamente em Florianópolis, o I Encontro Internacional de Direito
Alternativo do Trabalho, em agosto de 1992, e o II Encontro Internacional de Direito Alternativo,
em setembro de 1993. Em Campinas, São Paulo, em julho de 1992, ocorreu o I Seminário de
Direito Agrário Alternativo. O Seminário Nacional de Direito Alternativo aconteceu no Rio de
Janeiro, em julho de 1993. Em março de 1994, efetivou-se o II Encontro Internacional de Direito
Alternativo do Trabalho, também em Florianópolis, e, em abril de 1994, o I Congresso de Direito
Civil Alternativo, na cidade de Blumenau, SC. Em fins de julho de 1994, agora fora das fronteiras
brasileiras, sucedeu o curso Seguridad Jurídica y Crítica del Derecho en Iberoamérica, na
Universidade Internacional de Andaluzia, na Sede Iberoamericana Santa Maria de la Rabida,
Huelva, Andaluzia, Espanha, com a presença de juristas espanhóis, brasileiros, argentinos,
colombianos, chilenos e mexicanos. Nesse curso, a grande maioria das palestras versou sobre
Direito Alternativo, inclusive houve uma mesa redonda para discutir o tema Função Judicial e
Direito Alternativo, com a presença de dois magistrados brasileiros, Amílton Bueno de Carvalho e o
autor, e dois magistrados espanhóis, Perfecto Andrés Ibáñez e Juan Romeu. Amílton Bueno de
Carvalho participara, no ano anterior, mês de julho, como palestrante convidado, do Workshop “El
papel del Derecho en la post-transición Democrática”, no Instituto Internacional de Sociologia
Jurídica, em Oñati, País Vasco, Espanha. Também esteve presente no seminário Derecho,
Democracia y Cultura Jurídica al fin del Siglo, março de 1995, em Buenos Aires, Argentina,
falando sobre: El papel de los Jueces en la Democracia. No ano de 1992, o autor falou sobre
Direito Alternativo nas Primeras Jornadas Internacionales sobre Derecho de la Integración, na
Universidad Nacional del Noreste, em outubro de 1992, em Corrientes, Argentina. Antonio Carlos
Wolkmer discorreu sobre pluralismo jurídico e Direito Alternativo, no Congresso “Experiencias
Alternativas desde el Derecho. Un diálogo Cuba – Latinoamérica.”, realizado em Havana, em abril
de 1995. Em todos esses congressos estiveram presentes muitos juristas brasileiros e, também, de
outros países, como André-Jean Arnaud (França), Óscar Correas (México), Carlos Cárcova
(Argentina), Victor Moncayo (Colômbia), Perfecto Andrés Ibáñez (Espanha), Roberto Bergalli
(Espanha), entre outros. Houve muitos outros congressos e encontros menores 172, espalhados por
todo o Brasil, sendo impossível citar todos.
Publicaram-se muitos livros como: “Lições de Direito Alternativo 1” e “Lições de Direito
Alternativo 2”, de vários autores; “Magistratura e Direito Alternativo”, “Direito Alternativo na
Jurisprudência”, Amílton Bueno de Carvalho; “Ministério Público e Direito Alternativo”, Antonio
Alberto Machado e Marcelo Pedroso Goulart; “Juiz Alternativo e Poder Judiciário”, Lédio Rosa de
Andrade; “Introdução à Sociologia Jurídica Alternativa”, Edmundo Lima de Arruda Jr.; “Lições de
Direito Alternativo do Trabalho”, vários autores; “Ensino Jurídico e Direito Alternativo”, Horácio
Wanderlei Rodrigues; “Lições de Direito Civil Alternativo”, vários autores; “Razão e Racionalidade
Jurídica”, vários autores; Lições Alternativas de Direito Processual, vários autores, e “Revista de
Direito Alternativo”, semestral, nº 1, nº 2 e nº 3. Todas estas obras foram publicadas pela editora
Acadêmica, de São Paulo, Brasil. Será publicada a seguinte obra: “Reflexões Alternativas sobre o
Direito”, João Baptista Herkenhoff. Também em outras editoras, juristas alternativos publicaram
livros, como “Motivações ideológicas da sentença”, do magistrado gaúcho Rui Portanova, na 2ª
edição, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre; “Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma
nova cultura no Direito”, de Antônio Carlos Wolkmer, Editora Alfa-Omega, São Paulo e “Justiça
Alternativa”, de Elício de Cresci, editora Sérgio Antonio Fabris, Porto Alegre, 1991. Recentemente,
em novembro de 1995, foi publicada a obra “GRAMSCI : Estado, Direito e Sociedade”, organizada
por Edmundo de Lima de Arruda Jr. e Nilson Borges Filho, editora Letras Contemporâneas, onde
alguns textos, sendo um do autor, centram sua atenção também no Direito Alternativo. O
movimento também influenciou alguns autores estrangeiros e já há alguns textos publicados fora
das fronteiras do Brasil sobre – ou influenciado por – Direito Alternativo. O professor Óscar
Correas escreveu “Alternatividad y derecho: el derecho alternativo frente a la teoría del derecho”,
172
Segundo o prof. Edmundo Lima de Arruda Jr, em seu texto “Direito Alternativo no Brasil: alguns informes e balanços
preliminares”, apresentado no Congresso Internacional de Sociologia Jurídica, México, UNAM, em 03-07-92, publicado
in “Lições de Direito Alternativo 2”, p. 159-177, existem no Brasil quase 140 faculdades de Direito, sendo que, nos anos
de 1991 e 1992, mais da metade desses cursos organizaram seminários sobre Direito Alternativo.
publicado na revista Crítica Jurídica, México, nº 13, 1993, p. 51-64. Os professores Joaquín Herrera
Flores e David Sanchez Rubio, de Sevilha, redigiram o trabalho “Aproximación al derecho
alternativo en Iberoamérica”, publicado na revista Jueces para la Democracia, Madrid, nº 3/1993,
vol. 20, p. 87-93. Carlos María Cárcova escreveu o livro “Teorías jurídicas alternativas”, Centro
Editor de América Latina, Buenos Aires, 1993, 134 p. O professor David Sanchez Rubio defendeu
tese do doutorado na Universidade de Sevilha, com o título “Proyección de la Filosofía
Latinoamericana de la Liberación. Aproximación concreta a la obra de Leopoldo Zea y Enrique
Dussel.”, onde dedica boa parte de seu trabalho ao estudo do Direito Alternativo. Ademais, há dois
textos publicados pelo autor: “Brasil: magistratura y Guerra de Posición”, in Jueces para la
Democracia, Madrid, nº 22, 2/1994, p. 108-115, e Dret Alternatiu, Demà, Periòdic per la Revolta,
Catalunha (Barcelona), nº 17, maio de 1993, p. 16-17. Um artigo de Amílton Bueno de Carvalho foi
traduzido e publicado na revista Porta Voz, do Instituto Latino-americano de Serviços Alternativos -
ILSA -, nº 10, julho/agosto de 1994, Colômbia, sob o título “Actuación de los jueces alternativos
gauchos en el proceso de postransición democrática: (o una nueva praxis en busca de una teoría)”.
Criaram-se três disciplinas em universidades sobre Direito Alternativo, uma em graduação,
na Universidade do Sul de Santa Catarina, UNISUL, localizada em Tubarão, SC, hoje desativada
devido ao afastamento temporário do titular (o autor) de suas atividades no magistério e duas outras
em pós-graduação, mestrado, na Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Florianópolis, SC
e especialização, na Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ, Ijuí, RS.
Também há uma outra cadeira sobre Direito Alternativo na Escola da Magistratura do Estado do
Rio Grande do Sul, especializada em preparar futuros magistrados, sendo professor o magistrado
Amílton Bueno de Carvalho.
Atualmente, no Brasil, o movimento de Direito Alternativo é, possivelmente, o pensamento
organizado de maior peso na crítica ao Direito Tradicional, contando com muitos adeptos, inclusive
juízes de segundo grau. É um tema debatido em todas as universidades, congressos e reuniões sobre
Ciência Jurídica. É, sem dúvida, uma forte corrente do Direito Contemporâneo brasileiro.

2. HISTÓRIA IDEOLÓGICA DO DIREITO ALTERNATIVO

Para se poder entender o pensamento alternativo, nada melhor que um estudo dos textos até
o momento escritos173 pelos juristas174 adeptos desse pensamento. De início estudar-se-ão os dois
responsáveis maiores pelo início do movimento. Após, o pensamento dos demais autores, separados
pelo campo de atuação, ou seja, pela profissão. Primeiro os magistrados, seguidos pelos promotores
de justiça, advogados, professores175, estudantes e estrangeiros. Esta separação é meramente
didática, e todos os textos possuem igual valor ao Direito Alternativo.

173
Tendo em vista os inúmeros artigos escritos nos mais variados jornais e revistas de todo o Brasil, para viabilizar o
presente trabalho foram estudados, em relação aos autores nacionais, só os textos publicados na coleção Lições de Direito
Alternativo, na Revista de Direito Alternativo e na revista: Direito alternativo. Seminário nacional sobre o uso alternativo
do direito. Instituto dos Advogados Brasileiros. Fora esses, somente livros foram consultados.
174
Por não ser o movimento alternativo um clube fechado, com sócios identificados com carteira social, muitas vezes
torna-se difícil afirmar ser um jurista membro ou não do movimento. Isso dá-se, por ilustração, com José Eduardo Faria
(brasileiro) e Óscar Correas (argentino) que, inobstante escreverem, constantemente, nas publicações alternativas, não são
membros do Direito Alternativo, entendido como aquele movimento iniciado pelos juízes gaúchos em 1990. O presente
estudo efetua-se, tendo como base todos os trabalhos publicados nos escritos alternativos, sem a preocupação de
identificar o escritor como membro ou não do movimento. O importante é a identidade de objetivos e a nova forma de
pensar e praticar o jurídico.
175
Torna-se difícil qualificar os professores pelo simples fato de quase todos os juristas alternativos exercerem o
magistério. Portanto, qualifica-se de professor aquele profissional com dedicação exclusiva ao ensino, ao professorado,
sem outra atividade laboral.
2.1. Amílton Bueno de Carvalho

Para iniciar a apresentação das bases teóricas dos juristas alternativos, ou seja, pensamentos
e argumentos justificadores de suas ações, em palavras mais precisas, suas ideologias, nada melhor
do que um estudo dos textos de Amílton Bueno de Carvalho, o magistrado responsável pelo início
de todo o movimento. O primeiro de seus escritos ao grande público foi o livro “Magistratura e
Direito Alternativo”, editado em 1992. Trata-se de uma coletânea de artigos anteriormente
publicados, com apenas um inédito. São seus pensamentos iniciais, sem a experiência do
desenvolvimento do próprio movimento, apresentados aos leitores um ano e meio, mais ou menos,
após a reportagem aglutinadora dos então dispersos juristas descontentes com o estabelecido.
A primeira grande questão suscitada pelo pensamento alternativo foi a crítica à neutralidade
da lei, não mais aceitando-se a vinculação obrigatória, fruto do formalismo exegético, do
julgamento dos magistrados às normas jurídicas positivadas. Todo ato de julgar é um ato
ideológico. Amílton parte do conceito de classe social, da tomada do poder por uma delas
(dominante) e da apropriação do aparato legal pela mesma, com o fim de perpetuação no mando.
Para ele, o Direito, visto como lei, nada mais é do que o triunfo da ideologia da classe dominante.
Energicamente, busca desmitificar a neutralidade jurídica, principalmente da norma posta pelo
Estado. “Tenho, pois, que a lei merece ser vista com desconfiança. Deve ser constantemente
criticada sob pena de sermos, Juízes, Promotores e Advogados, agentes inconscientes da opressão.
Inocentes úteis de um sistema desumano.”176
De nenhuma forma defende o total abandono à norma positivada, ao contrário, entende ser
o Direito Positivo uma conquista democrática. Entretanto, denuncia a parcialidade do arcabouço
legal e do parlamento em prol dos interesses da classe dominante, bem como ser a atitude neutral
do magistrado, ou qualquer outro jurista, uma adesão, consciente ou inconsciente, à ideologia
dominante. Assim, “a lei é apenas um referencial, o mais importante, mas apenas referencial.”177
Criticada a lei, afirma dever o magistrado sempre optar pela Justiça. Com isso, admite,
expressamente, a possibilidade do julgador decidir contra a lei, mas, sempre, em favor da Justiça.
Neste ponto surge um grande problema a ser resolvido: qual o conceito de Justiça?
Amílton repete a crítica sobre a neutralidade, afirmando também não existir uma Justiça
neutra. Assim, não aceita qualquer conceito prévio de Justiça, a ser utilizado, genericamente, por
todos os juízes e para todos os casos a serem decididos. Para ele a Justiça só pode ser entendida
frente ao caso concreto, sendo um valor relativo a ser concretizado com fundamento na realidade
vigente e não pode estar apartada das circunstâncias sociais e econômicas vividas pela população de
um lugar específico e num certo momento. Portanto, “é na concretude que deve verificar se ocorre
ou não a justiça.”178
Entende existir, no seio da sociedade capitalista, basicamente duas justiças: uma
comprometida com os opressores (classe dominante) e outra com os oprimidos (trabalhadores e
excluídos), cabendo ao jurista optar por uma delas, seguindo sua ideologia. Aos alternativos propõe
um câmbio de lado, ou seja, parar de praticar a “Justiça” dos opressores, no mais das vezes
representada nas leis, para efetivar a “Justiça” dos oprimidos.
Sobre Justiça, conclui: “Na minha ótica, o justo está no compromisso com a maioria do
povo que, obviamente, na realidade capitalista são os explorados, aqueles que não detêm o poder
real (que está nas mãos dos donos do capital), nem o formal (que está a serviço daqueles).”179

176
CARVALHO, Amílton Bueno de. Magistratura e Direito Alternativo. São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, p. 18.
177
Ibid., p. 19.
178
Ibid., p. 27.
179
Ibid., p. 30.
Como se vê, até este ponto, não se disse nada de filosoficamente novo e, inclusive, pode-se
afirmar tratarem-se de temas discutidos desde a antiga Grécia. Sendo certa essa asseveração, deve
ser indagado, então, porque questões tão antigas, ditas por um juiz de Direito em pleno século XX,
transtornaram a tranqüilidade dos juristas tradicionais, comocionou todos os tribunais do país e
suscitou severas críticas de inúmeros profissionais do Direito, quase todos se auto-intitulando
democratas. Para conservar-se a estabilidade do sistema capitalista liberal, que no campo jurídico se
traduz no paradigma liberal-legal, devem-se manter separadas essas velhas discussões filosóficas
(lei versus Justiça, por exemplo) do cotidiano do mundo dos juristas, principalmente dos julgadores.
Um juiz falar da preponderância da Justiça, em especial quando se refere à Justiça social, sobre a
ordem legal estabelecida é demasiado perturbador para o sistema hegemônico, motivo pelo qual
deve ser imediatamente contido. Esses temas, dizem os positivistas, são só da filosofia e ali devem
ficar restritos. São apartados das faculdades de Direito, dos livros jurídicos importantes e, acima de
tudo, dos corredores dos tribunais, pois não são assuntos dos juristas práticos, essas matérias sem
importância, exclusividade dos eremíticos filósofos. Em assim sendo, o discurso legitimador do
sistema estabelecido é preservado, e a ordem é mantida, não se dizendo, entretanto, tratar-se de uma
ordem que só beneficia os detentores do poder.
No segundo texto de seu livro, Amílton combate a tese de ser conservador todo o jurista.
Admite estarem as faculdades de Direito submetidas ao ensino positivista, meramente descritivo do
arcabouço jurídico, totalmente distanciadas da realidade social, o que acarreta, em corolário, uma
formação jurídica conservadora. Contudo, diz ser possível ao jurista exercer uma atividade de
câmbio radical da sociedade. A esses operadores do mundo jurídico, os chama “Juristas
Orgânicos”180.
A função do jurista orgânico é desmitificar a ordem posta, lutar pela mudança da sociedade,
buscar o justo no caso concreto, contextualizando o jurídico com a realidade
sociopoliticoeconômica. Deve estar integrado às lutas populares.
Assim é seu conceito:
“Tenho que o profissional orgânico do direito é aquele que está permanentemente inquieto
ante a estrutura posta. Sempre e sempre está disposto a criticar (a expressão é utilizada no
sentido que lhe dá Michel Miaille, op. cit181., p. 17: 'A possibilidade de fazer aparecer o
invisível') buscando o que se encontra por trás da realidade aparente.
Mas não só isso: crítica em busca de um direito (e por conseqüência de uma sociedade)
mais justo, mais igualitário, comprometido com a maioria trabalhadora (melhor dito: com
a maioria, eis que hoje grande parte das pessoas sequer empregos logram ter).”182
Em novo texto, Amílton cria um conceito, qual seja, “Jusnaturalismo de Caminhada”.
Apresenta um aparente paradoxo entre a realidade da lei como, basicamente, instrumento de
opressão e a necessidade obrigatória de sua existência em qualquer sociedade. Para resolver o
conflito, propõe uma reflexão sobre a relação da ética com a lei. Por ética entende “uma relação de
comprometimento para com indivíduos e grupos específicos dentro de um projeto para a
humanidade”.183
Partindo do conceito de utopia como busca transformadora do ainda não conquistado em
direção à Justiça social, Amílton, com base na máxima cristã: “vida em abundância para todos”,
que tipo de abundância fala? Esse também é o conceito do utilitarismo. Há que estudar e
apronfundar essa discussão. compreendida não como algo a se ter pós-morte, mas sim agora, a ser
usufruída no transcorrer do processo histórico, busca expressar todos os sentimentos dos oprimidos

180
A origem do termo vem do conhecido conceito elaborado por Antonio Gramsci de “Intelectual Orgânico”.
181
Trata-se do livro intitulado “Uma Introdução Crítica ao Direito”, publicado em português pela editora Moraes, Lisboa.
182
CARVALHO, Amílton Bueno de. Op. cit. p. 36-37.
183
Ibid., p. 57.
na sociedade, a fim de embasar um mínimo necessário como proposta ética para justificar seu
“Jusnaturalismo de Caminhada.”
Sobre o jusnaturalismo, entende existirem vários, como, por exemplo, o cosmológico, o
teológico e o antropológico. Critica a todos, por entender possuírem um vício de partida, de origem,
qual seja, ter fundamento no passado, serem normas preexistentes, ditadas por um sujeito “que se
esconde atrás de Deus, da ordem cosmológica ou da natureza racional do homem”.184 Assim,
apresenta o jusnaturalismo de caminhada, ou dialético, ou de superação, ou de movimento. A união
da utopia vida em abundância para todos, com o jusnaturalismo resulta em Direitos Naturais
definidos pelo homem, em seu momento histórico, como os melhores para a humanidade.Quem
elege o que é Direito Natural? Qual o processo? Não se pode esperar que todos os seres humanos
sejam bons e tenham um compromisso com essa ética. E a mídia, os processos de manipulação de
massa na escola e todos os defeitos do sistema representativo. Há que aprofundar o caso. Ademais,
é possível mudar a sociedade dentro desse sistema jurídico, mesmo trocando-se de lado em favor
dos oprimidos? Pode-se alcançar hegemonia? O resultado será a troca de bloco histórico? Deseja-se
trocar o bloco histórico?
A lei deve ser a positivação dessas utopias, não como algo definido e eterno, mas para ser
superada por novas conquistas. Elevar à condição de lei o sonho do povo é importante, mas a luta
pela concretude dessas normas também é fundamental. Com a lei há, segundo ele, uma relação de
ódio (destruí-la, superá-la) e amor (utopia elevada à condição de norma).
No texto seguinte, busca demonstrar a visão de um juiz de primeira instância sobre a
relação entre sua função e mudança social. Falando sobre si, diz: “apresentarei a visão de um Juiz
que pensa estar comprometido com a transformação do modelo social vigente no país e direcionado
à prática da função.”185
Diferencia o magistrado tradicional, entendido como o profissional que trabalha para a
manutenção do status quo e o magistrado orgânico, que atua para a transformação da sociedade.
Volta à crítica ao positivismo jurídico, ao legalismo, à neutralidade jurídica e ao distanciamento do
magistrado da realidade da população, pregando uma prática inversa, de aproximação juiz-povo, de
criação judicial para praticar o justo no caso concreto.
Como fatores responsáveis pela alienação dos julgadores, aproveitando estudos de outro
magistrado, Márcio Puggina apresenta a trilogia da alienação, representada pelos fatores: excesso
de trabalho, mito da neutralidade e disciplina denominada deontologia do magistrado.
Reafirma, em várias oportunidades, dever o jurista orgânico estar ao lado, sempre, da parte
mais débil, ou seja, a maioria do povo, a classe trabalhadora. Antes de adentrar na análise
jurisprudencial186, afirma: “Lei, doutrina e jurisprudência continuaram elementos importantes,
referenciais, fontes de procura, mas deixaram de ter cunho de dogma e passaram a sofrer crítica
constante.”187 Retomando a discussão sobre lei, com fundamento em Poulantzas e Althusser, afirma:
“a lei não é neutra, nem representa necessariamente uma concretização da Justiça, pois ela está
umbilicalmente ligada aos interesses da classe que a produziu.”188 Não considera, entretanto, a lei
um mal em si, pois lhe crê possível a positivação das conquistas sociais em direção à utopia já
mencionada, de vida em abundância para todos.
Analisa alguns versículos do Gênesis, onde compara Deus ao poder opressor, o humano ao
povo e a serpente ao sujeito subversivo.
No último texto do livro, apresenta um primeiro conceito sobre Direito Alternativo.

184
Ibid., p. 57.
185
Ibid., p. 62.
186
Neste e nos textos anteriores, Amílton efetua análise de jurisprudência. O assunto será estudado no próximo capítulo,
item III.a. “Jurisprudência Alternativa.”
187
CARVALHO, Amílton Bueno de. Op. cit., p. 67.
188
Ibid., p. 80.
“Pode-se designar Direito Alternativo, em sentido amplo, como atuação jurídica
comprometida com a busca de vida com dignidade para todos, ambicionando
emancipação popular com abertura de espaços democráticos, tornando-se instrumento de
defesa/libertação contra a dominação imposta.
Assim, tenho que a expressão correta é mesmo Direito Alternativo (e não uso do direito)
posto que representa opção contra o usual predominante. O direito que vigora busca
perpetuar a dominação, enquanto a alternatividade é o outro lado da moeda: luta pela
emancipação da maioria da população. É alternativa contra a opressão que o jurídico tenta
(e tem conseguido) impor.”189
O conceito trata do Direito Alternativo em sentido amplo, o que acarreta aceitá-lo também
em sentido restrito. E assim é, pois expõe uma divisão do conceito em uso alternativo do Direito e
Direito Alternativo em sentido restrito. O primeiro tem por base um movimento jurídico italiano190.
Trata-se de uma atuação dentro do sistema jurídico posto, das normas positivadas. O jurista
alternativo, no processo hermenêutico, busca ampliar os conceitos das normas com cunho
democrático, tenta aproveitar as contradições, ambigüidades e lacunas do sistema jurídico, em prol
das classes populares. É um processo de interpretação diferente, mas dentro da legalidade instituída.
Pela primeira vez usa o termo positivismo de combate191. O segundo, sob a ótica do pluralismo
jurídico, é uma verdadeira alternativa ao Direito Oficial. “Este direito concorrente, paralelo, achado
na rua, emergente, insurgente, é construído pela população na sua caminhada libertária. É a
participação da comunidade na busca de solução a seus problemas, mesmo em conflito com o
direito estatal. É o povo construindo seus direitos. Aqui a atuação é no plano do instituinte.”192
Termina o livro argumentando dever o juiz alternativo usar alternativamente as normas, de
forma constante, sempre que possível, favorecendo a maioria da população, ou seja, os pobres. Em
não sendo possível, para não consumar uma injustiça no caso concreto, deve romper com a
legalidade para materializar a Justiça, pois a brutal realidade socioeconômica do Brasil assim
autoriza. Assevera existirem muitos julgamentos contra a lei, sempre para favorecer os fortes.
Então, o contrário deve ser feito. O juiz, segundo ele, deve ter liberdade de julgar (na maioria das
vezes relegada pelo juízes por medo ou comodismo), sem significar voluntarismo, ou seja, julgar
sem parâmetros, a seu juízo pessoal. Os parâmetros são critérios concretos, contextualizados
historicamente e orientados pelos princípios universais e gerais do jurídico, respeitando-se os
Princípios Gerais do Direito. Termina falando das conquistas da humanidade erigidas na condição
de jusnaturalismo de caminhada.
Essa obra de autoria do juiz Amílton representa uma tentativa de construção de suportes
teóricos, para dar apoio a um movimento jurídico que se iniciou pela prática de magistrados e sem
uma teoria definida, mas com grande força fática, influenciando decisões em todo o país. E, muito
importante, com um poder aglutinador intenso, capaz de unir em um movimento organizado juristas
de várias categorias profissionais e de ideologias distintas, mas todos com alguns pontos em
comum, quais sejam, entre outros: o descontentamento com a ordem socioeconômica do país, com a
atividade conservadora do Poder Judiciário e com a ideologia positivista do Direito; o entendimento

189
Ibid., p. 89.
190
O tema será estudado no capítulo IV.
191
Em carta remetida ao autor em 20 de abril de 1995, Amílton Bueno de Carvalho assim manifestou-se sobre esse
conceito: “Mas acho que há erro no termo positivismo de combate. Já mudei. Falo em 'positivação combativa'. É que o
positivismo, por se dizer neutro, jamais pode ser combativo. Logo, há contradição na expressão 'positivismo de combate'.”
192
CARVALHO, Amílton Bueno de. Op. cit. p. 90. Amílton usa deliberadamente os vários adjetivos para caracterizar o
Direito Alternativo restrito, isso para tentar unir várias correntes de juristas progressistas existentes no Brasil, como o
trabalho de assessoria jurídica popular liderado pelo advogado Miguel Pressburguer, no Rio de Janeiro, intitulado “Direito
Insurgente”, ou o trabalho teórico realizado por José Geraldo de Souza Júnior, na Universidade de Brasília, UnB, em
Brasília, chamado “Direito Achado na Rua”, entre outros.
de ser uma falácia, a neutralidade jurídica; a crença na necessidade de contextualizar o jurídico com
processo histórico, político, econômico e social; a vontade de lutar por mudanças sociais, sempre
em favor das classes excluídas ou menos favorecidas.
Na mesma época dos textos até agora analisados, Amílton escreveu o artigo intitulado “Lei
nº 8.009/90 e O Direito Alternativo”193. A norma em questão trata da ampliação dos bens
impenhoráveis já previstos no Código de Processo Civil. Foram introduzidos à lista o imóvel
residencial próprio do casal ou entidade familiar, todas as benfeitorias edificadas, seus
equipamentos e móveis que o guarnecem, excetuando-se veículos de transporte, obras de arte e
adornos suntuosos.
Já na introdução, Amílton elabora uma afirmação hoje de grande importância para os
magistrados alternativos, qual seja, de sua responsabilidade ética pela tomada de decisões e pelas
conseqüências que possam advir, quando da solução de conflitos em que interesses antagônicos, no
mais das vezes de classe, se digladiam. Assim, acaba-se com a falsa neutralidade do julgador.
Retoma a análise sobre o uso alternativo do Direito segundo a forma européia, diferenciando-o do
modelo brasileiro, pois no primeiro se impunha um limite: “não ultrapassar o sistema em sua
legalidade.”194, enquanto no segundo, devido à cruel realidade da população, não se admite tal
limite, sendo necessário, algumas vezes, romper com a própria legalidade.
Em relação à Lei nº 8.009/90, por defender direitos dos devedores, entende ter sido
consagrado o princípio de Direito Alternativo de proteção ao pobre, incorporando-se ao Direito
Positivo proteção à vida digna para todos. Portanto, na Justiça comum (civil), deve o jurista
alternativo “travar autêntica guerrilha interpretativo-retórica”195, para possibilitar sua efetivação,
pois os juristas conservadores, tradicionalmente ao lado dos fortes, tudo farão para restringi-la. O
conceito de vida digna deve ser entendido de forma ampla, aumentando-se, no possível, a lista de
bens impenhoráveis. Mesmo admitindo que os processos civis, quase com exclusividade, dizem
respeito à classe média, pois os pobres estão excluídos dessas demandas, diz ser importante a defesa
da lei, pois o credor, normalmente, é a parte rica.
Já em relação à Justiça do Trabalho, tendo em vista a inversão das partes (o credor é o
trabalhador, e o devedor, o empregador sonegador dos direitos trabalhistas), defende a não-
aplicação da lei, ou sua aplicação restrita. Sobre a aparente contradição dessas propostas, finaliza
escrevendo:
“Ambas posturas, embora apresentem-se incoerentes no plano do formal, representam, na
verdade, a concretização maior da própria coerência. Não a coerência da forma, mas de
fundo, ou seja: compromisso com determinada classe. É simplesmente outra coerência,
mais forte (ao ponto de emergir até do inconsciente), que vem não da lei como
instrumento formal, mas sim de um compromisso utópico-ideológico (que tipo de
sociedade ambiciona o intérprete?).”196
Repisando no conceito de utopia como vida em abundância para todos, Amílton apresenta
em seu texto “FLEXIBILIZAÇÃO X Direito Alternativo”197 alguns avanços em seu pensamento.
Aparece pela primeira vez a expressão “sociedade socialista democrática” ao se manifestar sobre
Direito Alternativo. “O movimento Direito Alternativo, na realidade brasileira atual, caracteriza-se

193
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de, Tarso Fernando Genro, Antonio Carlos Wolkmer et al. Lições de direito
alternativo 1. 2ª edição, São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, p. 53-70. Esse livro teve um grande sucesso de vendas. A
primeira edição, de dois mil exemplares, esgotou-se, mais ou menos, em apenas 30 dias.
194
Ibid., p. 57.
195
Idib., p. 64.
196
Ibid., p. 69-70.
197
ARRUDA JR, Edmundo Lima de. Aires Rover, Amílton Bueno de Carvalho et. al. Lições de direito alternativo do
trabalho. São Paulo, Editora Acadêmica, 1993, p. 75-80.
pela busca de um instrumental prático-teórico destinado a profissionais que ambicionam colocar seu
saber/atuação na perspectiva de uma sociedade socialista democrática.”198 Não há, entretanto,
maiores detalhes sobre o significado de socialismo democrático.
É apresentada uma nova divisão do movimento, agora em três partes: a) uso alternativo,
com origem na magistratura italiana, já visto, de efetivação de uma hermenêutica crítica, pró-
trabalhadores, das normas instituídas; b) positivismo de combate, ou seja, a luta pela efetivação de
toda norma jurídica de cunho popular ou que represente conquistas da maioria da população e c)
Direito Alternativo em sentido estrito, com o mesmo conceito já apresentado.
Para superar as críticas efetuadas ao movimento de liberdade total do julgador, é
apresentado um limite à sua atuação, qual seja, os Princípios Gerais do Direito. Sobre o tema
assevera: “e o limite (conteúdo racional) para violação de leis injustas, ou justas que na concretude
levem à injustiça, está nos princípios gerais do Direito, princípios definidos e conquistados pelo
homem historicamente localizado.”199
Sobre a flexibilização, diz existir um ponto em comum entre seus defensores e os juristas
alternativos, ou seja, ambos repudiam o legalismo jurídico. No plano ideológico, entretanto, estão
em lados antagônicos, pois os primeiros defendem os fortes, empresários, baseados na mística do
livre mercado como regulador natural da economia, enquanto os segundos lutam pelos
trabalhadores, para ampliar seus direitos, com uma visão socialista democrática da sociedade.
No tocante aos direitos dos trabalhadores, entende tratarem-se de conquistas da
humanidade, algo já consumado na história, não se admitindo retrocesso. Portanto, há de se
combater a flexibilização, pois pretende tão-só restringir os direitos dos obreiros. De fato, afirma,
sempre existiu flexibilização dos direitos laborais, pois a realidade é repleta de sonegação dos
mesmos. Na prática, a flexibilização deve ser combatida, no campo teórico não pode ser admitida.
No mês de julho de 1993, Amílton Bueno de Carvalho apresentou trabalho no Workshop
“El papel del Derecho en la post-transición Democrática”, no Instituto Internacional de Sociologia
Jurídica, em Oñati, Espanha200, quando elaborou uma autocrítica do movimento e reconheceu tratar-
se, naquele momento, de uma práxis em busca de uma teoria. Sua análise da atuação do movimento
alternativo foi muito interessante e merece ser reproduzida em síntese.
Primeira fase: infância. De formação positiva legalista, os magistrados viviam a contradição
entre esta e o resultado de seu labor, ineficaz perante a vasta injustiça social. Com excelente
capacitação técnica, uma produção de julgamentos alta e com uma postura ética inabalável, esses
juízes viram todos seus esforços serem atirados no vazio, pois o sistema de dominação e
perpetuação da miséria continuava, como sempre, sólido. Tinham com os Tribunais uma relação
pai/filho. O pai elogiava, punia e promovia seus filhos. Estes buscavam imitar/agradar o genitor,
copiando suas decisões.
Adolescência. Momento de descoberta das falácias de sua própria formação positivista, bem
como de estarem atuando contra o que desejavam e em favor das classes dominantes. Tomaram
conhecimento, também, da existência de outra forma de ver, estudar e aplicar o jurídico. Foi uma
ocasião de revolta e beligerância. Criaram dogmas e agiram sobmetidas a eles. Tentaram matar o
pai-tribunal, negando toda a jurisprudência ali produzida. Dicotomizaram o mundo, de forma
maniqueísta, entre ricos e pobres. “A tendência era decidir em favor dos pobres, tão-só pelo fato
pobreza. Era algo dogmático. Houve troca de dogma da legalidade estreita pelo da pobreza. Tudo
era questão de declaração de renda: litígio entre locador e locatário as decisões seguiam na proteção
do locatário tão-só pelo fato de se originar como o 'fraco na lide contra o forte'.”201

198
Ibid., p. 75.
199
Ibid., p. 76.
200
O estudo foi publicado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, FARIA, José Eduardo. T. Miguel Pressburger,
Edmundo Lima de Arruda Jr., et al. Direito alternativo. revista Seleções Jurídicas, Seminário Nacional de Direito
Alternativo, 1993, p. 29- 32.
Momento atual. Não foi denominada de adulta por falta de certeza se o movimento já
atingiu esta maturidade. Após muitas reflexões e autocríticas, abandonam-se os novos dogmas.
Com a realidade presente, busca-se laborar não por revolta, ou para destruir o pai, mas em busca de
Justiça. “O atuar não pode, portanto, deixar de levar em conta a base material de onde emerge o
sujeito de Direito. A técnica do juiz brasileiro tem que atentar para isso, sob pena de a atuação
salvar o tecnicismo e enterrar as pessoas.”202 Agora não se trata de atuar só pelo mais fraco, sempre
a favor do pobre, pois, “muitas vezes o aparente oprimido tem comportamento eticamente
deplorável agredindo os princípios gerais do direito.” 203 Um novo paradigma de justificação da
atividade alternativa substituiu o dogma sempre em favor do mais débil.
“O limite de atuação passou a ser outro, ultrapassando a legalidade estreita, para alcançar
os princípios gerais do direito do mundo civilizado (aqui se incluindo os direitos
humanos).

E estes princípios são tidos como históricos, construídos pela sociedade civil na sua
caminhada em busca da utopia vida em abundância para todos. Estes princípios servem de
norte interpretativo de todo o fenômeno jurídico e dão conteúdo racional ao ato
decisório.”204
O fato de admitir erros e buscar corrigi-los é atitude dialética e demonstra a seriedade do
trabalho de Amílton Bueno de Carvalho.
Seu trabalho mais recente foi publicado como introdução à coleção (da qual é diretor)
“Direito Alternativo na Jurisprudência”. Efetua uma análise mais aprofundada de alguns conceitos
já apresentados. De início afirma ter o movimento suas origens na América Latina, na luta em
defesa dos Direitos Humanos e na resistência aos regimes militares ditatoriais.
Para rebater as constantes críticas difundidas por juristas conservadores contra o Direito
Alternativo, no mais das vezes improcedentes, pois acusam o movimento com base em afirmativas
que lhes são estranhas, demonstra “o que não é Direito Alternativo.” Não é, por exemplo, um
movimento de negativa à lei. “A lei escrita é conquista da humanidade e não se vislumbra
possibilidade de vida em sociedade sem normas (sejam elas escritas ou não).”205 Isso não significa,
entretanto, aceitar o legalismo estreito. A legalidade, ou positividade, deve emergir de princípios, e
estes são o suporte interpretativo do operador jurídico. A lei contrária aos Princípios Gerais do
Direito perde sua finalidade/legitimidade, sendo correto (justo) ao julgador, diante desta situação,
negá-la. Esses princípios são norteadores universais construídos pela humanidade (como o direito à
vida, à liberdade), mas não possuem caráter eterno nem absoluto e, sim, histórico.

201
CARVALHO, Amílton Bueno de. Atuação dos juízes alternativos gaúchos no processo de pós-transição democrática
(ou uma práxis em busca de um teoria). in FARIA, José Eduardo. T. Miguel Pressburger, Edmundo Lima de Arruda Jr.,
et al. Direito alternativo., Op. cit., p. 30.
202
Ibid., p. 31.
203
Ibid. Sobre esse tema, já em 1992, o autor buscou demonstrar o equívoco do dogma julgar sempre em favor do pobre:
“Essa perspectiva de julgamento não significa, como será visto adiante, vitória automática da parte pobre na lide jurídica.
Não se trata de julgar, necessariamente, a favor do desfavorecido, mas de considerar estar, o juiz, no julgamento,
colaborando para melhorar a sociedade, ou para preservá-la e às suas mazelas.” (...) “Essa prática alternativa não deve
servir apenas para possibilitar vitórias isoladas a algumas pessoas. Isso porque não se está a apregoar a vitória nas
demandas jurídicas só às partes pobres, independente do direito pleiteado. Quando uma delas objetivar uma mudança
individual de classe, para possibilitar sua passagem, mesmo em se tratando de um miserável, da qualidade de oprimido
para a de opressor, não deve receber, por certo, o apoio do magistrado alternativo. Não. Trata-se, como já visto, de um
processo global, perseguindo a totalidade, na busca de hegemonia. É, pois, um contradiscurso ao Direito oficial. Tenta-se
edificar uma nova Ciência Jurídica.” ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz alternativo e Poder Judiciário. São Paulo, Editora
Acadêmica, 1992, p. 89 e 110.
204
Ibid.
205
CARVALHO, Amílton Bueno de. Direito alternativo na jurisprudência. São Paulo, Editora Acadêmica, 1993, p. 8.
Quanto ao Direito Alternativo em sentido estrito, reconhece existir, dentro do pluralismo
jurídico, vários direitos “alternativos”, inclusive alguns terríveis, como o dos traficantes ou o
praticado nas prisões. Demarca, entretanto, as diferenças.
“Na verdade, o 'direito alternativo em sentido estrito' que se busca dar efetividade é aquele
que resume conquistas democráticas, que ambiciona uma sociedade mais igualitária (e por
conseqüência mais justa), que tem por finalidade estabelecer o poder criador do direito
pela sociedade na busca da superação da opressão/dominação, tendo como horizonte a
utópica vida digna e em abundância para todos. O 'alternativo sentido estrito' que gera
dominação merece o mesmo repúdio do oficial que obedece os mesmos contornos.”206
Em seu último escrito207, afirma ser o Direito Alternativo um movimento e não uma teoria
(ao menos por agora), com o objetivo de dar conta do fenômeno jurídico. Esse movimento,
assevera, “se caracteriza pelo busca (desesperada e urgente) de um instrumental prático-teórico
destinado a profissionais que ambicionam colocar seu saber/atuação na perspectiva de uma
sociedade radicalmente democrática.”208 Deseja colocar na vida real, nos litígios forenses, todo o
conhecimento teórico-crítico elaborado por juristas de esquerda, quase sempre distante do cotidiano
do mundo do Direito. Busca uma interligação entre os teóricos críticos e os técnicos da Ciência
Jurídica, para possibilitar a construção de uma teoria, efetivamente, latino-americana. Coloca a
democracia substancial como o escopo do movimento.

2.2. Edmundo Lima de Arruda Jr

Outro membro destacado do movimento, a merecer estudo individualizado, é o professor de


graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal de Santa Catarina,
Edmundo Lima de Arruda Jr. Teve papel preponderante na organização dos Encontros
Internacionais de Direito Alternativo, como em muitos outros. Organizou a coleção “Lições de
Direito Alternativo” (dois volumes), e vários outros livros sobre o tema. Seu primeiro trabalho
publicado sobre Direito Alternativo está no volume 1 da coleção acima mencionada, com o título
“Direito Alternativo - Notas Sobre as Condições de Possibilidade”209.
Na introdução efetua uma afirmação sobre a atuação de alguns operadores jurídicos,
principalmente magistrados, iniciadores do movimento alternativo, de crítica à lei e exaltação da
Justiça, ou seja, um retorno ao jusnaturalismo.
Faz uma distinção entre os “juristas do status quo”, a quem chama de leguleios, intelectuais
orgânicos do bloco histórico dominante, ventríloquos do poder instituído, politicamente
reacionários e juridicamente positivistas, e os juristas alternativos, comprometidos com a mudança
de bloco histórico210.
Efetua duas análises sobre o Direito Alternativo.

206
Ibid., p. 15.
207
“Direito Alternativo e Processo”, in RODRIGUES, Horácio Wanderlei Rodrigues (org.) Amílton Bueno de Carvalho,
Antonio Cláudio da Costa Machado, et al. Lições alternativas de direito processual. São Paulo, Editora Acadêmica, p. 9-
17.
208
Ibid. p. 10.
209
ARRUDA JR., Edmundo Lima de, Tarso Fernando Genro, Antônio Carlos Wolkmer, et al. Lições de Direito
Alternativo 1. 2ª ed., São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, p. 71 a 98.
210
Ao contrário de Amílton Bueno de Carvalho, mais pragmático e menos teórico, Edmundo Arruda, um professor de
universidade, voltado, em grande parte, para a atividade acadêmica, utiliza uma linguagem mais científica, repleta de
categorias e conceitos elaborados por grandes pensadores, como Marx, Gramsci e outros.
A primeira diacrônica, referente às condições de saída do uso alternativo. Apresenta como
fatos relevantes para o surgimento de um movimento problematizador do mundo jurídico, a crise211
do capitalismo, o paroxismo da crise nos países periféricos e a percepção da crise pelos agentes
jurídicos (em sentido lato, instituições e operadores).
A segunda refere-se às condições de produção e de reprodução do uso alternativo do
Direito. É uma análise sincrônica. Coloca como centro de discussão a relação entre Direito e
sociedade em face da democracia. Vê o Direito vinculado à luta de classes, como um fenômeno
histórico que acompanha o desenvolvimento das relações de produção. Entretanto, reconhece, por
não compartir o pensamento economicista, “que o 'sistema jurídico', enquanto arcabouço técnico,
não se subordina, de forma imediata e mecânica, aos movimentos da infra-estrutura, não estando,
contudo, imune aos mesmos.”212 Para ele, os defensores da alternatividade jurídica possuem, em
grande parte, o marxismo como referencial para a compreensão do fenômeno jurídico.
Compartilha do pensamento de Amílton, de não se esperar uma revolução via Direito, mas
entende ser a instância jurídica um importante campo de luta para consegui-la, não podendo ser
abandonada à burguesia.
Não crê ser correta, por inexistir nos países periféricos um estado de Direito mínimo, a
denominação “uso alternativo do Direito”.
“Desta maneira, vê-se claramente que a expressão 'uso alternativo do direito', que significa
a utilização teórico-prática das categorias criadas pela intelligentsia dominante, assim
como das lacunas e contradições internas do sistema jurídico-burguês, bem como dos
espaços conquistados pela classe subalterna, não é apropriável in totum na periferia. Isto
porque a 'legalização da classe trabalhadora' é marcada por voluntária precariedade.
Com efeito, na periferia pode-se utilizar mais apropriadamente a expressão direito
alternativo, que aproveita tanto o direito paralelo, direito insurgente, principalmente, como
o direito dos trabalhadores já alçados à legalidade estatal. Para ser mais preciso, a
expressão menos ambígua seria simplesmente 'uso do direito', esteja ele no plano do
'instituinte' (movimento dos sem-terra, movimento sindical, movimentos associativos,
etc.) ou esteja no plano do 'instituído'.”213
O uso do Direito, afirma, é uma prática a ser utilizada por todos os tipos de juristas
(magistrados, promotores de justiça, advogados, professores, estudantes, etc.) comprometidos com
um projeto social democrático, entendido como sinônimo de socialismo. Trata-se de uma prática
revolucionária, ou seja, revolução processual ou guerra de posição. Não é de ser descartado,
entretanto, o “momento explosivo”, pois a burguesia, segundo seu ponto de vista, não recuará diante
dos movimentos sociais e não permitirá o “próximo ato de democracia, o socialismo.”214
Aceita e utiliza, com freqüência, o conceito elaborado pelo pensador Carlos Nelson
Coutinho de “reformismo revolucionário”.
Diferencia o “uso alternativo do Direito” (europeu) do “uso do Direito” (latino-periférico),
pois o primeiro, dentro da ordem jurídica instituída, coloca o juiz como protagonista da Justiça,
enquanto o segundo, dentro da ordem instituída, mas também fora dela, coloca como protagonista a

211
A idéia de crise é constante em quase todos os textos de Edmundo. Fala de crise do capitalismo, crise do liberalismo,
crise do paradigma liberal-legal, crise do Poder Judiciário, crise da Justiça, crise de identidade, crise de legitimidade,
enfim, crise relativa a toda ordem capitalista.
212
ARRUDA JR., Edmundo Lima de, Tarso Fernando Genro, Antônio Carlos Wolkmer, et al. Lições de Direito
Alternativo 1. Op. cit., p. 86.
213
Ibid., p. 92-93.
214
Ibid., p. 97.
própria comunidade. “Acreditamos num novo iluminismo, negador da barbárie e afirmador do
socialismo, radicalização da democracia.”215
Edmundo participou do Congresso Internacional de Sociologia Jurídica, México, UNAM,
no mês de julho de 1992, onde apresentou alguns informes e balanços216 sobre o movimento Direito
Alternativo. A exemplo de Amílton, Edmundo Arruda, ratificando o espírito aberto dos juristas
alternativos, também elabora uma autocrítica, demonstrando algumas falhas do movimento, com o
propósito de superá-las. São, em essência, duas: a falta de maior elaboração teórica e a falta de
crítica “intradogmática jurídica”.
A primeira dá-se pelo engajamento dos alternativos na militância, o que lhes retira tempo
para a prática teórica-acadêmica. Ademais, há um fator que bloqueia os possuidores de tempo, ou
seja, a crise do marxismo nos meios intelectuais e a atitude ortodoxa marxista da militância
(sindicatos, partidos, movimentos sociais organizados), com postura determinista economicista, ou
voluntarista, com o conseqüente desprezo da esfera jurídica.
A segunda é uma espécie de repulsa ao Direito Positivo ou à dogmática. Nesse ponto, anota
uma diferença entre dogmática e dogmatismo, alegando serem as normas vigentes, não só uma
construção do capitalismo, mas, também, resultado de amplas lutas dos trabalhadores. Os poucos
escritos alternativos cingem-se a uma sociologia jurídica externa ao Direito. Recomenda estudos
teóricos mais específicos, intradogmáticos, como de Direito Comercial, do Trabalho, Civil, etc.217.
Sobre os usos do Direito, apresenta a seguinte tipologia: a) Plano do instituído sonegado.
Normas legais prevendo direitos aos trabalhadores, mas não efetivadas; b) Plano do instituído
relido. Espaço para a hermenêutica, não só dos magistrados, mas de todos os juristas. Com o
esgotamento do paradigma liberal legal, existe maior flexibilidade de interpretação e aplicação das
normas jurídicas e c) Plano do instituinte negado. Agora na ótica do pluralismo jurídico, o
entrechoque entre Direito Oficial (produzido pelo Estado) e Direito Popular (construído pelos
movimentos sociais). Trata-se de um lugar não exclusivo dos juristas, mas de toda a comunidade.
Quanto aos objetivos do movimento, escreve:
“Pode parecer reacionário e despropositado, mas acreditamos que temos que investigar
com mais atenção a democracia enquanto construção processual, posta a impossibilidade
de guerra de movimentos, e, se possível, pouca possibilidade de garantia da própria
democracia post factum revolucionário, posto que sem cultura democrática qualquer
socialismo tem indicado autoritarismo. O direito é parte deste projeto democrático. Isso
precisa ser pensado pelas esquerdas, seriamente. A construção das bases de um socialismo
democrático (com perdão da redundância mais elementar) não parece indicar a espera de
um momento explosivo. O direito novo não nascerá (quem garante?) após o último
estampido revolucionário. Tal construção começa no seio da sociedade que se quer negar,
transformando-a numa processualidade que envolve vários campos de lutas
institucionais.”218

215
Ibid., p. 98.
216
Trabalho intitulado “Direito Alternativo no Brasil: alguns informes e balanços preliminares”, publicado in Lições de
Direito Alternativo 2., Op. cit. p. 159-177.
217
Este problema inicia-se a ser resolvido com a publicação dos livros “Lições de Direito Civil Alternativo” e Lições de
Direito Alternativo do Trabalho”, ambos pela Editora Acadêmica.
218
ARRUDA JR. Edmundo Lima de, Tarso Fernando Genro, João Batista Moreira Pinto, et al. Lições de Direito
Alternativo 2. Op. cit., p. 173.
Essa prática de revolução passiva219 na esfera jurídica não pode pretender — conforme
deixa claro no texto “Reflexões sobre um ensino jurídico alternativo” 220, por ser pretensão
demasiado ingênua e voluntarista — hegemonia alternativa entre os juristas. Deseja, isso sim,
ampliar os espaços de luta, para conseguir a hegemonia (socialista) em outras esferas da sociedade
civil. Seu pensamento encontra-se bem sintetizado no seguinte trecho:
“O que se quer é ampliar os espaços de luta, possibilitando a formação jurídica articulada
dentro de um horizonte não fundado no ideário conservador burguês (a mobilidade a
qualquer custo, a perspectiva individualista egoísta), mas comprometido com a construção
de uma democracia não meramente formal, mas real, com ampliação das conquistas
populares e com a formulação/implementação de um novo projeto de sociedade, de base
socialista. Isso deve ficar claro pois não se trata de namorar a sociedade capitalista (o que
dela há de bom...) como paradigma único pós-ruína do muro de Berlim. Muitos
intelectualóides apressados já se arvoram ventríloquos dessa 'razão democrática' do
mercado, do Capital...”221
Sobre a queda do muro, ou o fim dos sistemas comunistas (reais) do leste europeu, entende
tratar-se da crise dos positivismos. Igualmente à vertente liberal-legal européia, ou a kelseniana-
tupiniquim (brasileira), o legalismo socialista (positivismo de esquerda) entrou em crise e
demonstra a deslegitimação dos imperialismos hegemônicos (EUA, URSS e seus satélites no
Norte), o que legitima, ainda mais, o Direito Alternativo.222

Em seu livro “Introdução à Sociologia Jurídica Alternativa”,223 Edmundo apresenta alguns


pontos para discussão em busca de uma sociologia jurídica alternativa. Inicia, admitindo a crítica de
alguns autores sobre a divisão da sociologia em partes autônomas especializadas. Aceita, entretanto,
a necessidade de uma autonomia institucional, metodológica, teórica, epistemológica, motivo pelo
qual defende uma sociologia alternativa (autônoma e especializada), mas não com caráter autônomo
absoluto à sociologia geral. Para ele o saber não possui fronteiras, e o estudo deve ser
interdisciplinar.
Não se pode dicotomizar - como faz Kelsen - o dever ser do ser, pois deve-se ser, sendo. O
alternativo é, claramente, uma alternativa política, e suas críticas não devem questionar o Direito
Dominante posto como “O Direito”, mas, isso sim, como um Direito ditado por uma minoria em
nome da maioria. Assim, a sociologia jurídica alternativa possui alguns pressupostos: a) propõe-se

219
Edmundo Arruda dá muita importância a essa prática (revolução passiva), recomendando-a, inclusive, nos serviços
forenses relativos à Justiça especializada do trabalho, mesmo entendendo ser o Direito do Trabalho um Direito do capital.
Ver “Advocacia trabalhista popular: apropriação ou hegemonia?”, in ARRUDA JR., Edmundo Lima de (org.), Aires
Rover, Amílton Bueno de Carvalho, et al. Lições de Dieito Alternativo do Trabalho. Op. cit., p. 152-164.
220
Publicado in CARVALHO, Amílton Bueno de. (org.) Revista de Direito Alternativo, nº 1, São Paulo, Editora
Acadêmica, 1992, p. 57-64.
221
Ibid., p. 60-61.
222
Ver “Direito Alternativo - Notas sobre as condições de possibilidade”. Op. cit. p. 77.
223
ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Introdução à sociologia jurídica alternativa. São Paulo, Editora Acadêmica, 1993,
195 p. Inobstante o título dar a entender tratar-se de uma obra específica de sociologia jurídica (nas mesmas condições de
inúmeros trabalhos sobre Introdução ao Direito, Introdução à Ciência Jurídica, Introdução à Sociologia, etc...), em
realidade trata-se de uma coletânea de artigos já publicados, muitos com conteúdos autônomos, sem inter-relação com os
demais capítulos (textos). Isso pode frustrar o leitor ávido de um estudo específico de sociologia, pois os temas
sociológicos não se encontram perfeitamente delimitados. Ademais, há problemas específicos, como, por exemplo, o
capítulo 4, p. 46-68, intitulado “Perfil Sociológico do Judiciário no Brasil: ou dos Limites e Alcances da Justiça de Classe
sob o Liberalismo-Legalismo numa Sociedade Periférica.”, escrito em 1987 e publicado neste livro, em 1993. Edmundo
efetua críticas à estrutura e funcionamento do Poder Judiciário no Brasil, apresentando algumas propostas de
modificação/solução para os problemas. Muitas destas, entretanto, foram concretizadas com a promulgação da
Constituição Federal de 1988, sendo, pois, matéria vencida em 1993.
como crítica; b) é uma opção política de esquerda; c) não se pretende só acadêmica, necessitando
sua participação nos movimentos sociais; d) necessita de conhecimentos concretos por subáreas da
instância jurídica, investigando, empiricamente, os fatos concretos (de dominação, de formação de
hegemonia); e) deve ser uma sociologia composta por pesquisadores com formação não só jurídica,
mas, também, sociológica, teórica e aplicada. Essa sociologia possui como fonte primeira o
marxismo, entretanto está aberta para outros referenciais teóricos.
Seu pensamento fica bem claro quando, de novo, conceitua operadores jurídicos
progressistas como aqueles “comprometidos com a construção de um novo bloco histórico,
antiburguês, democrático, popular e socialista.”224
Muito interessante a postura apresentada no capítulo 5 do livro, rebatendo um artigo com
fortes críticas ao Direito Alternativo225, no qual não aceita a vinculação total do Direito Alternativo
com o marxismo. Mesmo defendendo o marxismo como fonte primeira (sua postura), Edmundo
Arruda não dá ao movimento alternativo, como um todo, um conteúdo marxista. Fica demonstrado,
pela primeira vez, existirem correntes ideológicas internas distintas no movimento, tema a ser
estudado posteriormente. No momento cita-se:
“Por que afirmar-se a vinculação, nem sempre óbvia e verdadeira, entre marxismo e
direito alternativo? Afinal, mesmo se admitirmos que nas academias haja a presença de
Marx, nos movimentos da Magistratura, do Ministério Público, advocacia popular, sequer
aparece essa reivindicação. Ora, será que a rebeldia, a insurgência contra o status quo
exige ser, como lei causal, marxista? Essa é uma pressuposição idealista, vício
academicista de péssima tradição, não servindo sequer como paradigma, pois idealista e
falsa. Queimação gratuita que serve a quem?”226
Para ele, em uma sociedade de classes, o jurídico, incluindo o conceito de Justiça, é
contraditório e representa interesses de classes. Não aceita a idéia de um Poder Judiciário
supraclasses, mas, sem embargo, defende a instituição como algo importante para o sistema
democrático. Afirma, inclusive, ser “necessário ressaltar o valor universal da democracia.”227
Quanto ao marxismo, condena a ortodoxia, mas crê ainda estar vivo228, sendo necessário,
entretanto, sua adaptação aos novos tempos. É um instrumento teórico de trabalho, de análise social,
porém a luta alternativa é por democracia, não instrumental, mas como “valor universal”. Condena,
enfaticamente, as “apressadas” teorias pós-modernas, que dão por finda a luta de classes, por
sepultada a teoria da alienação e da mais-valia, que vão na psicanálise buscar a felicidade
individual, abandonando a luta coletiva pela mudança da sociedade.
Um tema comum em vários escritos de Edmundo Arruda é o referente à modernidade e pós-
modernidade. Para ele, essa discussão não se pode dar sem a participação dos países periféricos,
onde inexiste um mínimo de direitos, onde a maioria da população sobrevive, quando muito, com
um salário de, em média, US$ 45 mensais, onde há fome e miséria. O clima de consumismo das
grandes metrópoles ricas é construído pela exploração da classe trabalhadora periférica, que está
dentro do mercado de trabalho produzindo mais-valia, mas está fora do mercado, sem consumir,
inclusive as 2.500 calorias diárias necessárias para repor sua força de trabalho. “Em outras palavras,
a pós-modernidade existe na ordem periférica, seletivamente. Uma certa modernidade (tardia), para

224
Ibid., p. 22.
225
O texto criticando o Direito Alternativo foi publicado na Revista Seqüência, nº 23, do Curso de Pós-graduação da
Universidade Federal de Santa Catarina, no ano de 1992, sob o título “Em Defesa da Teoria do Direito”, de autoria do
Professor Leonel Severo Rocha, na época coordenador do curso.
226
ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Op. cit. p. 78-79.
227
Ibid., p. 55.
228
Sobre o que ainda está vivo ou morto no marxismo, discute os estudos de Jon Elster. Op. cit. p. 88 e seguintes.
alguns setores altos da 'classe média', restando para grande parte da totalidade social a condição de
pré-modernidade jurídico-política.”229
Sobre Gramsci, elogia sua obra e diz estar “atualíssima”. Entretanto, no tocante à guerra de
posição na sociedade política, ou Estado em sentido restrito (esfera do jurídico), entende necessária
uma releitura do pensador italiano, pois “o conceito de Estado ampliado não autoriza a ver em
Gramsci a possibilidade de 'guerra de posições' dentro da sociedade política.”230 Com base em
Poulantzas, ratifica seu pensamento, já demonstrado anteriormente231, de ser possível e necessária a
prática da revolução passiva, ou processual, no campo do Estado, em particular no mundo jurídico,
não acreditando, todavia, na possibilidade de conquista de hegemonia nessa esfera.

2.3. Magistrados

Na maioria, os escritos dos magistrados são artigos232, motivo pelo qual não se pode
aprofundar uma análise do pensamento da magistratura como um todo. Entretanto, alguns pontos
em comum podem ser detectados. Todos negam a função do magistrado como mero aplicador da
lei, pois não aceitam a neutralidade de sua prática. As normas jurídicas são vistas como reguladoras
de interesses, em benefício da classe no poder. Entendem estar a Justiça acima da lei e ser dever do
julgador decidir buscando atender aos desejos da sociedade civil. Lutam por um Poder Judiciário
integrado com a sociedade, resolvendo os conflitos sociais (decidindo questões políticas,
econômicas, etc.) e não só voltado para o jurídico, sem compromisso com os problemas da
comunidade.
Nenhum se apresenta como adepto das teorias do pensador Karl Marx. Ao contrário, alguns
negam, como o autor, o caráter marxista do movimento, mas aceitam, contudo, a forte influência
desse pensador em muitos dos membros do Direito Alternativo. Inclusive há alguns escritos que se
adaptam, perfeitamente, ao raciocínio jurista burguês, como, por exemplo, o apresentado pela juíza
laboral Débora Maria Lima Machado233, ao contrariar o pensamento tradicional dominante de não
aceitar a interferência do juiz na dosagem da pena disciplinar aplicada pelo empregador ao
empregado. Em nome da Justiça social, afirma poder o julgador controlar a aplicação da pena, mas
não critica essa em si, ao invés, acredita-a justa e legítima, isso em nome da hierarquia do
empregador e de ser este o detentor dos riscos da atividade econômica. Esse, por certo, não é um
raciocínio marxista, pois contraria a tese de Marx de ser o contrato de trabalho um mero contrato de
compra e venda, no qual o empregador compra a força de trabalho e, como proprietário dela, a usa
conforme seu interesse e prazer, podendo, inclusive, aplicar penas.
Em defesa dos trabalhadores há o texto do juiz do trabalho José Felipe Ledur234. Critica a
prática dos Tribunais do Trabalho de declararem abusivas muitas greves, fato demonstrador da
atividade antitrabalhador desenvolvida pelo Poder Judiciário Trabalhista. No mesmo sentido é o
trabalho da magistrada Magda Barros Biavaschi235. Alega ser o Direito do Trabalho um direito
reivindicatório da classe trabalhadora, reconhecedor da desigualdade real das partes em litígio. Sua

229
ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Op. cit., p. 96.
230
Ibid., p. 154.
231
Ver págs. 145-146.
232
As três exceções são: o livro de Amílton Bueno, já analisado, o do autor, “Juiz Alternativo e Poder Judiciário” e o de
Rui Portanova, “Motivações ideológicas da sentença”.
233
“O Poder Disciplinar do Empregador e o Controle Jurisdicional. Possibilidade de dosagem da pena pelo Juiz”, in
CARVALHO, Amílton Bueno de. (org.) Revista de Direito Alternativo, nº 2, São Paulo, Editora Acadêmica, 1993, p. 165-
172.
234
“Abusividade de greve. Impossibilidade de sua declaração pelos Tribunais”, in CARVALHO, Amílton Bueno de.
(org.) Revista de Direito Alternativo, nº 2, Op. cit., p. 173-180.
função é a correção dessas desigualdades, por intermédio do princípio da proteção e do
reconhecimento dos direitos coletivos.
Frente à investida neoliberal, no Brasil, para implantar a flexibilização nas relações
trabalhistas, com terríveis perdas para os trabalhadores, fazem coro contra, além de Amílton Bueno,
os juízes trabalhistas Ricardo Carvalho Fraga236 e Luiz Alberto de Vargas237.
Entre os juízes comuns, Arnaldo Rizzardo238 efetua uma boa análise crítica da nova Lei do
Inquilinato. Critica o retorno ao capitalismo primitivo com a garantia do uso da propriedade sem
qualquer dimensão social, bem como a implantação da denúncia vazia. Reivindica a função social
da propriedade, prevista na Constituição Federal, mas esquecida por algumas leis e juristas.
No campo do Direito Penal, Aramis Nassif239 propõe a participação de cidadãos das classes
baixas nos corpos de jurados (compostos, de forma excludente, por membros das classes média e
rica), para julgarem seus semelhantes, pois, até o momento, somente tiveram assento assegurado no
banco dos réus. Enquanto isso não ocorre, indica, como medida mínima imediata, seja dado
conhecimento aos julgadores populares de todas as circunstâncias sociológicas que cercam o fato
delituoso.
O desembargador José Liberato da Costa Póvoa240 efetua forte crítica à lei, alegando só
beneficiar os ricos, pois, criada por uma elite, visa a manter os privilégios desta. Defende uma
inovação na mentalidade dos magistrados, ou seja, uma interpretação justa da lei, para fazer frente
ao ordenamento jurídico, com o propósito de restabelecer o equilíbrio social.
O autor241 e Rui Portanova compartem um entendimento. Dividem a Ciência Jurídica em
Direito Dogmático e Direito Crítico. O primeiro, de conteúdo positivista, formal/legal, busca a
manutenção do status quo jurídico. Isola o Direito da história e das demais áreas do pensamento
humano. Vê o fenômeno jurídico como neutro, acima das lutas de classe. As demandas jurídicas são
apenas desavenças individuais e cabe ao Poder Judiciário resolvê-las para manter a paz e a ordem
social. A decisão jurídica, tida como a-ideológica, é o resultado de um raciocínio dedutivo,
silogístico, lógico-formal. Sua teoria é edificada sobre mitos, como a igualdade formal, a segurança
jurídica, etc. O Direito Crítico, ao invés, é aberto, não se pretende eterno, é voltado para mudanças
sociais e critica dogmas instituídos. Não deseja manter a ordem estabelecida. Vê o Direito como
fato ideológico, não neutro, interligado com os demais ramos do saber.
Ambos entendem o Direito Alternativo como pertencente à crítica jurídica, como um ramo
do Direito que reconhece ser o texto jurídico expressão de uma ideologia e, em sua prática, busca
desvendá-la e superá-la. Combatem o positivismo, mas não desejam um retorno ao jusnaturalismo.

235
“Direito do Trabalho: um direito comprometido com a justiça”, in ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. (org.),
Aires Rover, Amilton Bueno de Carvalho, et al. Lições de Direito Alternativo do Trabalho. Op. cit., p.43-49.
236
“Em Defesa do Poder Normativo - Atualidade e Flexibilização”, in ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. (org.),
Aires Rover, Amílton Bueno de Carvalho, et al. Lições de Direito Alternativo do Trabalho. Op. cit., p. 71-74.
237
Texto escrito em conjunto com Ricardo Carvalho Fraga. “Em Defesa do Direito do Trabalho - Contra a `Flexibilização'
no Terceiro Mundo”, in ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. (org.), Aires Rover, Amílton Bueno de Carvalho, et al.
Lições de Direito Alternativo do Trabalho. Op. cit., p. 114-116.
238
“A Nova Lei do Inquilinato”, in Revista de Direito Alternativo, nº 1, Op. cit., p. 99-129.
239
“Júri: a omissão sociológica”, in Revista de Direito Alternativo, nº 1, Op.cit., p. 152-156.
240
“A Lei só beneficia os ricos”, in Revista de Direito Alternativo, nº 2, Op cit., p. 150-152.
241
O pensamento do autor pode ser encontrado no livro mencionado na nota 67, “Juiz Alternativo e Poder Judiciário”, e
no texto “Processo Social Alternativo”, publicado em Lições de Direito Alternativo 2, ambos da Editora Acadêmica.
Também em sua participação na obra “GRAMSCI : Estado, Direito e Sociedade”, editora Letras Contemporâneas.
Rui Portanova direciona seu estudo, no específico, ao processo civil242. No geral, entretanto,
apresenta o Direito Alternativo como um contradiscurso ao Direito Oficial, caracterizado pelo
julgamento em busca de Justiça e em prol da maioria da população. Sobre o conceito de Direito
Alternativo, diz: “Ainda é cedo para se ter claro o que significa exatamente o Direito Alternativo
brasileiro. Parece induvidoso, contudo, que a visão alternativa pertence ao vasto mundo da crítica.
E, como é sabido, há inúmeras idéias esparsas que poderiam chamar-se críticas.”243
O autor prefere falar em Movimento Social Alternativo, pois pretende transcender a prática
jurídica, estendendo o movimento a toda a sociedade. Entende o processo alternativo com as
seguintes partes: 1- exigir o cumprimento das leis com fundo popular; 2- interpretação crítica das
leis, uso alternativo das normas vigentes; 3- pedagogia alternativa (proselitismo teórico), ou seja,
atuação em toda a sociedade (meios de comunicação, magistério, reuniões com sindicatos, partidos
políticos, associações populares, etc.), com o fim de desnudar a ideologia oficial e apresentar idéias
alternativas. Essas fases interagem e devem ser aplicadas simultaneamente, com o propósito de se
alcançar hegemonia. A instância jurídica (o Direito) só pode ser entendida se vinculada ao conceito
de poder. Apresenta o Direito Alternativo como o Direito do futuro244, a substituir o vigente.
“Trata-se de uma busca de metodização do processo alternativo, aqui definido como uma
preocupação com práticas que contemplem o todo social, aí inserida a sua expressão
jurídica, a ser utilizado como norteador de inserções no seio da sociedade, objetivando sua
transformação, com a superação de suas instituições repressivas e privilégios
estabelecidos, construindo novas relações de poder, possibilitando à população acesso aos
bens materiais necessários à sobrevivência humana em padrões civilizados, criando
condições de o povo organizar seus interesses, edificando uma sociedade que, desde
conceitos seus, lhe pareça mais justa245.
Em seu livro Juiz Alternativo e Poder Judiciário, o autor busca traçar alguns caminhos
possíveis de atuação aos magistrados com desejo de serem alternativos. Parte da afirmação de
estarem os magistrados atuando para manter as relações de poder na sociedade e propõe um câmbio,
a fim de fazer da magistratura um instrumento de transformação social. A prática alternativa deve
ser exercida em todas as instâncias, no mundo jurídico e fora dele, sempre na busca de hegemonia e
de transformação social. Não aceita o julgamento contra a lei, por ser desnecessário, devido às
várias formas de interpretá-la. Para evitar um retorno ao jusnaturalismo, busca sair do idealismo de
aplicação da Justiça, apresentando a mesma adjetivada. Assim, fala de Justiça popular, Justiça
social e Justiça material, buscando conceituá-la como mais uma expressão ideológica, histórica. A
Justiça pode ser quantificada e especificada, representado a possibilidade de acesso à população aos
bens e serviços essenciais à vida.
“Entende-se possível a transformação social por formas pacíficas, podendo, os
magistrados, participar dessa liça com destaque, desde que entendam o lugar por eles
ocupado, percebam a quem tem servido sua forma de atuar e modifiquem sua prática
judicial. Portanto, quando se fala de revolução, não se está pregando, de forma alguma, a
luta armada, pois não é essa a única, nem a melhor, opção para a mudança da sociedade.
Ao contrário, entende-se ser o processo dialético da procura de hegemonia de uma nova
visão, guerra de posição, conforme conceitua Antonio Gramsci, a forma mais eficaz de
alterar as relações de poder, sem grandes traumas, sofrimentos ou hecatombes, e, também,

242
Em recente texto, trabalha o tema da igualdade, não só processual, mas, também, social. “Princípio Igualizador”, in
RODRIGUES, Horácio Wanderlei (org.) Amílton Bueno de Carvalho e Antonio Cláudio da Costa Machado et al. Lições
Alternativas de Direito Processual. op. cit., p. 198- 211.
243
PORTANOVA, Rui. Op. cit., p.79.
244
Essa visão já foi superada, como se poderá ver adiante.
245
ANDRADE, Lédio Rosa. Processo social alternativo. in Lições de Direito Alternativo 2, Op. cit., p. 80.
a mais justa, pois permite à população escolher seu próprio caminho. Atitude
revolucionária, todavia, porque visa a modificar as instituições, tornar o uso do poder
eqüitativo, transferir o comando da sociedade, entregando ao próprio povo a direção de
seu destino, transformado em autor de sua história. Um Judiciário dinâmico,
desmitificado, não mais exercerá a função de legitimador da dominação e opressão, será
um Poder libertador:”246
Manoel L. V. de Castilho247, Juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, considera a
atividade jurisdicional vinculada às questões pessoais do julgador, sendo, pois, uma ação
ideológica. Busca a Eficácia Social da Prestação Jurisdicional, entendida como a prestação da
jurisdição como padrão de justiça, mais aproximada da realidade. Para alcançar este desiderato,
entre as várias propostas possíveis, privilegia três, a saber: a) a institucionalização da participação
popular na prestação jurisdicional. Vê a magistratura formada pela classe média e média alta,
desejosa de ascensão social, motivo pelo qual está vinculada às elites econômico-financeiras. Isto
exclui as classes populares da efetivação de justiça. Portanto, para possibilitar a inclusão destas
classes subalternas nos mecanismos de prestação jurisdicional, entende necessário ampliar as
formas já existentes, como o Júri Popular ou os representantes classistas na justiça laboral, de
participação popular. Fala, inclusive, em eleições para magistrado; b) controle do Judiciário como
Poder. Não está preocupado só com um órgão de controle externo, mas com um controle popular,
exercido por toda a sociedade, inclusive pela imprensa e pelo parlamento; e c) o uso alternativo do
Direito, popularmente conhecido como Direito Alternativo. Entende esta prática como uma forma
crítica de hermenêutica, ou seja, o julgador interpretar as normas estatais vigentes de forma
diferente à desejada pelo legislador ou pelas classes dominantes. Esta visão do uso alternativo do
Direito, não obstante equivocada, é generalizada entre os juristas brasileiros. O tema será estudado
de forma mais aprofundada no capítulo IV. Outra imprecisão é confundir uso alternativo com
Direito Alternativo.
O Desembargador Sérgio Gischkow Pereira efetua uma análise de jurisprudência referente
ao Direito de Família248. Para a alternatividade, colhe-se de seu texto o conceito de Direito como
objeto cultural, onde o elemento axiológico é tido como inafastável.
Por último, o Juiz Togado do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Márcio Túlio
Viana, realiza uma rápida análise sobre as implicações da sucessão na empresa em relação aos
direitos dos trabalhadores249.

2.4. Promotores de Justiça

Miguel Alves Lima250 não efetua um estudo direcionado à prática do Ministério Público.
Realiza uma crítica à dogmática jurídica251 e apresenta algumas idéias sobre Direito Alternativo.

246
ANDRADE, Lédio Rosa. Juiz Alternativo e Poder Judiciário. Op. cit., p. 84-86.
247
“A Propósito da Eficácia Social da Prestação Jurisdicional.”, in Revista de Direito Alternativo nº 3. Op. cit., p. 115-
122.
248
“A separação de Fato dos Cônjuges e sua Influência nos Bens Adquiridos Posteriormente”, in Revista de Direito
Alternativo nº 3, op. cit., p. 132-139.
249
“Sucessão sem Trabalho para o Sucessor.”, in Revista de Direito Alternativo nº 3, op. cit., p. 218-220.
250
“O 'Direito Alternativo' e a Dogmática Jurídica”, in Lições de Direito Alternativo 2, Op. cit., p. 42-54.
251
Tendo em vista uma identidade de objetivos entre os membros do movimento alternativo, muitos argumentos,
principalmente os referentes à crítica do positivismo jurídico, Direito Tradicional ou dogmática jurídica, se repetem.
Assim, para tentar evitar um estudo iterativo, busca-se apresentar só as idéias mais particulares, ou diversas das já
apresentadas.
Para ele, o Direito Alternativo não rompe com a legalidade de forma absoluta, pois não abomina a
lei em si, mas, sim, seu uso para beneficiar os opressores. Não se trata de uma forma nova de
interpretação das normas, mas uma “antevisão de um projeto libertário”252, levado a efeito por
juristas mais humanitários, baixado ao nível da rua. Sem a pretensão de ser o Direito a Palavra
Revelada, pretende-se um movimento comprometido com a população.
Antonio Alberto Machado e Marcelo Pedroso Goulart253 iniciam reforçando a questão
democrática, ressaltando a ineficiência do modelo liberal clássico para resolver os crescentes
conflitos sociais, fruto do capitalismo oligopolista. Especificamente, sobre o Ministério Público, os
autores, com base na teoria ampliada do Estado, elaborada por Antonio Gramsci, defendem ter-se a
instituição, na evolução da história, deslocado da sociedade política para a sociedade civil.
Realizando uma constante guerra de posição, como parte da sociedade civil, cabe ao “Ministério
Público incrementar o processo de democratização da sociedade brasileira, canalizando os valores
reinantes no seio das classes populares e contribuindo, na sua esfera de atuação, para a superação da
alienação política e econômica dessas classes.”254
Para poder aprofundar a democracia, entendem estar excluída a possibilidade de aliança ou
alinhamento do Ministério Público com os órgãos da sociedade política, principalmente o Poder
Executivo e o Poder Judiciário. Este é tido como um “órgão do aparelho repressivo do Estado,
reprodutor da ideologia da classe dominante”255, cabendo aos Promotores de Justiça abrir espaços de
participação popular nos trabalhos forenses.
“Cremos, pois, que o papel mais democrático e legítimo por parte dos órgãos burocráticos
ou agentes administrativos do Estado será internalizar na estrutura jurídica oficial os
valores emergentes da estrutura sócio-econômica voltados para a emancipação das classes
dominadas, historicamente excluídas do processo político de criação do direito”.256
José Fernando Vidal de Souza257 defende a atualidade das concepções aristotélicas de
Justiça e Eqüidade e entende dever o juiz, no exercício de seu poder criativo, utilizar esta para
realizar aquela no julgamento do caso concreto. Conclui: “Assim, oxalá, um dia consigamos
exprimir o conceito de Justiça como dar a cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo
suas necessidades, resgatando a dignidade política do Direito, numa verdadeira aposta no homem,
com a vitória da prevalência da sabedoria humana.”258

2.5. Advogados

Miguel Pressburger, inobstante possuir, com seus escritos e sua prática, enorme influência
no movimento alternativo, talvez não possa ser incluído como um membro do Direito Alternativo,
pois isso reduziria sua atuação na história jurídica do país, quitando-lhe méritos. Em realidade, seu
trabalho em defesa dos direitos das classes populares, principalmente como coordenador do
Instituto Apoio Jurídico Popular, é anterior ao alternativismo.

252
Ibid., p. 44.
253
“Ministério Público e Direito Alternativo”, São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, 46 p.
254
Ibid., p. 43.
255
Ibid., p. 35.
256
Ibid., p. 41.
257
“Justiça e Eqüidade”, in CHAGAS, Sílvio Donizete (org.), Paulo Luiz Neto Lobo, Nelson Saule Júnior, et al. Lições de
direito civil alternativo. São Paulo, Editora Acadêmica, 1994, p. 104-129.
258
Ibid., p. 129.
Vê as relações jurídicas como uma das formas específicas das relações sociais. Seu trabalho
desenvolve-se, também, com base em todas as críticas já apresentadas ao Direito Vigente.
Acrescenta uma crítica aos “pilares” do Direito Burguês, quais sejam, a propriedade privada e a
liberdade contratual. O Direito atua na esfera da circulação, onde o essencial são as trocas, isso sob
as formas da propriedade, igualdade e liberdade. Isso ocorre porque, na esfera da produção, suas
formas são lidas como expropriação, dominação e desigualdade. São suas estas palavras:
“As relações capitalistas são medidas pela mercadoria; as pessoas não são mais capazes de
se pensar e de pensar os outros, a não ser pelo ter. Não são mais homens que se
relacionam entre si, são as mercadorias que usam os homens, mas ao mesmo tempo criam
a ilusão de que os homens manipulam a mercadoria (...) No domínio econômico, o Estado
tem uma função: realizar nele a sua tarefa geral de coesão e integração social,
pressupondo (e garantindo através da ordem jurídica e da sua máquina política) um
determinado estatuto de relações econômicas”259.
Entretanto, sua grande contribuição teórica vem através de seu conceito de Direito
Insurgente. Não aceitando a produção do Direito como monopólio do Estado, recorre ao pluralismo
jurídico, para justificar a existência de outro Direito, “que se vai construindo na periferia da
sociedade”260, é insurgente e alternativo ao Direito Posto.
Como passo inicial para a prática da advocacia, prega a transformação das relações
advogado/cliente, sem a hierarquia tradicional. Incumbe ao causídico não só defender os interesses
individuais em juízo. Seu labor, na esfera do Poder Judiciário, é importante, mas deve atuar de
forma global, trazendo os conflitos sociais para as demandas. Como assessor jurídico, o advogado
tem uma grande função, a pedagógica, ou seja, revelar ao povo as desigualdades sociais escondidas
sob a igualdade legal, organizando-o para melhor defender seus direitos e/ou construir o Direito
Paralelo, Insurgente. Defende uma advocacia comprometida com as classes populares, objetivando
transformações nas relações sociais.
Vê o Direito Alternativo como o outro Direito, o não-estatal. Afirma existir uma diferença
do movimento brasileiro com o italiano261, pois neste os protagonistas foram os juízes, enquanto
naquele são os advogados e professores universitários262.
Outro profissional identificado com o pluralismo jurídico e vinculado aos movimentos
sociais organizados é José Geraldo de Souza Júnior263. Esses movimentos criam sujeitos coletivos
de Direitos, voltados para a luta em defesa dos interesses populares, criando espaço político de
atuação e, também, novos direitos264, direcionados para a transformação social. Sua atuação busca
“enquadrar os dados derivados dessas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas

259
“Direito do Trabalho, um direito tutelar?”, in Revista de Direito Alternativo, nº 2, Op. cit., p. 182 e 187.
260
“Direitos Humanos e Serviços Legais Alternativos”, in Lições de Direito Alternativo 2, Op. cit., p. 56.
261
Ver: “Conceitos e Evoluções do Direito Alternativo”, in FARIA, José Eduardo, T. Miguel Pressburger, Edmundo Lima
de Arruda Jr., et al. Direito Alternativo. Seminário nacional sobre o uso alternativo do direito. Op. cit., p. 13-16.
262
Não se concorda com essa afirmação, pelo menos sob o ponto de vista de quem entende como movimento do Direito
Alternativo o iniciado em 1990, exatamente por juízes, o que causou interesse da grande imprensa. O pensamento desse
jurista dá-se devido ao seu conceito de pluralismo jurídico, bem como sua identificação de Direito Alternativo com
Direito não-oficial, insurgente. Críticas a entendimentos como esse podem ser encontradas em “Paradigmas do Conflito e
da Ordem: Reflexões Sociológicas sobre Racionalidade Jurídica e Direito Alternativo”, Edmundo Lima de Arruda Jr., in
FARIA, José Eduardo, T. Miguel Pressburger, Edmundo Lima de Arruda Jr., et al. Direito Alternativo. Seminário
nacional sobre o uso alternativo do direito. Op. cit., p. 20.
263
“Movimentos Sociais - Emergência de Novos Sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direito”, in Lições de Direito Alternativo
1, Op. cit., p. 131-142.
264
José Geraldo coordena um projeto levado a efeito em Brasília, denominado “O Direito Achado na Rua”, expressão
criada por Roberto Lyra Filho.
categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam
superadas as condições de espoliação e de opressão do homem pelo homem.”265
Wilson Ramos Filho266 compartilha com os dois autores anteriores a conceituação de
Direito Alternativo como aquele nascido e criado no seio da sociedade civil, pelas massas
populares, como corolário das tensões sociais e das reivindicações do povo não atendidas pelo
Estado. Acrescenta, entretanto, na análise do uso alternativo do Direito e do Direito Alternativo,
argumento interessante. Para ele, essas duas possibilidades podem ocorrer tanto sob uma
perspectiva de esquerda quanto sob uma perspectiva de direita. Constantemente, os tribunais
reacionários interpretam, alternativamente, o Direito e/ou aplicam um Direito Alternativo (com base
no “livre mercado”, sem previsão normativa estatal, por exemplo), principalmente no Direito
Trabalhista, onde há amplitude hermenêutica e maior conflito social, para restringir os direitos dos
trabalhadores. Portanto, as categorias alternativas podem servir a qualquer classe social, inclusive,
“em dadas condições históricas, podem servir para justificar 'cientificamente' - e aumentar - os
níveis de exploração capitalista.”267
Demonstra como o Poder Judiciário, não só por sua atitude ideológica pró-empregador,
mas, também, pela burocracia processual (por ilustração, mais de quatro anos, em média, para
julgar, definitivamente, uma simples reclamatória trabalhista), sempre garante a produção e
restringe os direitos laborais. A proposta de atuação da central sindical é fora do Poder Judiciário,
buscando criar Contratos Coletivos de Trabalho diretamente com a classe patronal, construindo um
Direito não-estatal, portanto, alternativo.
“O que se busca é, diante da ineficiência da justiça estatal, engendrar formas alternativas
de solução, temporária e tópica, do conflito. Tal postura implica considerar que o conflito
é intrínseco ao modo de produção capitalista, e, enquanto este viger, é preciso que as
partes contratantes tenham a capacidade e os instrumentos para administrá-lo.
O direito estatal, fundamentalmente o trabalhista, miticamente procura acabar com o
conflito, através da prestação jurisdicional do Estado, neutra, e acima dos interesses
individuais das 'partes'.
A proposta da CUT é fazer o direito, na mesa de negociações junto com os empregadores,
no marco de conflitividade intrínseco ao modo de produção capitalista, explicitando o
conflito, e na correlação de forças buscando formas eficazes de garantia do exercício de
tais direitos. Em síntese, pretende fundar a cidadania operária ainda dentro do modo de
produção capitalista, como forma de acumular forças e experiência, para sua superação
definitiva, construindo, com os trabalhadores, a nova sociedade socialista, já que a CUT
fez sua opção pelo socialismo.”268
Não despreza o espaço institucional ou parlamentar e crê que a luta contra a legislação
repressiva deve ser efetivada “através da construção de um direito autêntico, que futuramente venha
a ser absorvido e reconhecido pelo Estado, vindo o mesmo a integrar o direito positivo (através de
lei) ou ter validade de norma jurídica no seu próprio âmbito.”269

265
Ibid., p. 142.
266
“Direito Alternativo e Cidadania Operária”, in Lições de Direito Alternativo 1, Op. cit., p. 155-171 e “Sindicalismo,
Práxis Social e Direito Alternativo”, in Lições de Direito Alternativo do Trabalho, Op. cit., p. 29-42.
267
RAMOS FILHO, Wilson, Direito Alternativo e Cidadania Operária. in Lições de Direito Alternativo 1. Op. cit., p.
160.
268
Ibid., p. 170.
269
RAMOS FILHO, Wilson, Sindicalismo, práxis social e direito alternativo. in Lições de Direito Alternativo do
Trabalho. Op. cit. p. 40.
Também navegando sobre as águas do Direito Insurgente está Celso Soares270, que efetua
uma análise do Direito do Trabalho. Considerando-o como uma grande prova da existência da luta
de classes na sociedade, atribui-lhe a função de apaziguá-la, com o fim de manter a ordem
estabelecida. Partindo do dado histórico de ter a burguesia, na época revolucionária, percorrido
oitocentos anos entre sua “afirmação urbana” e a Revolução Francesa, havendo, nesse período,
mudança na ideologia jurídica em seu favor, defende a atuação dos advogados não só no Direito
Insurgente, mas, também, no Instituído, para mudar a ideologia jurídica, agora em favor do
trabalhador271.
Apresenta vários exemplos de como deve trabalhar o advogado fora e dentro do Direito
Estabelecido. É o primeiro autor a defender a desobediência civil como mais uma tática para criar o
Direito Insurgente. Adverte para a necessidade de os trabalhadores pressionarem o Poder Judiciário,
assim como já o fazem os detentores do poder e as classes dominantes. Por fim, defende ser o
fortalecimento dos sindicatos a melhor forma de criar um novo Direito, voltado para a classe
obreira.
Tarso Genro, hoje prefeito de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, é um
autor muito influente e respeitado no meio alternativo. Acredita-se estar na crítica ao marxismo
“oficial”, o implantado na vida cotidiana de vários países do Leste europeu, sua maior contribuição
ao movimento. Esse marxismo (entende existir vários), qualificado como “uma anti-filosofia do
sujeito”272, é entendido como um positivismo de esquerda (stalinismo) que, assim como o
positivismo de direita (nazifascismo), construiu regimes totalitários e terríveis ditaduras.
Diz que, com base na sacralização da classe obreira, elevada à categoria de classe
messiânica, esses marxistas analisaram o Direito de forma estreita, identificando-o, de forma
obrigatória, com os interesses da classe burguesa e propuseram seu fim (como também do Estado),
por incompatível com a futura “nova ordem social universal sem conflitos de interesses, classe,
portanto, dotada da razão universal atual e da negação do Direito no futuro.”273 Em realidade, a
“razão de Estado” e a legalidade socialista não só suspenderam os Direitos Humanos e a própria
igualdade formal, como identificaram-se com os interesses da burocracia e do partido. Essa visão
negou o próprio marxismo ou, pelo menos, uma variante dele, qual seja, “o marxismo como
filosofia do sujeito, um sujeito aberto à própria negação do marxismo como contribuição puramente
histórica, não-dogmática e não-religiosa, inscrita temporalmente.”274
Entende o Poder Judiciário como uma peça fundamental de coerência interna do Estado,
não negando ambos. Entretanto, partindo da pergunta “um juiz sul-africano, ao julgar uma ação
judicial de um negro, cujo pedido tem como obstáculo uma lei que sustenta o apartheid, deve julgar
contra a lei?”275 efetua uma crítica ao fetiche da legalidade sem, contudo, negá-la.
Em relação ao Direito Alternativo, é este seu pensamento:
“O direito alternativo não é, pois, o não-direito, muito menos um direito inventado ou
simplesmente intuído na tradição do bom Juiz Magnaud. Ele é sempre a melhor
possibilidade de um sistema jurídico, dada pelos conflitos sociais e individuais que o
geraram, pela sua história e pela cultura da sociedade em que ele emerge. Não é o arbítrio
do indivíduo-Juiz, nem sua simples vontade política perante a crise e um sistema; mas é

270
“Os Caminhos de um Direito Insurgente”, in Lições de Direito Alternativo do Trabalho”, Op. cit., p. 93-113.
271
Defende o uso da mesma tática da burguesia revolucionária, mas adverte ser a luta desta contra a sociedade feudal uma
pugna entre proprietários, não sendo, portanto, o caso da classe obreira, pois esta deve pelejar contra a propriedade
capitalista.
272
“Direito e Marxismo”, in Lições de Direito Alternativo 2, Op. cit., p. 11-14.
273
Ibid., p. 12.
274
Ibid., p. 13.
275
“Os Juízes contra a Lei”, in Lições de Direito Alternativo 1, Op. cit., p. 17.
um ato de construção e desenvolvimento de valores que já estão postos pela história de
afirmação da liberdade humana, do direito à vida, da luta pela repartição do produto
social, pela redução da desigualdade e pela defesa do futuro do homem, preservando-lhe o
ambiente e a natureza.
A experiência jurídica dos povos demonstra que, quanto mais apegado ao normativismo
mecanicista e ao legalismo 'puro', mais servil é o jurista ou o Juiz perante os poderosos e
mais sobranceiro e enérgico ele é perante os pobres e socialmente fracos. Seu amor à
Constituição e à lei é, na verdade, o amor e o respeito aos privilégios que o sistema pode
garantir. Afinal, quem esqueceu o papel de grande parte dos juristas e dos Juízes na época
do nosso Regime Militar?”276
Não abandonar o estudo da dogmática, do Direito Positivo, é um entendimento pacífico
entre os juristas alternativos. Isso porque não se pode negar a existência de leis boas, úteis à
sociedade civil. Neste sentido, Leonardo Vieira Wandelli277 realiza uma boa análise da legislação
brasileira sobre a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, principalmente
em relação à esfera trabalhista. Sem tocar no tema Direito Alternativo, o autor desenvolve um
trabalho de interesse popular, pois, segundo suas palavras, essas normas “representam, com certeza,
um dos mais importantes passos já dados, no Direito brasileiro, no sentido de instrumentalizar a
cidadania coletiva.”278
Partindo da diferença entre a teoria crítica do Direito, entendida como um discurso nascido
nas universidades com o objetivo de desmitificar o fenômeno jurídico e o Direito Alternativo, tido
não como um discurso de denúncia, mas como uma prática buscando contribuir para a emergência
de um novo Direito, Clèmerson Merlin Clève279 teoriza sobre as distinções entre dogmática e
dogmatismo, bem como entre positivismo e Direito Positivo. Para ele, todo Direito necessita de
uma doutrina, ou seja, a dogmática que “constitui o saber jurídico instrumental auxiliar da solução
de conflitos, individuais ou coletivos, de interesses.”280 O dogmatismo é entendido como o “apego
preconceituoso e irrefletido a dogmas.”281 Por positivismo entende ser uma leitura do Direito
Positivo, com fundamento em postulados como: neutralidade, imparcialidade, apego ao legalismo
estreito e inexistência de vontade axiológica e de criatividade na atividade do operador jurídico. O
Direito Positivo é o ordenamento jurídico estatal, ou “o direito reconhecido como tal num momento
histórico determinado.”282
O Direito, alega, tanto em nível legislativo como jurisdicional, é resultado da luta entre
interesses e cristaliza as vitórias da classe hegemônica, mas, também, das classes populares, motivo
pelo qual não pode ser entendido como só repressão, pois, igualmente, é libertação. Pode ser
transformado em dois momentos: antes de positivado (pré-legistativo), por pressão e luta, ou no
momento de sua aplicação, pelo uso alternativo do Direito.
Com base nessas premissas teóricas, propõe a retomada da dogmática jurídica, mais
especificamente, da dogmática jurídica alternativa, também chamada de dogmática da efetividade

276
Ibid., p. 26-27.
277
“A Defesa dos Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos na Esfera Trabalhista”, in Lições de Direito
Alternativo do Trabalho, Op. cit., p. 117-146.
278
Ibid., p. 126.
279
“Uso alternativo do Direito e Saber Jurídico Alternativo”, in Lições de Direito Alternativo 1, Op. cit., p. 99-120 e “A
Teoria Constitucional e o Direito Alternativo (para uma dogmática constitucional emancipatória)”, in Direito Alternativo,
Seminário Nacional sobre o uso alternativo do Direito, Op. cit., p. 45-51.
280
“A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo (para uma dogmática constitucional emancipatória)”, in Direito
Alternativo, Seminário Nacional sobre o uso alternativo do Direito. Op. cit. p. 46.
281
Ibid.
282
Ibid., p. 46.
ou dogmática constitucional alternativa. Diz não se tratar do positivismo de combate, pois a
proposta nega os postulados do positivismo283. Para Clèmerson, no presente momento histórico
brasileiro, a função do Direito Alternativo é realizar a defesa da Constituição, por ele tida como
compromissória, democrática, legítima, dirigente e analítica. Deve-se buscar uma Constituição
normativa integral. Assim, essa dogmática constitucional alternativa poderá declarar a
inconstitucionalidade de qualquer norma injusta como, também, poderá filtrar todo o Direito
infraconstitucional, ajustando-o à materialidade constitucional. Portanto, “cabe à nova dogmática
alternativa, com base na Constituição e por isso sempre de modo objetivo, redefinir os postulados
do direito civil (conceito de propriedade, por exemplo), do direito penal (lei de crimes hediondos e
princípio da proporcionalidade, por exemplo), do direito do trabalho (dispensa sem justa causa e
princípio do devido processo legal, v.g.), etc.”284 Essa dogmática alternativa, ademais, exige: a) uma
ética da responsabilidade; b) uma política da criatividade e c) um compromisso ideológico definido,
portanto, uma crítica da neutralidade.
Clèmerson entende não bastar, ao Direito Alternativo, apenas uma definição ideológica,
sendo necessária a elaboração das bases teóricas do saber jurídico que pretende operar. São estas
suas críticas ao movimento:
“Hoje, o que vemos muitas vezes entre os juristas alternativos é um desenvolver
desenfreado de postulados jurídicos voluntaristas e subjetivistas despidos de rigor
metodológico ou teórico. Apela-se ora para o jusnaturalismo, ora para os princípios gerais
de direito, ora para um direito supra-estatal que não se sabe bem em que consiste, ora para
dados oferecidos pela leitura sociológica dos conflitos emergentes, ora para uma teoria da
justiça pouco transparente, ora para as declarações internacionais de direitos humanos,
etc., tudo para justificar uma tomada de posição comprometida unicamente com a
subjetividade e o voluntarismo orientados, ninguém desconhece, pela objetividade do
compromisso ideológico.”285
Melillo Dinis do Nascimento286 efetua uma síntese histórica do uso alternativo do Direito
para buscar definir algumas pistas com o propósito de estabelecer uma hermenêutica jurídica
popular. Seu trabalho inicia com a mesma concepção equivocada, sobre o movimento italiano do
uso alternativo do Direito. Detém-se com mais esmero na América Latina, mencionando o
desenvolvimento desta corrente no México, na Colômbia e no Brasil. Repete, por várias vezes,
serem três os núcleos de concentração dos atores sociais do movimento alternativo, a saber: a)
magistrados, promotores de justiça e advogados progressistas; b) os serviços legais alternativos e c)
os movimentos sociais. Como diferença entre os movimentos italiano e latino-americano, destaca
privilegiar, o primeiro, a prática jurisdicional e a figura do juiz, enquanto o segundo centra sua
atenção na própria comunidade, nos movimentos sociais organizados.
Apresenta as seguintes pistas, para contribuir na demarcação dos caminhos de uma
hermenêutica jurídica popular:
“a) a retomada da noção de 'hermêneia' contrapondo-se ao conceito anterior de
'hermenêutiké techné', construindo uma hermenêutica comunicativa e dialógica; b) a
283
Clèmerson apresenta como um dos pontos-bases de sua proposta a afirmação, realização e aplicação da Constituição.
Isso demonstra uma equivocada visão sobre a idéia de positivismo de combate, pois este também nega os postulados do
positivismo (talvez melhor seria dizer do formalismo, tecnicismo e exegetismo jurídico) e propõe, exatamente, a
afirmação, realização e aplicação não só da Constituição, como de todas as normas com fundo popular e não aplicadas na
prática. O instituído sonegado.
284
“A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo (para uma dogmática constitucional emancipatória)”, in Direito
Alternativo, Seminário Nacional sobre o uso alternativo do Direito. Op. cit., p. 50.
285
Ibid., p. 49.
286
“Elementos para uma Hermenêutica Jurídica Popular (o “Uso Alternativo” do Direito)”, in Revista de Direito
Alternativo nº 3, São Paulo, Editora Acadêmica, 1994, p. 44-63.
valorização da sociedade civil no processo de resolução dos conflitos jurídicos utilizando
mecanismos alternativos como a mediação e a negociação; c) o aprofundamento de uma
proposta mais concreta sobre um direito alternativo a serviço das mudanças que a
sociedade reclama, dos direitos humanos, da democracia e das liberdades; d) a assunção
de uma proposta hermenêutica popular que supere a especialização de determinados
operadores sem suprimir a especificidade técnica (e não tecnicista) da intervenção social;
e e) a conscientização de que não há uma verdade pura e absoluta, mas verdades-relativas,
em processo, e da dureza necessária para romper certos espaços discursivos e científicos
fechados para um debate fecundo e produtivo.”287
Iniciando o livro Lições de Direito Civil Alternativo, Paulo Luiz Neto Lobo288, mesmo
afirmando não se alinhar a nenhuma das correntes formadoras do Direito Alternativo, defende o uso
alternativo do Direito no âmbito do Direito Civil. Para ele esse ramo do Direito é o mais hermético
e renitente às transformações, tendo a propriedade e os interesses patrimoniais como seu núcleo,
acima da própria pessoa humana. Suas poucas transformações, principalmente aquelas efetivadas
para valorizar mais o ser humano e menos seu patrimônio, deram-se pelos reiterados usos
alternativos do Direito, isso mesmo antes do movimento de Direito Alternativo.
Nessa obra de Direito Civil Alternativo, seus escritores preocupam-se menos em conceituar
Direito Alternativo e uso alternativo do Direito, para centrarem seus textos na produção de uma
doutrina alternativa, ou seja, efetuam análises de textos legais ou de institutos jurídicos positivos,
principalmente a posse e propriedade de terras, dentro de uma perspectiva ideológica comum, qual
seja apoiar as classes menos favorecidas da sociedade.
Finalizando o estudo sobre os advogados, cabe mencionar o primeiro livro publicado (1991)
sobre o movimento, intitulado Justiça Alternativa, de autoria de Elicio de Cresci Sobrinho289. Ao
contrário do que possa sugerir o título, não se trata de um estudo filosófico sobre o conceito de
Justiça sob a ótica alternativa. Para Elicio, Justiça Alternativa é o nome do próprio movimento. A
obra fala um pouco de tudo, mas em sua essência cinge-se ao uso alternativo do Direito, ou seja, à
aplicação do justo no caso concreto. Não conceitua, entretanto, o significado desse justo. Para ele, o
juiz deve ser menos positivista, deve relativizar a segurança jurídica, para ater-se ao justo, sinônimo
de social, real. Por várias vezes utiliza, concordando com elas, as categorias conceituais do Direito
Burguês, como, por ilustração, a de “bem comum”. Este fato, aliás, dá-se, também, com outros
juristas alternativos.
Ao que parece, seu entendimento sobre Justiça é, nada mais, nada menos, o retorno ou a
retomada do jusnaturalismo.
“A Jurisprudência Alternativa do Rio Grande do Sul aproveita-se de legados do
movimento do direito livre sem, no entanto, afastar a contribuição da jurisprudência dos
interesses, da lógica material de SICHES, do direito natural, caminhando para o ecletismo,
desde que tudo se faça em benefício do bem comum.” (...) “Ora, sem incorrer nos
extremismos do chamado 'direito livre', isto exprime muito da função judicial que não é a
de aplicar a lei, mas de concretizar o justo.”290
Não é objetivo do presente trabalho entrar em estudos específicos sobre alguns ramos do
Direito, motivo pelo qual não se resumirá o conteúdo das demais obras, recomendado-se,
entretanto, a leitura das mesmas, pois tratam-se de trabalhos interessantes. São: “Direito e Reforma
Urbana”, Nelson Saule Júnior, p. 21-37; “A Nova Proteção Possessória”, Sérgio Sérvulo da Cunha,
287
Ibid., p. 61.
288
“Direito Civil Alternativo” in Lições de Direito Civil Alternativo, Op. cit, p. 11-20.
289
Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, 228 p.. Também deste jurista: “Justiça Alternativa e Sentimento.”,
in Revista de Direito Alternativo, nº 2, Op. cit., p. 82-83.
290
CRESCI SOBRINHO, Elicio. Justiça alternativa. Op. cit., p. 67 e 97.
p. 38-56; “Direito Insurgente do Negro no Brasil: Perspectivas e Limites no Direito Oficial, Dimas
Salustiano da Silva, p. 57-71 e “Aspectos da Humanização das Audiências de Instrução e
Julgamento”, Cyro Marcos da Silva, p. 83-90, todos do livro Lições de Direito Civil Alternativo,
op. cit.. O mesmo se dá com “Sistema de Relações Industriais no Brasil: A Transição do
Corporativismo à Liberdade Sindical”, Flávio Antonello Benites Filho, in Lições de Direito
Alternativo do Trabalho, op. cit., p. 50-65; “Esquisitice de Juiz (Dois Novos Fundamentos para a
Rejeição da Denúncia)”, Edson Vieira Abdala, in Lições Alternativas de Direito Processual, op. cit.,
p. 59-66.

2.6. Professores

Antônio Carlos Wolkmer é um jurista teórico bastante profundo, e seus trabalhos costumam
ser complexos. Sempre busca a essência dos temas em discussão, alcançando uma produção
intelectual de alta seriedade. Diretamente relacionado com o pensamento alternativo, possui dois
textos -”Contribuição para o Projeto da Juridicidade Alternativa” e “Direito Comunitário
Alternativo: Elementos para um ordenamento teórico-prático”- publicados, respectivamente, nos
livros Lições de Direito Alternativo, nºs 1 e 2. Há um outro “Teoria Crítica e Pluralismo Jurídico”,
na revista Direito Alternativo, Seminário Nacional sobre o uso alternativo do Direito. Seu último
trabalho foi o livro “Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito”291, uma
obra densa e complexa, com estudo aprofundado do tema pluralidade jurídica, um dos mais
polêmicos hoje no Brasil. Também possui vários outros textos e livros sobre assuntos não estudados
neste trabalho.
Crê estar o modelo jurídico tradicional submetido a uma crise de hegemonia. Na formação
do Direito Estatal contemporâneo há, segundo seu pensamento, duas matrizes político-ideológicas,
quais sejam: o jusnaturalismo e o positivismo jurídico. O positivismo é concebido como a expressão
maior do racionalismo moderno, como a ciência das sociedades industriais avançadas, como, até
mesmo, uma forma de vida. No âmbito do jurídico, o positivismo está caracterizado pelo legalismo
dogmático e o cientificismo técnico-jurídico. O Estado “liberal-burguês-capitalista” produz um
modelo de cultura (padrões de conduta da vida humana) delineada pelos paradigmas do idealismo
individualista, racionalismo liberal e formalismo positivista. Para Wolkmer, esses paradigmas não
mais atendem às necessidades da sociedade civil, principalmente nos países capitalistas periféricos,
onde as demandas sociais, criadas pelos movimentos organizados, abalam-nos e questionam-nos,
exigindo a criação de novos referenciais de conduta.
Está aberto o caminho para o alternativo, para a criação de um “novo Direito”. Esse projeto
passa, nos dias atuais, obrigatoriamente, “pela redefinição de uma racionalidade emancipatória, pelo
questionamento dos valores e pela fundamentação de uma ética política da 'práxis comunitária', pela
redescoberta de um 'novo sujeito histórico' e, finalmente, pelo reconhecimento dos movimentos e
práticas sociais como fontes geradoras do pluralismo jurídico.”292 Mais adiante complementa essas
questões básicas de discussão, acrescentando: 1) a necessidade de formulação de uma ética política
libertadora (dialógica-consensual); 2) a práxis pedagógica de um discurso crítico, para conscientizar
e emancipar; 3) a materialização da “juridicidade alternativa” assentada nos pressupostos da
alteridade, solidariedade, pluralismo, mobilização e participação. Todas essas questões são
prolegômenos do “Novo Direito”.
Critica a racionalidade instrumental, entendida como lógico-formal, tecno-instrumental, e
indica a racionalidade prático-comunicativa, tida como dialógica-consensual, reflexivo-
291
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico : fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo, Editora
Alfa-Omega, 1994, 349 p.
292
WOLKMER, Antônio Carlos. Contribuição para o projeto da juridicidade alternativa. In Lições de Direito
Alternativo 2. Op. cit., p. 31.
transcendental. Efetuando uma “ponte conciliadora” entre estas formas de racionalidade, propõe,
com fundamento em Apel, uma norma fundamental, de conteúdo moral, denominada “ética da
responsabilidade”.
“Essa proposta de racionalidade ético-jurídica de cunho alternativo deverá partir da
própria história das nações emergentes periféricas, que, embora se trate de uma
experiência regional e particularizada, poderá, também, em uma nova estrutura de poder,
ter condições de elevar a 'juridicidade alternativa' à categoria de universalidade
emancipatória.”293
Não aceita o monismo jurídico e sugere uma mudança paradigmática no Direito, para
construir um novo fundamento de validade e um espaço societário de auto-regulação autêntica.
Propõe um “Direito Comunitário”, com fundamento em várias fontes de produção normativas.
Busca pensar o fenômeno jurídico de forma diversa à tradicional positivista, vendo nas lutas e
conquistas da sociedade, dos movimentos populares, uma nova práxis de produção de Direito.
Admite ter a Justiça vários significados, mas esse “Novo Direito” deverá ter compromisso
com a Justiça social, conceituada como a igualdade de oportunidades e condições de vida, ou
oportunidades iguais no processo de produção e distribuição de bens. “Ainda que se possam
reconhecer inúmeros significados para a Justiça, o sentido específico que interessa operacionalizar
aqui é o da Justiça social relacionada às necessidades por igualdade de oportunidades e condições
de vida. (...) A Justiça em sua dimensão social e política define-se pela satisfação das necessidades
mínimas e justas que garantam as condições (materiais e culturais) de uma vida boa e digna.”294
Dá grande importância ao papel dos movimentos sociais organizados na construção de
“Novo Direito”, tendo-os como uma fonte privilegiada de produção jurídica dentro do pluralismo
jurídico. Admite, entretanto, que nem toda a manifestação normativa fora do Estado é justa e
legítima, exemplificando com o crime organizado, a Ku-klux-klan e os Esquadrões da Morte. Para
resolver o problema sobre qual o direito não-estatal que deve ou não ser cumprido, alega: “A
ausência de respeito à vida humana, de eticidade e do valor 'justo' esvazia a validade desses
'direitos' ou dessas práticas irracionais de 'Justiça'. Portanto, a legitimidade dos direitos produzidos
pelos agentes coletivos emergentes depende intimamente do 'justo', do 'ético' e do respeito à vida
humana.”295
Sob um novo paradigma jurídico, o Direito Estatal ficará subordinado ao Direito
Comunitário. Quando houver choque entres estes Direitos, o conflito será decidido, dependendo do
momento histórico. Em se tratando da “transição paradigmática”, a solução se dará por supremacia
de um dos dois, por complementação e por interdependência. Quando, em um momento posterior,
já “no interior do novo paradigma”, o dilema não estará na disputa do Direito Estatal com o Direito
Comunitário, mas entre o Direito justo e o Direito injusto. Entende necessário estabelecer critérios
para conceituar o justo, bem como saber-se quem terá legitimidade para dizê-lo. Quanto a esta, não
está o texto claro. Em relação àquele, diz: “Na medida em que o critério do 'justo' resulta daquilo
que os grupos comunitários reconhecem como tal, correspondendo eficazmente aos padrões de vida
cotidiana almejada pelas coletividades submetidas às relações de dominação, a noção de Justiça
acaba se constituindo numa necessidade por liberdade, igualdade e emancipação.”296 Seu
pensamento sobre o conceito de Direito justo e injusto fica mais explícito na seguinte passagem:
“Prevalecendo o Direito mais justo, há que estabelecer os critérios e a medida do que seja 'justo',
bem como há que saber quem terá legitimidade para dizer o que seja mais 'justo'. Neste caso, o

293
Ibid., p. 37.
294
WOLKMER, Antônio Carlos. Direito comunitário alternativo: elementos para um ordenamento teórico-prático. In
Lições de Direito Alternativo 2. Op. cit., p. 133.
295
Ibid., p. 135.
296
Ibid., p. 133-134.
'justo' é definido por aquilo que corresponde às aspirações legítimas e à satisfação das necessidades
estabelecidas democraticamente pela própria Sociedade. Não é preciso ir muito longe no
argumento: se o Direito Comunitário expressa diretamente as aspirações da sociedade como um
todo, e o Direito Estatal defende os intentos de grupos privilegiados e de minorias elitistas, não há
dúvida de qual deva prevalecer...”297
Fala da supremacia do “Direito justo” e da perda de sentido da separação entre Estado e
Sociedade, entre Público e Privado.
Adverte para o perigo de um pluralismo jurídico conservador, oriundo de um discurso
neoliberal, onde o Estado é disseminado na própria sociedade civil e ressalta o pluralismo
progressista de teor “democrático-popular”.
Assevera ser impossível a construção de uma cultura jurídica informal com a ausência do
Estado. O Estado deverá ficar submetido à fiscalização da comunidade, e sua atividade deve
restringir-se a reconhecer e garantir Direitos emergentes.
Todas estas idéias são aprofundadas no livro “Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma
nova cultura no Direito.”, no qual procura sistematizar uma teoria, para fundamentar um novo
paradigma para o político e o jurídico. Sua proposta pode ser assim resumida:
1) O monismo estatal, como projeto da modernidade burguês-capitalista, encontra-se sob
profunda crise de hegemonia, causando disfunções do paradigma jurídico tradicional, bem como o
esgotamento do instrumental jurídico estatal, por não mais atender às demandas sociais, bem como
por não mais conseguir fornecer orientações, diretrizes e normas capazes de nortear a convivência
social ;
2) Os problemas de legitimidade do paradigma jurídico positivista agravam-se em nações
do capitalismo periférico, como o Brasil, devido às graves contradições sociais, ao alastramento da
miséria e da fome, bem como pelo crescimento das reivindicações da sociedade civil;
3) Informalmente já existe uma nova cultura jurídica, e suas fontes de produção podem ser
vistas nos movimentos sociais, como novos sujeitos coletivos que se tornam fontes de produção
jurídica e nas necessidades básicas do povo consideradas como fator de validade de “novos”
direitos;
4) O novo paradigma será construído dentro do pluralismo jurídico, que tem sua luta
direcionada contra o estatismo e o individualismo.
“Torna-se imperativo que o pluralismo como novo referencial do político e do jurídico
necessariamente está comprometido com a atuação de novos sujeitos coletivos
(legitimidade dos atores), com a satisfação das necessidades humanas essenciais
('fundamentos materiais') e com o processo político democrático de descentralização,
participação e controle comunitário (estratégias). Acresce ainda a inserção do pluralismo
jurídico com certos 'fundamentos formais' como a materialização de uma 'ética concreta
da alteridade' e a construção de processos atinentes a uma 'racionalidade emancipatória',
ambas capazes de traduzirem a diversidade e a diferença das formas de vida cotidianas, a
identidade, informalidade e autonomia dos agentes legitimadores.”298
5) O pluralismo jurídico, entendido “como a multiplicidade de práticas jurídicas existentes
num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não
oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais” 299, pode ser
dividido em: a) pluralismo jurídico stricto sensu ; b) pluralidade do Direito e c) pluralidade de
Direitos. O pluralismo jurídico comunitário autêntico, dentro das práticas de Justiça participativa,
busca “reordenar o espaço público individual e coletivo, resgatando formas de ação humana que

297
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico : fundamentos de uma nova cultura no direito. Op. cit., p. 318.
298
Ibid., p. 208-209.
299
Ibid., p. 195.
passam pelas questões da 'comunidade', 'políticas democráticas de base', 'participação e controle
popular', 'gestão descentralizada', 'poder local ou municipal' e 'sistema de conselhos'“300. Sua divisão
pode ser assim efetuada:
a) pluralidade alternativa localizada no interior do Direito Oficial301.
1. convenções coletivas de trabalho;
2. ações propostas por sujeitos coletivos;
3. conciliação, arbitragem e juizado das pequenas causas;
4. “prática” e “uso” alternativos do Direito.

b) pluralidade alternativa no espaço do Direito não-oficial.


1. resolução dos conflitos por via não-institucionalizada;
2. fontes de produção legislativa não-institucionalizadas:
2.1. convenções coletivas de novo tipo;
2.2. acordos setoriais de interesse.

6) A legitimidade do novo paradigma alternativo comunitário dá-se pela produção


normativa extra-estatal, efetuada pelos novos movimentos sociais, tendo em vista as necessidades
fundamentais humanas, a ética concreta da alteridade e uma racionalidade emancipatória (Habermas
e Dussel), dentro de um processo político-democrático e construída com a estratégia de uma
pedagogia emancipadora. Entretanto, há um limite para essa legitimidade, pois toda criação
normativa fora do âmbito do Estado não pode ser considerada, por si só, como legítima. Fica
esvaziado de legitimidade qualquer movimento não comprometido com o “justo”, com o “ético” ou
com o “bem comum”;
7) Por fim, elabora o conceito de Justiça Participativa.
“O conceito de Justiça presente nos movimentos sociais não se reduz a uma proclamação
estática e abstrata, mas se faz através de lutas concretas por oportunidades iguais no
processo de produção e distribuição de bens. A Justiça em sua dimensão social e política
define-se pela satisfação das necessidades mínimas e justas que garantam as condições
(materiais e culturais) de uma vida boa e digna.”302
Horácio Wanderlei Rodrigues é um membro do movimento com maior dedicação ao estudo
do ensino jurídico303. Afastando-se de seu assunto predileto, escreveu um interessante texto
denominado “Direito com que Direito?”304. Partindo do pressuposto de o movimento comportar
duas frentes de luta, uma no nível do instituído e outra no instituinte, efetua uma análise, com base
no pensamento de Kelsen, sobre: a) o conteúdo impreciso das normas jurídicas; b) a ineficácia dos
métodos interpretativos para solucionar essas imprecisões; c) a interpretação jurídica como um ato
de criação de Direito; d) a igual validade todas as interpretações realizadas sobre uma mesma
norma; e) a decisão judicial, em cada caso concreto, sempre direcionada para uma das possíveis
leituras normativas e f) o sentido unívoco atribuído às normas jurídicas visto como ficção. Conclui:
“Outra questão fundamental decorrente do exposto é o desmascaramento da falácia
jurídica, muito utilizada nos meios forenses, de que não é preciso mudar a lei ou fazer

300
Ibid., p. 223.
301
Retoma este tema em: Pluralidade Alternativa no Interior do Direito Oficial. in Revista de Direito Alternativo nº 3,
Op.cit., p. 39-43.
302
Ibid., p. 305.
303
“Por um Ensino Alternativo do Direito: Manifesto Preliminar.” , in Lições de Direito Alternativo 1, Op. cit., p. 143-
154. “Ensino Jurídico e Direito Alternativo”, São Paulo, Editora Acadêmica, 1993, 228 p.
304
In Lições de Direito Alternativo 2, Op. cit., p. 178-207.
novas leis. Basta cumprir as existentes. Fica, frente ao exposto anteriormente, colocada
uma questão fundamental: 'cumprir qual das leituras possíveis?'
Parece claro que toda decisão jurídica é uma opção dentre as várias possibilidades de
decisões, todas jurídicas. O que parece não estar claro é o critério a ser adotado para a
efetivação dessa opção. Frente ao caso concreto há a necessidade de determinar qual a
norma individual a ele aplicável. Se toda norma individual é a concretização de uma das
leituras da norma geral, como se chega a ela?
O que o movimento `Direito Alternativo' traz então de novo se encontra exatamente na
fixação de critérios básicos a serem adotados, em cada caso, na escolha da decisão a ser
tomada. O critério (que consciente ou inconscientemente é sempre político-ideológico)
deve ser a opção pelos pobres, pelos oprimidos, pelas classes e grupos marginalizados e
geralmente expropriados de qualquer Direito.”305
No tocante ao julgamento contra lei, seu raciocínio é no sentido de não se confundir lei com
Direito e, quando aquela for injusta, deve-se optar por este. Apresenta vários quadros
demonstrativos da brutal realidade brasileira com o propósito de justificar a escolha do Direito
Alternativo como uma possibilidade de mudá-la.
Após efetuar um estudo histórico do ensino jurídico-brasileiro, conclui estar o mesmo
atravessando uma profunda crise, fato que não pode ser analisado isoladamente, pois é resultado da
crise da sociedade como um todo, do capitalismo e do liberalismo. A crise é complexa e pode ser
assim dividida: a) Crise funcional, relativa à qualidade de seu produto final. Desdobra-se em crise
de mercado de trabalho e crise de identidade e legitimidade dos operadores jurídicos; b) Crise
operacional, referente à estrutura formal do ensino. Pode ser dividida em crise curricular, crise
didático-pedagógica e crise administrativa e c) Crise estrutural, ou seja, a crise de seus paradigmas
axiológicos. Resulta em uma crise do paradigma político-ideológico e em uma crise do paradigma
epistemológico.
Crê existirem dois caminhos possíveis para a solução dos problemas do ensino jurídico. Um
revolucionário, com a superação do próprio capitalismo, inviável no atual momento histórico. Outro
reformista, a ser praticado na atualidade. Reconhece uma certa autonomia do jurídico, mesmo
dentro de uma sociedade divida em classes, motivo pelo qual acredita ser possível muitos atos de
microrrevoluções, utilizando-se a estratégia de guerra de posição elaborada por Antonio Gramsci.
Para uma possibilidade de saída da crise, há a necessidade, como condição propedêutica, de
se saber o que é Direito, a fim de se chegar a um ensino crítico do mesmo. Decorre a necessidade de
se superar as concepções jusnaturalistas e/ou positivistas predominantes na história do ensino
jurídico. É necessário abandonar o método lógico-formal-dedutivo, para se chegar à dialética. O
importante é a elaboração de um novo método, dialético, interdisciplinar e com metas claras.
“Os diversos objetivos dos movimentos críticos podem ser agrupados em dois blocos
diferenciados: um de atividades teóricas e outro de práticas. O primeiro compreende
aqueles que dizem respeito à construção de um novo imaginário sobre o fenômeno
jurídico - colocam-se em nível do simbólico. O segundo refere-se ao estabelecimento de
estratégias em nível pragmático, visando modificar as formas de agir vigentes nos
diversos campos do universo jurídico.”306
Entende ter sido eficaz a crítica jurídica em relação ao primeiro objetivo, pois vem
conseguindo desmitificar o discurso positivista tradicional, mostrando toda a carga ideológica nele
embutida. Entretanto, no campo pragmático há um grande vazio, por falta de apresentação, por
parte da crítica jurídica, de soluções, de caminhos e de novas formas de atuar. Nesse campo, a
maior contribuição foi o uso alternativo do Direito.

305
Ibid., p. 191-192.
306
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico e direito alternativo. Op. cit., 1993, p. 138-139.
Defende o Direito Alternativo por ser um movimento prático-teórico, por não abandonar o
estudo da dogmática, por ter a dialética como método científico e ter a Justiça social como
paradigma básico de atuação.
“Deve-se destacar finalmente que é no campo dos objetivos e estratégias que existem as
maiores diferenças entre o Direito Alternativo e os demais movimentos críticos. Estes
ficaram, regra geral, apenas em nível dos objetivos e estratégias acadêmicos (ou teóricos),
com um mínimo de inserção social. Com isso produziram uma crítica contundente e
fundamental da sociedade capitalista e de sua instância jurídica. Não ofereceram,
entretanto, alternativas concretas ou instrumentos de luta em nível da práxis. Foram
insuficientes.”307
Em seu texto “Ensino Jurídico para que(m)? Tópicos para Análise e Reflexão” 308, repisa
muitos conteúdos já apresentados e centra sua atenção na relação entre ensino jurídico e Ordem dos
Advogados do Brasil. Sua última publicação309 analisa uma experiência alternativa concreta, qual
seja, a criação de um Fórum, mais especificamente de uma vara, junto à Universidade Federal de
Santa Catarina, em convênio com o Tribunal de Justiça do mesmo Estado.
Também falando de ensino jurídico existe um texto de João Baptista Herkenhoff 310. Sua
posição coincide, em grande parte, com a do jurista acima estudado. Acrescenta, entretanto, a dívida
externa como mais um dos grandes problemas da educação, pois o governo, para pagá-la, necessita
“sanear” o orçamento, acarretando cortes nos gastos com a educação. Cita-se seu entendimento
sobre o movimento:
“Entretanto, acredito que isto que hoje é chamado de 'Direito Alternativo' constitui uma
soma e uma síntese de diversas vertentes de pensamento, diversas práticas de resistência
no campo do Direito, diversas tentativas de organização e de militância. Dessas vertentes
de pensamento, prática e organização, algumas são anteriores e outras são posteriores à
eclosão do Movimento do Direito Alternativo.”311
João Batista Moreira Pinto312 realizou um trabalho empírico, pesquisa de campo, analisando
os novos movimentos sociais e suas visões e relações com o mundo jurídico. Trata-se de
organizações populares, na sua grande maioria originadas sob os auspícios da religião católica,
surgidas nas décadas de 70 e 80, sob o regime ditatorial militar, pautadas em reivindicações de
determinados setores da sociedade civil, como resposta à situação de miséria, e de profundas
necessidades da população brasileira em geral. Como características gerais podem-se citar: “a)
revalorização cultural e pessoal; b) constituição de uma 'nova cultura política de base; c) uma ação

307
Ibid., p. 170-171.
308
Revista de Direito Alternativo nº 3, op. cit., p. 140-156.
309
“Fórum da UFSC: Experiência Alternativa de Concretização da Garantia de Assistência Jurídica Integral e Gratuita”,
in RODRIGUES, Horácio Wanderlei (org.) Amílton Bueno de Carvalho, Antonio Cláudio da Costa Machado, et al.
Lições alternativas de direito processual. São Paulo, Editora Acadêmica, 1995, 227 p.
310
“Ensino Jurídico e Direito Alternativo: reflexões para um debate”, in Revista de Direito Alternativo nº 2, Op. cit., p.
84-90. Herkenhoff é muito respeitado dentro do movimento alternativo, e suas obras exercem grande influência em seus
militantes. Trata-se de uma pessoa com grande experiência de vida e profissional, pois já foi advogado, promotor de
justiça, juiz do trabalho e juiz de Direito, além de professor, com pós-doutoramento nas Universidades de Winsconsin
(EUA) e Rouen (França). Um dos seus grandes méritos, entretanto, é o de ter sido um dos primeiros combatentes contra a
injustiça social e o Direito “para os ricos”. Em plena ditadura militar, quando a prática do seqüestro, da tortura e do
assassinato era comum, para assegurar a “ordem” e a “segurança”, a voz do magistrado Herkenhoff já se levantava,
pedindo democracia e justiça, sendo, por isso, processado por seus superiores. Ver nota nº 8.
311
Ibid., p. 86.
312
“A Ação instituinte dos novos movimentos sociais frente à lei”, in Lições de Direito Alternativo 2, Op. cit., p. 15-24 e
“Direito e novos movimentos sociais”, São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, 94 p.
política libertária; e d) um projeto de sociedade socialista.”313 João Batista os conceitua da seguinte
forma:
“Espaços de organização social onde se estabelecem relações que possibilitam uma
revalorização cultural e pessoal, se constitui uma nova cultura e práxis política, orientadas
por um projeto de sociedade libertário, que os torna sujeitos coletivos que criam base de
autonomia numa sociedade em construção.”314
Esses movimentos entendem por Direito suas necessidades, mesmo distanciadas da lei
positiva. Não acreditam na possibilidade de conquistar seus “direitos” pela via instituída, mas, sim,
pela luta cotidiana. Os aspectos jurídicos não são relevantes, mas sim os políticos. Não acreditam no
Poder Judiciário e nos juristas, principalmente magistrados e juízes, sempre vistos à distância, com
receio, descrédito e desconfiança. Compreendem a divisão da sociedade em classes e a utilização da
lei e da estrutura judiciária por parte “dos ricos”, portanto, instituições contrárias a seus interesses.
Uma palavra de uso diário nesses movimento é Justiça. A compreensão da mesma dá-se inserida no
contexto social, e não de forma individualizada, a ser conquistada com muita luta.
Há uma duplicidade na conceituação de Justiça. “Essa proposta de sociedade justa
aproxima-se de duas outras: a do 'reino de Deus' e a do 'reino do comunismo.'“ 315 Uma grande parte
desses movimentos sofre influência direta da Teologia da Libertação e, por corolário, seu
entendimento sobre o significado de uma sociedade justa é delimitado pela utopia da Justiça do
reino de Deus. Uma outra parte não se vincula à teologia e busca uma sociedade igual a partir de
uma perspectiva comunal, vinculada à utopia comunista. Não há, entretanto, segundo pensa, um
confronto entre essas visões, pois os católicos também acreditam em uma sociedade socialista.
Na atuação prática desses movimentos não se dá muita importância à lei estatal, havendo
consciência de uma atuação fora da lei. Muitos não contam com assessoria jurídica, outros
contratam, esporadicamente, advogados, e poucos possuem assessoria jurídica permanente. Eles não
detêm conhecimento do Direito Positivo e não se preocupam em conhecê-lo, mas têm bem claro um
entendimento político sobre Direito e Justiça. Há, em relação ao mundo jurídico oficial, três
posturas: 1) não dar qualquer importância, ignorando-o; 2) dar alguma importância, utilizando-o vez
por outra e 3. dar importância, buscando realizar um trabalho político/jurídico.
Esses movimentos, em realidade, buscam criar as bases de uma nova cultura instituinte, aí
incluíndo o jurídico, na busca de conquista de “direitos” (suas necessidades) com base em suas
lutas, de confronto com os detentores do poder, e não na espera de uma boa legislação ou da
efetivação de Justiça por parte do Poder Judiciário. Aponta como um “obstáculo” à concretização
dessa nova cultura a falta de investimento desses movimentos na reflexão sobre a atuação jurídico-
política, forma de combater o domínio da cultura jurídica instituída.
Eliane Botelho Junqueira316 realiza uma análise do processo francês de substituir a
regulamentação estatal pela regulação da sociedade civil, acarretando uma informalização da
Justiça. Conclui que o movimento alternativo brasileiro não busca a criação de respostas societais e
lugares de regulação autônomos. Afirma: “a não ser sob uma forma perversa (como a que vem
caracterizando o modelo do alternativo ao direito oficial317), todos os demais movimentos

313
PINTO, João Batista Moreira. Direito e novos movimentos sociais. op. cit. p. 33.
314
Ibid., p. 41.
315
Ibid., p. 52.
316
“O Alternativo Regado a Vinho e a Cachaça”, in Lições de Direito Alternativo 2. Op. cit., p. 95-114.
317
Neste ponto a autora demonstra não conhecer, em profundidade, a proposta alternativa de um direito paralelo ao
oficial, pois a confunde com a ordem jurídica tirânica criada e controlada pelo crime organizado. Como já foi visto, os
defensores do pluralismo jurídico colocam os novos movimentos sociais como os legítimos autores dessa nova forma de
produção jurídica e deixam bem claro que nem todas as manifestações normativas extra-estatais (como as mencionadas
pela autora) são alternativas.
alternativos produzidos no Brasil ou são conduzidos pelo próprio Estado ou objetivam penetrar na
ordem jurídica estatal, invertendo o caminho percorrido nos países centrais.”318
Diante das constantes críticas dos juristas tradicionais aos juízes gaúchos que iniciaram o
movimento alternativo, Luiz Fernando Coelho319 escreveu artigo em defesa dos mesmos, no qual
efetua um estudo histórico da teoria crítica do Direito, demonstrando não ser nada nova a idéia de
julgar contra as leis injustas. Em relação à função do julgador, conclui:
“Quanto ao papel do juiz, reitero o que já escrevi em meu livro sobre a lógica jurídica e a
interpretação das leis, que a resistência às leis injustas deve começar pelos juízes, o
segmento da sociedade que, em função de conquistas que obteve após muito trabalho e
enfrentando muita incompreensão, transformou-se não somente no derradeiro refúgio das
reivindicações sociais, mas no único setor realmente aparelhado para resistir aos
desmandos e às tentativas autoritárias.”320
De enorme lucidez é o texto de Agostinho Ramalho Marques Neto, denominado “Direito
Alternativo e Marxismo - Apontamentos para um Reflexão Crítica” 321. Se devidamente lido,
compreendido e praticado, poderá evitar que o discurso alternativo se torne mais uma forma de,
falando em libertação, implantar um autoritarismo e/ou totalitarismo.
Para ele, o Direito Alternativo não pode ser considerado e estudado de forma autônoma, por
si só, pois importa, necessariamente, a idéia de um outro Direito ao qual pretende ser uma
alternativa. É necessário estabelecer-se o conceito desse outro Direito, ou seja, de se efetuar uma
escolha política e teórica para realizar essa delimitação. O Direito Alternativo, visto como aquele
surgido espontaneamente da sociedade, com instâncias informais de decisão, o pluralismo jurídico
já analisado, pretende ser alternativa ao Direito Oficial, aquele emanado do Estado. Esse é o seu
outro. Nesse enfoque, necessária uma primeira preocupação: não pretender o discurso alternativo
ser uma completude ou falar em nome de uma unidade, de uma nova verdade ou harmonia. Isso
impediria outras formas de alternatividade. Acabaria com o conteúdo crítico e criaria um novo
dogmatismo.
Efetua uma análise conceitual da visão dos juristas membros do movimento sobre Direito
Alternativo e apresenta suas duas bases principais, quais sejam: 1) atender, prioritariamente, aos
interesses das classes oprimidas e, por isso, 2) revestir-se de forte teor de Justiça social. Em relação
à primeira, afirma ser necessário, para sua existência, seu exercício no “interior de uma sociedade
constituída de classes que mantenham entre si relações de dominação.”322 Portanto, no entender dos
militantes alternativos (nem todos), o Direito Alternativo se identifica com o Direito dos oprimidos,
sendo, portanto, progressista e libertador, ao mesmo tempo em que seus membros são
vanguardistas, incorruptíveis, os únicos comprometidos com a verdadeira Justiça e com os novos
rumos da história. Nesse ponto apresenta sua primeira importante advertência. Esse discurso não
passa de mais uma concepção unívoca do Direito, uma nova verdade (dogma), com a pretenção de
esgotar todo o espaço da alternatividade jurídica.
Narra haver um acordo entre os alternativos, ao reconhecerem um maior teor de Justiça no
Direito Alternativo em comparação com o Direito Oficial, burguês, devido a sua opção pelos
oprimidos. Demonstra, entretanto, existir uma diferença em relação à concepção de Justiça como
atributo da juridicidade alternativa. Uns buscam fundamentação “na retomada de certos princípios
cardeais do Direito Natural, seja na versão que lhe conferiu o iluminismo moderno, seja em
algumas de suas roupagens contemporâneas, sobretudo dentre aquelas surgidas a partir da
318
Ibid., p. 113.
319
“Do Direito Alternativo”, in Revista de Direito Alternativo, nº 1, Op. cit., p. 9-18.
320
Ibid, p. 18.
321
In Revista de Direito Alternativo, nº 1, Op. cit., p. 37-53.
322
Ibid., p. 42.
concepção stammleriana, de fundo kantiano, de um direito natural de conteúdo variável.” 323 Trata-
se, portanto, da existência de princípios naturais e racionais estabelecidos a priori. Um segundo
grupo busca fundamentar a Justiça em conquistas históricas irrevogáveis da civilização, advogando
a existência de um consenso universal no mundo civilizado sobre as mesmas. É uma visão tida
como socialista e democrática da Justiça e do Direito.
Exercendo mais uma vez sua perspicácia, afirma o autor:
“A suposição, subjacente a essa identificação, de que os direitos dos oprimidos são por
essência justos, não é logicamente necessária nem evidente por si mesma. Mesmo numa
sociedade como a brasileira, por exemplo, em que o ordenamento (?) jurídico oficial não
raro é um escárnio à cidadania e uma expropriação dos direitos da grande maioria da
população, não é correto afirmar como assertiva que não conhece exceção que as normas
consensuais, brotadas mais ou menos espontaneamente da dinâmica das relações sociais
ou instituídas a partir da organização dos movimentos populares (às quais se podem
legitimamente atribuir os requisitos de validade e eficácia, freqüentemente em grau
superior ao das normas estatais), sejam só por isso, e sempre, e necessariamente, menos
discriminatórias que as regras oficialmente positivadas. Nem é correto afirmar, por outro
lado, com caráter de universalidade lógica ou histórica, que, nas sociedades que como a
nossa, convivem com a realidade de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos, todo e
qualquer ordenamento alternativo seja, por definição, mais justo em sua globalidade que o
ordenamento oficial. Concedo que quase sempre o seja, na realidade, mas afirmar que,
de direito, jamais pode deixar de sê-lo, é ter da alternatividade uma visão idealizada.”324
Além de demonstrar não serem os oprimidos portadores da verdade jurídica ou possuidores
exclusivos do conceito de Justiça, Agostinho Ramalho Marques Neto vai além e procura demonstrar
não ser certo o entendimento de que a prática da democracia leva, necessariamente, ao socialismo.
Também o contrário é incorreto, ou seja, dizer inaplicável o adjetivo democrático ao substantivo
socialismo. Entende que socialismo é uma forma de organizar a produção e repartir recursos,
enquanto democracia é um modo de organizar o poder. “Do sucesso de uma experiência socialista
democrática só a posteriori se pode falar. E dizer, num determinado momento histórico dessa
experiência, que ela está realizada em sua plenitude, significa atribuir-lhe um sentido monolítico,
primeiro passo para a instauração de uma ordem totalitária...”325
Critica a compreensão do marxismo como uma teoria da totalidade da história, bem como a
suposição de ser a realidade uma totalidade, pois, para o ser humano, o real é algo construído. Todo
discurso de verdade é um discurso de poder. “O fato de que o Estado burguês seja - como
efetivamente o é - um aliado da classe dominante não implica, por si só, que o Estado socialista não
o seja (de uma burocracia, por exemplo), assim como o fato de a classe dominante não possuir
maiores compromissos com a democracia não quer forçosamente dizer que a classe dominada os
possua...”326
Critica a ingênua utopia comunista de que os seres humanos, pela via da educação, após o
fim da exploração (das classes sociais) e atendidas todas as suas necessidades, estariam dispostos a
viver em harmonia com seus semelhantes. Essa idéia só demonstra um total desconhecimento da
diferença entre necessidades e desejos. Termina citando Freud.
“Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso
investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa, mas sou capaz

323
Ibid., p. 43.
324
Ibid., p. 44-45. O grifo não consta no original.
325
Ibid., p. 47.
326
Ibid., p. 50-51.
de reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão
insustentável. (...) Se eliminamos os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda
permanecem, no campo dos relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem
a fonte da mais intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob
outros aspectos, se encontram em pé de igualdade. Se também removermos esse fator,
permitindo a liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família, célula
germinal da civilização, não podemos, é verdade, prever com facilidade quais os novos
caminhos que o desenvolvimento da civilização vai tomar; uma coisa, porém, podemos
esperar; é que, nesse caso, essa característica indestrutível da natureza humana seguirá a
civilização. Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa
inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis.”327
Seu último trabalho328 nos escritos alternativos preocupa-se com o estudo do sujeito, com
ênfase aos Sujeitos Coletivos de Direito, tanto sob uma perspectiva jurídica, como, também,
psicanalítica. Neste estudo, reporta-se ao Direito Alternativo, por entender ser a partir de sua noção
que os sujeitos coletivos devam ser analisados. “A esse sujeito coletivo (por exemplo, a atuação
coletiva dos trabalhadores) corresponde, a nível de direito substantivo, o próprio Direito
Alternativo (inclusive seus dispositivos que venham a incorporar-se ao direito oficial); em nível
processual, a ação coletiva, com vista à realização do direito; e em nível dos chamados direitos
humanos, uma nova geração de tais direitos, os direitos coletivos sociais. A natureza jurídica dos
sujeitos coletivos de direito é, portanto, indissociável, na minha opinião, da natureza jurídica dos
direitos alternativos.”329
Celso Fernandes Campilongo330, com base nos ensinamentos de Norberto Bobbio, segundo
o qual os críticos do positivismo jurídico caem em erro ao não conhecerem a existência de vários
“positivismos”, diz passar o mesmo com o Direito Alternativo, pois pode significar uma concepção
teórica do Direito, ou um conceito alternativo de ciência, ou um esquema de interpretação jurídica,
ou, por fim, pode possuir uma forte conotação ideológica. Assim, um alternativo em relação ao
enfoque pode não sê-lo em relação à teoria.
A idéia de um uso efetivo do Direito, mais ou menos o mesmo que o positivismo de
combate falado por Amílton Bueno de Carvalho, foi apresentado por Eduardo Kroeff Machado
Carrion331. Diz: “o voluntarismo subjetivista, repita-se, não parece ser a única alternativa ao
determinismo objetivista, nem o 'governo dos juízes' a única alternativa aos 'juízes do governo'.”332
José Reinaldo de Lima Lopes333 indaga se, em pleno final do século XX, é necessário
retomar a discussão sobre Justiça. Entendendo que sim, vê como novidade na atual reflexão ética a
reunião da teoria com a prática. Para ele, todas as decisões judiciais e todas as justificativas políticas
possuem um discurso prático. Em outro artigo334 exercita uma análise crítica do Direito à moradia.
No II Encontro Internacional de Direito Alternativo335, pergunta se há sentido em discorrer sobre
Direitos Humanos e Democracia em um congresso alternativo, onde todos os participantes, supõe,

327
Ibid., p. 52.
328
“Sujeitos Coletivos de Direito: Pode-se considerá-los a partir de uma referência à Psicanálise?”, in Revista de Direito
Alternativo nº 3, Op. cit., p. 79-92.
329
Ibid., p. 89.
330
“Justiça Alternativa”, in Revista de Direito Alternativo, nº 1, Op. cit., p. 54-56.
331
“O Poder Judiciário, o Juiz e a Lei.”, in Revista de Direito Alternativo nº 1, Op. cit., p. 65-70.
332
Ibid., p. 70.
333
“Voltar à Teoria da Justiça?”, in Revista de Direito Alternativo nº 1, Op. cit., p. 71-76.
334
“Cidadania e Propriedade: Perspectiva Histórica do Direito à Moradia”, in Revista de Direito Alternativo nº 2, Op. cit.,
p. 114-136.
estejam de acordo com a sua conexão essencial e necessária. Responde que sim, devido “a
necessária impostação racionalizadora do tema.”336 Defende os Direitos Humanos como mínimo
ético em uma sociedade e a artesania da solidariedade real como condição necessária para qualquer
democracia.

Um estudo diferente do até agora visto foi elaborado por João Maurício Leitão Adeodato337.
Parte de dois pressupostos: 1) ser o Direito Alternativo um fato e, portanto, passível de ser objeto de
uma descrição e 2) ao não conseguir distribuir sua Justiça a toda população, o Estado
subdesenvolvido não exerce a totalidade do monopólio das decisões, sendo necessário, nesse vazio
decisional, que outra instância julgue os conflitos, ou seja, exerce-se a alternatividade. Sobre essa,
demonstra haver juristas que: a) desconsideram-na; b) aceitam-na, mas só para preencher lacunas ou
inconsistências no ordenamento jurídico estatal; c) admitem sua prática no uso diferenciado do
Direito Estatal, ou seja, o denominado uso alternativo do Direito e d) vinculam-na a uma luta
política e a uma opção pelas classes desfavorecidas economicamente.
Propõe a seguinte definição do Direito Alternativo: “Direito alternativo é um direito
paralelo ao direito estatal, um direito que se oferece como alternativa diante do direito dogmático -
que é o direito estatal contemporâneo por excelência, aquele representado pela lei, pela
jurisprudência, pelos contratos lícitos, etc.”338 Neste ponto não se diferencia dos conceitos já
apresentados. Uma novidade interessante, entretanto, diz respeito a seu estudo sobre a prática da
alternatividade dentro da própria dogmática, onde fatos prescritos não acontecem e outros proibidos
são praticados. São as hipóteses: 1) regra/exceção, ou seja, o legislador introduz termos ambíguos e
genéricos na lei, para permitir sua burla; 2) ficção da isonomia representada pelo uso de pesos e
medidas diferentes na aplicação da lei, dependendo do interesse e da parte em litígio; 3) subsistema
das boas relações, com trocas de favores; 4) o poder militar politizado, introduzido na garantia da
ordem interna; 5) o jeito, ou, no dizer comum dos brasileiros, “jeitinho”, quando sempre se arruma
uma forma de conseguir os objetivos, independentemente da lei; 6) a corrupção; 7) o clientelismo;
8) as formas de procrastinação do feito; 9) a ineficácia da lei, como, por ilustração, manter casas de
prostituição, prática tipificada como crime, mas exercitada em todo o país, inclusive com
propaganda nos jornais e 10) a ficção da hierarquia no sistema jurídico, onde decretos contrariam a
própria Constituição, construindo um outro direito.
Critica a vinculação do conceito de Direito Alternativo a uma moral positiva. Afirma:
“Uma última reflexão a ser feita diz respeito a um erro de avaliação: mesmo diante das
inevitáveis escolhas axiológicas de cada um, é inapropriado definir o direito dogmático
como 'mau' e o alternativo como 'bom', como o fazem os mais desavisados, demonstrando
ingenuidade semelhante à dos dogmáticos que se recusam a ver a produção jurídica
marginal. Como todo direito, o alternativo pode assumir conteúdos morais, imorais ou
simplesmente amorais. Se é fato que os procedimentos jurídicos alternativos podem servir
para adaptar aos casos concretos uma decisão estatal deficiente, ou mesmo para substituí-
la, eles também podem funcionar para burlar e desacreditar toda e qualquer regra e
prejudicar a legitimação do direito como um todo, levando o sistema ao que sociólogos
denominam entropia. (...) O direito, seja ele dogmático ou não, é 'apenas' um instrumento
poderoso de organização social, sendo por si só incapaz de transmitir a voz do bem e do
mal ou satisfazer anseios existenciais.”339

335
“Direitos Humanos, Profissões Jurídicas e Artesania Democrática”, in Revista de Direito Alternativo nº 3, Op. cit., p.
93-104.
336
Ibid., p. 94.
337
“Para uma Conceituação do Direito Alternativo”, in Revista de Direito Alternativo, nº 1, Op. cit., p. 157-174.
338
Ibid., p. 164.
José Eduardo Faria é, sem a menor dúvida, o nome de maior expressão, na atualidade,
dentro da sociologia jurídica brasileira. Escritor de imensa obra, seu pensamento é de fundamental
importância para o Direito Alternativo, sendo um dos nomes mais citados pelos autores membros
do movimento. Este estudo não comporta resumo de todo seu enorme trabalho, portanto, somente
dois textos340, publicados nos escritos alternativos, serão analisados, e isso só no tocante ao tema
central em estudo, o Direito Alternativo.
Dedica muitos de seus estudos à análise do Poder Judiciário. Busca demonstrar sua
ineficácia na solução dos atuais problemas da sociedade brasileira. Fechada em si mesma,
possuidora de uma visão de mundo rigidamente normativista e formalista, a Justiça estatal
organizada insiste na manutenção do dogmatismo e do extremo tecnicismo, buscando, tão-só,
através de um método formal dedutivo, aplicar a legislação em vigor, achando-se neutra e
imparcial. A conseqüência dessa postura é o distanciamento do Judiciário da sociedade civil e sua
desconfiguração como Poder, restando diminuída sua capacidade para resolver conflitos e aplicar
Justiça.
Situa o movimento alternativo dentro das várias reações internas da magistratura frente aos
problemas enfrentados pelo Poder Judiciário. Existem segmentos no interior do Judiciário que
começaram a refletir sobre sua função social, priorizando os seguintes pontos: a) necessidade de
recuperar a credibilidade do Poder; b) necessidade de aprender a lidar com os principais problemas
enfrentados pelo Poder, como: a diversidade, a especialização, a inflação legislativa, a
instrumentalização do Direito pelo Poder Executivo e com a coletivização dos conflitos e c)
necessidade de discutir o conceito de Justiça no seio de uma sociedade urbano-industrial repleta de
desigualdades em todos os setores. Essas reações apresentam propostas diferentes, a saber: 1) de
caráter basicamente estamental, um setor entende poder restaurar a eficácia do Poder Judiciário
resolvendo seus problemas de recursos financeiros. Assim, a solução está em conseguir mais
verbas; 2) de caráter político, há um grupo constituído por magistrados com formação técnico-
profissional mais moderna, defensores dos processos de desformalização, descentralização e
deslegalização. Entendem ser possível ao Judiciário recuperar sua legitimidade com a
desburocratização e com a criação de políticas de aplicação rápida de Justiça, como os juizados de
pequenas causas e 3) de caráter ideológico, com uma visão política aguçada, existem magistrados
(os membros do Direito Alternativo) que propõem uma reformulação nas pautas hermenêuticas dos
Tribunais, com o propósito de direcionar a aplicação do Direito para os desfavorecidos.
Elogia o Direito Alternativo - em particular os juízes que deram início ao mesmo - por sua
coragem de enfrentar os problemas do Judiciário, de questionar as concepções exegéticas
tradicionais e de propor mudanças, mas, ao mesmo tempo, indica seus equívocos e defeitos. O
primeiro deles refere-se à proposta contida no item 3 acima narrado, pois “trata-se originariamente
de uma defesa romântica, conceitualmente imprecisa e impregnada por um certo 'progressismo'
acadêmico e religioso.”341 Também critica o movimento por não efetuar com clareza uma distinção
entre direitos civis e políticos de um lado e direitos sociais e econômicos de outro. Noutros
aspectos, afirma:
“Os juízes que batalham pelo 'Direito Alternativo' também cometeram equívocos, seja ao
deixar sem resposta objetiva a crítica a eles dirigida, no sentido de que não há poder que
possa ser exercido fora da lei, no Estado de Direito, seja ao permitir que a imprensa os
apresentasse de maneira maniqueísta, como 'adversários' das leis vigentes, despertando

339
Ibid., p. 174.
340
“As transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais”, in Revista de Direito Alternativo, nº 2,
Op. cit, p. 35-46 e “O Judiciário e os Direitos Humanos e Sociais: Notas para uma avaliação da Justiça Brasileira”, in
Direito Alternativo, Seminário Nacional sobre o uso alternativo do Direito, Op. cit., p. 5-11.
341
“As transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais.” in Revista de Direito Alternativo, nº 2.
Op. cit., p. 40.
assim uma oposição gratuita e fechando, conseqüentemente, importantes canais para um
diálogo mais conseqüente.”342
Mesmo entendendo produzirem os magistrados alternativos a reação mais contundente
contra a mentalidade formalista dos Tribunais, José Eduardo Faria alega que estes “nem sempre
conseguem explicar se estão propondo uma nova ordem jurídica, uma nova hermenêutica para a
ordem jurídica vigente ou novos paradigmas doutrinários para a reflexão teórica e analítica do
fenômeno legal.”343
Importante ressaltar serem todas essas críticas efetuadas no interior das obras alternativas
(suas revistas), o que demonstra o caráter aberto e democrático do movimento.
Caminhando pela filosofia jurídica, Pedro Moacyr Pérez da Silveira344 começa seu
raciocínio criticando o dogmatismo jusfilosófico e a democracia doutrinária, por
descomprometerem a Filosofia Jurídica de qualquer fim e por gerarem uma perda do sentido do
saber. Em relação ao Direito Alternativo, afirma tratar-se de um “movimento de efetivação prática
da comunhão dos diversos saberes que informam o direito ou que a ele dizem respeito.” 345 É,
portanto, uma prática nascida sem teoria, o “resgate da possibilidade do uso da sensação a enfrentar
a razão.”346 Entende necessário o início de estudos para elaborar uma teoria, em especial na área de
uma epistemologia, meio de se verificar seu comprometimento com um sentido.
Não pretende elaborar uma teoria do Direito Alternativo, mas indica os seguintes
pressupostos para sua elaboração: a) desmitificação da norma enquanto elemento de operação
gnoseológica. O abandono teórico do normativismo positivista não pode significar a ruína da
segurança, o caos das instituições e a desarmonia da jurisprudência. Essa teoria deve servir para
todas as sociedades e não só para aquelas desesperadas e falidas; b) interdisciplinariedade na
formação do conhecimento jurídico; c) comprometimento do saber jurídico com o homem-concreto,
e não com o homem-personagem. As normas, um dizer genérico, devem significar menos que os
conflitos interpessoais, uma relação específica; d) consciência das causas da conflituosidade social;
e) importância prática de seus conceitos. “Um universo de relações humanas concretas, com
conflitos de causas concretas não pode ser abrangido por uma totalidade conceitual abstrata, sob
pena de desvio gnoseológico, o que torna o conhecimento inoperante e sem condições
transformadoras. O sentido de um saber que se embasa na abstração ganha fluxo na inverdade, ou
numa verdade que só vale para o sistema e não tem importância prática.”347 e f) composição de uma
nova Epistemologia Jurídica. “O que se pretende é mapear um saber que pressuponha o Homem
tematizado em bases reais e não em conceitos que aprioristicamente o concebam. Mais ainda não
dizemos sobre essa Epistemologia porque aguardamos as teorias que comporão a feição do que hoje
se denomina Direito Alternativo e que amanhã poderá se chamar, quem sabe(?), de 'teoria das
alternativas humanas face ao Direito'”348
Weber, Habermas e outros filósofos estão equivocados ao pensarem ser a sociedade um
conjunto de indivíduos, onde há conflitos e uma eticidade flutuantes. É o pensamento de Jaime
Yovanovic Prieto349, para quem: “a sociedade é o campo de confronto de classes - desde que elas

342
Ibid., p. 46.
343
“O Judiciário e os Direitos Humanos e Sociais: Notas para uma avaliação da Justiça Brasileira.”, in Direito Alternativo,
Seminário Nacional sobre o uso alternativo do Direito. Op. cit., p. 5.
344
“Por uma filosofia Jurídica do Homem para o Direito do Homem”, in Revista de Direito Alternativo, nº 2, Op. cit., p.
96-113.
345
Ibid., p. 100.
346
Ibid.
347
Ibid., p. 110.
348
Ibid., p. 111.
existem - e, portanto, da contradição dialética dominação-libertação.”350 O Direito Estatal, segundo
seu ponto de vista, representa a ideologia da classe dominante, sendo, pois, um Direito dominador.
Paralelo a ele, na dialética da história, há o Direito de libertação, constantemente construído pelos
dominados.
“Neste processo de construção de autonomia popular, se desenvolve simultaneamente o
Direito para a libertação, expressado em dinâmicas alternativas, usos e costumes próprios,
organizações independentes, regulamentos internos, novas instituições, uma nova filosofia
do Direito, novos conceitos e categorias. Estes novos elementos do Direito para a
libertação, por seu lado, ajudam ao próprio processo da articulação dos dominados,
elevando ainda mais a base do desenvolvimento deste Direito paralelo, e assim
sucessivamente, numa dialética de mútua cooperação e construção simultânea, do Poder
Popular e do Direito Alternativo.”351
O “jogo do bicho”, a loteria ilegal mais conhecida do Brasil, foi objeto de análise de um
estudo efetuado por Francisco Vieira Lima Neto352, quando teorizou sobre o pluralismo jurídico
acerca de um caso concreto. Um apostador ganhador teve negado o pagamento do prêmio por uma
banca de apostas (entidade descentralizada que controla o jogo em uma determinada região), sob o
argumento de não ter recebido o “pule” (um simples pedaço papel comprovando a aposta) do
cambista (pessoa que vende o jogo). A cobrança judicial seria impossível, pois tratava-se de prática
ilegal. Ademais, mesmo na hipótese de o apostador poder usar o aparato judicial do Estado, muitos
anos levaria para receber seu dinheiro. Entretanto, outra via de resolução de conflitos foi utilizada.
Frente ao impasse, os banqueiros (controladores do jogo) se reuniram, primeiro os da cidade onde a
aposta foi efetuada e, posteriormente, por falta de dinheiro destes para pagar o valor e por
entenderem estar inocentes, os grandes banqueiros da cidade de Rio de Janeiro. A decisão destes,
para manter a credibilidade da instituição, foi no sentido de quitar o débito, o que foi feito. Todo o
trâmite para a solução do conflito (negativa de pagamento e recebimento do dinheiro pelo
apostador) demorou um mês.
Como se pode ver, não só existem sistemas jurídicos de resolução de conflitos fora do
controle do Estado, como são, em muitos casos, muito mais rápidos e eficientes, sem entrar no
mérito de serem ou não “justos”. É tão forte tal fato que, em alguns casos, quando o Direito Estatal
funciona, prendendo um grande criminoso, por exemplo, pode resultar em prejuízo e insegurança
para uma determinada comunidade. “Assim é que, a prisão de um traficante importante do 'morro'
pode levar ao retorno de assaltos e violências sexuais para aquela comunidade, porque enquanto lá
exercia o seu comércio, ele também efetuava o controle da ordem, impedindo atos delituosos que
levassem ao pânico a comunidade, já que o caos e a ausência de organização são inimigos de
qualquer atividade comercial.”353
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho354 desenvolve um texto sobre processo penal,
analisando a história deste e, como objeto central do estudo, apresenta qual o papel a ser exercido
por um novo tipo de julgador. Compartilha com Amílton Bueno de Carvalho os pressupostos para a
prática alternativa, quais sejam: 1) necessidade de assumir uma postura ideológica, voltada para a
emancipação do povo, com base na máxima cristã de “vida em abundância para todos”; 2) conhecer
349
“O Direito Alternativo para a Libertação”, in Revista de Direito Alternativo, nº 2, Op. cit., p. 153-157.
350
Ibid., p. 153.
351
Ibid., p. 155.
352
“O contrato do 'jogo do bicho' - um estudo de caso do pluralismo jurídico”, in Revista de Direito Alternativo nº 2, Op.
cit., p. 158-164.
353
Ibid., p. 161.
354
“O papel do novo Juiz no Processo Penal”, in Direito Alternativo, Seminário Nacional sobre o uso alternativo do
Direito, Op. cit., p. 33-43.
o operador jurídico alternativo, o Direito Oficial, também chamado de dogmático e 3) a ação deve
ter como base uma visão interdisciplinar do Direito. Portanto, o julgador deve abandonar as falácias
da neutralidade e da imparcialidade, para assumir de forma clara sua ideologia. “O novo juiz, ciente
das armadilhas que a estrutura inquisitória lhe impõe, não pode estar alheio à realidade; precisa
dar uma 'chance' (questionando pelo seu desejo) a si próprio, tentando realizar-se e, a partir daí, aos
réus, no julgamento dos casos penais. Acordar para tal visão é encontrar-se com o seu novo
papel.”355 Também vê o Direito Alternativo como um movimento, progressista e pluralista, com
uma nova epistemologia, aberta, o que vem propiciando uma nova prática, mais transparente, tudo
com base na chamada Teoria Crítica do Direito, calcada, fundamentalmente, no pensamento dos
juristas Roberto Lyra Filho, Luís Alberto Warat e Luiz Fernando Coelho. Falta-lhe teoria própria,
mas “não há, sem embargo, que começar de novo, dado operarmos com uma epistemologia
crítica356.
Possui um outro texto denominado “Exílio Local: Subsídios para uma Análise Político-
ideológica.”357, no qual não faz referência ao objeto do presente estudo.
Uma visão tricotômica da figura do juiz é apresentada por Willis Santiago Guerra Filho 358.
Para ele, há: a) o juiz tradicional, aferrado à forma clássica de conceber a divisão dos poderes
estatais, ficando o Judiciário em posição subalterna aos demais Poderes no tocante à produção
jurídico-normativa; b) o juiz tolerante, caracterizado por idéias emancipatórias, com o objetivo de
efetuar melhoras nas condições sociais, via reformas no interior da organização judiciária, com o
escopo de realizar, progressivamente, o Estado Democrático de Direito previsto na Constituição
Federal e c) o juiz revolucionário, comprometido com a ruptura da ordem jurídica estabelecida,
vinculado a alguma ideologia coletivista e igualitária, em geral marxista. Defende a segunda
postura, pois o juiz tradicional termina contribuindo para a conservação do status quo, até chegar à
estagnação da sociedade, e o juiz revolucionário atua com ímpeto revolucionário, estimulado por
uma mitologia (em seu entender, a forma como deve ser entendida a ideologia). Não aceita a idéia
dos conflitos sociais como luta entre classes com diferentes ideologias, nas sociedades pós-
industriais da atualidade. A figura do juiz tolerante é a melhor, pois pode atuar à vontade na ordem
jurídica, buscando consolidar o Estado Democrático de Direito, isto sem fórmulas
preestabelecidades em ideologias, para dar solução aos problemas da sociedade.
Com base em Luhmann, Wietholter e outros pensadores, defende a procedimentalização do
Direito como uma narratividade emancipatória, no mundo jurídico-constitucional. Estes
procedimentos, estruturados de forma a permitir a mais ampla participação dos sujeitos coletivos,
podem garantir a democracia nas sociedades pós-modernas.
Possui, também, um estudo intitulado: “Pequena História do Aproveitamento da Força de
Trabalho Humano”, in Lições de Direito Alternativo do Trabalho, op. cit., p. 178-195.
Importante estudo, que poderá contribuir em muito para o aperfeiçoamento de uma teoria
para o Direito Alternativo, foi apresentado por José de Albuquerque Rocha, intitulado O Estado em
Juízo e o Princípio da Isonomia.359 Com fundamento nos artigos 3º e 5º da Constituição Federal,
entende ter um caráter relativo o princípio da igualdade formal de todos perante a lei e justifica um

355
Ibid., p. 43.
356
“Um Novo Ensino do Direito Processual Penal”, in RODRIGUES, Horácio Wanderlei (org.), Amílton Bueno de
Carvalho, Antonio Cláudio da Costa Machado, et al. Lições alternativas de direito processual. São Paulo, Editora
Acadêmica, 1995, p. 81-85.
357
Revista de Direito Alternativo nº 3, Op. cit., p. 123-131.
358
“Judiciário e Conflitos Sociais (na Perspectiva da Pós-modernidade)”, in Revista de Direito Alternativo nº 3, op. cit., p.
105-114.
359
In RODRIGUES, Horácio Wanderlei (org.), Amílton Bueno de Carvalho e Antonio Cláudio da Costa Machado. Lições
alternativas de direito processual. op. cit., p. 90-112.
tratamento legal desigual em determinados casos, para se chegar a uma igualdade material. Seu
raciocínio separa o tratamento desigual do privilégio e da discriminação. Afirma:
“Privilégio e discriminação vêm a ser, pois, desigualdade normativa sem respaldo no
sistema constitucional, não se confundindo com o tratamento normativo desigual que tem
base objetiva e suporte constitucional.
Em última análise, o que se pode dizer é que o artigo 5º, da Constituição, proclamando a
igualdade de todos perante a lei, institui a presunção de paridade de tratamento jurídico,
que só pode ser infirmada diante da demonstração de necessidade de um tratamento
desigual, nos termos dos dispositivos constitucionais do artigo 3º e seus itens, entre
outros, supra-indicados.”360
Defende a igualdade formal como uma importante conquista histórica da humanidade, mas
justifica o tratamento normativo desigual, elencando seus requisitos, pois sua licitude depende de
uma fundamentação objetiva com base constitucional. São: a) diversidade de fato entre as situações
ou sujeitos normativamente desigualados; b) finalidade da desigualdade normativa; c)
constitucionalidade dos fins; d) racionalidade do tratamento normativo desigual e e)
proporcionalidade.
Existem outros trabalhos de professores nos escritos alternativos, mas por não abordarem o
tema central deste estudo, somente recomenda-se-lhes a leitura. São: “ O Juiz-Cidadão”, Marco
Aurélio Dutra Aydos, in Lições de Direito Alternativo 1, op. cit., p. 121-130; “O Judiciário e a
Democratização Adiada: Alternativas”, José Ribas Vieira, in Lições de Direito Alternativo 2, op.
cit., p. 115125; “Processo e Conflito: A Crise de Legitimação das Decisões Judiciais”, Paulo de
Tarso Ramos Ribeiro e “A questão Amazônica e o Direito: meio ambiente, soberania, dívida
externa, desenvolvimento”, Roberto A. O. Santos, ambos na Revista de Direito Alternativo, nº 1,
op. cit., respectivamente, p. 77-94 e 130151; “O Imaginário dos Juristas”, Roberto A. R. de Aguiar,
“Ciência do Direito e Filosofia Jurídica no limiar do terceiro milênio: para além de um pré-
iluminismo?”, Cláudio Souto, “O Castigo do Crime Versus o Crime do Castigo. A Justiça do Ódio
ou a Justiça do Amor”, Marcelo Blaya Pérez, “Verdade ou Mentira? Uma Perspectiva Comparada
do Processo (Brasil/EUA)”, Roberto Kant de Lima, “O Direito na Modernidade: um Estudo
Habermasiano”, Albano Marcos Bastos Pêpe, “Independência do Juiz e Estrutura do Judiciário”,
José de Albuquerque Rocha, todos in Revista de Direito Alternativo nº 2, op. cit., respectivamente,
p. 18-27, 28-34, 47-59, 60-73, 91-95 e 137-149; “O Novo Direito Civil: Naufrágio ou Porto?”, Luiz
Edson Fachin; “A Compra e Venda no Direito Internacional Privado”, Maria Helena Diniz;
“Pluralismo Jurídico e as Posses Agrárias na Amazônia”, José Heder Benatti e Antonio Gomes
Moreira Maues e “Código de Defesa do Consumidor: Ideologia, Direito e Defesa”, Sílvio Donizete
Chagas, todos in Lições de Direito Civil Alternativo, op. cit., respectivamente, p. 72-75, 91-103,
130-150 e 151-164; “Sindicalismo e Cidadania”, Josecleto Costa de Almeida Pereira, in Lições de
Direito Alternativo do Trabalho, op. cit., p. 81-92; “A Crise da Racionalidade Jurídica”, Néviton de
Oliveira Batista Guedes; “Razão Jurídica e Direito”, Luís Inágcio Lucena Adams; “Magistratura:
Ideologia e Condição Social”, Ronaldo Busnello, todos in Razão e Racionalidade Jurídica, op. cit.,
respectivamente, p. 13-29, 30-39 e 73-84; “A crise do Estado: Da Modernidade Central à
Modernidade Periférica — Anotações a partir do Pensamento Filosófico e Sociológico Alemão.”,
Marcelo Neves, in Revista de Direito Alternativo nº 3, op. cit., p. 64-78; “Tutelas Diferenciadas e
Realidade Social”, Luiz Guilherme Marinoni, “Conceito de Justo Título para Efeito de Usucapião
no Direito Brasileiro”, Manoel Caetano Ferreira Filho e Paulo Ricardo Schier, “Sincretismo
Jurídico ou Mera Esquizofrenia? A Lógica Judicial da Excludência e a Organização Judiciária
Brasileira”, Roberto Kant de Lima, “Teoria Geral do Processo: em que Sentido?”, Willis Santiago
Guerra Filho, in Lições Alternativas de Direito Processual, respectivamente, p. 132-143, 144-158,
159-198 e 212-227.

360
Ibid. p. 97.
2.7. Estudantes

Paulo Ricardo Schier361 entende que o uso alternativo do Direito não surgiu a partir do
nada, mas é fruto de uma produção teórico-crítica elaborada no Brasil, principalmente, por Roberto
Lyra Filha, Luis Alberto Warat, Luiz Fernando Coelho e Roberto Aguiar. Vê nessa prática
hermenêutica uma nova proposta ontológica para o mundo jurídico, tendo como reflexo uma nova
axiologia jurídica. Afirma: “o uso alternativo do Direito tem como fundamento uma epistemologia
crítica; como fim uma opção axiológica assumidamente crítica e como meio uma hermenêutica,
cambiável de acordo com os valores em jogo no caso concreto, podendo passar inclusive por
métodos interpretativos gramaticais ou até chegar ao julgamento 'contra legem' (mas apenas
aparentemente, pois no plano intrasistêmico o uso alternativo do Direito atua sempre na
legalidade).”362
Para ele, o Direito é um fenômeno eminentemente histórico e, em conseqüência, ideológico.
Sua construção conceitual tem marca política, não neutra e está à serviço da dominação. Os
dominadores, para legitimarem-se, abrem espaços para os dominados no seio do Direito, espaços a
serem aproveitados pelo uso alternativo do Direito, a fim de servirem-se do discurso da legalidade
dos dominadores contra a dominação.
Uma questão fundamental do Direito Alternativo é enfrentada por Rafael Damasceno363, ao
tentar responder a seguinte pergunta: movimentos localizados na superestrutura político-jurídica do
Estado, como os juízes alternativos, podem produzir uma prática transformadora em benefício das
camadas populares? Para responder a indagação, parte de uma crítica à Teoria Geral do Estado,
tradicionalmente elaborada. Em seguida, estuda as concepções de Hegel e Marx sobre Estado,
Sociedade Civil e Direito. Passa por Kautsky, Lenin, Pashukanis e Vychinsky. Aprofunda-se um
pouco em Gramsci, principalmente nos conceitos de bloco histórico, Estado ampliado e revolução
processual. Finaliza com um estudo sobre Poulantzas. Interessa-lhe, em especial, a idéia de Estado
ampliado (sociedade política - sociedade civil), bem como a existência de contradições ideológicas
dentro do mesmo, o que desmascara o discurso de sua universalidade, unidade e neutralidade. Há,
portanto, espaço para movimentos na superestrutura político-jurídica do Estado, sendo possível a
prática de revolução processual. Chega a estas conclusões com base em que:
“a) o Estado não é somente 'Sociedade Política', encarregada da coerção, mas 'Sociedade
Civil', ou seja, hegemonia (ideológica) de classe - (Gramsci).
b) o aparelho de Estado (Sociedade Política) não é mero reflexo da dominação de classe,
mas reflete contradições, sendo campo possível da 'guerra de posições' - (Poulantzas).
Desta maneira, é possível pensar-se em um deslocamento do Estado em favor das massas
populares, através da guerra de posições na área judicial.”364
Está consciente da impossibilidade de se fazer uma revolução via Direito, mas não
abandona o espaço jurídico como mais um campo de luta para buscar a mudança do bloco histórico.
“Os operadores jurídicos 'alternativos' vinculam-se ideologicamente com as massas, sendo
a 'Teoria Crítica do Direito' e as expressões do 'Direito Alternativo' os instrumentos
teóricos elementares para a formação da 'ideologia jurídica' do novo Bloco Histórico que

361
“Uso alternativo do Direito”, in Revista de Direito Alternativo, nº 2, Op. cit., p. 74-81.
362
Ibid., p. 74-75.
363
“Considerações sobre Estado, Direito e Mudança Social”, in ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. (org.) Katie
Silene Cáceres Argüello, Luiz Ignácio Lucena Adams, et al. Razão e racionalidade jurídica. São Paulo, Editora
Acadêmica, 1994, p. 53-72.
364
Ibid., p. 68.
se quer construir, enquanto que o positivismo formalista é a expressão acabada da
ideologia jurídica hegemônica no atual estágio.
Estes operadores jurídicos identificados com as classes populares são, portanto, seus
'intelectuais orgânicos' no plano do jurídico.”365
Tentando corrigir um débito histórico, o mestrando Salo de Carvalho 366 efetua um bom
estudo sobre a vida e prática do conhecido e criticado juiz francês Magnaud. Este magistrado foi
relegado a uma espécie de ostracismo histórico, ridicularizado como romântico, sonhador, ingênuo
julgador que negava a lei e decidia de acordo com sua consciência e sentimentos. A primeira crítica
efetuada contra o “Bom Juiz” foi proferida pelo jurista progressista François Gény e, a partir dela,
houve uma dogmatização e aderência repetitiva à mesma, isto tanto por juristas identificados com a
dogmática jurídica como com a crítica. A situação constituiu-se, mais ou menos, da seguinte forma:
alguém falou mal de Magnaud pela primeira vez e, deste momento em diante, outros juristas
aceitaram essas críticas passivamente e passaram a repeti-las, sem maiores investigações e
comprovações.
Demonstra que Magnaud, de forma alguma, relegava a lei, mas, bem ao revés, preocupava-
se com ela ao ponto de efetuar várias propostas legislativas de modificação dos textos legais,
sempre buscando normatizar conquistas populares. Sua prática nada tinha de voluntarista, mas, sim,
caracterizava-se por um processo hermenêutico avançado (efetivar justiça no caso concreto) para
uma França em fins do século XIX, caracterizada por profundas diferenças socioeconômicas, em
condições muito parecidas com os atuais países do terceiro mundo.
Com base nessa releitura histórica, efetua uma aproximação entre o Direito Alternativo
brasileiro e a prática de Magnaud, afirmando ser aquele a evolução da práxis deste. Brasil e França,
em momentos históricos diferentes, coincidiam pela profunda crise social e econômica. Nesse
contexto, a vã crítica teórica, sem uma práxis, não surte efeito. Assim, Magnaud e juristas
alternativos partiram para a prática, motivo pelo qual sofreram fortes críticas, muitas vezes as
mesmas, e incomodaram muito o poder instituído.
Salo entende que o pensamento alternativo procura eficácia em três pontos distintos: 1) no
entendimento de ter o ordenamento positivo vigente normas democráticas, sendo importante a
efetivação das mesmas; 2) em uma releitura dos textos legais, ou uso alternativo do Direito,
conforme imprecisão conceitual generalizada na América Latina e 3) no âmbito do pluralismo
jurídico, quando pode existir um conflito entre a norma estatal e a popular, devendo o julgador, com
base nos Princípios Gerais do Direito, negar a primeira, para efetivar justiça com a segunda. A
atividade do juiz Magnaud se enquadra nos itens 1 e 2.
Mencionam-se, ainda, os seguintes textos: “Liberalismo Autoritário: Ensaio sobre a
Questão Trabalhista”, Aires José Rover e “Informatização e Cidadania: Elementos para uma
Reflexão sobre o Direito ao Trabalho”, Katie Silene Cáceres Argüello, ambos in Lições de Direito
Alternativo do Trabalho, op. cit., respectivamente, p. 66-70 e 165-177; “Niklas Luhmann e o
Direito: Elementos para uma Crítica à teoria Sistêmica”, Katie Silene Cáceres Argüello, in Revista
de Direito Alternativo nº 3, op. cit., p. 157-176; “Modernidade e Racionalidade no Direito
Constitucional”, Katie Silene Cáceres Argüello, in Razão e Racionalidade Jurídica, op. cit., p. 40-
51; e “Resenha: Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça.”, in Revista de Direito Alternativo nº
3, op. cit., p. 221-224; “Ministério Público: Inexistência de Legitimatio ad Causam ativa para a
Ação de Dissolução de Sociedade Anônima”, in Lições Alternativas de Direito Processual, op. cit.,
p. 18-42.

2.8. Estrangeiros

365
Ibid., p. 71.
366
“O Fenômeno Magnaud”, in Revista de Direito Alternativo nº 3, op. cit., p. 177-197.
André-Jean Arnaud367 participou, como palestrante, do I Encontro Internacional de Direito
Alternativo, 1991, momento de grande euforia para o movimento, pois era manifesta a sua
consolidação. Não falou sobre Direito Alternativo, motivo pelo qual buscar-se-á apresentar somente
alguns tópicos de suas idéias, mas que exerceram influência em alguns juristas alternativos.
Sua fala centrou-se em um debate, naquele momento importante, sobre a passagem de um
Direito de origem moderna, em crise, para um Direito pós-moderno, assim denominado por falta de
nome melhor. Alguns conceitos não muito debatidos no Brasil, como desregulação,
desregramento, deslegalização, desjuridicização e desjudiciarização, regulação jurídica e
regulação social, passaram à ordem do dia. Sobre esses conceitos, afirma: “O desenvolvimento
destas 'alternativas' assegurará a continuidade da ideologia jurídica tradicional, ao ponto em que a
denominação mesma do processo de deslegalização (o qual se traduz do inglês para o neologismo
'desjuridicização') foi forjada a partir do radical legal.”368
Como idéia nova, com repercussão no movimento brasileiro, o jurista francês apresentou:
“O que é novo é a organização de uma regulação informal e alternativa, não ao ponto do
desaparecimento de uma regulação das relações sociojurídicas, mas da tomada da consciência
progressiva, da complexidade dentro da laboração e da gestão desta regulação.”369
Sobre crise, palavra tão corrente entre os juristas alternativos, diz: “Fala-se de boa vontade
da crise, é um discurso ultrapassado, inútil, ineficaz. É muito mais importante achar a raiz das
causas do mal-funcionamento. Ou bem o programa inicialmente previu que fora defeituoso, ou bem
a idéia que o Direito programou é errônea: fim do Modernismo.”370
Sobre o Direito Pós-Moderno, tem-se:
“É de complexidade que se trata, na realidade. Se nos permite extrapolar, dir-se-á que o
Direito Pós-Moderno não poderá evitar reintegração à dimensão social; de reinserir o
grupo na preparação e na gestão da norma destinada a assegurar esta regulação e seu
controle. (...) O Direito do futuro, que será um Direito pós-moderno, vai se desenvolver
em integração com as lições do pragmatismo e do pluralismo; ele ajudará provavelmente,
cedendo aos outros tipos de regulação, uma parte de sua tarefa, ela se complicará também,
sem nenhuma dúvida. Esta transformação estrutural nos leva a repensar o Direito não
somente em termos de programação, mas, mais amplamente, em termos de tempo. Se a
mesma concepção da regra de Direito modifica, esta se fará pela reinserção do presente
jurídico dentro da ordem do tempo: entre um passado que volta a ser realmente do
passado, e um futuro o qual se admitirá que ele possa não ser definido, não garantido.”371
Uma crítica ao emprego da expressão uso alternativo do Direito na América Latina é
efetuada por Roberto Bergalli372. Para ele, essa expressão é inadequada para os movimentos
existentes na América do Sul, não só pela total diferença da estrutura (política, econômica e social)
deste continente com a Europa, em especial com a Itália, país berço do termo, mas, também, por
não abordar os aspectos epistemológicos propostos na origem de sua aplicação. Para o professor
Bergalli, essa forma de interpretação alternativa, utilizada pelos serviços legais, fica restrita aos
operadores jurídicos na esfera dos conflitos jurídicos estatalmente resolvidos, excluindo-se a

367
“O Jurista no Alvorecer do Século XXI”, in Lições de Direito Alternativo 2, Op. cit., p. 25-41.
368
Ibid., p. 29-30.
369
Ibid., p. 30.
370
Ibid., p. 40.
371
Ibid., p. 40-41.
372
“Usos y Riesgos de Categorías Conceptuales: ¿conviene seguir empleando la expresión 'uso alternativo del derecho?”,
in Revista de Direito Alternativo nº 2, Op. cit., p. 19-36.
possibilidade de se discutir a própria existência de um Direito injusto. Também há o problema da
manipulação do uso alternativo do Direito para fins outros, não-democráticos, por parte do poder
instituído. Um outro problema diz respeito aos movimentos sociais, hoje fatos de grande
importância na América Latina, criadores de sujeitos coletivos de direitos e produtores de normas
jurídicas, excluídos do uso alternativo do Direito373. Por fim, alerta para o fato de não se poder
esperar dos juízes latino-americanos a mesma propensão em favor das classes menos favorecidas,
pois, salvo raras exceções, laboram em perfeita sintonia com a classe dominante.
Os professores Joaquín Herrera Flores e David Sanchez Rubio apresentaram o Direito
Alternativo aos leitores europeus, em particular aos espanhóis, no texto “Aproximación al derecho
alternativo en Iberoamérica”374, publicado na conceituada revista Jueces para la Democracia, onde
efetuaram uma retrospectiva histórica do movimento, bem como resumiram suas principais
propostas, o que se aborda com mais abrangência no presente capítulo.
O professor Herrera Flores também publicou um texto na Revista de Direito Alternativo nº
3, denominado “Crítica Jurídica y Estudios de Derecho” 375. Este estudo serve, entre outras coisas,
para desmitificar a idéia de superioridade européia em relação à América Latina, pelo menos no
tocante ao ensino jurídico. Pode-se verificar serem os problemas do ensino idênticos, quando não
piores no Velho Mundo, onde numa sala do curso de Direito, muitas vezes, abriga mais de
oitocentos alunos para assistir a uma aula.
Um jurista não-brasileiro com grande influência no movimento é o professor Óscar Correas,
que esteve presente nos dois encontros internacionais realizados em Florianópolis, SC, e que possui
vários textos sobre a alternatividade e o pluralismo jurídico376.
Sua primeira contribuição veio de seu estudo sobre o marxismo, ou melhor, de sua análise
sobre a conveniência de estudá-lo, de ver se ainda tem algo a contribuir com o exame do Direito na
América Latina após a derrocada do comunismo real. Para ele, as teorias marxistas muito têm a
contribuir para o estudo do Direito, a ponto de ser impossível realizar a crítica jurídica sem seus
conceitos. O importante a ser destacado é seu entendimento do Direito como um discurso que fala
da estrutura econômica, mas não só.
Para entender sua posição sobre o Direito Alternativo, há a necessidade de um prévio
repasso de algumas de suas definições. Efetua uma divisão do Direito em: 1) um sentido deôntico,
ou propriamente o Direito, entendido como o discurso prescritivo produzido pelos funcionários do
Estado devidamente autorizados; são as normas extraídas dos textos chamados, por certas
convenções, de jurídicos e 2) um sentido ideológico, ou seja, todas as demais mensagens existentes
no discurso do Direito. Há que se diferenciar, também, o discurso do Direito do discurso jurídico.
O primeiro é o discurso prescritivo elaborado pelos funcionários acima mencionados, e o segundo
são todos os discursos que falam ou usam o primeiro. Daí resulta a diferença entre ideologia do
Direito, aquela existente nos textos estatais dos quais se extrai o sentido deôntico e ideologia
jurídica, a existente no discurso jurídico, produzida pelas pessoas que falam e usam o Direito. A

373
Neste ponto demonstra não conhecer, com a devida profundidade, o Direito Alternativo brasileiro, pois o confunde
com o uso alternativo do Direito. Como já amplamente demonstrado, este é apenas um método, uma tática a ser utilizada
para se atingir os objetivos do movimento.
374
Juezes para la Democracia. Madrid, nº 3/1993, vol. 20, p. 87-93.
375
Op. cit., p. 198-218.
376
“Marxismo y Derecho en América Latina, Hoy”, in Lições de Direito Alternativo 2, Op. cit., p. 145-158; “Los
Derechos Humanos Subversivos”, in Revista de Direito Alternativo, nº 2, Op. cit., p. 9-17; “Derecho Alternativo:
Elementos para una Definición”, in Lições de Direito Alternativo do Trabalho, Op. cit., p. 15-28; “Alternatividad y
Derecho: El Derecho Alternativo Frente a la Teoría del Derecho”, in Crítica Jurídica, México, Universidad Nacional
Autónoma de México, vol. 13, 1993, p. 51-64, “Ideología Jurídica, Derecho Alternativo y Democracia”, in Revista de
Direito Alternativo nº 3. Op. cit., p. 09-19 e um capítulo sobre Direito Alternativo na obra: Teoría del derecho. Barcelona,
María Jesús Bosch, S. L., 1995, 309 p.
norma possui efetividade quando é cumprida e é eficaz quando seu cumprimento consegue atingir
seus objetivos.
Com base nessas definições, pode-se chegar aos seguintes conceitos: 1) Pluralismo
Jurídico: a existência de normas, pertencentes a sistemas distintos, reclamando obediência em um
mesmo território; 2) Direito Alternativo: um sistema normativo cuja obediência obriga à prática de
condutas ou omissões tipificadas como delitos ou formas menores de faltas (contravenções, por
exemplo), pelo sistema jurídico hegemônico e 3) uso alternativo do Direito: a interpretação ou o
uso do sistema normativo hegemônico, por determinados funcionários públicos, para produzir
decisões favoráveis aos interesses de certos setores sociais aos quais o sistema usado, ou
interpretado, na realidade, deseja desproteger.
Portanto, entende, o Direito Alternativo é uma forma jurídica, ou prática jurídica, ligada à
disputa do poder, mas não via guerra civil. Visa, por conseqüência, a debilitar ou suprimir a
hegemonia do grupo social detentor do poder. Sua eficácia é maior quanto mais diminuir a
hegemonia do sistema normativo estatal. A alternatividade no Direito necessita ser subversiva, no
sentido de subverter a hegemonia da normatividade estatal para tomar seu lugar. Isso não significa
que toda a alternatividade seja subversiva, bem como que toda a subversão seja “boa”. “Pero, hay
que reconocerlo, cualquier intento de cambio social es subversivo respecto del orden dominante,
por lo cual es necesario perderle miedo a la palabra. Su uso por las fuerzas de la dominación
capitalista, para referirse a cualquier intento de cambio, ha terminado por conver-tirla en sinónimo
de delictuosidad, lo cual, francamente, no tiene ningún asidero.”377 O discurso alternativo é um
contradiscurso contestador do oficial, exigindo aquilo que o Estado não deseja dar.
Os serviços legais e os juristas alternativos exercem um trabalho pedagógico de ensino e
organização popular, bem como produzem a crítica jurídica, o que permite tirar hegemonia do
sistema oficial, motivo pelo qual não são bem vistos pelo poder. Quanto aos juízes alternativos
brasileiros, em princípio, não praticam a alternatividade subversiva, pois suas atividades não são
consideradas delitos, ao invés, são permitidas pelo sistema hegemônico, portanto legais. Entretanto,
ao se organizarem, ao assumirem uma ideologia (julgar em favor dos oprimidos e dos
trabalhadores), ao criarem normas internas para buscar a eficácia dessa ideologia, ao decidirem de
acordo com essas normas, podem tornar suas atividades potencialmente transformadoras e
subversivas, portanto, alternativas.
Escrevendo na Revista de Direito Alternativo 3, o professor Óscar Correas discute a
ideologia jurídica, o Direito Alternativo e a democracia. Para ele, não existe apenas um sistema
normativo em cada sociedade, mas vários, sendo o estatal o hegemônico, ou seja, consegue dirigir
as pessoas, fazendo com que se comportem de acordo com seu desejo e previsão. Nesta pluralidade
de sistemas normativos ou jurídicos (na prática tidos como sinônimos), existem os alternativos
(quando suas normas ordenam condutas contraditórias com às ordenadas por outros) e os
subversivos (uma vez hegemônicos, destruiriam ou transformariam em subalterno o atual sistema
hegemônico). O Estado, segundo diz, é uma ficção, um ente fictício, criado pelo discurso jurídico e,
sobretudo, pelo seu uso por parte de todos dos cidadãos. Esta ideologia consegue transformar o
privado, o capital, que de fato decide os destinos das gentes dentro do Estado, em público,
subordinado a “todos”. Efetuando uma releitura de Kelsen, defende serem Estado e Direito a mesma
coisa e como conseqüência disto, quando se fala em pluralismo jurídico, se está falando em
pluralismo estatal. Uma sociedade democrática necessita respeitar os outros sistemas jurídicos
alternativos ou Estados subalternos, sob pena de excluir minorias e diferenças.
O professor Óscar Correas dedicou todo o capítulo 9 de sua recente obra Teoría del
Derecho378 ao estudo da alternatividade e do Direito. Efetua um estudo aprofundando os temas
acima analisados. A alternatividade é compreendida como a possibilidade de converter-se no outro
Direito e isto deve ser buscado fora do sentido deôntico do discurso do Direito. Entende a atividade
377
CORREAS, Óscar. Teoría del derecho. Barcelona, María Jesús Bosch, S. L., 1995, p. 290.
378
Alternatividad y Derecho, in Teoría del derecho. Op. cit., p. 287-297.
dos juristas alternativos como uma espécie de crítica jurídica prática, consubstanciando-se em um
discurso contra-hegemônico ao Direito Dominante, tendo como função tirar-lhe legitimidade.
Em relação às atividades dos juízes, mantém as posições já mencionadas. No referente aos
serviços legais alternativos, diz:
“El discurso del derecho moderno, su sentido ideológico, expresa la idea de que todos los
ciudadanos son iguales, e igualmente protegidos por la ley. Pero como eso es mentira,
como la cotidianeidad misma crea la dominación y la resistencia, el propio instrumento de
la mentirosa igualdad, el derecho subjetivo, se convierte en su contrario, en el discurso de
la reivindicación de grupos subalternos, que viven su realidad, y su enfrentamiento con el
orden, como «derechos» que sus funcionarios les niegan.
Y así como los juristas en general, son funcionarios del orden hegemónico, los servicios
legales alternativos son su contrario, precisamente por esta contradicción ineludible del
derecho moderno. Es en esto que consiste la posibilidad alternativa de estas
organizaciones de abogados.”379
Mesmo sem ter publicado qualquer texto nas obras alternativas brasileiras, Carlos María
Cárcova é um jurista bastante influente e, provavelmente, o estrangeiro com maior participação nos
congressos e encontros realizados pelo movimento alternativo. Debutou no I Encontro de Direito
Alternativo, realizado em Florianópolis, Santa Catarina, em setembro de 1991. Sua conferência se
intitulou: Acerca de la Relaciones entre Marxismo y Derecho e está publicada no livro Teorías
Jurídicas Alternativas380. Nesse texto, efetuou um rápido repasso sobre o pensamento marxista e,
também, sobre sua relação com o Direito. Analisou como esta doutrina, no Ocidente, sofreu
constantes derrotas no campo político prático e, em corolário, como distanciou-se da classe obreira,
transformando-se em um pensamento teórico muito rigoroso e sofisticado, mas céptico.
No campo jurídico, critica o jusnaturalismo e o positivismo. O primeiro por ter
permanecido vinculado a premissas metafísicas, buscando explicar o mundo jurídico a partir de uma
argumentação fundada na idéia de Deus, da natureza e da razão, e o segundo por pretender explicar
o mesmo fenômeno a partir de uma perspectiva estrutural, ou seja, uma explicação posterior,
instrumentalista. Também critica o economicismo reducionista de alguns autores marxistas que
vêem o Direito como mera expressão da infra-estrutura econômica, sem qualquer importância no
processo de transformação social. Vê o Direito de forma ampla e não só como manifestação
normativa. As normas, segundo seu ponto de vista, só dizem o que alguns homens dizem que as
normas dizem. “Nosotros concebimos al derecho como una práctica social de naturaleza discursiva,
en el sentido en que los lingüistas definen el concepto de discurso. Esto es, como una producción
social de sentidos. Una práctica social que es más que palabras, es también comportamientos,
símbolos, conocimientos; es lo que la ley ordena, pero es también lo que los jueces sancionan, los
abogados argumentan, los teóricos producen, los litigantes declaran, etc. Es un discurso
constitutivo, en el sentido de que transforma la realidad.”381 Não é, pois, só violência monopolizada,
mas, também, um discurso normalizador e disciplinador.
Para ele, o caráter ideológico do Direito possui duas funções: de manutenção das relações
de poder na sociedade e de legitimar as reclamações por mudanças, o que possibilita a reformulação
e a transformação progressiva destas mesmas relações de poder.
Existem, além dos analisados, os seguintes textos: “Fênix e o Eterno Retorno: A Dialética
entre a «Imaginação Criminológica» e a Força do Estado”, Wanda de Lemos Capeller 382, in Lições
de Direito Alternativo 2, op. cit., p. 63-79; “El proceso de integración del Cono Sur y sus efectos

379
Ibid., p. 294-295.
380
CÁRCOVA, Carlos María. Teorías jurídicas alternativas : escritos sobre derecho y política. Buenos Aires, Centro
Editor de América Latina, 1993, p. 71-85. (Los fundamentos de las ciencias del hombre, v. 85).
381
Ibid., p. 83.
sobre el sistema de relaciones laborales: la problemática jurídica”, Omar Moreno, in Revista de
Direito Alternativo nº 2, op. cit., p. 190-199 e “Segurança Pública no Estado de Direito.”, Winfried
Hassemer, in Revista de Direito Alternativo nº 3, op. cit., p. 20-38; “Breves Reflexões sobre o
Significado do Garantismo (em vista dos acontecimentos italianos dos anos 1988-1994)”, Arnaldo
Miglino, e “La Civilización y sus Negociadores — La Armonía como Técnica de Pacificación.”,
Laura Nader, in Lições Alternativas de Direito Processual, respectivamente p. 43-58 e p. 113-131.
Após a apresentação do pensamento alternativo produzido até o momento, passa-se à
análise dos resultados obtidos, mais especificamente, da jurisprudência nascida do movimento.

CAPÍTULO III

Resultados obtidos

Com quase cinco anos de história, o movimento do Direito Alternativo encontra-se


consolidado e alguns êxitos já foram obtidos. Como visto no capítulo anterior, há muita utopia e
muito idealismo entre seus membros. Ainda se permite sonhar com uma sociedade mais justa,
democrática, sem miséria e pobreza, com liberdade e igualdade. No afã de alcançar estes ideais, os
juristas alternativos dedicam seu labor à constante busca de mudanças sociais. Com erros e acertos,
estes profissionais estão construindo uma outra opção, uma alternativa à forma tradicional de se
lidar com o mundo jurídico. Neste capítulo pretende-se analisar, exatamente, as conquistas
conseguidas até o momento, ou seja, o que aconteceu de fato no Direito brasileiro após o advento
do Direito Alternativo.
Os magistrados deram-lhe vida e, também, edificaram seus primeiros passos. Algumas
decisões inovadoras despertaram o interesse da grande imprensa em criticar os então isolados juízes
gaúchos. Portanto, os primeiros resultados obtidos foram algumas sentenças alternativas, nas quais
os magistrados assumiram claramente uma ideologia, negaram e denunciaram a falácia da
neutralidade da Ciência do Direito e se declararam comprometidos com o social, relativizando o
legalismo e o positivismo.
Com o crescimento do movimento, diversos juristas não-magistrados incorporaram-se a ele
e outros resultados surgiram, a partir de uma produção teórico-prática383. Fala-se dos livros e
inúmeros artigos editados, dos congressos, encontros e seminários realizados, do exercício do
magistério, das práticas alternativas do ministério público e dos advogados, em especial na
organização popular.

1. JURISPRUDÊNCIA ALTERNATIVA

382
Não obstante a autora ser brasileira, foi inserida entre os estrangeiros pelo simples fato de viver há vários anos na
França e, por corolário, seu pensamento vir de fora do Brasil.
383
Incluem-se, também, alguns magistrados que elaboram trabalhos distintos de sua função jurisdicional, como o
magistério e a produção de livros.
Um dos fundamentos do Direito Moderno é a publicidade dos julgamentos, feita mediante
publicação obrigatória das ementas das decisões de segunda instância e seguintes nos órgãos
oficiais, ou seja, nos Diários da Justiça. As decisões de primeira instância são publicadas só
formalmente, no próprio edifício do Fórum. Então, para estudar a jurisprudência dos Tribunais, o
pesquisador necessita buscar no Diário da Justiça ou numa revista oficial, com publicação de
julgados selecionados, as decisões referentes ao Tribunal desejado. Assim, por exemplo, para se
estudar os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, é necessário pesquisar o Diário da Justiça da
União ou a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na Revista Trimestral de Jurisprudência. O
mesmo ocorre com os Tribunais estaduais, onde o pesquisador deve socorrer-se do Diário da Justiça
do Estado ou da Revista de Jurisprudência de cada Tribunal. Existem, é certo, algumas revistas
privadas com reprodução de determinados julgamentos, como, por ilustração, a Revista dos
Tribunais e o Repertório IOB de Jurisprudência. Essas publicações, entretanto, só reproduzem
decisões de forma organizada, para atenderem aos interesses de seus clientes, facilitando a pesquisa,
mas sempre citando a fonte, ou seja, o local da publicação oficial.
A jurisprudência alternativa não possui uma publicação oficial. Encontra-se imiscuída no
(faz parte do) Direito do Estado, portanto, também publicada nos Diários da Justiça. Não está
intitulada de alternativa e nada, ressalvado seu teor, pode identificá-la. Por ser produzida por um
funcionário do Estado (magistrado), considera-se igual a qualquer outro ato de poder, como
exercício da soberania estatal (monopólio da violência), em sua exclusiva função de julgar ou
aplicar as normas legais. É correto afirmar, sem margem para muito erro, não existir, sob o ponto de
vista do Direito Positivo, jurisprudência alternativa. Pode-se ir além e asseverar que desde qualquer
outro ponto de vista jurídico não existe jurisprudência alternativa, pois ao se constituir, também, em
decisões de funcionários (ou agentes públicos, como se queira) no exercício de uma função pública
estatal, devidamente prevista e delimitada pela lei, torna-se um ato de poder, de império, do próprio
Estado. Parece ser certa essa afirmação, pois após o trânsito em julgado de uma decisão passível de
ser tida por alternativa, a polícia (civil e militar) e até mesmo o exército, a farão cumprir.
É de ser indagado, então, qual o significado de jurisprudência alternativa. Por certo a
resposta não será encontrada nos aspectos formais dos julgamentos (sentenças e acórdãos). Todos
obedecem às formas prescritas nas legislações processuais. A diferença em relação à jurisprudência
tradicional está no conteúdo, nos requisitos retóricos ou ideológicos da decisão384. Para se aceitar
essa afirmação é necessário afastar-se dos pressupostos da Ciência Jurídica hegemônica, também
denominada Dogmática Jurídica. Isso porque ela ainda insiste na neutralidade do Direito e, no
interior de uma ciência neutra não haveria espaço para a axiologia, para a ideologia. Se não há
ideologia no ato de julgar, torna-se impossível uma discriminação da jurisprudência alternativa e da
não-alternativa. No entanto, essa diferença não só existe como pode ser demonstrada. A Teoria
Crítica do Direito, nesse ponto, vem sendo muito eficiente. Negar, na atual fase histórica do
desenvolvimento do Direito, a influência da ideologia no ato de julgar, é praticar irracionalidade, é
negar o óbvio, é exercitar, como em qualquer atitude humana, uma ideologia. Esse tema já está bem
debatido.
Em se admitindo fatores axiológicos na prática jurídica, torna-se possível entender a
jurisprudência alternativa como aquela vinculada a uma determinada ideologia. Surge, de imediato,
uma nova pergunta: qual ideologia? A resposta pode ser encontrada no capítulo anterior, onde foi
demonstrada a história ideológica do movimento. Mas lá existe mais de uma ideologia (por
exemplo: cristã e marxista). É certo, mas isso não desfigura o movimento alternativo, pois não
pretende ser um novo dogma, uma nova doutrina uniforme, universal e pretensamente coerente.
Então, qual a ideologia alternativa capaz de caracterizar uma jurisprudência como alternativa?
Acredita-se estar a resposta nos pontos em comum existentes entre todos os alternativos, a saber: a)

384
Sobre o tema ver: BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo, Revista dos Tribunais,
1980, 125 p. e PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 2ª edição, Porto Alegre, Livraria do Advogado
Editora, 1994, 173 p.
buscar transformações na Ciência do Direito; b) lutar contra a miséria e toda forma de exploração
ou segregação; c) buscar construir uma sociedade democrática; d) fazer do Direito uma ciência
comprometida com a parte desfavorecida da sociedade civil, com a maioria da população, para
permitir o fim dos privilégios e das discriminações sociais impostas; e e) resgatar as diferenças, com
reconhecimento e respeito ao diverso.
Por fim, uma última pergunta deve ser respondida. Quem decide se está presente ou não a
ideologia alternativa em um julgamento? Essa indagação não permite uma resposta perfeita e
acabada. Até o momento, os autores alternativos, em seus escritos, incluem decisões que entendem
ser alternativas. Muitas delas são produzidas por julgadores alheios ao movimento, quando não
contra ele. Em realidade, não há uma jurisprudência oficialmente alternativa, e sim julgados tidos
por alternativos por alguns juristas. Isso não impede que uma determinada decisão seja entendida,
por membros do movimento, como alternativa e, por outros, como tradicional.
Não existe, por óbvio, um Diário da Justiça Alternativo, mas há, isto sim, uma revista385 de
jurisprudência alternativa386. Trata-se de uma coletânea de decisões que, segundo o entendimento do
coordenador, são alternativas. Configuram-se como “sentenças e acórdãos que rompem com o
tradicional e apontam para um saber jurídico comprometido com a real democratização da
sociedade.”387 O coordenador também considera como característica fundamental da jurisprudência
alternativa a coragem ética de alguns magistrados, de mencionar as considerações reais (ideologia)
que os levaram a decidir de determinada forma. Sem dúvida, essa revista é a publicação de maior
importância, no âmbito da jurisprudência, para o movimento alternativo, motivo pelo qual será
estudada, detalhadamente, a seguir. Os demais julgamentos citados em artigos e livros, tidos como
alternativos, não serão considerados, pois representam o entendimento pessoal de quem os cita.
A revista está dividida em duas partes: 1) referente à jurisprudência criminal, com vinte e
três decisões transcritas, das quais quatorze são acórdãos (1 do Superior Tribunal de Justiça, 1 do
Tribunal de Justiça de São Paulo, 1 do Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro, 1 do Tribunal de
Alçada de Minas Gerais, 2 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 7 do Tribunal de Alçada
do Rio Grande do Sul), uma histórica (do juiz Magnaud) e nove são sentenças (1 do Rio de Janeiro
e 8 do Rio Grande do Sul) e 2) referente à jurisprudência cível, com vinte e cinco julgamentos
citados, dos quais dezenove são acórdãos (1 do Superior Tribunal de Justiça, 5 do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul e 13 do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul) e seis são
sentenças (todas do Rio Grande do Sul).
Antes de adentrar na análise destas decisões é importante salientar que muitas delas,
principalmente as do Superior Tribunal de Justiça, foram proferidas por julgadores alheios ao
movimento alternativo, muitos dos quais, talvez, são contra o Direito Alternativo.
Uma análise percuciente das jurisprudências permite uma divisão em quatro tipos distintos,
considerando-se a hermenêutica utilizada. São:
1. interpretação dedutiva, tecno-formal ou positivista de uma lei considerada boa;
2. interpretação ampliando (positivismo de combate) uma lei considerada boa;
3. interpretação alternativa (uso alternativo do Direito, segundo o pensamento brasileiro) de
uma lei;
4. decisão contra a lei.
É de ser salientado servir, essa classificação, só para efeitos acadêmicos, pois suas partes se
interagem e, muita vezes, existem, simultaneamente, em uma mesma decisão. Pode-se aceitar, por
exemplo, ter sido praticado o uso alternativo do Direito em um julgamento que ampliou o sentido
de uma lei considerada de cunho popular.
385
Por um equívoco da editora, esta obra foi publicada como revista. Amílton Bueno de Carvalho a escreveu para ser um
livro.
386
“Direito Alternativo na Jurisprudência”, Diretor Amílton Bueno de Carvalho, São Paulo, Editora Acadêmica, 1993,
216 p.
387
Ibid., p. 21.
Passa-se à análise de cada tipo.
1. Os exemplos mais importantes do primeiro tipo estão vinculados ao advento da nova
ordem constitucional, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Vários julgadores,
alternativos ou não, passaram a interpretar, sem aplicar qualquer hermenêutica crítica, toda a
legislação nacional sob os princípios estabelecidos na Carta Magna. Isso, em tese, não poderia ser
diferente, pois em respeito à hierarquia das leis, a Constituição deve ser considerada como a norma
maior, direcionadora de todas as demais. Entretanto, face à resistência dos intérpretes oficiais das
leis, às novas diretrizes constitucionais, a aplicação pura e simples das mesmas passou a ser
considerada como jurisprudência alternativa.
O primeiro exemplo pode ser encontrado no acórdão da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de
Alçada do Rio Grande do Sul388, ao deferir Habeas Corpus em favor de réu preso por força dos
artigos 594 e 599 do Código de Processo Penal, que obrigam o condenado em primeira instância a
recolher-se à prisão para poder apelar. Foi erigido o princípio da inocência estabelecido no art. 5º,
inc. LXVIII, da Constituição Federal. A hermenêutica utilizada pelos juízes para concluírem pela
revogação dos dispositivos processuais foi meramente dedutiva, partindo da norma maior,
analisando as normas menores e concluindo pela inaplicabilidade da prisão. A 2ª Câmara Criminal
do mesmo Tribunal laborou por raciocínio idêntico ao negar deserção da apelação pela fuga do réu
apelante e ao exigir fundamentação (art. 5º, LXI, da CF), para se decretar a prisão do réu como
pressuposto para apelar389.
Um importante debate nos meios forenses existe sobre o Decreto-Lei nº 911/69, elaborado
no ano de 1969, por um junta militar que se apossou do governo sob uma terrível ditadura militar.
Para atender aos interesses das grandes montadoras multinacionais de automóveis, os militares (que
se apossaram do Poder Executivo e passaram a exercer a função legiferante por intermédio da força
e da brutalidade) criaram uma via processual rápida, obrigando os juízes a deferirem liminar de
busca e apreensão em favor dos credores, bem como a determinar a prisão de todo devedor
inadimplente e não mais possuidor do bem alienado. Amílton Bueno de Carvalho, em uma
decisão390 também passível de ser caracterizada como de uso alternativo do Direito, rejeita o
Decreto-lei por entendê-lo ser inconstitucional, devido à sua origem legislativa viciada, pois
outorgado por militares não-legisladores, e determina seja imprimido ao feito o rito ordinário.
Entretanto, o fundamento do julgamento é a Constituição Federal. Já a 3ª Câmara Cível do mesmo
Tribunal gaúcho391 não vê qualquer problema na origem ditatorial da lei de exceção. Ao invés,
afirma: “vários dos maiores monumentos legislativos da civilização ocidental se originaram em
períodos históricos em que as salvaguardas democráticas não eram totais. É o caso, por exemplo, do
Cód. Civil italiano de 1942”. Entretanto, efetua uma análise técnico-formal para justificar ser
inconstitucional a obrigatoriedade do deferimento da liminar, por força do art. 5º, LIV, da C. F.. Os
mesmos juízes também são pela inconstitucionalidade da prisão do devedor 392, porque a
“conseqüência curial do art. 5º, LXVIII, da CF/88, cuja interpretação há de ser estrita, consiste no
cabimento da prisão somente ao depositário propriamente dito, impedida a de figuras equiparadas
por lei ou por contrato.” Mesmo não se insurgindo contra o Decreto-lei em si, mesmo mantendo o
instituto da Alienação Fiduciária, mesmo elogiando leis surgidas sob ditaduras, esses acórdãos são
tidos como alternativos por beneficiarem os devedores, parte mais fracas, contra os interesses das
grandes empresas multinacionais.

388
Ibid., p. 72-74.
389
Ibid., p. 74-77 e 77-79.
390
Ibid., p. 103-104.
391
Ibid., p. 104-106.
392
Ibid., p. 107-109 e 109-111.
A mesma 3ª Câmara decretou a inconstitucionalidade do Decreto-lei nº 70/66,393 sob o
fundamento do art. 5º, LIV (devido processo legal) e LV (princípio do contraditório e de ampla
defesa), da C.F., entendendo não mais ser cabível a execução extrajudicial de crédito imobiliário.
Essa decisão foi mantida pelo Órgão Especial do mesmo Areópago394, com os mesmos fundamentos
e acrescentando o inciso XXXV (lesão ou ameaça a direito não podem ser excluídas à apreciação do
Poder Judiciário) do mesmo dispositivo constitucional. Entendimento praticamente idêntico
ocorre395 com a decretação de inconstitucionalidade, novamente pela 3ª Câmara Cível do Tribunal
de Alçada do Rio Grande do Sul, do art. 4º, § 1º, da Lei nº 5.471/71, que permite a imissão do
credor na posse do imóvel penhorado.
Também para garantir o princípio do contraditório e da ampla defesa, o juiz da 5ª Vara da
Fazenda Pública de Porte Alegre, Rio Grande do Sul, concedeu segurança396 em favor de
funcionário submetido à sindicância administrativa, cujo procurador estava sendo impedido de
acompanhar depoimentos de testemunhas.
O último julgamento desse tipo é, de novo, da 3ª Câmara Cível já várias vezes citada. No
acórdão397, os magistrados não se fundamentam na Constituição Federal e, sim, optam pela
relevância dos princípios da boa-fé e aparência jurídica, entendidos como princípios universais de
direito e corolários do valor do justo, sobre a segurança da propriedade. Não obstante essa
declaração, o julgamento teve como um dos argumentos mais fortes uma simples questão técnica,
ou seja, a necessidade de registro, no Ofício de Títulos e Documentos, do contrato de compra e
venda com reserva de domínio, para que tenha validade contra terceiros. Como se pode ver, todas as
decisões mencionadas giraram dentro do sistema positivo do Direito, podendo, então, ser discutida a
alternatividade das mesmas. Não obstante, não se pode negar que num país como o Brasil, onde o
arcabouço jurídico ainda mantêm vigente leis elaboradas sob a ditadura militar, com fins específicos
de favorecer minorias economicamente fortes, em prejuízo das mais elementares garantias
processuais, como o devido processo legal e os princípios da igualdade das partes, da ampla defesa
e do contraditório (não se está falando em justiça social), julgar com base na Constituição Federal,
aceitando suas inovações, para realizar uma limpeza jurídica num sistema legal repleto de normas
teratológicas é, sem dúvida, agir alternativamente.
2. O segundo tipo de jurisprudência é um prolongamento do primeiro, ou seja, a prática de
uma hermenêutica com o propósito não só de aplicar uma norma tida como boa, mas de buscar
ampliá-la ao máximo, para atender aos interesses das classes menos favorecidas. Trata-se da tática
já estudada no capítulo anterior: o positivismo de combate. Por certo, os julgados acima estudados
também constituem-se numa forma de exercitar o positivismo de combate, pois esta prática é ampla
e abrange a pura aplicação de leis populares, normalmente negadas ou restringidas pelos julgadores
tradicionais. Entretanto, por tratar-se de uma interpretação nos moldes convencionais, buscou-se
evitar o uso do adjetivo combate. Já em relação à jurisprudência que será estudada a seguir, tendo
em vista uma interpretação ampliativa, portanto inovadora, pode-se utilizar o adjetivo sem maiores
problemas. Mais uma vez adverte-se para o fato de essa forma de julgar poder caracterizar-se como
uso alternativo do Direito, pois buscar alargar uma interpretação, para atingir fins não pretendidos
pelo legislador, constitui-se em uma ação perfeitamente enquadrável à versão brasileira dada ao
conceito de origem italiana. Tentou-se diferenciar, entretanto, pelo fato de que essas decisões não
procuram dar uma nova interpretação às normas positivas, mas ampliar os conteúdos normativos
considerados de interesse popular.

393
Ibid., p. 125-130.
394
Ibid., p. 122-124.
395
Ibid., p. 130-133.
396
Ibid., p. 164-167.
397
Ibid., p. 182-186.
O primeiro caso ilustrativo desse tipo não é novidade, certamente, em alguns países
desenvolvidos, mas, no caso do Brasil – onde os empresários costumam fazer, antes de iniciar uma
construção, uma estimativa de quantos obreiros irão morrer por acidente de trabalho, sem que isso
signifique aumento na proteção dos mesmos e, muito menos, das condições de desempenho de suas
funções; onde a impunidade pela morte de trabalhadores em serviço é uma regra quase absoluta –
possui uma grande importância social, podendo, inclusive, influenciar na diminuição do número de
mortes contabilizadas como meras fatalidades do mundo moderno e de seu desenvolvimento.
A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, ampliando o conceito
de culpa criminal, decidiu398 condenar por homicídio culposo um empregador, responsabilizando-o
pela morte de empregado no desempenho de suas funções, por não ter adotado os instrumentos
protetivos à segurança de trabalho e por ter ordenado à vítima o desempenho de tarefa de alto risco,
independente da culpa concorrente desta. A pena aplicada foi de prestação de serviços à
comunidade.
Quatro julgamentos, sob pontos de vista diferentes, ampliam o Direito de greve dos
trabalhadores, inclusive funcionários públicos, entendendo-o como uma grande conquista histórica,
não cabendo ao Poder Judiciário restringi-lo e sendo só de responsabilidade dos obreiros a decisão
sobre a oportunidade de usá-lo ou não.
O primeiro deles, da lavra de Amílton Bueno de Carvalho, absolveu um delegado de polícia
acusado de prevaricação (art. 319 do Código Penal), devido ao fato de não ter lavrado flagrante de
pessoa presa e levada à sua presença por policiais militares, em conseqüência de estar sua categoria
profissional em greve. Não obstante o motivo principal da absolvição ter tido como base a
discricionariedade legal do delegado para lavrar ou não o flagrante (até porque esse acusado,
ironicamente, não havia aderido ao movimento de paralisação), boa parte da justificação da
sentença se fundamenta no amplo Direito de greve dos trabalhadores.
“Ora, a vigorar o entendimento da denúncia, jamais o funcionário público poderá fazer
greve, posto que todo movimento paredista implicará delito do art. 319 do Código Penal,
tornando inócuo direito inalienável do trabalhador.
Nesta ótica a denúncia transforma-se em instrumento cruel daqueles que não pretendem
outorgar o direito de greve aos funcionários públicos.”399
Já o juiz Marco Antonio Bandeira Scapini indeferiu 400, também com base no Direito à
greve, constitucionalmente assegurado, petição inicial de Ação Civil Pública ajuizada pelo
Ministério Público, objetivando a condenação do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande
do Sul/Sindicato dos Trabalhadores em Educação a promover o retorno dos professores estaduais
em greve às suas atividades normais, bem como ao cumprimento do ano letivo de duzentos dias-
aulas, tudo sob pena de uma indenização equivalente ao valor total anual da folha de pagamento da
categoria.
Esta sentença foi mantida pela 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, oportunidade em que os senhores desembargadores afirmaram:
“Quanto ao direito de greve, antiga conquista dos trabalhadores da área privada, hoje se
estende aos servidores públicos (art. 37, VII, da CF de 1988), sendo certo que, quanto ao
direito de greve, compete 'aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-la e
sobre os interesses que devam por meio dele defender' (art. 9º da CF de 1988). Parece
claro que o direito público subjetivo de se manifestar pela adoção de certos interesses e de

398
Ibid., p. 77-79.
399
Ibid., p. 83-84.
400
Ibid., p. 157-160.
sua exclusão é direito exclusivo dos trabalhadores, no caso dos trabalhadores em
educação. Ninguém e muito menos o Poder Judiciário pode decidir por eles.”401
O último julgamento, tendo como tema a greve, foi proferido pelo juiz Eugênio Facchini
Neto, de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, indeferindo402 Medida Cautelar Inominada, ajuizada pela
Companhia Cervejaria Brahma contra o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação
de Passo Fundo, objetivando a concessão de força policial contra piquetes grevistas, para assegurar
o livre acesso dos funcionários que desejavam trabalhar, bem como o livre trânsito de caminhões
para o transporte de produtos. A sentença se justifica, basicamente, nas modernas normas
constitucionais brasileiras. É digno de transcrição, entretanto, o posicionamento favorável do
magistrado sobre a prática de piquetes:
“Quanto aos piquetes, cumpre tecer algumas considerações. É evidente que qualquer
greve, para ser eficaz, precisa almejar a totalidade dos trabalhadores envolvidos. Cumpre
aos líderes do movimento paredista delinear a estratégia adequada para sensibilizar os
operários quanto à justiça das reivindicações e quanto à necessidade da paralisação para
obter as vantagens pleiteadas. A greve só é deflagrada se a maioria dos integrantes da
categoria se sensibilizar com tais argumentos. Muitos dos trabalhadores, porém, embora
entendam justas as reivindicações e inevitável a paralisação, acabam não entrando em
greve com medo de serem demitidos ou de sofrerem represálias. Este posicionamento,
porém, pode enfraquecer muito o movimento paredista. Daí a realização dos piquetes, que
são, na quase totalidade dos casos, a única forma de efetivar a greve, posto que sem eles a
empresa, quando de grande porte (como é o caso da autora), poderia exercer pressões
sobre alguns trabalhadores individualmente, de forma a fazer com que os mesmos
furassem a greve. Se houver piquetes, porém, todos os trabalhadores terão a desculpa de
não poderem trabalhar. Com isso a empresa fica impossibilitada de punir e demitir
indistintamente todos os seus empregados, posto que inviável a renovação integral de seus
quadros.”403
Uma importante decisão404, para minimizar os constantes desrespeitos aos trabalhadores,
principalmente mulheres, praticados pelos empresários, foi proferida pelo juiz carioca Sérgio
Verane, condenando o Diretor-Presidente de uma empresa fabricante de peças íntimas do sexo
feminino (sutiãs e calcinhas) pela prática do crime de constrangimento ilegal (art. 146, do C. P.),
por obrigar suas funcionárias a submeterem-se à revista interna pessoal, quando eram forçadas, sob
pena de demissão por justa causa, a despirem-se, para se verificar possibilidade de roubo. Merece
transcrição o seguinte trecho da parte justificadora da sentença:
“Alessandro Barratta, entre outros, também menciona 'o nexo histórico entre o cárcere e a
fábrica', modelos disciplinadores e controladores, inerentes ao modo de produção
capitalista ('Criminologia Crítica e Política Penal Alternativa' — Revista de Direito Penal,
vol. 23, p. 7).
Acrescenta Poulantzas (O Estado, O Poder, O Socialismo — Graal, 1981) que esta intensa
repressão disciplinar se faz sempre através de uma 'sujeição mortífera e armada sobre o
corpo', constituindo-se numa 'violência física organizada' (p. 88).
Na fábrica De Millus, fica bem visível a existência dessa 'sujeição mortífera sobre o
corpo', com a prática da humilhante revista íntima.
Desta forma, a organização opressiva da relação de poder existente na fábrica reduz a

401
Ibid., p. 162-163.
402
Ibid., p. 167-172.
403
Ibid., p. 168-169.
404
Ibid., p. 89-95.
capacidade de resistência do empregado a uma ordem constrangedora. Principalmente
numa fábrica onde trabalham mulheres, já historicamente submetidas e oprimidas.
Esse absoluto controle disciplinar é mais ainda exacerbado nos países do Terceiro Mundo.
Aqui, não basta a mais-valia, roubo legitimado da força de trabalho. É preciso roubar,
também, a dignidade e o sentimento, espoliar da pessoa a sua própria humanidade.”405
Houve, sem dúvida, uma grande ampliação do conceito tradicional de constrangimento
ilegal, isso em defesa da dignidade de um grupo de trabalhadoras. Esta sentença, entretanto, foi
totalmente reformada pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro406, tendo o
empresário recebido não só sua absolvição, mas, pior ainda, carta branca para continuar explorando
e submetendo suas funcionárias às revistas vexatórias, certamente não aceitáveis num país mais
civilizado.
Um outro grande avanço legislativo surgido com a Constituição Federal de 1988 foi o
Usucapião Urbano Especial, previsto no art. 183. Como tradicionalmente ocorre, leis com cunho
popular não são aceitas pelos juristas e sofrem enormes restrições. Nesse caso, muitos alegaram e
alegam não ter validade legal o prazo da prescrição aquisitiva iniciado antes da promulgação da
Norma Maior, interpretação jurídica que, se aceita, inviabiliza esta espécie de usucapião. Esse tipo
de hermenêutica possui forte cunho ideológico em favor dos proprietários e seu objetivo é bem
claro: se não revogar, pelos menos inviabilizar o novo instituto jurídico. Optaram os juízes da 3ª
Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul407 por uma interpretação
ampla do Usucapião Urbano Especial, entendendo imperar a nova ordem constitucional sobre
normas inferiores, valendo, em corolário, para caracterizar a prescrição aquisitiva, o tempo de posse
transcorrido antes da vigência da Carta Magna. Tal interpretação é óbvia, mas “esquecida” pela
maioria dos juristas, aqueles auto-intitulados neutros.
Outra legislação polêmica, também de cunho popular, atacada e restringida pela maioria dos
juristas, é a Lei 8.009/90, que ampliou a lista de bens impenhoráveis do devedor, como: 1) o imóvel
residencial próprio; 2) todos os móveis que guarnecem a casa; 3) todos os equipamentos, inclusive
os de uso profissional e 4) benfeitorias e plantações. A lei, entretanto, exclui da impenhorabilidade
os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. Com fundamento nessas pequenas
exceções, criou-se uma forte corrente interpretativa em prol dos credores e contra a legislação,
entendendo como adorno suntuoso quase todos os móveis, como televisor, geladeira, etc. Outros
juristas, entretanto, vendo o cunho social da norma, em especial a necessidade de proteger, pelo
menos, a casa do devedor e seus móveis (pois até a vigência da lei era, simplesmente, jogado na rua,
onde ia viver com sua família.), buscam ampliar ao máximo essa legislação, restringindo, por
conseqüência, as exceções previstas.
Sob essa ótica, o juiz Clademir José Ceolin Missaggia, de Santiago, Rio Grande do Sul408,
entendendo que a Lei 8.009/90 atende ao princípio constitucional de vida digna para todos, julgou
impenhorável linha telefônica. No mesmo sentido, a 4ª Câmara Cível do Estado do Rio Grande do
Sul409 decidiu pela impenhorabilidade do único imóvel do devedor, mesmo estando alugado.
Novo exemplo nos dá o juiz de Santiago ao sentenciar em favor de posseiros 410, desta vez
deferindo, em situação especialíssima, Usucapião Especial de um bem público, por não ser este de
uso comum, nem especial, mas dominical. O imóvel, transcrito no Registro de Imóveis em nome da
Prefeitura Municipal, era, de fato, uma área de terra sem uso público. O governo municipal a
405
Ibid., p. 93.
406
Ibid., p. 95-98.
407
Ibid., p. 111-121.
408
Ibid., p. 133-140.
409
Ibid., p. 140-145.
410
Ibid., p. 172-177.
utilizava com fins políticos, nada sociais, doando partes da mesma, não para famílias carentes, mas
para associações como a dos funcionários municipais, dos professores, dos funcionários da Caixa
Econômica Federal e do Banco Meridional, dos Cabeleireiros e, inclusive, para a Loja Maçônica.
Neste contexto, o julgador alargou o sentido da lei e decidiu pelo deferimento do domínio aos
possuidores.
Ainda sobre usucapião, a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul 411
ampliou o conceito de justo título, documento necessário à obtenção do Usucapião Ordinário, até
então definido em termos bem restritos, ao ponto de inviabilizar pedidos dessa natureza.
Os direitos da concubina foram aumentados pela mesma 5ª Câmara Cível412, reconhecendo-
se sua legitimidade para propor Medida Cautelar de Separação de Corpos, isso com base no
conceito ampliado de entidade familiar estabelecido no art. 226, § 3º, da C.F.
A 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, modificando entendimento
da doutrina tradicional, aumentou as possibilidades de uma pessoa poder alterar seu nome,
incluindo os desagradáveis e molestos entre os passíveis de câmbio.
Buscando evitar uma injustiça, a 7ª Câmara Cível do tão citado Tribunal de Alçada
gaúcho,413 estendeu um direito, normalmente negado à parte vencida, determinando ao
compromitente, uma vez rescindido o contrato de promessa de compra e venda de um imóvel,
devolver ao compromissário o valor das prestações recebidas, devidamente corrigido.
3. O movimento italiano do uso alternativo do Direito, a ser estudado com mais detalhes no
próximo capítulo, foi o grande inspirador do Direito Alternativo brasileiro. Uma das atividades
exercidas pelos juízes italianos, que não se confunde com o movimento em si, foi o uso da
legislação em vigor de forma diversa da pretendida pelo legislador e pelas classes hegemônicas.
Esta prática hermenêutica é de grande valia ao jurista em geral e ao magistrado em particular, no
exercício da função jurisdicional, sendo um meio a mais para se buscar interferir nas relações
jurídicas e de poder, com o propósito de cambiá-las, tendo como fundamento uma ideologia
vinculada ao social. É um meio eficaz para o operador jurídico trabalhar o mundo do Direito,
procurando modificar o tecnicismo, o formalismo, o dedutivismo e o pseudoneutralismo da Ciência
Jurídica. Nenhuma norma possui um sentido unívoco, passível de ser observado de igual forma por
todas as pessoas que olhem o papel onde está escrita, ou o costume que lhe dá sentido. Por exemplo,
a Constituição Federal, citada por tantas vezes, foi publicada no Diário Oficial da União, cumprindo
toda a formalidade necessária para obter validade. Após, foi impressa por várias editoras e
distribuída por todo o país. Todos esses papéis escritos são materiais inanimados, sem nenhuma
valia, pois possuem só vida formal, sem um conteúdo real, a ser dado pelo intérprete. Este dinamiza
a norma ao dizer seu sentido e essa atividade é, preponderantemente, ideológica. Por isso alguns
juristas buscam restringir seu conteúdo, pois identificados com alguns interesses, e outros laboram
para ampliá-los, já que estão vinculados a outros grupos e, por conseqüência, a outras expectativas.
Esse jogo de interesses, desejos e necessidades, ou luta de ideologias em busca de hegemonia é o
verdadeiro sentido dinâmico do Direito como uma forma de organizar a sociedade e o poder nela
existente. Quem tem mais força ou capacidade de persuasão, independente do meio utilizado, dita
as regras, controla a produção jurídica, domina a sociedade.
A norma, portanto, possui infinitas formas de ser interpretada (usada) e sua aplicação
pertence à dialética jurídica. Seu significado será dado conforme a ideologia do intérprete. O uso
alternativo do Direito é uma versão de esquerda do uso político do Direito. Este significa um
determinado sentido dado ou buscado no arcabouço jurídico estatal, em conformidade com uma
determinada concepção do mundo, identificado com certos grupos de pessoas.

411
Ibid., p. 177-178.
412
Ibid., p. 178-180.
413
Ibid., p. 194-197.
As bases da ideologia alternativa foram demonstradas no capítulo anterior. Agora analisar-
se-á como estão sendo aplicadas na jurisprudência.
No âmbito do Direito Penal, vários casos estão relacionados com o sexo. Isso dá-se pelo
fato de o Código Penal conter uma forte influência da igreja católica, tendo absorvido muitos de
seus dogmas, preconceitos e reacionarismos sobre a atividade sexual.
O primeiro exemplo vem da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul414, ao absolver réu acusado de sedução e condenado por corrupção de menor, por ter mantido
relações sexuais com sua namorada de quatorze anos, desvirginando-a. A interpretação utilizada
não é muito alternativa, pois os senhores desembargadores entenderam não existir crime porque o
acusado, ao manter relações sexuais com a vítima, tinha o propósito de viver com ela, o que veio a
ocorrer. Clara está a ideologia cristã, a preservação do casamento. Entretanto, frente à rigidez
impregnada no Código Penal no tocante à prática sexual, não deixa de ser algo inovador.
Decidindo de igual forma, mas sob fundamentos diferentes, o juiz Rosmarí Girardi415
absolveu réu acusado de sedução. Critica a norma repressiva penal por ter meio século de existência
e estar ultrapassada na maioria de seus dispositivos, representando uma cultura em extinção.
Defende, assim, a livre prática sexual das jovens, até então tidas como indefesas donzelas a merecer
proteção legal, para a preservação de sua pureza.
Duas jurisprudências416, entendidas pelo coordenador da revista como alternativas, sobre os
crimes de estupro e atentado violento ao pudor, merecem uma análise mais detalhada. O Código
Penal, como já dito, é extremamente reacionário em relação ao sexo. Para os penalistas tradicionais,
a cópula vaginal é a única prática sexual normal, sendo o coito anal ou a felação, por ilustração, atos
anormais. Sob essa ideologia, o diploma repressivo tipificou, uma vez praticado com violência ou
grave ameaça à mulher, como estupro o primeiro ato sexual acima mencionado e como atentado
violento ao pudor os segundos. A jurisprudência, com base nos mesmo preconceitos, sempre
entendeu, nas hipóteses em que um homem, sob ameaça ou violência, mantêm com uma mulher
sexo vaginal e anal, existir dois crimes (estupro e atentado violento ao pudor, em concurso
material).
As jurisprudências publicadas como alternativas efetuam crítica à forma preconceituosa
como se vê o sexo e conclui ser normal todas as maneiras de praticá-lo. O resultado dessa nova
forma de interpretar, juridicamente, as relações sexuais, levou alguns julgadores ao entendimento
de, na hipótese acima mencionada, existir um único crime, pois, como tudo é sexo normal, o crime
menor, atentado violento ao pudor, fica absorvido pelo delito maior, estupro. Ademais, atualmente,
as penas destes delitos foram equiparadas (seis a dez anos de reclusão) e ambos são considerados
crimes hediondos. Segue um fragmento dos fundamentos:
“A verdade é que a moralidade sexual altera-se profundamente. Evidente que na época em
que o legislador (e a doutrina e a jurisprudência) pensou o Código o conceito do que
estaria dentro do limite da normalidade tinha um continente. Mas queiram ou não os
donos da lei, os doutrinadores e os julgadores, os costumes alteraram-se de forma
substancial. O que ontem, a nível de sexualidade, era considerado execrável (às vezes
hipócrita) perversão hoje é prática que alcança o comum (ou seja, aquilo que o machista
fazia às escondidas nas 'casas de madame' hoje invade sua casa de forma irreversível pela
prática de seus filhos, pela televisão e revistas).
Na medida em que o homem supera-se na busca libertária, os preconceitos e a hipocrisia
são paulatinamente abandonados e a sexualidade, como fonte de prazer, resta mais fértil,
mais criativa. São as relações que restam libertas, ou seja, o homem permite-se ao prazer
mesmo no lar (campo onde os afetos devem ser intensos), deixando de ter vergonha de sua

414
Ibid., p. 29-30.
415
Ibid., p. 30-33.
416
Ibid., p. 35-38 e 38-42.
condição humana:o que praticava às escondidas mediante pagamento hoje faz com
dignidade, respeito, afeto, numa palavra: Amor”417
Numa análise perfunctória, essas decisões podem parecer bastante alternativas, pois
discutem a sexualidade, combatem o machismo e, principalmente, tratam a relação sexual como
prazer. Assim, a alternatividade está neste aspecto, ou seja, tudo é prazer: sexo vaginal, sexo anal,
sexo oral, beijo, etc. Até este ponto não há discórdia. O problema está no resultado: não há que
punir dois crimes. Parece haver um desvio da questão central deste problema: esquece-se a
violência praticada, para se discutir atividades sexuais (sem brutalidade) e acerbações de pena. A
crítica ao modo esclerosado de ver o sexo apresenta-se como, absolutamente, correta. Entretanto, a
justificação e a conseqüente conclusão jurídica daí resultante pode ser um grave equívoco, até
mesmo um retrocesso na luta pela total libertação da mulher. Em primeiro lugar, não se vê nessas
decisões alternativas a principal crítica a ser feita ao Código Penal, qual seja, estarem os crimes
sexuais contra a mulher incluídos entre os delitos contra os costumes (inclusive o estupro seguido
de morte), e não contra a pessoa, o corpo, da vítima. Daí pode surgir um erro epistemológico, pois o
raciocínio alternativo parte do ponto de que a sexualidade, hoje, ao contrário do tempo da
elaboração do código, há de ser vista de forma mais ampla, sendo o sexo, independente de como
praticado, normal. Sobre isso (normalidade de todas as práticas sexuais, inclusive o
homossexualismo) não há qualquer divergência, pois o prazer do sexo não deve ter limites morais.
Ora, mas isso não pode ser levado ao extremo de beneficiar a prática criminosa sexual. Mesmo
sendo o coito anal uma prática sexual normal e produtora de prazer, é inegável, do ponto de vista da
mulher vítima, poder causar, este tipo de relação sexual, muito mais dor (não se está falando da dor
moral), padecimentos e machucaduras do que o estupro. Muitas mulheres não o praticam, não por
questões morais, mas por dor física. O sexo vaginal, violento ou não, é muito mais suportável. Do
ponto de vista fisiológico, produz, normalmente, menos dor e sofrimento, do que o sexo anal. Isso é
um fato corpóreo, físico. Portanto, essa alternatividade pode estar sendo construída (o mesmo pode-
se dizer das críticas aqui efetuadas) sem levar em consideração a própria mulher (a vítima) e sua
maneira de ver o assunto, mesmo quando em luta por liberdade sexual. Isto não deve ser ignorado,
sob pena de alimentar um novo machismo.
Em segundo lugar, tratar o coito anal forçado como atentado ao pudor e não à pessoa da
mulher, sua integridade física, é uma estupidez oriunda do pensamento cristão e machista. Qual a
ideologia disso? Ver a mulher como objeto do homem. A lei deve ser mais severa contra o estupro,
pois nesse ato o criminoso introduz seu pênis na vagina, templo sagrado, a ser tocado só pelo
marido proprietário418. A mulher introduzida perde sua pureza, fica maculada em sua honra, não
presta mais como mercadoria para o casamento. Já o coito anal não é tão grave, pois o santuário não
foi violado, a pureza restou mantida, a mercadoria ainda presta, mesmo com terríveis sofrimentos
para a vítima. Aliás, para a lei, o sofrimento da vítima não é físico, não é de dor, mas, sim,
subjetivo, relativo ao pudor, ou seja, “sentimento de vergonha, de mal-estar, gerado pelo que pode
ferir a decência, a honestidade ou a modéstia.”419 Não bastasse ser violada, a vítima ainda necessita
envergonhar-se, como se culpada de algo. Por esses e outros motivos, inúmeros crimes sexuais não
chegam ao conhecimento das autoridades e não são punidos.
É certo que admitir o concurso material devido à pluralidade de violências leva a um
exagero na aplicação da pena, pois, num caso de duplicidade de atos sexuais, a pena mínima partiria
de doze anos, ou seja, a mesma do homicídio qualificado, o dobro do homicídio simples. Todos
estes delitos representam não um atentado ao pudor ou uma ofensa ao costume, mas, isto sim, uma

417
Ibid., p. 40.
418
Esta sempre foi a ideologia do código, até mesmo após as recentes modificações que igualaram as penas destes crimes,
pois ainda continuam incluídos como crimes contra os costumes, e não contra a pessoa da mulher.
419
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa. 1ª edição, 11ª Impressão, Rio de
Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1977, p. 1156-1157.
brutal agressão à pessoa da mulher, a sua integridade física e moral. Portanto, negar o estupro e o
coito anal como crimes contra os costumes, inseri-los como crimes contra a pessoa, talvez seja mais
alternativo, pois estar-se-ia progredindo para a verdadeira emancipação da mulher, na defesa de seu
corpo e de sua liberdade, tão vilipendiados pelos homens. As jurisprudências citadas apenas
impedem uma possível injustiça: impor um pena privativa de liberdade em excesso a um agressor
sexual em relação a um homicida.
Independente dessa polêmica, os julgamentos construíram suas justificações com uma
hermenêutica inovadora, com denúncia dos preconceitos ocultos no Código Penal, e isso é uso
alternativo do Direito.
Um outro tema de grande importância para o Movimento do Direito Alternativo é o
referente aos crimes contra o patrimônio em geral e o furto em particular. A legislação penal é
particularmente rígida contra esses delitos, chegando ao disparate de apenar com mais severidade
(dois a oito anos de reclusão) o furto qualificado (por exemplo: duas pessoas furtarem um rádio em
uma residência, ou uma só, desde que à noite) em relação à lesão corporal grave, apenada com um a
cinco anos de reclusão (por exemplo: dar uma facada na vítima, pondo-a em um hospital por alguns
dias).
Não só a ideologia do código é um problema. Também o é a realidade social brasileira.
Como já demonstrado no capítulo I, a sociedade civil está empobrecendo constantemente. O salário
mínimo é aviltante, mas considerado pelo governo como uma conquista, quando elevado de cerca
de 70 dólares para pouco mais de 100. Não há como negar-se a responsabilidade da política
socioeconômica pelo aumento da criminalidade, em especial dos pequenos furtos. Pais com seus
filhos morrendo de fome saem à rua em busca de alimentos e só podem consegui-los com a prática
de algum delito. Esta realidade, a qual vem sendo esquecida, completamente, no mundo jurídico,
não o é pelo movimento alternativo que, entre outras coisas, é uma reação à injustificada
indiferença do Poder Judiciário para com a miséria da população.
Uma figura jurídica utilizada, constantemente, até mesmo ampliada, por juristas
progressistas é a do furto famélico420, ou seja, quando o acusado furta alimentos para saciar sua
fome, agindo, nessas circunstâncias, em estado de necessidade. Veja-se a histórica decisão do Juiz
Magnaud, proferida em 04 de março de 1898:
“Considerando que no momento em que tirou um pão no padeiro P. não tinha dinheiro, e
que os gêneros que tinha recebido se tinham acabado há 36 horas; que nem ela nem a mãe
tinham comido durante esse lapso de tempo, deixando para a criança as poucas gotas de
leite que havia em casa; que é lamentável que, numa sociedade bem organizada, a um
membro dessa sociedade, sobretudo a uma mãe de família, possa faltar pão, sem que ela
tenha culpa; que, quando uma situação destas se verifica e se encontra como no caso da
menor Ménard, muito claramente descrita, o juiz pode e deve interpretar humanamente as
inflexíveis prescrições da lei;”421
Nota-se a quebra do princípio rígido da legalidade devido às reais condições existenciais
(socioeconômicas) da ré.
Caso atual, interessante e curioso foi a absolvição de dois policiais militares, um dos quais
pai recente, por tentativa de furto em um supermercado. Mais uma vez usa-se o Direito de forma
alternativa, para se evitar uma injustiça social.
“Os réus trabalhavam, mas não conseguiam comer; então a solução foi furtar; mas o
mesmo Estado que lhes paga miseravelmente despede-os do emprego porque queriam

420
Ibid., p. 50, 53-55 e 55-57.
421
Ibid., p. 50.
comer. Os réus foram expulsos da Brigada Militar pelo pecado extremo: ambicionavam
saciar suas necessidades primárias.”422
A 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul efetuou uma grande
inovação jurisprudencial ao ampliar o conceito de furto famélico, aceitando-o não só em casos de
subtração de alimentos, mas, também, por equiparação, quando o acusado, faminto, furta
instrumentos de trabalho para poder trabalhar e comer. Fica caracterizado, novamente, o estado de
necessidade, excludente de criminalidade apta para absolver o acusado.
“Não é possível condenar o agricultor faminto que subtrai do comerciante o arado para
lavrar a terra, o pescador que surrupia o anzol para sacar das águas a subsistência. Da
mesma forma o lenhador que furta a máquina indispensável ao seu penoso ofício.
Disse o digno Procurador de Justiça parecerista que o bem é relativamente valioso.
Valioso ao extremo para o apelante, pois se confunde com a própria fonte de vida, de
sustento, de sobrevivência. Furtasse um galinha ou uma ovelha para devorar, certamente
seria absolvido por famélico comportamento, assim como já fora aquele ilhéu miserável
da capital que engolia uma salsicha no balcão frigorífico de majestoso hipermercado de
Porto Alegre, solenemente apresentado preso à 10ª Vara Criminal.
Por que razão, assim, deixar de absolver aquele que subtrai o instrumento de trabalho
próprio de seu ofício? Furtou para poder trabalhar e sobreviver e não para obter ganho
fácil com a venda vil.”423
Ainda discutindo o delito de furto, encontra-se uma interpretação mais suave, para
beneficiar o réu, no acórdão da 4ª Câmara Criminal do mesmo Tribunal424, ao ampliar a aplicação
do privilégio previsto no § 2º, do art. 155, do C.P., que prevê a diminuição da pena quando a res
furtiva for de pequeno valor. Na falta de um critério mais específico para caracterizar o significado
de pequeno valor, a jurisprudência vem utilizado como parâmetro o salário mínimo. Entretanto, em
nome de uma “justiça mais humana”, os juízes aplicaram o privilégio mesmo sendo o objeto do
furto de valor superior ao salário mínimo.
O Ministério Público recorreu de uma decisão de um juiz de Direito de Porto Alegre, que
não recebeu denúncia pela prática de furto, por entender ser uma bagatela (res furtiva de valor
ínfimo – uma lanterna à pilha, marca Eveready e uma lata de leite condensado), sob o fundamento
de ser, a sentença absolutória, um incentivo à criminalidade. Apreciando o recurso em sentido
estrito, a 1ª Câmara Criminal do tão citado Tribunal de Alçada gaúcho425 manteve a sentença a quo
e rebateu os argumentos do parquet, da seguinte forma:
“Descriminando-se judicialmente a bagatela não se estará desestimulando a honestidade,
pois ninguém se tornará desonesto, porque o judiciário adstringiu o efeito do ilícito
insignificante ao antecedente policial. A desonestidade surge pela dramaticidade da
situação sócio-econômica do agente. Não será a impunidade do fato irrelevante que
fomentará o crime, mas a pobreza do povo. É a miséria a inimiga da aflita sociedade
brasileira, não o jovem delinqüente que dela é fruto. Portanto, para combater os delitos
patrimoniais, urge que o país se empenhe na erradicação de questões como a natalidade
descontrolada, a fome, a infância abandonada, o desemprego e a pobreza em geral, e não
que o Poder Judiciário reprima gravemente as infrações patrimoniais, pois estará
combatendo os efeitos, ao revés de atacar as causas da criminalidade.
Neste vendaval de cinismo e decomposição moral que afeta uma sociedade em crise,

422
Ibid., p. 54-55.
423
Ibid., p. 56-57.
424
Ibid., p. 50-53.
425
Ibid., p. 57-60.
envolvendo até mesmo a classe dirigente, sustentar-se no preceito dura lex sed lex que a
tese do crime de bagatela não encontra guarida no direito sancionador pátrio, salvante
como causa especial de diminuição da pena, no furto e no estelionato, ou de perdão
judicial, ao crime do art. 176 do CP é uma postura sobremodo legal, mas conservadora,
não compatível, repita-se, com a realidade nacional da qual o julgador jamais poderá
desconhecer ou ignorar.
Não se trata de uma postura meramente ideológica, porquanto se escuda na doutrina penal
e na jurisprudência do Tribunais, inclusive do Pretório Excelso.”426
O juiz da comarca de Sant'Ana do Livramento, Henrique Osvaldo Poeta Roenick, proferiu
um sentença427, citando autores críticos como Michel Mialille, Pietro Barcellona e Ernst Bloch
(estrangeiros); João Baptista Herkenhoff e Roberto Lyra Filho (brasileiros), fugindo totalmente da
hermenêutica dedutiva, tecno-formal, tradicional e pondo em discussão a própria ideologia do
sistema penal brasileiro e sua função de atender aos interesses da classe burguesa. São suas estas
palavras:
“Mais uma vez, diante do Judiciário, como quer o 'sistema', os desvalidos e, por isso
mesmo, destinatários únicos da norma penal repressiva, até porque nossa lei penal, como
de resto todo nosso sistema jurídico, é montada para a continuidade de um poder burguês,
burguesia esta que busca, incessantemente, sua 'segurança', identificada esta mesma
'segurança' como ORDEM. Isto é, tudo que venha de garantir a segurança da burguesia é
tido como ordeiro e justo. Ao contrário, tudo aquilo que venha a pôr em risco dita
'segurança', passa a ser injusto. Nessa medida, justiça passa a ser sinônimo de ordem, ou
seja, um conjunto de medidas que visem a estabilidade da instituição burguesa e, ainda,
para manter, a qualquer custo, essa falsa 'harmonia' sócio-econômica.”428
Sob esses e outros argumentos, como a necessidade do Promotor de Justiça provar não ter
agido o réu em estado de necessidade, invertendo, assim, o ônus da prova, o magistrado absolveu
um acusado paupérrimo, casado e com dois filhos, que furtou um cavalo para sustentar sua família.
Também absolveu dois outros réus, com as mesmas condições financeiras, denunciados pela prática
do delito de receptação, por terem comprado o animal. Esta sentença foi mantida em grau de
recurso.
Encerrando a análise dos crimes de furto, encontra-se a sentença do juiz Clademir José
Ceolin Missaggia, de Santiago, Rio Grande do Sul, que condenou denunciado pela prática de furto
qualificado, mas aplicou ao mesmo a pena prevista para o crime de lesão corporal de natureza
grave. Sob o argumento do Princípio da Proporcionalidade, o magistrado criticou a ideologia
imprimida pelo legislador no Código Penal, ao estabelecer penas mais severas aos crimes contra o
patrimônio em relação aos crimes contra a pessoa e contra a própria vida. Assim, justifica ser o
crime de lesões corporais mais grave, não sendo justo, portanto, aplicar ao furto qualificado pena
maior. A sentença discute vários outros temas, inclusive o princípio da legalidade, onde se encontra:
“Poder-se-ia objetar que o juiz não pode substituir o legislador, sob pena de afrontar-se o princípio
da legalidade. Ora, o Código Penal de 1940, que somos obrigados a aplicar, não foi instituído
através de Decreto-lei? O senhor Presidente Getúlio Vargas e o senhor Ministro Francisco Campos
eram legisladores?”429
Um dos fatores cruciais na construção e manutenção da miséria no Brasil é a má
distribuição de terra. Um país com proporções continentais, com espaço para todos, é de

426
Ibid., p. 59-60.
427
Ibid., p. 61-66.
428
Ibid., p. 62-63.
429
Ibid., p. 71.
propriedade de poucos, pois os donos de toda sua enorme extensão, tirando-se o Estado, são apenas
10% de seu povo. Os proprietários de latifúndios, alguns maiores que certos países europeus,
criaram a União Democrática Ruralista – UDR – com o propósito de defender seus interesses e,
prioritariamente, combater o movimento pela reforma agrária. Esse combate dá-se em vários
setores, desde o parlamento, elegendo, pressionando ou comprando parlamentares, até no próprio
campo, onde possuem arsenal paramilitar para defender suas terras, chegando à prática criminosa,
com assassinatos de posseiros e líderes sindicais. Muitas outras entidades enfrentam a UDR, entre
as quais uma parcela da igreja católica. Nesse embate, um frei franciscano publicou nota na qual
criticava, abertamente, a entidade ruralista, acusando-a de comprar armas e contratar pistoleiros,
para matar posseiros, sindicalistas, advogados e, ainda, promover a queimada de casas. Por isso, o
religioso estava sendo processado por crime contra a honra na comarca de Nanuque, Minas Gerais.
A 2ª Câmara do Tribunal de Alçada daquele Estado430, deferiu Habeas Corpus em favor do frei,
determinando o trancamento da ação penal contra ele movida. O acórdão possui um discurso
nitidamente cristão, como se pode ver:
“A missão espiritual da Igreja nos prepara para, em Amor e renúncia, buscarmos o Cristo.
A missão evangelizadora da Igreja nos energiza para darmos dignidade ao Homem,
exigindo de seu semelhante o dever de solidariedade, o respeito e o acolhimento às justas
reivindicações.
Ao exigir a dignidade do Homem, a Igreja não pode se omitir na luta para dar-lhe o pão.
O sacerdote franciscano nenhum crime praticara ao dispor sua mensagem na defesa dos
pobres.
O sacerdote paciente nenhum crime praticara ao atribuir críticas vigorosas à UDR.”431
O autor não crê na possibilidade de construção de uma sociedade verdadeiramente
alternativa sob a ideologia cristã, historicamente vinculada ao elitismo, dominação e alienação dos
povos. Entretanto, não pode negar que alguns religiosos, com muita boa fé e espírito de luta, fazem
de sua vida uma liça em defesa dos pobres e oprimidos, encontrando, em muitos casos, a morte
violenta, em mãos de assassinos profissionais a soldo de pessoas conhecidas, mas impunes. Mesmo
discordando da ideologia dessas gentes, vê-se em suas atividades uma prática alternativa de muita
importância no atual contexto histórico, mormente num país onde as portas do Poder Judiciário
costumam estar abertas aos ricos e bem-arrumados latifundiários e fechadas aos pobres e
maltrapilhos posseiros, vistos, quase sempre, como criminosos. Uma decisão de um Tribunal
optando pelo movimento dos sem-terra ou por um defensor dele, em detrimento da poderosa UDR,
é, sem a mínima margem de dúvida, alternativa.
Fora da área penal, a questão da terra possui grande relevância, destacando-se as ações
possessórias. Cansados de esperar por uma reforma agrária prometida em cada eleição e nunca
efetivada, milhares de agricultores brasileiros, ávidos por trabalho, mas sem um pedaço de solo para
plantar, organizaram-se e fundaram o movimento dos sem-terra, com o objetivo não só de invadir
latifúndios, mas, também, de forçar uma solução política para o grave problema da concentração da
propriedade. O resultado foi o conflito entre posseiros e proprietários. Nestas lides o habitual é a
prestação jurisdicional em favor dos proprietários, quase sempre reintegrados ou mantidos na posse,
de forma liminar e em despachos lacônicos, quando a ação ajuizada é de cunho possessório, ou
imitidos, no caso de ação dominical. O fato de os autores dessas demandas serem poucos, quando
não uma pessoa ou um casal, e os réus serem muitos, chegando a se tratar de uma vila ou pequena
comunidade, nunca importou aos juízes cumpridores da lei. Estes também nunca titubearam em
requisitar a força pública (Polícia Militar, Polícia Federal e Polícia Civil) para desalojar esses
lavradores, mesmo tendo como resultado a morte ou lesões corporais, corolários tidos como sem
importância, necessários, lógicos e normais. Posseiros foram mortos pela polícia, incluindo-se

430
Ibid., p. 84-86.
431
Ibid., p. 86.
mulheres e crianças, e inúmeros outros, foram agredidos, tudo sem responsáveis, sem punição. Os
militares alegam estar cumprindo decisão judicial. Os juízes dizem só cumprir a lei. Os mortos são
enterrados e esquecidos. Entretanto, alguns julgadores estão sensíveis a estes problemas e laboram
em busca de justiça social. Assim obrou a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado do Rio
Grande do Sul432, ao pôr-se ao lado dos que necessitam terra para viver, distanciando-se daqueles
que a desejam só para enriquecer, reformando sentença do juiz de Sapucaia do Sul, RS.
“A convicção judicial deve ser fortíssima em casos desta natureza, quando se cogita de
deslocar de seu local de moradia dezenas e dezenas de famílias, podendo importar em
centenas de pessoas. O problema, manifestamente, não é abordável dentro de categorias
jurídico-processuais positivistas, de literalidade ou gramaticalidade legalista, sob a
regência da lógica formal. Está em jogo gravíssimo tema social. Mais perigoso o
desenlace quando o magistrado resolveu por fazer a sentença atingir quaisquer pessoas
que possam ser dadas como estando a residir em área alegadamente de posse da autora,
incluídos os que não foram parte no processo!”433
Em caso parecido, o 1º Grupo Cível do mesmo Tribunal434 julgou improcedente ação de
reintegração de posse ajuizada na comarca de Canoas, valendo a pena reproduzir, apesar de ser
longa, a declaração de voto do juiz José Maria Rosa Tesheiner.
“Esta não é uma possessória igual a tantas outras em que são indivíduos os que
contendem. Aqui, é uma coletividade que se apresenta como ré. Busca-se reintegrar na
posse uns poucos e demitir da posse uma comunidade, uma vila. Essa a peculiaridade a
destacar desde logo, porque não se encontra na lei solução expressa para a hipótese como
a presente.
'O Direito, ensina Miguel Reale, não se restringe apenas às normas, mas compreende
também fatos e valores. Assim, uma visão integral do Direito exige, não só no plano da
filosofia, mas também e muito mais no da prática judicial, que os julgamentos levem em
conta não só as normas legais, estabelecidas para resolver casos que usualmente
costumam ocorrer, mas também os novos fatos sociais, não previstos nas leis e que devem
ser objeto de valoração contemporânea, não necessariamente igual à que fariam os que
legislaram no passado.
'Lembra Helmut Coing (Fundamentos de Filosofía del Derecho) que três são as funções
do Juiz: a de aplicar as leis, que é a mais freqüente; a de integrar o direito, através da qual
se colmam lacunas e, finalmente, a mais importante, a de fazer justiça. Para o Juiz, o valor
'justiça' deve estar no ápice da hierarquia dos valores. Constitui, talvez, deformação
imputável ao positivismo jurídico a circunstância de no forum indagar-se tanto a respeito
da solução legal, e tão menos da solução justa.
'Ora, colocado na balança da Justiça, de um lado os interesses de três casais, para os quais
a área em litígio representa muito, mas não é fundamental, e, de outro, os de noventa ou
mais famílias, para as quais essa mesma área é condição de vida digna, parece não ser
difícil determinar para que lado pende a balança. O Judiciário, por ser um Poder, não pode
ficar apenas na posição subalterna de obediência a comandos emitidos pelos demais
Poderes. Deve colaborar com o Legislativo e o Executivo na solução dos problemas
sociais, especialmente quando se apresentam hipóteses que não se prestam à edição de
normas abstratas, exigindo solução concreta, caso a caso.
'Não pode o Judiciário ser injusto, aguardando que sobrevenha lei justa, máxime quando o
legislador se omite, temeroso das conseqüências que possam advir da emissão de norma

432
Ibid., p. 145-152.
433
Ibid., p. 148.
434
Ibid., p. 152-157.
geral, perigo que o Judiciário pode enfrentar, porque suas decisões não são leis, valendo
apenas para o caso. Opus justitiae pax. É, então, de se perguntar qual a solução mais
consentânea com a paz social. E a resposta, mais uma vez, pende para os 'vileiros',
especialmente se levada em conta a crise econômica que ora atravessamos, com levas de
trabalhadores sem emprego, sem casa e sem comida.
'Afirmou-se, no início, não se encontrar na lei solução expressa para o caso dos autos, o
que não é verdade, porque a Constituição, que é a Lei Maior e prepondera sobre qualquer
outra, consagra a função social da propriedade. Não precisava, pois, concordar com o
Relator para votar como votei.”435
Neste acórdão estão mescladas questões jurídicas, históricas, sociológicas, sociais e
econômicas, ficando claro o uso alternativo do Direito. Ademais, ao Poder Judiciário foi lançada a
responsabilidade de dar solução, assim como ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo, aos
problemas sociais.
A legislação brasileira é pródiga em normas favorecendo as grandes instituições financeiras
e grandes empresas. Vários casos já foram citados. Isso demonstra o motivo pelo qual gastam tanto
dinheiro para eleger deputados e senadores. Outro exemplo desse favorecimento diz respeito aos
contratos de consórcio, nos quais o consorciado, caso venha a desistir de seu plano, o que ocorre,
normalmente, devido aos exacerbados aumentos das prestações, só tem direito de receber a
devolução das cotas pagas no final do plano (pode levar anos), sem qualquer correção. Isso num
país com hiperinflação significa não devolver nada, ou seja, locupletação. Acabando com estas
injustificadas facilidades legais, o Superior Tribunal de Justiça, através de sua 3ª Turma436,
determinou a devolução dos valores das cotas, devidamente corrigidos. No corpo do acórdão,
encontra-se:

“Essa matéria sobre ser possível ou não a incidência da correção monetária, em tais
circunstâncias e mesmo em outras nas quais se argumenta com violações legislativas
arcaicas, porque superadas pelos fatos sociais, não podem inibir o julgador de adequando
sua interpretação à realidade social ou econômica, entregar a prestação jurisdicional a que
faz jus o interessado, notadamente, fiel ao princípio de justiça, que deve prevalecer sobre
os conceitos do direito, quando este se constitui anacrônico e distanciado, na mora do
legislador, aos fins sociais a que se o constituiu.”437
Em voto vencido, o juiz Duarte Gehlen, da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio
Grande do Sul438, buscou restringir a liberdade contratual em matéria de locação, por abuso de
direito por parte do locador, tendo em vista proibição, sem motivo justificável na época do pedido
de rescisão contratual, de instalação de aparelhos de ar condicionado no imóvel locado.
Um outro tema delicado na legislação pátria diz respeito aos seguros. As seguradoras, quase
sempre grandes grupos econômicos, tudo fazem para vender suas apólices, mas na hora do
pagamento do prêmio segurado, para não efetuá-lo, socorrem-se dos mais diversos meios, e aí está
incluído o jurídico. Chega-se ao absurdo, por ilustração, das entidades bancárias, em conluio com as
seguradoras, obrigarem seus clientes, sobretudo agricultores, necessitados de empréstimos, a
efetuarem seguro de vida em grupo, sob pena de não terem seus pedidos deferidos. Ocorrendo a
morte do segurado, as seguradoras entram em juízo contra a viúva buscando rescisão contratual,

435
Ibid., p.155-156.
436
Ibid., p. 180-182.
437
Ibid., p. 181.
438
Ibid., p. 186-192.
pelos mais diversos motivos, sendo a principal alegação: doença do segurado antes do contrato. Os
abusos são de todas as espécies.
A 2ª Câmara do Tribunal de Alçada gaúcho439 impediu mais uma dessas práticas, julgando
procedente ação ordinária de cobrança, determinando o pagamento total do prêmio, devidamente
corrigido, mesmo tendo a segurada dado plena quitação, ao receber quantia inferior à devida, após
ter sua residência incendiada.

4. Por fim, passa-se à análise das mais polêmicas jurisprudências, os julgamentos contra
lei. O tema é de grande importância, ao ponto de críticos da alternatividade, desde o primeiro
momento440, tentarem identificar o movimento do Direito Alternativo como um grupo de juristas
contra a lei, contra a legalidade instituída e, por conseqüência lógica, contra a ordem e a segurança
estabelecidas na sociedade. Nunca discutiram nada sobre a miséria, sobre a quem esta ordem e esta
segurança de fato servem. O discurso é mítico, ou seja, há que se defender a ordem e a segurança,
sem qualquer polêmica, sem, sequer, se saber o significado destes axiomas. Aproveitam-se, esses
juristas dogmáticos, cognominados por Edmundo Arruda de “ventrílocos do poder instituído”, de
algumas afirmações, em particular a efetuada por Amílton Bueno de Carvalho, da necessidade de se
transgredir a legalidade, em alguns casos, mas com fundamento nos princípios gerais do Direito,
para estereotipar, de forma negativa e falsa, toda uma corrente jurídica.
Por outro lado, como adverte José Eduardo Faria441, os juristas alternativos não souberam
responder com eficiência a essas críticas, deixando transparecer, para o senso comum, ser verdade a
pecha de negadores da lei, de juristas idealizadores de uma sociedade anômica.
Para elucidar-se essa questão, nada melhor que um estudo sobre jurisprudência. Para se
iniciar este estudo, há que se saber, de antemão, qual o real significado da expressão julgar contra a
lei, dentro de um sistema de normas escritas, como no caso do Brasil.
Todos os juristas, os alternativos ou os seus contrários, não são contra a lei em si; contra a
existência de um sistema normativo oficial com a função de regular a vida em sociedade. O próprio
Amílton Bueno de Carvalho afirma ser o Direito Positivo uma conquista democrática a ser
preservada442. A discrepância está na visão sobre este sistema normativo, pois para os alternativos
ele não escapa da questão ideológica e é utilizado, até a atualidade pelo menos, como meio de
dominação, pois a classe hegemônica, controladora dos aparelhos de Estado, constrói a maioria das
leis para beneficiar-se e manter seus interesses, gerindo a vida das demais classes, segundo seus
desejos, sua visão de mundo. Ao contrário, os juristas dogmáticos não aceitam a intromissão da
ideologia no aparato legal do Estado, defendem sua neutralidade e dizem serem as leis a
salvaguarda da ordem e da segurança de toda a sociedade, e não de grupos. Essas maneiras de
interpretar o arcabouço legal do Estado, por si só, não respondem à pergunta: o que é julgar contra
a lei?
A resposta, em princípio, parece ser simples, pois julgar contra uma lei é o ato de um
julgador proferir um julgamento contrariando-a. Um estudo mais a fundo, entretanto, mostra com
clareza que esta resposta não esclarece, absolutamente, nada. Uma outra pergunta surge: quando
uma sentença contraria uma lei? Ora, quando a conclusão do julgamento não está de acordo com a

439
Ibid., p. 197-201.
440
Mesmo após a publicação de inúmeros artigos e de todos os livros de autores alternativos, onde fica bem claro não ser
o movimento do Direito Alternativo contra a lei, ainda existem críticas neste sentido, como o texto do juiz substituto de 2º
Grau do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Roberto Lino Machado, intitulado “Democracia e justiça alternativa”,
transcrito na Publicação Oficial da Associação de Juízes para a Democracia, ano 2, nº 3, out. de 1994, São Paulo, p. 2.
Este tipo de ataque, pois não se trata de uma crítica construtiva, dá-se por pura malignidade ou por total ignorância. Ao
que parece, algumas pessoas, sem o mínimo respeito aos conceitos básicos de metodologia científica, investem contra o
Direito Alternativo sem, nem sequer, conhecer o tema de forma superficial.
441
Ver capítulo anterior, p. 204.
442
Ver p. 133 do capítulo anterior.
norma. Novamente nada está elucidado, pois ainda restam algumas perguntas centrais, como: quem
diz quando uma sentença não está de acordo com a lei? E quem diz o conteúdo da lei?
Estas indagações não possuem uma só resposta. Assim como o Direito não possui uma só
forma de ser visto, a lei não tem um único significado. Segundo uma ideologia positivista, sob os
ensinamentos de Kelsen443, pode-se responder ser o juiz legalmente instituído quem diz o conteúdo
da lei, e os tribunais superiores, dentro de suas competências, os órgãos estatais com o poder de
dizer quando uma sentença está ou não está de acordo com a norma escrita. Dessa maneira, no
Brasil, o juiz de Direito afirma o primeiro conteúdo legal da norma; o tribunal imediatamente
superior afirma o segundo conteúdo da mesma norma; o tribunal subseqüente afirma o terceiro
conteúdo da mesma norma e, finalmente, em alguns casos, o Supremo Tribunal Federal – S.T.F.–
afirma o quarto conteúdo legal, o definitivo, pois não mais há recurso. Todos estes conteúdos
referem-se a um caso concreto posto a julgamento. Há problemas neste raciocínio. Primeiro, porque
os tribunais, aí incluído o S.T.F., vivem se contradizendo, internamente, pois suas câmaras ou
turmas, até mesmo seus órgãos especiais ou tribunais pleno, modificam constantemente suas
decisões ou julgam de uma forma contrária um mesmo assunto, tudo dependendo do momento
histórico, das partes envolvidas, dos interesses em litígio. Segundo, porque o próprio sistema
positivo admite a doutrina como uma fonte de Direito. Em assim sendo, inúmeros doutrinadores
não só dizem os conteúdos das normas, como criticam decisões, afirmando, em muitos casos, a
inadequação do julgamento com a norma aplicada e/ou interpretada. Por certo, um doutrinador não
pode ativar o aparato de violência do Estado, ao contrário do magistrado, para impor seu
pensamento sobre a lei. Mas isso não impede que um doutrinador esteja certo e um magistrado
errado na análise de uma mesma norma, para aplicação em um mesmo caso concreto. É óbvio que
conforme uma visão juridicamente pragmática, a decisão do S.T.F. é a última palavra, não se
podendo discutir, por ser inócuo, se ela está correta ou errada. Entretanto, o Direito não é
decidibilidade e mesmo o Areópago mais importante do país pode estar equivocado. Terceiro
porque uma outra fonte do Direito, o costume, também aceito pela doutrina tradicional, diz o
conteúdo das normas e sua conformidade com os julgamentos. As ações e omissões das pessoas, no
agir em sociedade, são muito mais condicionadas pelos costumes e menos pela lei, muito menos
ainda pelas decisões do S.T.F.. Tudo isso é Direito e todos dizem os conteúdos das normas.
Há, também, um outro enfoque que põe em xeque o raciocínio, meramente, técnico-lógico-
formal da hermenêutica jurídica. O intérprete possui infinitas maneiras de analisar a lei. E não se
está falando nos casos mais subjetivos, como o conceito de mulher honesta, pequeno valor, logo
após, etc., conceitos expressos em textos legais de pouca ou nenhuma precisão. Mesmo nos casos
de mais clareza terminológica, o intérprete possui opções, e sua escolha se dará por sua ideologia.
Tal afirmação não é apenas o desejo de um jurista crítico, ao contrário, possuem os magistrados
autorização expressa dos Tribunais Superiores para praticar a diversidade interpretativa. O Supremo
Tribunal Federal assim se manifestou: “Ofício Judicante – Postura do Magistrado. Ao examinar a
lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação
humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrando o indispensável apoio,
formalizá-la.”444 Já o Superior Tribunal de Justiça, citado na página 252, assevera dever prevalecer o
princípio de justiça sobre os conceitos do Direito. Está claríssimo o entendimento de ambos os
tribunais, de situarem os princípios de justiça acima de qualquer lei, devendo o magistrado, no
embate entre eles, optar pelos primeiros. Ora, não há conceito mais ideológico do que o de justiça.
Infinitas são suas conceituações. Portanto, as decisões mencionadas são uma autorização ampla para
os magistrados aplicarem a concepção própria de cada um sobre justiça, postergando os textos
legais.

443
Ver: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado, 6ª edição, Coimbra, Armenio Amado,
1984, 484 p.
444
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 111787-7. Relator: Ministro Marco Aurélio. 16 de abril
de 1991. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Brasília, n. 155, p. 172-192, set. 1991.
Não há, portanto, julgamento contra a lei. Quem entende o conteúdo da norma como aquele
dito pelos magistrados não pode falar em decisão contra a lei, pois uma vez transitada em julgado
uma decisão, ninguém, absolutamente ninguém, tem o poder de dizer ser a decisão contrária à
dispositivo legal, alterando-a. Os descontentes podem xingar, criticar, para, tão-só, aliviarem suas
iras, pois o julgamento nunca será contra a lei, ao invés, será a materialização desta. Também
aqueles que defendem os princípios de justiça sobre os conceitos de Direito ou, em outras palavras,
a supremacia do idealismo justiça sobre as normas, não podem falar de decisão contrária à lei, pois
o julgador apenas opta pela justiça. Por fim, para quem admite a amplitude de interpretações, da
mesma forma, não há julgamento contra a lei, pois trata-se, cada caso, de mais uma interpretação do
dispositivo legal e não de sua negação.
Pelo visto, torna-se difícil, talvez impossível, conceituar o significado do julgamento contra
lei, pois não há como comprovar, empiricamente, este fato jurídico. Salvo os casos em que o
julgador opta conscientemente e expressa a opção de estar julgando contra uma lei, não se pode
afirmar existir um julgamento dessa espécie, pois será a opinião de um intérprete em relação à de
um outro. Como se verá a seguir, toda decisão possui uma justificativa. Assim, para não aplicar um
dispositivo legal, não necessita o julgador negá-lo expressamente. Basta buscar na Constituição
Federal, nos Princípios Gerais do Direito, nos Direitos Humanos, nos Princípios de Justiça, ou em
qualquer outro lugar, fundamentos jurídicos. Agindo assim, sua sentença ou acórdão estará dentro
da legalidade, mesmo que a lei diga x, e a decisão, y.
Exemplos concretos podem melhor esclarecer. O primeiro caso publicado na Revista de
Jurisprudência Alternativa, passível de ser aceito como uma decisão contra a lei, vem da 2ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul445. Uma determinada pessoa foi denunciada e
condenada pela prática do crime previsto no art. 229 do CP, por manter casa de prostituição. O
conceito do crime e sua tipificação não oferecem grandes dificuldades hermenêuticas. Manter é
permitir a existência, prover o necessário para a subsistência. Casa de prostituição é toda aquela
aberta ao público, onde mulheres, atualmente também homens, se dispõem à prática sexual,
mediante pagamento. O caso em julgamento era exatamente assim. A acusada era a proprietária do
local onde havia quartos especiais para a prática de sexo, entre as mulheres que ali trabalhavam e os
clientes. Os senhores desembargadores, sem mencionarem, em qualquer momento, estarem
julgando contra a lei, absolveram-na. Os argumentos foram:
“'A jurisprudência dos Tribunais é torrencial no sentido de que a exploração de casa de
prostituição em zona de meretrício não configura delito previsto no art. 229 do CP.
'O funcionamento de casa de prostituição às claras, em zona de meretrício e com pleno
conhecimento das autoridades locais, que nenhuma restrição lhe opõe, desconfigura o
delito do art. 229 do CP.
'Não pode, em verdade, a proprietária de prostíbulo, situado em zona de meretrício,
geralmente pessoa de poucas luzes, máxime no interior do Estado, supor que sua atividade
é penalmente ilícita, quando a autoridade vem diariamente a sua casa fiscalizar o seu
comércio (...) Mesmo porque não tem sentido condenar-se alguém por manter casa de
prostituição quando elas proliferam por todos os cantos, inclusive com anúncios nos
meios de comunicação.'”446
Como se pode ver, trata-se de um Tribunal de Justiça, não composto por juristas
alternativos, julgando com base na “jurisprudência torrencial dos Tribunais”. Mesmo em se
concordando com a decisão, exercendo, todavia, o papel de advogado do diabo, pode-se argumentar
contra: 1) dentro do sistema legal positivo, não pode a jurisprudência, mesmo torrencial, revogar
uma lei; 2) o fato de a casa de prostituição estar dentro de uma zona de meretrício não exclui a
criminalidade, pois não prevista no CP; 3) a inércia da autoridade só serve para tipificar a prática do

445
Ibid., p. 33-35.
446
Ibid., p. 34-35.
crime de prevaricação, por não ter tomado as medidas legais inerentes ao seu cargo, jamais pode
servir, entretanto, para excluir o crime do art. 229 do CP, pois, novamente, esta excludente não está
prevista em lei; 4) ser a ré de “poucas luzes” e sua impossibilidade de supor a ilicitude de sua
profissão, pela fiscalização da polícia em sua casa, não desconstitui o delito, pois é anexim do
Direito que a ignorância ou o desconhecimento da lei não exime a responsabilidade criminal; 5) a
proliferação de outras casas de igual gênero, inclusive com anúncios nos meios de comunicação,
também não permite a exclusão da criminalidade, tão-só demonstra a ineficiência da repressão
penal.
Pois bem, é ou não contra a lei o acórdão sob análise? Segundo um prisma legalista, sim.
Mas o legalismo é uma ideologia, e não um sinônimo de Direito, portanto, pode-se afirmar que não.
Está bem perto, talvez o seja, um uso alternativo do Direito.
O juiz Clademir José Ceolin Missaggia447 seguiu pelo mesmo caminho e absolveu outra
proprietária de casa de prostituição. Sua sentença é muito bem fundamentada e usa um outro
argumento, qual seja, que milhares de crianças e jovens não são atraídas à prostituição, mas
“empurradas” devido à miséria e à pobreza.
O Código Penal tipifica como crime de estupro a relação sexual de um homem com uma
mulher menor de quatorze anos, independente de seu consentimento. Trata-se de violência
presumida. Também esse delito não apresenta grandes dificuldades de interpretação, pois a
materialidade (relação sexual) dá-se com a penetração do pênis na vagina (passível de prova
médica), e a idade é comprovada pela certidão de nascimento. Não há dúvida, entretanto, ter a
sociedade evoluído bastante em relação aos preconceitos e conceitos morais, principalmente após o
Estado laico e o desenvolvimento da mídia. Com base nessas transformações sociais, Amílton
Bueno de Carvalho448 absolveu um jovem, acusado de estupro, por ter mantido relações sexuais com
sua namorada, de doze anos, com seu consentimento. Não houve qualquer tipo de agressão física ou
moral, inclusive o acusado desejava viver com a vítima, fato não consumado por vontade desta. O
ato sexual deu-se mais pela vontade da vítima. Não resta dúvida, sob o ângulo do CP, ser a
condenação um corolário lógico. A absolvição deu-se pela relativização da presunção de violência,
pois, segundo o julgador, a legislação foi elaborada numa época em que sexo era tabu, e a mulher
não possuía plenas capacidades civis, sendo considerada relativamente capaz. Ademais, com a
liberação sexual e a emancipação da mulher houve uma fragilização dessa violência presumida,
devendo ser buscada por outros parâmetros.
É possível ter a absolvição, mesmo efetivada com base no art. 386, III, do Código de
Processo Penal (inexistência de crime), o mesmo dos casos anteriores, violado a legalidade. É de se
indagar, entretanto: violou a ordem e a segurança da sociedade civil? Crê-se que não. Aqui um
jovem namorado manteve relações sexuais com sua namorada, uma criança, por certo, mas sem
violência real, com o total consentimento desta, que não demonstrou, na instrução processual,
qualquer ingenuidade, ao contrário, fez ver sua capacidade de entendimento sobre o ato praticado.
Neste sentido de abuso sexual, vale anotar o despudor por atacado, o qual faz profundo mal
à sociedade, que é a prostituição de milhares de crianças, ingressadas no comércio sexual até
mesmo aos oito anos de idade, à luz do dia, em frente das inertes e cúmplices autoridades, no
Nordeste brasileiro, para satisfazer, prioritariamente, aos apetites lascivos de turistas europeus,
eleitos como fundamentais para o desenvolvimento turístico-econômico da região.
A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça449 proferiu uma decisão interessante. Negou
habeas corpus para um réu preso preventivamente, por excesso de prazo da prisão preventiva, pois
decretada em 20 de agosto de 1990, até a data de 21 de junho de 1991 (seis meses e um dia após)
nem sequer havia ocorrido o interrogatório, ou seja, a instrução processual ainda não havia

447
Ibid., p. 44-50.
448
Ibid., p. 42-44.
449
Ibid., p. 86-89.
começado. O paciente foi detido devido ao seu envolvimento em homicídios, aos quais respondem
cento e noventa réus. É evidente o excesso de prazo, pois o tempo transcorrido é superior ao prazo
máximo previsto em lei para todo o processo. Os argumentos dos senhores Ministros falam por si
só.
“O Direito, como fato cultural, é histórico. As normas jurídicas devem ser interpretadas
consoante o significado dos acontecimentos, que, por sua vez, constituem a causa da
relação jurídica. Caso contrário, a lei, embora revele vigência (aspecto formal), será
carente de eficácia (aceitação mínima pela sociedade).
O Código de Processo Penal data do início da década de quarenta. De lá para hoje, o
Brasil mudou sensivelmente. Os valores foram revistos. A concentração urbana da
população, a riqueza, cada vez menos distribuída e o empobrecimento da classe média
contribuíram para o aumento da violência nas grandes cidades. (...)
Logicamente, a lei velha precisa ser analisada modernamente.
A complexidade de conclusão dos inquéritos policiais e a dificuldade da instrução
criminal são cada vez maiores. Nesse novo quadro, superada se mostra a soma
simplesmente aritmética dos prazos do procedimento penal. (...)
O juízo de probabilidade, assim, precisa ser ponderado. A interpretação jurídica, fincada
em princípios, não pode reduzir-se a mero prazo de lógica formal.”450
É certo estar ultrapassada a lógica formal nos tempos atuais. Todos sabem, o próprio Poder
Judiciário denuncia, mas poucos agem, para ver seu fim. Aliás, quando se argumenta contra este
tipo de lógica entre os juristas tradicionais, quase sempre, é para restringir-se direitos, como no caso
acima transcrito, de desatenção aos prazos processuais, em prejuízo do réu.
Recente decisão, diametralmente oposta à proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, mas
em total sintonia com a lei (Código de Processo Penal), foi proferida por Amílton Bueno de
Carvalho, em agosto de 1995, não mais como julgador de primeira instância, mas, em substituição,
como juiz do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, membro da 4ª Câmara Criminal,
no Habeas Corpus nº 295.037.816, tendo o acórdão a seguinte ementa:
“HABEAS CORPUS.
EXCESSO DE PRAZO NA CONCLUSÃO DO INQUÉRITO.
PAPEL DO JUIZ: O regime democrático exige do juiz criminal compromisso inarredável
com a liberdade do cidadão quando o Leviatã impõe prisão acima do tempo legal. Aqui
talvez resida a nobreza de sua função!”
Têm-se duas decisões divergentes, uma proferida por um tribunal tradicional, contra a lei,
em nome de uma moderna análise da norma, e outra proferida por um juiz alternativo, de acordo
com a lei. Parece ter ocorrido um inversão de papéis, mas, de fato, não. As justificativas dos
senhores ministros é a seguinte: a concentração urbana, a falta de distribuição da riqueza e o
empobrecimento da classe média contribuíram para o aumento da violência nas grandes cidades.
Portanto, o Código de Processo Penal e seus prazos necessitam ser revistos pelo julgador, pois,
ultrapassados, dificultam a instrução criminal. Não atacam a raiz dos problemas mencionados e se
apoiam na antiga idéia de combater a criminalidade com a repressão, mesmo sacrificando direitos
básicos, garantidos pela Constituição, dos cidadãos.
Conforme ponto de vista alternativo, em primeiro lugar, está a discordância sobre usar a
repressão como melhor meio de combater a criminalidade. Este debate é demasiado conhecido. O
Direito Penal moderno, não só o alternativo, busca a despenalização. Todos sabem ser a justiça
social a melhor medida contra a violência. Em segundo lugar, não se concorda com o sacrifício de
direitos básicos dos cidadãos, para manter a eficácia do sistema penal. Isto é um passo à ditadura.

450
Ibid., p. 88-89.
A morosidade do Poder Judiciário é um fato notório, inclusive no atinente ao Direito Penal
e em relação aos réus presos. Muitos deles ficam encarcerados por longo tempo, sem uma decisão
condenatória definitiva, sendo alguns, inclusive, absolvidos ao final. Isto, na maioria das vezes, não
preocupa as autoridades judiciárias ao ponto de se ter tornado rotina a prisão ilegal por excesso de
prazo. A alternatividade da decisão está no compromisso do juiz com a liberdade do cidadão, não
mais permitindo que ele pague pela ineficiência do sistema judiciário penal e pela inércia dos juízes
no cumprimento de sua obrigação de fiscalizar as prisões. Esse assunto é muito sério, pois o
desrespeito à liberdade do cidadão, em alguns casos, chega a ser brutal.
O autor, como juiz criminal, já presenciou uma dessas situações teratológicas, quando um
advogado, então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, secção do Estado de Santa
Catarina, nas vésperas de natal, requereu autorização para seu cliente passar as festas em casa, com
o compromisso de se recolher à prisão após seu término. Nada de estranho no pedido, se não fosse o
fato de o acusado estar absolvido desde o mês de julho anterior. Errou o juiz por não ter expedido
alvará de soltura. Errou o advogado por não ter acompanhado o processo de seu cliente, pagou só o
réu, por ser pobre.
Após o estudo desses julgados, vê-se haver juristas tradicionais, aí incluídos os ministros do
Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça discrepando, nos seus julgamentos, do
estrito sentido da norma, inclusive em casos de prazos processuais. Fazem-no, em nome da justiça,
da jurisprudência predominante, mas fazem-no. Muitos outros casos de decisões contra a lei (e isso
não em nome da justiça), proferidos por magistrados tradicionais, podem ser citados, bastando ver a
excelente dissertação de mestrado do professor João José Caldeira Bastos, intitulada “O Poder
Judiciário e a lei: a decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense.”451, onde, nas suas
duzentas e duas páginas, transcreve vários acórdãos criminais contra lei expressa, embora não exista
nenhum desembargador alternativo no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Esse
trabalho também poderia ser feito em relação a qualquer outro Tribunal de Justiça, e os resultados
não seriam muito diferentes. Não se pode esquecer que o Direito Penal é o mais legalista de todos
os ramos do Direito, tendo o princípio da legalidade como um dogma intransponível. Não agiu o
S.T.F. como legislador e, também, não contrariou os mais rudimentares princípios de Direito Penal
dogmático, incluído o da legalidade, ao editar as Súmulas 246 e 554, criando uma excludente de
criminalidade para o crime de estelionato, não prevista no Código Penal ou em qualquer outra
lei? No mínimo, deveria haver compartimento na responsabilidade por julgados contra a lei.
Em realidade, o problema deve ser visto de outra maneira. Não se trata de quem julga
contra a lei ou de uma disputa entre os juristas tradicionais, cumpridores das normas estatais e os
juristas alternativos, contrários a elas. A verdadeira diferença está no fato de os primeiros
interpretarem as leis vigentes, para atenderem aos interesses dominantes e hegemônicos no atual
contexto histórico, e os segundos interpretarem essas mesmas leis para atenderem aos interesses de
grupos insurgentes, em busca de hegemonia. O verdadeiro divisor de águas, o centro da dicotomia,
é a ideologia oculta, latente, na hermenêutica jurídica. O que está em jogo é a própria função do
Poder Judiciário. O juiz italiano, Salvatore Senese, deixa bem claro quais as três principais funções
do aparelho de Justiça nas sociedades ocidentais contemporâneas:
“Es bien sabido que, en las sociedades burguesas, los tribunales ejercen una doble
función: actúan como máquina represiva para garantizar el respeto a las leyes y
ordenamientos burgueses y al propio tiempo operan como «aparato ideológico del
Estado», es decir, como instrumento de inducción del consenso sobre los valores y las
ideas de las clases dominantes. (...) Esto, en buena medida, se debe a que, en un cierto
número de sociedades burguesas, el sistema judicial, junto a la doble función a que antes
se ha hecho referencia, desarrolla aún otra, que puede considerarse especificación de las
primeras: y es su tendencia a intervenir para «recuperar» las concesiones legislativas o
neutralizar los contravalores y mantener los valores tradicionales. De aquí la afirmación
451
Florianópolis, 1978, 202 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina.
de que, en tales formaciones sociales, el aparato judicial, al mismo tiempo y quizá con
mayor amplitud que los restantes aparatos burocráticos, suele funcionar como instrumento
de recuperación de los espacios conquistados en la superestructura por las clases
populares.”452
A postura do jurista alternativo não é a de substituir o legislador, mas a de evitar que passe
como vontade deste a convicção política, habitualmente conservadora, de alguns intérpretes
identificados com determinados valores tradicionais. A idéia é atingir a própria função do Poder
Judiciário, para transformá-lo não em um aparelho repressivo e ideológico do Estado burguês, mas
num aparelho de justiça de um novo Estado, identificado com as classes populares. Esta é a utopia
buscada.
Finda a análise dos casos concretos, algumas ponderações, em nível geral, fazem-se
necessárias.
Como se pode observar, o coordenador da revista utilizou um conceito bastante amplo de
jurisprudência alternativa. O movimento é novo, e a produção judicial é lenta e demorada. Muitas
jurisprudências citadas, como já mencionado, não foram produzidas por magistrados alternativos.
Em termos de conteúdo, a maioria se embasa na Constituição Federal ou em um conceito genérico
de justiça, de cunho jusnaturalista e idealista. Não se está de todo equivocado objetar não serem
estas decisões tão alternativas ou não serem alternativas, segundo o entendimento de alternatividade
como uma prática subversiva, em busca de um novo “bloco histórico”453.
No atual momento histórico brasileiro, o legalismo extremado ainda é hegemônico em
todos os meios jurídicos, principalmente no ensino e no Poder Judiciário. Alguns discursos mais
modernos, apregoando a necessidade de se interpretar as normas em conformidade com a realidade
atual, acabam servindo para cercear direitos. Portanto, todas essas decisões são importantes e
necessárias e podem ser entendidas, provisoriamente, como alternativas. Entretanto, a longo prazo,
em se desejando, realmente, mudar a sociedade, há necessidade de um progressivo processo de
avanço, pois a jurisprudência realmente alternativa, com vistas à construção de uma nova sociedade,
não pode ser construída sobre uma base idealista ou jusnaturalista. Necessita mais. Precisa ser um
contradiscurso à ideologia hegemônica, sempre visando a superá-la. Há que ser bem material,
denunciar a dominação de classes, lutar contra toda e qualquer opressão, buscar destruir os mitos
alienantes da sociedade. Não deve ser ingênua e acreditar na bondade natural (divina) do ser
humano, ou na benignidade de todo movimento social, mas necessita ser intransigente, até mesmo
radicalizar, na pugna por democracia, por distribuição de riqueza e bens, contra sua acumulação e,
talvez o mais importante, contra a manipulação de pessoas.

2. PRODUÇÃO TEÓRICO-PRÁTICA

Os dois eventos que marcaram e consolidaram o início do movimento alternativo foram: o


lançamento dos livros Lições de Direito Alternativo 1 e 2 e o I Encontro Internacional de Direito
Alternativo, ambos no ano de 1991. Antes, houve um debate nos jornais brasileiros, incluídos os de
circulação nacional, estadual e até municipal, com artigos atacando e outros defendendo o
movimento, ou melhor, os juízes de Direito do Rio Grande do Sul, que deram causa à primeira
reportagem sobre Direito Alternativo.
Portanto, como primeiro resultado, pode-se mencionar a produção teórica de artigos e
livros. Em relação aos primeiros, fica impossível citar todos, pois inúmeros foram os artigos
publicados nos mais variados jornais do Brasil, não existindo uma catalogação dos mesmos.

452
FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Política y justicia en el estado capitalista. Trad. de
Perfecto Andrés Ibáñez. Barcelona, Editorial Fontanella, 1978, p. 154 e 156.
453
Ver o pensamento do prof. Óscar Correas no capítulo anterior, p. 220-224.
Ademais, muitas revistas, vinculadas, por exemplo, às associações dos magistrados e dos
promotores de justiça, à Ordem dos Advogados do Brasil, bem como a várias universidades,
publicaram textos alternativos, também não reunidos até o momento. Portanto, o presente estudo
cinge-se à análise dos livros alternativos e dos três volumes da revista de Direito Alternativo. O
conteúdo dessas obras já foi examinado no capítulo anterior. Agora estudar-se-ão os efeitos
produzidos no mundo jurídico brasileiro. Por certo, é impossível quantificar o número de juristas
que, efetivamente, leram os livros alternativos e, o mais importante, aderiram às suas idéias.
Buscar-se-á mensurar, entretanto, com dados reais, a distribuição desses escritos no ambiente
forense brasileiro, para permitir uma idéia dos seus possíveis efeitos na prática jurídica.
Importante salientar, para evitar uma injustiça histórica, existir uma bibliografia jurídica
crítica, no Brasil, antes do Direito Alternativo. Aliás, este possui sua base teórica inicial nesses
trabalhos. Podem ser citados, para ilustrar, vários autores, começando-se pelo magistrado Arruda
Campos e seu livro A Justiça a Serviço do Crime, escrito no início da década de sessenta e hoje
bastante esquecido, injustificadamente, pois seu conteúdo ainda é atual e interessante. Outros
autores importantes são: João Baptista Herkenhoff, Roberto Aguiar, Nilo Bairros Brum, Rosa Maria
Cardoso da Cunha, José Eduardo Faria, Roberto Lyra Filho, Agostinho Ramalho Marques Neto,
Augusto Thompson, Antônio Carlos Wolkmer, Edmundo Lima de Arruda Júnior e Luis Alberto
Warat, argentino, mas residente no Brasil há muitos anos. Muitos ainda poderiam ser listados.
Para falar-se sobre os livros alternativos, há que se mencionar o nascimento da Editora
Acadêmica, no ano de 1991. Com uma postura aberta e crítica, dita editora possibilitou a publicação
de todos os trabalhos alternativos escritos naquela época, quando o mercado editorial tinha as portas
fechadas para este tema novo, pois não se sabia qual seria a reação dos leitores. São palavras de seu
editor responsável, Sílvio Donizete Chagas, na capa posterior de todos os livros da Biblioteca de
Direito Alternativo, demonstrando o espírito da editora: “A Editora Acadêmica tem intenção de dar
continuidade à coleção, abrindo, assim, o espaço negado, na área publicista, a este grupo que tão
distintamente vem trabalhando em favor da classe explorada e oprimida. Estão de parabéns os
autores desta coletânea e o grupo do direito alternativo, pelas suas atividades práticas em favor dos
marginalizados.”
Num país como o Brasil, onde as edições de um livro dificilmente passam de três mil
exemplares, e quando a venda de uma obra chega a cinco mil já se pode considerá-la como um best-
seller, os livros alternativos possuem um certo sucesso.
A primeira edição do livro Lições de Direito Alternativo 1, de dois mil exemplares,
esgotou-se em um pouco mais de trinta dias, e a segunda, em menos de dois anos. Também já se
esgotaram as seguintes obras: Lições de Direito Alternativo 2, Magistratura e Direito Alternativo e
Revista de Direito Alternativo 1.
O quadro ao lado, referente às publicações da Editora Acadêmica 454, apresenta um
panorama geral sobre as revistas e livros alternativos.

Quadro 15

PÁGINA 225 DO LIVRO

De obras alternativas a editora publicou, até o momento, trinta e um mil e cinqüenta


exemplares, vendendo um total de vinte e dois mil e duzentos e trinta exemplares, isto num prazo de
só quatro anos, tempo de vida da editora. Chega-se a uma média de quatrocentos e sessenta e três
livros vendidos por mês. Isso deve ser considerado com certo entusiasmo, pois o tema Direito
Alternativo não está incluído como disciplina obrigatória nas faculdades de Direito, o que significa
uma livre opção na escolha e compra desses livros, pois não há obrigação de lê-los, para se
submeter a um exame escolar ou a um concurso público. Outro fator importante diz respeito à

454
Os dados constam em uma carta remetida ao autor, pela editora, com data de 08 de março de 1995.
consolidação das vendas após ultrapassado o período inicial de empolgação. Este fato levou muitas
outras editoras a acreditarem nos escritores alternativos e hoje há outras possibilidades de
publicações, ficando superada a dificuldade inicial de uma única opção, a editora Acadêmica.
Dos livros alternativos publicados por outras editoras, Justiça Alternativa, Sergio Antonio
Fabris Editor, publicado em 1991 (dois mil exemplares), vendeu setecentos. Motivações
ideológicas da sentença, Editora Livraria do Advogado, 1ª edição em 1994 (mil exemplares)
esgotada. Da 2ª edição, já foram vendidos quinhentos exemplares. Por último, o livro Pluralismo
Jurídico : Fundamentos de uma nova cultura no Direito, Editora Alfa-Omega, publicado em 1994,
com uma tiragem de dois mil e duzentos exemplares, vendeu, até o momento, mil e cem,
constituindo-se no segundo livro jurídico mais vendido da editora455. Só estas obras foram
publicadas fora da Editora Acadêmica e conseguiram vender três mil e trezentos exemplares, numa
média de sessenta e nove livros por mês, nos mesmos quatro anos.
Os dados acima citados demonstram um êxito editorial e, acima de tudo, um excelente
resultado para o movimento do Direito Alternativo diante da boa aceitação de suas obras no
mercado de leitores jurídicos. Para quem busca hegemonia (ou transferência de ideologia), a leitura
de seus escritos por um número significativo de juristas representa uma importante vitória.
O segundo ponto a ser estudado são os encontros e congressos realizados sobre Direito
Alternativo. Novamente volta o problema da falta de uma catalogação de todos os eventos. Em
realidade, torna-se quase impossível realizá-la, pois tantos foram os encontros e congressos e tantos
outros estão acontecendo por todo o Brasil, muitas vezes sem, até mesmo, o conhecimento do
Instituto de Direito Alternativo. Por conseguinte, trabalhar-se-á, neste capítulo, só com os principais
acontecimentos, buscando-se examinar os conteúdos das palestras e dos debates realizados.
Sem dúvida, o grande acontecimento, até a presente data, no âmbito do movimento, foi o I
Encontro Internacional de Direito Alternativo. Esse evento deu início formal, até mesmo legal, ao
Direito Alternativo, sendo criado seu instituto, o IDA. O importante, entretanto, não é esse aspecto,
mas o enorme sucesso do acontecimento. Foi uma verdadeira explosão de sentimentos contidos pela
ditadura militar e por uma cultura jurídica dogmatizante, alheia à sociedade, praticada desde o
surgimento da Ciência Jurídica no Brasil.
O Encontro realizou-se em quatro dias, sendo discutido:
1º dia: – Direito e Marxismo.
– Crítica e Academia.
– Marxismo e Direito Alternativo.
– Magistratura e Direito Alternativo.
– Operadores Jurídicos e Mudança Social.
2º dia: – Direito Alternativo e Crítica.
– Direito Alternativo e Uso Alternativo do Direito.
– Direito Alternativo e Criminologia.
– Ministério Público, Advocacia e Direito Alternativo.
– Epistemologia/Marxismo e Neomarxismo.
3º dia: – Direito e Democracia.
– Direito e Movimentos Sociais.
– Direito, Dependência e Meio Ambiente.
– Judiciário e Democracia.
– Operadores Jurídicos, Direito do Trabalho e Sindicalização.
4º dia: –A Função Social do Jurista no Século XXI.
– Plenária Final.

455
Os dados foram remetidos por cartas: uma firmada por Amílton Bueno de Carvalho, datada de 02 de maio de 1995, e
outra de Antonio Carlos Wolkmer, 09 de maio de 1995. Em relação aos livros editados posteriormente, os dados foram
obtidos por telefone.
O sucesso desse encontro foi enorme, e o número de inscritos, 1.200 pessoas, superou todas
as expectativas. Em realidade, o número de participantes foi maior, pois as inscrições oficiais
encerraram-se, por falta de espaço físico, mas os não-inscritos tiveram acesso às palestras e debates,
através de circuito fechado de televisão. Esse fato fez com que os juristas tradicionais se
desassossegassem com o surgimento do movimento, pois viram não se tratar de um simples
aglomerado de juízes do Sul do país, mas um movimento nacional, organizado para contestar a
hegemonia, até então tranqüila e solitária, do paradigma liberal legal no seio do Direito. Vê-se ter
tido, o Encontro, ainda sob os destroços do comunismo real, a coragem de discutir o marxismo
como um dos referenciais teóricos para o Direito, algo inusitado para aquele contexto histórico,
causando impacto, até mesmo, nos participantes do Encontro e juristas alternativos, ao ponto do
adjetivo marxista ser afastado dos programas dos eventos futuros.
O II Encontro Internacional de Direito Alternativo não repetiu, em quantidade, o sucesso
do anterior, mas, segundo um outro ponto de vista, também foi muito importante, pois consolidou,
definitivamente, o movimento de Direito Alternativo, até então tido por seus críticos como algo
passageiro, com fim próximo. O número de participantes foi razoável: 850 pessoas.
Estes foram os temas discutidos nos quatro dias de debates.
1º dia: –Abertura.
2º dia: – Serviços Legais Alternativos.
– Artesania Democrática e Profissões Jurídicas.
– Neoliberalismo e Direito.
– Direito Constitucional e Democracia.
– Experiências Jurídicas Alternativas.
– Comunicações (espaço aberto para outros temas)
3º dia: – Racionalidade e Novos Paradigmas.
– Direito Civil Alternativo.
– Liberalismo e Socialismo.
– Magistratura, Ministério Público e Advocacia Popular.
– Teoria Geral do Direito e América Latina.
– Comunicações.
4º dia: – Direito Processual Alternativo.
– Movimentos Sociais e Direito.
– Direito Penal, Criminologia e Democracia.
– Sujeitos Coletivos e Direito: A Contribuição da Psicanálise.
– Minorias e Direito Alternativo.
– Experiências Jurídicas Alternativas
– Conferência de Encerramento.

Uma das característica desse encontro foi o início da discussão alternativa por ramos (civil,
penal, processual, constitucional, etc.) do Direito. Aliás, esta tendência acabou se consolidando,
tendo o Instituto de Direito Alternativo – IDA– organizado vários outros eventos para estudos de
temas jurídicos particulares, como Direito do Trabalho e Direito Civil.
O primeiro deles foi o I Encontro Internacional de Direito Alternativo do Trabalho, com a
presença de 750 participantes. Seu programa estava assim elaborado:
1º dia: – Conferência de Abertura.
– Lançamentos de Livros Alternativos.
2º dia: – Magistratura Trabalhista e Direito Alternativo.
– Direito Internacional do Trabalho – Convenções OIT.
– Poder Normativo da Justiça do Trabalho.
– Sindicalização do Servidor Público (perspectiva internacional).
– Greve nos Serviços Essenciais (direitos dos grevistas, direito
da população e auto-regulação).
– Meio Ambiente e Direito Alternativo do Trabalho.
– Direito do Trabalho e Neoliberalismo.
– Flexibilização.
– Negociação Coletiva de Trabalho (situação internacional).
3º dia: – Ministério Público do Trabalho e Direito Alternativo.
– Vocalato: Participação Popular na Justiça do Trabalho?
– Contratação Coletiva de Trabalho.
– Perspectivas para o Sindicalismo Brasileiro.
– Eficácia da Norma e Resistência do Judiciário: O Caráter
Ideológico dos Julgamentos e Ultrapetição de Sentença.
– Automação e Relações do Trabalho.
– A Crise do Socialismo e seus Reflexos.
– Segurança, Ergonomia e Direito do Trabalho.
– Contrato de Gestão.
4º dia: – Advocacia Popular Trabalhista.
– Direito Penal do Trabalho.
– Negociação Coletiva (projetos de lei e estrutura).
– Sindicalismo e Cidadania.
– Código de Processo do Trabalho: Perspectiva Crítica.
– Ruptura da Legalidade no Campo.
– Influência do Mercosul no Direito do Trabalho.
– Marxismo, Neomarxismo e Direito do Trabalho.
5º dia: – Apresentação de Teses Avulsas.
– Reuniões de Trabalho
– Plenária Final.

Frente aos resultados positivos do primeiro encontro, o IDA organizou o II Encontro


Internacional de Direito Alternativo do Trabalho, dessa vez com a presença de 650 inscritos. Foram
debatidos os seguintes temas:
1º dia: – Conferência de Abertura.
2º dia: – Direito do Trabalho e Democracia.
– Modelos de Estrutura Sindical e Negociação.
– Relações Coletivas de Trabalho.
– Papel do Estado numa Sociedade Democrática.
3º dia: – Neoliberalismo e Direito do Trabalho.
– Papel do Judiciário Trabalhista.
– Defesa dos Interesses Difusos.
– Constituição e Direitos dos Trabalhadores.
– Negociação Coletiva com o Estado.
4º dia: – Direito do Trabalho: Direito do Capital?
– Limites da Advocacia Engajada.
– Ergonomia e Direito do Trabalho.
– Informatização (automação e Direito do Trabalho).
– Conferência de Encerramento.

O último acontecimento de grande porte realizado, até a presente data, pelo IDA foi o I
Congresso Brasileiro de Direito Civil Alternativo, com 400 inscritos. Por problemas de divulgação,
entre outros, esse Congresso não teve o êxito dos anteriores, em nível de participação. Entretanto,
sua realização foi importante, pois firmou o movimento na área mais hermética do Direito, qual
seja, a civil. Seu programa:
1º dia: – Direito Civil para o Século XXI.
– Casos Concretos de Alternatividade no Direito Civil.
2º dia: – Balanço do Direito de Família.
– Uma Nova Postura do Ministério Público nas questões
de Família.
– Direito Contratual e Mudança Social.
– Contratos: Uma Visão Alternativa.
– A Nova Proteção Possessória.
3º dia: – Direito de Propriedade e Reforma Urbana.
– Uma Nova Metodologia para o Arbitramento de Aluguel
nas Ações Revisionais.
– Código de Defesa dos Consumidores.
– Lei, Direito e Justiça.

Além desses encontros e congressos organizados pelo Instituto de Direito Alternativo,


muitos outros foram realizados por todo o Brasil. Como já mencionado na nota 9 do capítulo
anterior, há 140 faculdades de Direito no país e, só nos anos de 1991 e 1992, mais da metade delas
promoveu alguma atividade (seminários, conferências, congressos ou encontros) sobre Direito
Alternativo. Amílton Bueno de Carvalho participou, sempre discorrendo sobre o movimento, do XII
Congresso Nacional dos Magistrados Brasileiros, no ano de 1991, em Belo Horizonte, MG,
denominado Justiça para o Povo, organizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros –
A.M.B. – e do I Simpósio Latino-Americano de Direito Penal e Processo Penal, efetuado pela
Instituto Interamericano de Direito Penal e Processo Penal, discursando sobre “O Direito
Alternativo e a Democratização da Justiça Penal”. Também falou, algumas vezes, para o Ministério
Público, sobre os seguintes temas: Direito Alternativo no Crime, no Encontro dos Promotores da
Bahia e Alternativas da Justiça Criminal, no Seminário Perspectivas da Justiça Criminal, em
Brasília, 1994.
Só sobre Direito Alternativo, houve o Seminário Nacional sobre o uso alternativo do
Direito, realizado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, com a presença de advogados de todo o
Brasil, onde discutiram-se os seguintes temas:
– O Judiciário e os Direitos Humanos e Sociais: Notas para
uma Avaliação da Justiça Brasileira.

– Conceitos e Evoluções do Direito Alternativo.

– Paradigmas do Conflito e da Ordem: Reflexões Sociológicas


sobre Racionalidade Jurídica e Direito Alternativo.

– Para a Compreensão do Sujeito Jurídico: Uma Leitura


transdisciplinar.

– Atuação dos Juízes Alternativos Gaúchos no Processo de


Pós-transição Democrática (ou uma Práxis em Busca de
uma Teoria).

– O Papel do Novo Juiz no Processo Penal.

– A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo


(para uma Dogmática Constitucional Emancipatória).

– Teoria Crítica e Pluralismo Jurídico.


Como se pode verificar pelas informações acima, o pensamento alternativo está sendo bem
divulgado nos meios por onde perpassa a Ciência Jurídica. Só aos seus principais eventos,
assistiram um total de 3.850 juristas. Somando-se este número aos incontáveis pequenos
congressos, conferências ou palestras456, aos alunos das disciplinas alternativas e aos leitores dos
livros e artigos confeccionados pelos membros do movimento, constata-se ter atingido, o tema
Direito Alternativo, a um número significante de juristas, sendo bem recebido por esses
profissionais, resultando num crescimento constante de adeptos.
Além desses acontecimentos esporádicos, existem os de caráter permanente, como duas
cadeiras de Direito Alternativo que estão em pleno funcionamento, a seguir estudadas. Ademais,
muitos membros do movimento exercem o magistério e, mesmo não ministrando cadeiras
específicas sobre o tema, discutem e transmitem o pensamento alternativo.
Amílton Bueno de Carvalho, professor da cadeira Direito Alternativo na Escola da
Magistratura da Associação do Juízes do Rio Grande do Sul, não segue um programa fixo, mas
discute com os alunos os mais variados assuntos relacionados com o Direito Alternativo.
Semelhante prática é muito importante, pois as Escolas da Magistratura, instituições criadas pelas
associações de magistrados, visando a suprir a grande deficiência das faculdades de Direito na
formação dos estudantes, são estabelecimentos de ensino jurídico que, além de preparar seus alunos,
também conseguem fazê-los passar, em quantidade, nos concursos para a magistratura e para o
Ministério Público. O conhecimento transmitido por essas escolas costuma ser conservador, mas há
a exceção do Rio Grande do Sul, onde a magistratura é a mais progressista do Brasil.
No curso de mestrado da Universidade Federal de Santa Catarina, por ser um centro de
ensino de Pós-Graduação, a cadeira de Direito Alternativo é mais estruturada e possui um programa
definido, em que são debatidos os seguintes temas, divididos por dia-aula.
1ª aula: Apresentação e discussão do Programa.

2ª aula: Dimensão Político-Ideológica do Direito.

3ª aula: Crise da Legalidade, Mudanças dos Paradigmas e


Teoria Crítica.

4ª aula: Direito Alternativo – Aspectos Gerais.

5ª aula: Direito Alternativo – Uso Alternativo do Direito.

6ª aula: Direito Alternativo e os Novos Sujeitos de Juridicidade.

7ª aula: Direito Alternativo e Profissões Jurídicas.

8ª aula: Direito Alternativo – Magistratura e Poder Judiciário.

9ª aula: Direito Alternativo – Serviços Legais, Ministério


Público e Advocacia.

10ª aula: Direito Alternativo – Aspectos Pedagógicos e


Metodológicos.

11ª aula: Avaliação e Encerramento.

456
Como ilustração, pode ser citado o exemplo do autor, que no Estado de Santa Catarina, onde existem onze faculdades
de Direito, já proferiu palestras em quase todas, algumas por mais de uma vez.
Essa disciplina foi oferecida em 1992, para 7 alunos, e em 1993, para 5 alunos, sendo
Edmundo Lima de Arruda Jr. e Antônio Carlos Wolkmer os professores responsáveis. Algumas
dissertações e teses com conteúdos alternativos já foram apresentadas.
No curso de especialização da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul,
UNIJUÍ, a cadeira, que no ano de 1994 foi cursada por 40 alunos e no ano de 1995 por 35
estudantes, é de responsabilidade do professor Antonio Carlos Wolkmer, com programa ministrado
muito semelhante ao da UFSC.
1ª aula: Apresentação e discussão do Programa.

2ª aula: Dimensão Político-Ideológica do Direito.

3ª aula: Crise da Cultura Jurídico-Estatal, Mudanças dos


Paradigmas e Teoria Crítica.

4ª aula: Direito Alternativo – Aspectos Gerais.

5ª aula: Fontes de Produção Jurídica Alternativa – Novos


Sujeitos da História.

6ª aula: Introdução ao Pluralismo como Juridicidade


Alternativa.

7ª aula: Fundamentos do Pluralismo Jurídico como um


Novo Paradigma.

8ª aula: Pluralismo Jurídico nas Práticas de Justiça


Alternativa.

Fora dos meios acadêmicos, os advogados alternativos efetuam uma profícua atividade
laboral nos escritórios jurídicos populares. Neles as classes populares, os pobres, os trabalhadores,
enfim, todos os necessitados recebem uma assistência judiciária mais dedicada e não a meramente
formal, patrocinada pelo Estado. O maior exemplo é o Instituto de Apoio Jurídico Popular, do Rio
de Janeiro, coordenado por Miguel Pressburger desde tempos anteriores ao movimento alternativo.
Efetuam, inclusive, a produção teórica de fácil acesso, com uma linguagem popular, para instruir
leitores leigos, não acostumados com o linguajar jurídico. Além dessas atividades, muitos outros
advogados dedicam-se à assessoria de sindicatos e de movimentos sociais.
Há, também, os promotores de justiça alternativos, que exercem uma atividade de grande
importância para o movimento, não só no conteúdo de seus pareceres, denúncias, recursos, etc.,
mas, também, no exercício das novas funções que lhes foram dadas pela Constituição Federal, de
promover ações judiciais em defesa da sociedade. Até o momento não foi efetuado um estudo
levantando toda essa contribuição vinda do Ministério Público, mas não existe dúvida da sua grande
valia.
Com menos de cinco anos de vida, o movimento do Direito Alternativo já alcançou muitos
resultados e a maioria deles positivos. A experiência histórica muito vem ensinando, e o
movimento, por ser dialético, busca uma constante transformação, para evitar o dogmatismo e a
esclerose intelectual, tão comum nos juristas. É certo estar a sociedade brasileira muito longe de
poder cambiar o bloco histórico e construir uma nova forma de vida sem as terríveis dificuldades de
estrutura e superestrutura hoje impostas. No entanto, os juristas alternativos estão caminhando
firmes nessa direção, e para quem sonha, persegue utopias, acredita no potencial humano, não aceita
a brutalidade da atual forma de se viver, existe a certeza de poder construir meios de mudanças,
ainda que sejam para outros tempos.

CAPÍTULO IV

Identidades e diferenças com os europeus

Toda análise de Direito comparado necessita ser efetuada tendo em vista as estruturas
jurídica, social, econômica e política dos países estudados, como, também, o contexto histórico dos
mesmos. Não sendo assim, certamente, corre-se o risco de imprecisões. Não se pretende abranger
neste estudo, entretanto, questões tão diversificadas, dado o seu limitado objeto. Cabe ao leitor ter
presente, então, estar-se realizando uma comparação entre um movimento jurídico alternativo
nascido, na década dos anos noventa, num país terceiro-mundista, pobre e periférico, como o Brasil,
onde sequer os princípios básicos do Estado de Direito possuem efetividade, com dois outros
movimentos, bem mais antigos, acontecidos em países desenvolvidos, onde os conflitos sociais
mais agudos foram superados457 pela implantação do Estado do Bem-estar, como a Itália e a
Espanha, com uma longa história de organização obreira, com uma sólida sociedade civil.
Como o ponto em comum entre os três movimentos é a participação e a postura ideológica
assumida por magistrados em determinado momento histórico, cabe realçar, no específico, uma
diferença fundamental na organização dos juízes no Brasil, em relação com os dos dois países do
velho mundo. Naquele há uma só organização para os membros do Poder Judiciário, prevista em
lei, circunscrita numa Associação Nacional dos Magistrados e em Associações Estaduais de
Magistrados, instituições pertencentes à própria estrutura do Poder. Já na Itália e na Espanha, há
liberdade de associação, e os magistrados buscam associar-se naquela que atenda aos seus interesses
pessoais e ideológicos. Existem, portanto, muitas associações, pessoas jurídicas autônomas e, nelas,
ficam patentes as divergências dos distintos discursos sobre o jurídico e as diferentes ideologias dos
magistrados. Há uma prática política assumida. Completamente diferente no Brasil, pois, até bem
pouco tempo, a Associação Nacional e as estaduais possuíam uma atividade gremial, preocupadas
com suas sedes balneárias, jantares festivos e alguns cursos de aperfeiçoamento profissional dentro
da dogmática jurídica. Só ao final dos anos oitenta, após a troca do regime militar de governo por
um civil, e frente a graves problemas salariais, foram tomadas algumas atitudes de caráter sindical,
chegando-se à greve em alguns Estados. Contudo, somente na década de noventa 458, diante do
descrédito do Poder Judiciário perante a sociedade civil, da perda de uma parcela do monopólio da
função jurisdicional, principalmente nas camadas ricas e nas miseráveis, começaram a tratar de
assuntos de interesse popular, como estender a Justiça à população, agilizar os procedimentos
jurídicos e desburocratizar o sistema de Justiça.

457
Problemas sociais existem, por certo, nestes países, inclusive realçando-se na atualidade. Entretanto, estão muito longe
dos bolsões de miséria e da fome em massa dos países pobres.
458
É de ser recordado ter iniciado no ano de 1990 o movimento do Direito Alternativo, quando realizou críticas à apatia
dos magistrados e à sua forma gremial de organização, com práticas tão-só corporativas.
1. A ITÁLIA E O USO ALTERNATIVO DO DIREITO

Em termos bem gerais, é prudente salientar dois fatores históricos ocorridos na Itália
(década de sessenta) antes da consolidação do uso alternativo do Direito ou jurisprudência459
alternativa, dentro da Magistratura Democrática, uma das associações de magistrados italianos, de
ideologia não conservadora, podendo ser qualificada de progressista.
Em primeiro lugar, é de ser recordado que, após a segunda guerra mundial, alguns países
europeus, aí incluída a Itália, tiveram um momento de expansão econômica, com o
desenvolvimento da indústria, capaz de produzir na sociedade civil a convicção de que todas as
necessidades básicas das pessoas poderiam ser atendidas pelos novos avanços na produção
industrial, possibilitando, como resultado, uma convivência consensual, sem grandes reivindicações
populares. Esperava-se que esse câmbio reduzisse o conflito social, cabendo ao jurista inserir-se, de
forma espontânea, neste processo. Tal esperança não durou muito e terminou com a explosão de
vários conflitos no biênio 1968/1969, realçando-se o promovido pelo movimento estudantil.
Resultou desmentido o modelo industrial-consensualista, ou seja, voltou-se à análise da sociedade
com base nas divergências e nas tensões, e não no consenso.
Em segundo lugar, a estratégia de luta das forças de esquerda mudou completamente. A
idéia de revolução armada para a tomada do poder, exportada pelos comunistas do leste europeu, foi
abandonada e em seu lugar optou-se por um resgate das teorias de Antonio Gramsci, principalmente
por sua tática de guerra de posição. Assim, o chamado eurocomunismo adaptou-se às condições
socioeconômicas locais e como estratégia para chegar ao poder empenhou-se em conquistar
posições não só na sociedade civil, mas, também, nas instituições estatais, aí incluindo-se o Direito,
ou o aparato jurídico oficial.
As condições históricas, sociais e econômicas do Brasil, no final da década de oitenta, são
bastante distintas. Ao inverso da idéia de possibilidade de consenso, esse período histórico é
marcado, exatamente, pelo surgimento de conflitos, isso devido a um crescimento espantoso de
demandas de reivindicações sociais até então sufocadas pela ditadura militar, sem condições de
serem atendidas pelo Estado, incluindo-se o Poder Judiciário. Houve, também, um grande
descrédito do jurista perante a sociedade, não só pela inoperância do aparelho de justiça, mas pela
sua própria massificação e proletarização. Talvez haja certas identidades nestes pontos com a Itália
do início da década de setenta, conforme narram Barcellona e Cotturri.
“La contracción fundamental de las sociedades capitalistas, entre fuerzas productivas y
relaciones de producción, se refleja también en el aparato público de mediación (o sea de
dominio). El «servicio» que éste debía proporcionar queda empantanado cuando la
demanda que llega al aparato es masiva. La ampliación de la base social que tiene acceso
a la enseñanza o que pide justicia ante los tribunales obstaculiza el mecanismo y empieza
a transformar los papeles.
El proyecto social que reservaba a magistrados y docentes unas funciones «dirigentes»
(esto es, muy próximas a la dirección real; llamémoslas «de alta mediación») se ahoga en
la cotidiana práctica burocrática al servicio de las masas que han surgido para la historia.
Aquellos intelectuales ya no dirigen: sirven. En un tiempo figuras de élite; luego masa
ellos mismos, piezas de un mecanismo que funciona según directrices que ahora ya se
producen en otra parte y a las que son extraños los sujetos implicados. La escisión entre

459
Este conceito de jurisprudência era amplo, conforme pode-se ver na nota 59, p. 179, do texto de Pietro Costa, intitulado
“La alternativa 'tomada en serio': manifiestos jurídicos de los años setenta”, publicado in Anales de la Cátedra Francisco
Suarez, Universidad de Granada, Departamento de Filosofía del Derecho, nº 30/1990: “Se trata, más exactamente, de un
discurso que comprende proposiciones relativas al 'saber en torno al derecho' (a la jurisprudence), así como proposiciones
relativas a las operaciones judiciales (a la jurisprudencia): hablaré de él, por tanto (salvo cuando deba distinguir entre los
dos distintos componentes), como de una metajurisprudencia (para subrayar el carácter de 'reflexión de segundo grado') o
como de un programa de metajurisprudencia (para subrayar el aspecto 'opcional', de proyecto).”
saber y poder se materializa; el intelectual queda marginado de los centros decisorios de
la sociedad.”460
Em relação às forças de esquerda, o Partido Comunista Brasileiro nunca teve grande
expressão social, jamais foi uma opção de poder, ao contrário do italiano.
Na área especificamente jurídica, há de ser esclarecido, já de início, alguns equívocos
existentes nos meios jurídicos brasileiros sobre o movimento italiano. Este é compreendido como
uma organização só de magistrados, tendo por objeto a prática de uma hermenêutica crítica das leis
em vigor, para atender aos interesses da classe obreira, ou das classes oprimidas. Dentro dessa
visão, seria um uso alternativo da lei461, e não do Direito, entendido como algo mais amplo do que o
arcabouço jurídico do Estado.
É certo terem tido os magistrados grande importância no lado prático do movimento,
podendo ser chamados de protagonistas. Entretanto, a participação de outros juristas, em especial de
professores, também foi de grande importância, para não dizer crucial, em especial nos anos
sessenta, quando se realizou um forte debate teórico sobre a Ciência Jurídica. Portanto, o uso
alternativo do Direito não pode ser identificado só com os magistrados. Este entendimento pode ser
confirmado nas primeiras folhas do livro de Pietro Barcellona e Giuseppe Cotturri:
“Aquí el razonamiento debe volver al punto de partida, al marco - aunque sea
sumariamente visto - de los años sesenta y primeros del setenta; al surgimiento de
protagonistas sociales de masa: para ver que la crisis de las figuras de mediación jurídica
tradicional (enseñantes universitarios, abogados, magistrados) no nace como mero reflejo
del movimiento de las figuras sociales «de arrastre», los obreros o, en 1968, los
estudiantes; no nace como actitud de simpatía o como reacción mecánica. Nace de la
transformación de los modos concretos de relación entre el enseñante y los estudiantes,
entre el abogado y sus clientes, entre los jueces y las partes en el proceso: porque
estudiantes, clientes, partes en el proceso y, en general, los usuarios de servicios a cargo
de las instituciones públicas, son, cada vez más ciudadanos pertenecientes a estratos
sociales antes excluidos; son las masas que, al solicitar el «servicio», solicitan también su
transformación para realizar una justicia distinta.”462
A ótica restrita e equivocada do movimento italiano também é desfeita por Pietro Costa:
“Las líneas de una jurisprudencia 'alternativa empiezan pues a ser trazadas, partiendo de la línea
divisoria de 1968-69 y adensándose aproximativamente, dentro de todo el primer quinquenio de los
años setenta, por iniciativa de jueces y juristas de cátedra para los que la consigna 'justicia de clase'
había valido como llamada a una reorientación radical del propio marco de referencia.” 463 Um outro
membro destacado do grupo também realça a não-exclusiva ação hermenêutica do movimento:
“Ferrajoli tiene el acierto de precisar que el uso alternativo del derecho no es solamente la
posibilidad de utilizar las incoherencias, lagunas y contradicciones del derecho burgués a favor de
las clases oprimidas, esto es, para la liberación, aunque sea muy limitada, de la clase trabajadora.”464
Os juristas italianos não só atuavam na hermenêutica, como pensam os brasileiros, mas, ao
revés, também pretendiam ir além, modificar as instituições jurídicas e construir uma nova
sociedade. Era, pois, um movimento bem mais amplo e não se restringia só a interpretar o Direito
460
BARCELLONA, Pietro e COTTURRI, Giuseppe. El estado y los juristas. Trad. de Juan Ramón Capella. Barcelona.
Editorial Fontanella, 1976, p. 122, (Libros de confrontación, filosofía, 8).
461
Expressão do Professor Óscar Correas, em conversa com o autor.
462
BARCELLONA, Pietro e COTTURRI, Giuseppe. Op. cit., p. 15-16.
463
COSTA, Pietro. La alternativa “tomada en serio” : manifiestos jurídicos de los años setenta. Granada, Anales de la
Cátedra Francisco Suarez, Universidad de Granada, Departamento de Filosofía del Derecho, nº 30/1990, p. 179.
464
LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria, Modesto Saavedra López, Perfecto Andrés Ibáñez. Sobre el uso alternativo del
derecho. Valência. Fernando Torres, 1978, p. 18. (Interdisciplinar, 2).
Positivo de uma maneira diversa da tradicional, com o objetivo de atender aos interesses das classes
trabalhadoras ou menos favorecidas. Desejava ampliar espaços democráticos e interferir nas
relações sociais de produção e poder. Como se verá, de forma mais detalhada, adiante, a
jurisprudência alternativa possuía um programa político a ser executado em duas dimensões: a) sob
uma perspectiva interna, atingindo um aspecto de conteúdo e outro de método e b) sob uma
perspectiva externa, diferentes das tradicionais burguesas. E essa postura é afirmada por dois dos
mais expressivos juristas italianos da época e, ainda, da atualidade:
“Es evidente, desde esta perspectiva, que el uso alternativo del derecho no significa
utilización de los métodos tradicionales, de las técnicas de argumentación más difundidas
y acreditadas para «plegar el ordenamiento a orientaciones políticas opuestas» a las
dominantes. Así volvería a caerse en el instrumentalismo de la ciencia jurídica tradicional
y en el voluntarismo subjetivo de la sobrevaloración de los instrumentos jurídicos (...)
No se trata, pues, de idear nuevas funciones para instituciones viejas, de poner al día la
línea de argumentación de los juristas con la introducción de valoraciones genéricas. Hay
que preguntarse más bien si es posible, y mediante qué instrumentos, legitimar la acción
modificadora de las relaciones sociales actuales, si es posible devolver a los sujetos reales
la dignidad de protagonistas sin intermediarios del acontecimiento histórico en que están
implicados. Se pretende decir que el razonamiento se amplía, que los interlocutores ya no
son únicamente los juristas y los jueces, sino también los ciudadanos, los trabajadores, los
oprimidos; que uno de los objetivos a realizar es el de promover nuevas prácticas
colectivas.”465
Este assunto necessita ser mais aprofundado, mesmo incorrendo-se no perigo de exceder em
citações, pois há quase um consenso entre os juristas brasileiros sobre o caráter só reformador do
movimento italiano, negando-se a ele qualquer pretensão revolucionária ou até de uma proposta de
mudanças mais radicais na estrutura de poder ou no bloco histórico vigente. Em realidade, pelo
menos em tese, o uso alternativo do Direito era bem mais progressista do que se entende no Brasil.
E não poderia ser diferente, pois seu vínculo com o marxismo era real e direto.
“El problema, en cambio, consiste en ver si es posible legitimar la acción de las fuerzas
políticas y sociales encaminadas a realizar de hecho los intereses excluidos; si puede
reconocerse la competencia directa de los sujetos colectivos para la autorrealización de
sus propios intereses; si la practica emancipatoria puede ser tomada como fuente de
creación de situaciones jurídicas relevantes; si existe una reserva de licitud para todo
comportamiento colectivo encaminado a eliminar los obstáculos de que habla el art. 3,
apartado II, de nuestra Constitución. En este caso no se trata de utilizar las técnicas
jurídicas ya existentes para fundamentar nuevas pretensiones, sino de legitimar la
realización de hecho de resultados y objetivos emancipadores y plantearse sólo ex post el
problema de la protección contra la exigencia de reintegración o restauración del status
quo ante.
En estos términos, el uso alternativo del derecho se resuelve en el proceso de
reapropiación social de la función normativa - que se desenvuelve y desarrolla
contextualmente a la modificación de los equilibrios entre las fuerzas sociales y políticas -
en la construcción de nuevas formas de «autoorganización» de los productores, en la
difusión de instrumentos de democracia y de control popular en el tejido de la sociedad
civil, en la institucionalización de los «espacios» de lucha, en el interior de los aparatos de
dirección de la economía, que permitan mantener la iniciativa política de las clases
trabajadoras.”466

465
BARCELLONA, Pietro e COTTURRI, Giuseppe. Op. cit. p. 262.
466
Ibid. p. 263-264.
É muito difícil de se estabelecer quais os fatores responsáveis pela formação da imaginação
dos juristas brasileiros em relação às atividades dos juristas italianos. Talvez quatro mereçam
destaque: 1) o próprio nome, uso alternativo do Direito, pode levar a uma equivocada compreensão.
O substantivo uso, seguido do adjetivo alternativo, permite este tipo de entendimento, pois uso
significa aplicação, ou seja, aplicação alternativa (de forma diferente) do Direito, entendido como
ordenamento jurídico; 2) o uso do termo Jurisprudência Alternativa, como sinônimo de uso
alternativo do Direito, também dá causa a uma falsa compreensão; 3) num determinado processo
histórico, nem sempre existe uma total identidade entre a teoria produzida e a prática realizada 467.
Isso também ocorreu em relação à jurisprudência alternativa, ou seja, sua teoria envolvia juristas de
várias profissões e apregoava a possibilidade de se chegar ao socialismo de forma pacífica, por uma
via constitucional, utilizando-se o Direito. A realidade, entretanto, deu maior ênfase à atividade dos
magistrados, e como estes utilizam a hermenêutica como o maior instrumento de trabalho,
entendeu-se o movimento alternativo como só um movimento de interpretação crítica e 4) uma
equivocada compreensão de algumas afirmações teóricas que priorizavam a hermenêutica, mas não
pretendiam cingir o movimento só à exegese jurídica, como: “Con un uso alternativo del derecho se
trata, pues, de sancionar judicialmente una práctica emancipadora, utilizando el derecho vigente de
un modo diverso a la utilización usual predominante.”468 Essa afirmação do jurista espanhol Nicolás
López Calera não afasta a origem marxista do movimento italiano, bem como sua inserção na luta
de classes. Sem negar as características iniciais do uso alternativo do Direito, ele efetuou uma
releitura, adaptando-o à realidade da Espanha. Seu pensamento pode ser melhor compreendido na
seguinte afirmação: “Personalmente creo que, si se ponen entre paréntesis algunas importantes
connotaciones marxistas de esta doctrina [uso alternativo do Direito], sobre todo sus perspectivas
de lucha de clases, estamos en presencia de un cierto uso alternativo del derecho, esto es, de un uso
del derecho de un sistema contra las finalidades fundamentales del mismo sistema.”469
Este fator aparenta ter sido crucial e um dos primeiros a equivocar-se foi o influente jurista
Roberto Lyra Filho, ao afirmar: “Na hipocrisia de fazer o contrário do que dizem (isto é, dizer que
vão realizar a Justiça, nas normas, enquanto resguardam os seus privilégios) os dominadores se
contradizem, deixam 'buracos' nas suas leis, costumes e doutrina, por onde os mais hábeis juristas
de vanguarda podem enfiar a alavanca do progresso. A isto chamariam Barcellona e seu grupo de
'uso alternativo do Direito', isto é, dentro da concepção deles, ainda positivista de esquerda, o
próprio ordenamento jurídico estatal.”470 Esta visão deturpada do movimento italiano, entendendo-o
como só uma forma de utilização alternativa do Direito Estatal471 consubstancia-se em um grave
erro histórico, verificável através de uma simples comparação com os escritos dos autores italianos
transcritos nas páginas anteriores. Os acólitos de Lyra Filho seguiram reproduzindo este equívoco
que perdura até a atualidade, já arvorado em verdade. Prova nítida se encontra nas palavras de
Carlos Artur Paulon, em seu livro Direito Alternativo do Trabalho: “A opção pelos oprimidos de
qualquer sistema é uma verdadeira opção pelo Direito. O uso alternativo de um ordenamento
jurídico deve ter em mente esta opção. Outra vez Roberto Lyra Filho: 'a utilização alternativa do
direito estatal, com a exploração de suas contradições, transfundidas pelo rico arsenal hermenêutico,
467
Em conversa com o autor, Perfecto Andrés Ibáñez realçou que, em teoria, o movimento brasileiro e o espanhol
possuem muitas diferenças, mas quando se analisa a prática, ou seja, o que realmente os juízes dos dois países estão
fazendo no cotidiano forense, vê-se quase uma identidade e chega-se à conclusão de não serem as diferenças muito
grande, se, de fato, existirem.
468
LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria, Modesto Saavedra López, Perfecto Andrés Ibáñez. Op. cit., p. 40.
469
LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria. El uso alternativo de la legalidad franquista y el nacimiento de la democracia
española. Contradogmáticas. Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul. ALMED Associação Latino-Americana de
Metodologia do Ensino do Direito. V. I, nº 2/3, 1983, p. 43.
470
LYRA FILHO, Roberto. Direito do capital e direito do trabalho. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1982, p.
40.
471
Ibid. 58.
inexplorado pelo advogado rotineiro, renderia resultado prático do fazer ler o Direito (legítimo)
através do emprego de armas argumentativas que se encontram no próprio roteiro levando à
implosão do positivismo'.”472 Uns dos membros destacados do movimento alternativo, o pensador
Antonio Carlos Wolkmer, continua ministrando a mesma lição: “O objetivo desta importante
tendência político-jurídica foi propor, diante da dominação e da conservação do Direito burguês-
capitalista, a utilização do ordenamento jurídico vigente e de suas instituições na direção de uma
prática judicial emancipadora, voltada aos setores sociais ou às classes menos favorecidas. Na
realidade, esta concepção não chega a ser um paradigma alternativo ou substitutivo da ciência
jurídica positivista, mas tão-somente a aplicação diferente da dogmática predominante, explorando
as contradições e as crises do próprio sistema e buscando formas mais democráticas superadoras da
ordem burguesa.”473 Para justificar esta afirmação, cita os seguintes juristas: Enrique Zuleta Puceiro,
Manuel Atienza, Eduardo Novoa Monreal e José Eduardo Faria. Existem muitas coincidências entre
o pensamento do autor e de todos esses conhecidos juristas, mas no atinente à interpretação
histórica/ideológica/jurídica do uso alternativo do Direito italiano a divergência é total.
Os italianos não buscaram criar uma nova Teoria Geral do Direito, ou um novo sistema de
conceitos, isso não significando, de nenhuma forma, o abandono às questões teóricas e/ou à
construção de uma base de argumentos, para sustentar essa nova prática. O escopo era criar
condições práticas e elaborar uma base teórica, necessárias para acabar com os “desvalores”, ou a
forma sutil utilizada pela doutrina e a jurisprudência tradicionais para não concretizarem os direitos
das classes trabalhadoras e das massas populares, já reconhecidos formalmente. Pretendiam
alcançar esses fins através da crítica e do desgaste dos aparelhos de domínio burguês, bem como
com a união externa do grupo com os demais movimentos sociais organizados. Para tanto,
buscavam, como no Brasil, atualmente, introduzir os conflitos individuais nos conflitos gerais de
classe. Tratava-se de conquistar espaços não só dentro da norma, mas na realidade social onde se
pode construir um novo poder democrático.
“En este sentido se define la función precisa de una cultura jurídica alternativa: la de ser el
lugar en el que se contribuye a la definición de una línea política positiva, esto es, a la
construcción de un poder alternativo.
Este objetivo, en términos generales, puede entenderse como elaboración de instrumentos
para una gestión social y consiguientemente política del proceso de producción y de
distribución; en su conjunto este objetivo define la línea política a la que se quiere hacer
una aportación positiva.”474
Há uma importante diferença na criação de ambos os movimentos. O uso alternativo do
Direito foi precedido, na Itália, de um grande debate jurídico teórico, realizado durante toda a
década de sessenta. Com isso, foi construída toda uma base de trabalho. Possuíam não só uma forte
teoria jurídica, mas, também, uma teoria social, e com esses suportes efetuavam uma leitura
diferente, não-formalista, do sistema normativo e do próprio Direito. Ademais, naquela época, a
Itália passava por uma forte turbulência social, com o agravamento dos conflitos (1968-69) entre
classes. Havia fortes movimentos sociais, e a demanda por direitos era grande, inclusive ao ponto de
colocar em perigo a hegemonia do bloco histórico.
Já o Direito Alternativo brasileiro surgiu em um momento de euforia democrática posterior
a vinte anos de paralisia ditatorial, não sendo a conflitividade social muito grande, apesar do
aumento da demanda por justiça social. Não houve um debate prévio, a construção de novos
alicerces para uma nova prática jurídica. Isso está sendo construído na atualidade, no andar do

472
PAULON, Carlos Artur. Direito alternativo do trabalho. São Paulo, Editora LTr, 1984, p. 21. Não obstante este livro
possuir um título igual ao do movimento alternativo, não foi estudado no capítulo I porque faz parte da literatura jurídica
crítica prévia ao Direito Alternativo iniciado em 1990.
473
WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo, Editora Acadêmica, 1991, p. 66.
474
BARCELLONA, Pietro e COTTURRI, Giuseppe. Op. cit., p. 266.
próprio movimento. Por certo, como já mencionado no capítulo primeiro, havia uma teoria jurídica
crítica no Brasil, mas tal fato não foi forte o suficiente para influenciar o cotidiano jurídico do país,
incluindo-se o ensino e a atividade forense. Nem sequer a imprensa havia dado a devida
importância aos juristas de esquerda e até mesmo a alguns liberais, que há muito lutavam contra a
ditadura militar e contra o uso indiscriminado do sistema normativo pelas elites.
A verdadeira transformação na vida jurídica do país, com capacidade de abalar as velhas e
sólidas estruturas, com poder de alterar, em parte, o ensino jurídico e a prática forense, com
importância para chamar a atenção da grande imprensa, deu-se quando um grupo de juízes de
Direito, sem amparo em qualquer teoria jurídica nova, decidiu ir a público, para: 1) manifestar seu
desacordo com a estrutura jurídica vigente no Brasil; 2) dizer que não mais iriam, passivamente,
continuar a condenar pobres, negros e prostitutas no Direito Penal e a mediar conflitos da classe
média e rica como o Direito Civil, Direito Comercial, etc. e 3) propugnar mudanças não só
jurídicas, mas, também, políticas, econômicas e sociais.
O fato de os juristas brasileiros não terem construído, previamente, uma teoria jurídica não
significa que atuavam no vazio, sem qualquer fundamento. Nesse ponto foram de muita valia as
teorias já construídas na Europa, em especial na Itália. Ou seja, resgataram-se muitas das
construções teóricas do uso alternativo do Direito italiano, mesmo com leitura equivocada, bem
como da teoria crítica do Direito, incluindo-se autores franceses, alemães e espanhóis.
Cabe aqui relembrar as bases teóricas prévias da jurisprudência alternativa. Antes, porém,
é prudente realizar uma rápida análise da estrutura organizacional da classe da magistratura, em
ambos os países, pois os magistrados, como já mencionado, acabaram sendo, e hoje ainda são, o
centro das atenções. No Brasil, como já afirmado no início deste capítulo, existe somente uma
organização dos magistrados, intrapoder, a Associação dos Magistrados Brasileiros - A. M. B. -
onde estão agrupados todos os julgadores (Ministros, Desembargadores, Juízes de Direito),
independente de ideologia. O mesmo ocorre com as associações estaduais. Portanto, os membros do
Direito Alternativo brasileiro, no que diz respeito aos magistrados, não podem ser identificados pela
associação de classe a que pertençam.
O mesmo não ocorreu na Itália, pois nesse país havia, como ainda hoje há, várias correntes
dentro da magistratura, estando esta dividida em organizações agrupadas por motivos ideológicos,
todas com uma constituição jurídica extrapoder. Uma breve retrospectiva histórica torna-se útil,
para permitir uma compreensão mais ampla sobre o tema. Em um primeiro momento era vedado
aos juízes italianos o exercício da associação. Após o fim do fascismo, os magistrados voltaram a se
agrupar numa única associação, sendo reconstruída, em 1945, a Associação Nacional de
Magistrados Italianos - A. N. M. I. Foi organizada de forma apolítica e sem qualquer caráter
sindical, com fins profissionais e corporativos. Assim, os magistrados foram mantidos afastados da
vida política e da própria história italiana, ressalvada a atividade de defesa de seus interesses
particulares. Apresentando-se à sociedade como uma associação de ideologia unitária e coerente,
representante de todos os magistrados, possuiu, naquela época, bastante força, a ponto de
influenciar a Assembléia Constituinte na elaboração da Constituição Republicana da Itália
(promulgada em 27 de dezembro de 1947, entrou em vigor em 01 de janeiro do ano seguinte).
Entretanto, o período pós-facista caracterizou-se, do ponto de vista da atividade judicial,
pela atitude amplamente reacionária da maioria dos magistrados, em especial a Corte de Cassação
que, durante o fim da década de quarenta, toda a década de cinqüenta e início dos anos sessenta,
manteve uma implacável prática fascista, chegando ao ponto de absolver companheiros de
Mussolini, processados criminalmente por atos durante a guerra, e condenar integrantes da
resistência. Utilizavam uma interpretação ampliativa de todas as leis fascistas ainda não revogadas e
restringiam o conteúdo de qualquer legislação moderna de cunho popular. Desrespeitavam,
sistematicamente, a nova ordem constitucional.
Para não cumprirem a Constituição e, ao mesmo tempo, encobrirem com argumentos
jurídicos a opção política fascista assumida, a Corte de Cassação criou a distinção entre normas
constitucionais programáticas e normas constitucionais preceptivas, subdividindo estas em
completas e incompletas. Sob estes argumentos tidos como “jurídicos”, a alta magistratura italiana
decidiu que somente as normas constitucionais preceptivas completas possuíam força para revogar a
legislação (fascista) anterior.
Por trás de todo esse discurso existia a intenção, feita realidade, de manter a legislação
ordinária, mesmo contra ou sobre a constituição, porque a ideologia dos magistrados era contrária
aos novos tempos e à democratização da sociedade italiana.
Só com o aparecimento da Corte Constitucional, no ano de 1956, houve uma espécie de
freio à Corte de Cassação, pois o novo areópago exercitou a defesa do constitucionalismo,
declarando inconstitucional, praticamente, quase toda a herança legislativa do fascismo, minando,
desta forma, a base da jurisprudência reacionária até então praticada. Tratou-se de uma luta política,
mesmo disfarçada sob argumentos jurídicos.
No transcorrer de todo esse tempo a A. N. M. I. manteve-se calada, exercitando sua
“apoliticidade”, frente à opção política fascista da maioria dos tribunais e juízes. Havia, felizmente,
os insatisfeitos. Muitos começaram a ver que a tão decantada neutralidade jurídica, motivo da
inércia da A. N. M. I., não possuía nenhum significado face à postura política reacionária praticada
pela maioria da magistratura. Além disso, houve a greve dos magistrados de Milão, por melhores
salários, a insatisfação interna do corpo da magistratura, principalmente dos magistrados mais
jovens, devido aos critérios de promoções e à estrutura hierárquica do Poder Judiciário, e, ainda,
uma batalha pela sua independência em relação ao Poder Executivo. Assim, pouco a pouco, foram
dissolvendo-se os mitos da magistratura e criando-se julgadores comprometidos com a sociedade.
A postura da A. N. M. I. foi posta em questão. Houve um distanciamento entre os
interesses dos julgadores dos tribunais com os de primeiro grau. Quebrada a unidade, ocorreu a
cisão da associação em 1961, como conseqüência de divergências políticas, quase sempre negadas
pelos membros do Poder Judiciário. Os magistrados de segundo grau abandonaram a A. N. M. I. e
fundaram a União das Cortes para, logo em seguida, trocarem para União de Magistrados Italianos
- U. M. I. - com o propósito de admitirem juízes de primeiro grau, mantendo-se a mesma postura
ideológica de apoliticidade, de a-sindicalidade, de elogio ao positivismo jurídico, de ver a função do
juiz como só exegética, de defesa da certeza e da segurança jurídica, e da estrutura hierárquica
piramidal do Poder Judiciário e seu mecanismo de carreira, entre outras. Defendiam, em outras
palavras, os preceitos do liberalismo clássico475. Esta ideologia foi ratificada nos congressos da
União de Magistrados Italianos realizados em Terracina, 1966, e Salerno, 1970. As demais
correntes da magistratura permaneceram na antiga associação, mas esta logo se subdividiu, ficando,
então, organizada a magistratura italiana da seguinte forma:
“Tenemos, por una parte, a los magistrados pertenecientes a la Unione magistrati italiani
(UMI), que representa la posición moderada e incluye a los magistrados pertenecientes a
las audiencias y al supremo; por otra, está la Asociación de magistrados, que reúne a
todos los demás y que manifiesta en su seno toda una serie de corrientes que contrastan
fuertemente entre sí. A la derecha se sitúa la Asociación de los magistrados
independientes, que ha triunfado en las últimas elecciones para el Consejo superior de la
Magistratura (el órgano de autogobierno de este cuerpo); en el centro figuran los
pertenecientes a las corrientes de Impegno Costituzionale, esencialmente defensores de
una interpretación de tipo evolucionista y promotores de una concepción del juez que, a
través de la Constitución, se convierte en intérprete de las instancias pluralistas que se
expresan en la sociedad; y a la izquierda tenemos a Magistratura Democrática, que,
proclamándose fiel a la Constitución, se apoya en una concepción dicotómica de la
sociedad, y en consecuencia asigna al juez un papel distinto, más explícitamente
político.”476

475
Tanto a A. N. M. I. como a U. M. I. possuíam, além dos congressos, periódicos, respectivamente La Magistratura e
Rassegna dei Magistrati, para publicação e divulgação de sua idéias.
Segundo Renato Treves477, a magistratura italiana perdeu sua «inocência política» e ficou
dividida em três tendências valorativas, reflexo de três concepções distintas sobre a sociedade e a
própria função judicial. A primeira, mais moderada, era composta pela União de Magistrados
Italianos e pode ser identificada como de concepção estrutural-funcionalista. A segunda, referente à
Associação de Magistrados Italianos, de tendência crítica reformista, na qual prevaleciam as idéias
de mudança social, mobilidade, implantação progressiva de justiça, possuía uma concepção de
conflitismo pluralista. A terceira, considerada mais radical, defendia o predomínio da justiça sobre a
segurança jurídica, a função criadora do juiz e era formada pela Magistratura Democrática, com
uma concepção referente ao conflitismo dicotômico de tipo marxista. Tinha, na luta de classes, a
base para a análise da sociedade e da Ciência Jurídica e pretendia colaborar, a partir do Direito, para
a criação de uma sociedade plenamente igualitária e sem classes. Esta divisão implicava três tipos
de atividades práticas, respectivamente, conservadora, reformista e maximalista. A formação desses
grupos, com suas características próprias, demonstra, de forma inequívoca, a existência de
ideologia, de prática política, na atividade jurisdicional.
O grande ponto de ruptura foi “el descubrimiento de que la aplicación de la ley al caso
concreto no se reduce nunca al mero reconocimiento de un preexistente significado normativo
textual y cierto y que el juez, «bouche de la loi», es sólo un mito iluminista que el pensamiento
jurídico moderno rechaza como falaz.”478 Descoberta a politicidade da função judicial e no seio de
uma magistratura renovada com vários magistrados novos que não tinham vivido os horrores do
fascismo, criou-se a Magistratura Democrática - M. D. - no ano de 1964, por juízes mais de
esquerda, que organizaram, anos depois, o uso alternativo do Direito.
Toda essa tensão no interior do Poder Judiciário italiano foi catalisada no XII Congresso da
A. N. M. I., realizado nos dias 25-28 de setembro de 1965, na cidade de Gardone479, quando foi
assumida a função política do intérprete. E não só isso, mas, também, a necessidade de participação
da Corte Constitucional e de cada juiz, individualmente, na direção política da sociedade, tudo com
fundamento nos preceitos constitucionais. A tradicional postura liberal clássica dos magistrados
(positivismo, neutralidade, apoliticidade, etc) foi, definitivamente, rompida. A mesma Associação,
no Congresso de Triestre, 1970, ratificou sua posição progressista, ao afirmar: “la idea de un nuevo
juez, desvinculado de la jerarquía y de la burocracia del sistema judicial, sensible a los impulsos
democráticos del país e intérprete atento de los valores que la sociedad expresa en un determinado
contexto histórico, es algo que está en las aspiraciones de cualquiera que tenga en el corazón los
problemas del Derecho y la justicia.”480 Nessa época, a tensão política dentro da magistratura era
enorme. Exemplo disto é parte do texto de um panfleto distribuído, nesse mesmo congresso, por
uma ala mais extremada de juízes, assim redigida: “Es la clase dominante la que crea el Derecho;
éste, por lo tanto, no expresa los intereses de toda la colectividad, sino solamente los intereses de los
patronos. La justicia burguesa no está por encima de las partes. El pueblo sufre la justicia de los
patronos.”481

476
BARCELLONA, Pietro e GIUSEPPE, Cotturri. Op. cit. p. 85-86. Perfecto Andrés Ibáñez, na nota 21, p. 164, do texto
“Para una práctica judicial alternativa”, publicado em Anales de la Cátedra Francisco Suarez, nº 16/1976, inclui uma outra
corrente, considerada ideologicamente de centro, chamada Terzo Potere.
477
TREVES, Renato. El juez y la sociedad : una investigación sociológica sobre la administración de justicia en Italia.
Trad. de Francisco J. Laporta e Angel Zaragoza. Madri. Edicusa, p. 12-13, 42, 145 e 240.
478
FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Política y justicia en el estado capitalista. Trad. de
Perfecto Andrés Ibáñez. Barcelona. Editorial Fontanella, 1978, p. 62.
479
Este Congresso da A. N. M. I, efetuado em Gardone, no ano de 1965, e o Congresso de Terracina, 1966, realizado pela
U. M. I, foram os marcos históricos de ruptura da magistratura italiana, quando ficaram mais ou menos claras as posturas
opostas destas correntes.
480
TREVES, Renato. El juez y la sociedad : una investigación sociológica sobre la administración de justicia en Italia. Op.
cit., p. 132.
Antes de adentrar na análise do conteúdo dos debates jurídicos dos anos sessenta, até o
surgimento da jurisprudência alternativa, torna-se necessário um repasse sobre o desenvolvimento
da M. D. Esse grupo de juízes caracterizou-se por uma postura progressista, de fundo marxista,
menos preocupado com a legalidade e mais próximo dos problemas sociais. Seus membros
criticavam o positivismo jurídico, seu distanciamento da população e buscavam exercer uma
atividade jurídica comprometida com uma ideologia, visando a mudanças na estrutura de poder da
sociedade.
Sua formação pode ser dividida em duas etapas distintas: 1) em sua etapa inicial (1964-
1968) prevaleceu uma linha política liberal-democrática, com uma pluralidade ideológica de seus
membros. Entretanto, nesse período predominou uma orientação mais cultural e menos política.
Frente ao reacionarismo fascista da jurisprudência dominante, o movimento buscou na Constituição
sua fonte legitimadora e efetuou uma prática de adequação da legislação ordinária aos preceitos
constitucionais. Nesta fase conseguiu maioria no Conselho Superior da Magistratura e 2) numa
segunda etapa (1968-1969), o movimento assumiu uma posição política mais concreta, de conteúdo
socialista, sendo a primeira vez que num Estado burguês um grupo de magistrados se declara
contrário ao grupo dominante. Foi uma reação aos graves conflitos desses dois anos. Na década de
setenta, a M. D. realizou vários congressos, iniciando com o I Congresso de Magistratura
Democrática, Roma, 1971 e, depois: Florença, 1973; Nápoles, 1975, e Rimini, 1977. Essa corrente
possuía duas revistas bimestrais para transmitir suas idéias. Uma, chamada Quale giustizia, com
informações mais gerais, para um público mais amplo e não-especializado, e outra intitulada
Magistratura Democrática, mais especializada, dedicada a estudos sobre a problemática jurídico-
política.
Após sua segunda fase, a M. D. restringiu-se a mais ou menos seiscentos magistrados, de
um total de mais de seis mil. Embora se constituísse num grupo minoritário, assim como no Brasil,
agitou, profundamente, não só o mundo jurídico, mas toda a sociedade. “En efecto, denunciar ante
el país las prevaricaciones del poder en la actividad judicial significaba concretamente llamar a las
masas a interesarse por lo que sucede en los tribunales, rompiendo la barrera de la especialización
que lo sustrae al debate público generalizado. Esta perspectiva potencial explica el interés suscitado
en la opinión pública - más allá de su peso numérico relativamente escaso - por el movimiento de
los magistrati del dissenso, como a veces se ha llamado a los jueces de MD.”482
Os membros da M. D. elevaram o debate sobre justiça a um campo mais geral, levando seu
discurso a toda sociedade civil, principalmente, aos demais movimentos sociais organizados, como:
sindicatos, partidos políticos, organizações de massa, estudantes. Ademais, esses juízes debatiam
com a comunidade o próprio papel do magistrado e do Poder Judiciário. Foram mais longe e
organizaram uma coleta de assinaturas nas fábricas, nas praças, nas ruas e em todos os espaços
públicos, para convocarem um referendo483 com o propósito de revogar as normas fascistas do
Código Penal até então utilizadas para a repressão de trabalhadores e estudantes484.

Toda essa atividade levou os membros superiores do Poder Judiciário a tomarem atitudes de
represália contra os magistrados pertencentes a M. D. Os ataques não vieram só dos superiores,
mas, também, de parte da imprensa, ligada à ideologia fascista. Assim, muitos processos
administrativos e, até mesmo, criminais foram abertos contra aqueles magistrados, isso com base
nas leis fascistas que eles lutavam para revogar. Além de buscar apená-los, os órgãos

481
Ibid.
482
Ibid. p. 73-74.
483
A Constituição italiana permite essa possibilidade, mediante iniciativa popular, uma vez coletada 500.000 assinaturas
de eleitores.
484
Coletaram 350.000 assinaturas, número insuficiente para o fim desejado.
administrativos afastaram485 os magistrados democráticos dos processos importantes e, ainda,
buscaram removê-los para outros cargos, contrariando os princípios constitucionais. A violência foi
tanta que a opinião pública manifestou-se a favor dos mesmos e, também, a própria Comissão
Internacional de Juristas de Genebra.
Em realidade, essa prática extremista foi resultado de uma discussão maior, do próprio
papel assumido pelos magistrados, de seu poder emblemático na sociedade civil, da própria função
repressiva/ideológica do Poder Judiciário. Os membros da M. D., para combater esta situação,
colocavam como fator crucial à independência do magistrado, não só a desvinculação (não-
subordinação) do Poder Judiciário em relação ao Poder Executivo, mas, também, e com o mesmo
grau de importância, a liberdade interna do magistrado dentro do próprio Judiciário. Este,
rigorosamente hierarquizado e burocratizado, permitia a uma “aristocracia” de magistrados,
membros da Corte de Cassação, ou presidentes dos demais tribunais, o exercício de poderes
ditatoriais, como: escolher o juiz para exercitar suas funções em determinadas causas; afastar o
julgador de certos processos, por questões de mérito, como a não-afinidade de pensamento com os
superiores; remover um juiz sem seu consentimento; punição de magistrados por motivos
ideológicos. A conseqüência mais daninha dessa prática foi o exercício, por parte dos magistrados
inferiores, da postura de conformismo e de conivência ideológica com os superiores, para poderem
ser promovidos, comprometendo, completamente, sua independência. Só juízes de forte caráter e
com grande convicção ideológica trabalhavam com liberdade e eram, no mais das vezes, punidos
ou, no mínimo, processados por isso.
Frente a tal descalabro, os magistrados democráticos apregoaram, em defesa da
independência do julgador e democratização do Poder, o fim da carreira judicial e a supressão da
divisão hierárquica em graus da magistratura, pondo-se fim ao cargo de presidente de tribunais,
além da personalização de todas as funções judiciais, impossibilidade de escolha e afastamento do
juiz de um processo, inamovibilidade do juiz também da função, limitação de sua responsabilidade
disciplinar e maior controle popular sobre o Judiciário, etc.486. Todas essas propostas tinham
fundamento na Constituição, mais especificamente, nos princípios da inamovibilidade e da
igualdade entre todos os magistrados, base de sua independência.
No Brasil, felizmente, não houve e não há qualquer repressão ou perseguição legal aos
juízes alternativos487, ou seja, não foram usados os aparelhos disciplinares contra os mesmos. Isso
dá-se por quatro motivos distintos, a saber: 1) mesmo com discrepâncias ideológicas, a magistratura
brasileira é composta, em sua maioria, por pessoas que sabem respeitar as divergências de idéias; 2)
não são só os magistrados alternativos que estão descontentes com a situação social, política e
econômica brasileira; 3) não há hierarquia no exercício jurisdicional, e o magistrado é livre para
decidir, e só através do recurso próprio pode ser modificada sua decisão, não sendo permitido, aos
superiores, avocar autos, afastar ou remover (mesmo da função) juiz por motivos ideológicos.
Também há limitação da responsabilidade disciplinar. Não é possível a escolha de um juiz para um
determinado processo, pois a distribuição automática é obrigatória. Por fim, os poderes dos
presidentes dos tribunais são delimitados e bastante restringidos em relação aos italianos, o que não
permite o autoritarismo e 4) os membros da magistratura alternativa caracterizam-se por ser
trabalhadores, honestos e respeitados, não havendo motivo legal para qualquer punição. Como se
pode ver, não ocorrem, no Brasil, as barbaridades ocorridas na Itália, motivo pelo qual a
reformulação interna do Poder Judiciário não é matéria precípua, não obstante ser importante.
É inegável, entretanto, que para ascender na carreira, muitos juízes vendem sua consciência
e abandonam sua independência. Sobre o assunto, a título de curiosidade, cabe transcrever as
485
Tal prática é ilegal no Brasil, sendo vedada sua utilização.
486
Sobre as propostas de reforma do Poder Judiciário ver “Por una reforma democrática del ordenamiento judicial”, Luigi
Ferrajoli, in FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Op. cit., p. 177-195.
487
Só alguns poucos magistrados, em desatino, chegaram a pedir, pela imprensa, a punição disciplinar dos juízes
alternativos, mas não foram ouvidos pelas Corregedorias de Justiça.
palavras de A. Battaglia, citadas por Renato Treves488: “Está lejos - observa - el tiempo en el que los
gobernantes, para obtener de los jueces sentencias favorables, se veían obligados a encarcelarlos.
Ahora basta corromperlos; y desde que el juez es funcionario del Estado no hay medio más eficaz
para su corrupción que disponer de sus ascensos, disciplina y traslados.” Esse tema, diante da
condição de miséria da população e o descaso do aparelho judiciário para esse fato, talvez não seja
prioritário no atual contexto histórico. Mas isto não significa, de nenhuma forma, que não se deva
discutir, a curto prazo, o problema de democratização interna do Poder Judiciário e a necessidade de
se criar mecanismos de controle popular sobre a atividade jurisdicional, estando-se, sempre, atentos
para as falsas propostas de controle, como a criação de um órgão elitista, sem a participação do
povo, composto só de “ilustrados”, com a função não de democratizar, mas, isto sim, de controlar,
para exterminar o pouco de democrático que é praticado pelos juízes.
A Magistratura Democrática até a presente data ainda continua com suas atividades. Em sua
história, alguns momentos foram de grande importância, destacando-se: 1) o Congresso de
Gardone, 1965, realizado pela Associação Nacional de Magistrados, quando o longo e conivente
silêncio dos juízes foi quebrado e alguns deles, politicamente de esquerda, acordaram em pôr os
princípios constitucionais, de forma genérica, como critérios diretivos da interpretação jurídica; 2)
após os anos de 1968-69, frente à exacerbação dos conflitos sociais, estes magistrados assumiram
uma posição ideológica mais definida e começaram a usar os princípios constitucionais, não só
como critérios gerais, mas como um compromisso concreto da magistratura em defesa da liberdade
e da democracia, contra o aparato jurídico fascista ainda em vigor. Daí surgiu o uso alternativo do
Direito, discutido no Congresso de Roma, em 1971, e afirmado na reunião de Catania, em 1972 e 3)
o fim da jurisprudência alternativa, decidido no Congresso de Rimini, 1977.
Barcellona e Cotturri489 esclarecem ter o desenvolvimento do debate jurídico-teórico, prévio
ao surgimento da jurisprudência alternativa, passado por três etapas distintas e essenciais.
Começou com dificuldades encontradas no âmbito da pesquisa e do ensino, passando para um plano
de reconhecimento de uma crise nos papéis de mediação jurídica e terminou com propostas de
transformação dos aparelhos institucionais. Estas etapas não existiram no Brasil. O movimento
surgiu sem gestação teórica, sem preparação prévia, salvo alguns encontros de magistrados para
discutirem sugestões à Assembléia Nacional Constituinte. Foi como uma espécie de explosão de
insatisfações, de anseios reprimidos por duas décadas de regime militar. Só após entrou nas
universidades e somente na atualidade estão se realizando pesquisas.
A primeira reação dos juristas críticos italianos foi contra o formalismo jurídico, ou melhor,
contra o formalismo, o estatalismo e o legalismo como os fundamentos ou características da ciência
e da prática do Direito. Em seguida combateram o discurso da neutralidade do Direito. Constataram
não haver separação entre o mundo jurídico e o mundo político. “Derecho y política no pueden
separarse en la consideración de nadie puesto que son lo mismo: la forma y la sustancia del único
proceso real de desenvolvimiento de una sociedad.”490 Vários outros temas jurídicos foram
debatidos nos anos sessenta e setenta, como a crise dos papéis tradicionais dos juristas e a
necessidade de um uso emancipador das técnicas jurídicas, dando início a uma nova visão sobre o
Direito e abrindo espaços para a criação de um movimento crítico, teórico-prático no âmbito da
Ciência Jurídica.
“Se subrayan así el descubrimiento de la apertura cultural ('interdisciplinar') del saber
jurídico, el encuentro (o choque) con el marxismo, el descubrimiento de la dimensión
ideológica del derecho, la antítesis, o tensión, entre 'dogmática' e 'ideología'; se ve en los
años setenta el escenario dentro del cual se produce 'una suerte de desgarro dentro del

488
TREVES, Renato. Op. cit., p.192. Ver, também, “Relação Juiz x Tribunal: uma questão de famínila.”, in Direito
Alternativo na Jurisprudência, op. cit., p. 20-21.
489
Ibid., p. 18.
490
Ibid. p. 13.
mismo papel del jurista', una crisis de legitimación del saber (y del ordenamiento)
jurídico; se remite a esos mismos años la emergencia de un problema todavía abierto: el
papel del juez, su caracterización (¿inevitable? ¿deseable?) 'política'.”491
A crítica chegou até a ideologia jurídica, ao próprio Estado, ao seu ordenamento jurídico
burguês e ao seu conceito de Justiça. Nesses temas, italianos e brasileiros exercitam um mesmo
discurso, ou melhor, contradiscurso ao estabelecido. Há uma total coincidência de pontos de vista.
Basta ver as semelhanças dos conteúdos das seguintes citações com os das apresentadas no capítulo
II.
Sobre a ideologia jurídica:
“Es así como la organización y la ideología de la justicia conspiran juntas para hacer del
aparato judicial un orden de tipo clerical, separado del pueblo pero íntimamente solidario
con el poder; cuya formal independencia y sustancial irresponsabilidad constituyen los
principales presupuestos para el desarrollo del tradicional papel subordinado al poder de
forma menos descubierta, y al mismo tiempo más ágil y eficaz, de lo que lo permitía la
vieja dependencia jerárquica de la función del ministro de Gracia y Justicia.”492
Sobre o Estado e a cultura burguesa:
“El modelo ideal-positivista del Estado representativo, base de toda la cultura jurídica y
política burguesa, cumple perfectamente la función de cobertura ideológica que le es
propia: la de ofrecer una apariencia de «racionalidad» a la expropiación política de la
sociedad y al dominio de hecho de la clase económicamente hegemónica.”493
Sobre a Ciência Jurídica:
“De esta manera la ciencia jurídica se transmuta de ciencia de los contenidos en ciencia de
las formas o de las estructuras del derecho burgués, tomadas éstas así como inmutables
datos de ciencia y, en tanto que formas disociadas de las connotaciones económico-
políticas de los variables contenidos normativos, como argumentos objetivos y neutrales
de «ciencia no-valorativa». El producto histórico de esta operación es la moderna teoría
del derecho positivo que se postula, precisamente, como «teoría general», nueva ciencia
superior que sustituye el viejo iusnaturalismo de los contenidos por un bastante más sólido
iusnaturalismo de las formas. Las formas del derecho burgués, en vez de ser reconocidas
como históricamente funcionales al dominio de la clase hegemónica, se elevan y tienen
como formas naturales y necesarias de la experiencia jurídica, como estructuras
trascendentales y universales de la juridicidad. Es así como el formalismo llega a ser el
medio a través del cual el positivismo jurídico se afirma como método de aproximación
«científica» al estudio del derecho, haciendo posible el contrabando de la ciencia del
derecho positivo burgués como teoría pura o formal, es decir, como teoría general de las
formas y estructuras necesarias del derecho en cuanto tal.”494
Sobre a Justiça.
“La justicia exclusivamente técnica, que la ideología burguesa presenta como la que
ofrece mayores garantías de imparcialidad, acaba de este modo por ser la justicia capaz de

491
COSTA, Pietro. Op. cit. p. 163.
492
FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Op. cit. p. 105.
493
Ibid. 121.
494
Ibid. 126-127.
entender únicamente la lógica y las razones del poder, y por tanto - e una sociedad
dicotómica y dividida en clases - un instrumento de la clase dominante495.
Muitas outras citações poderiam demonstrar a total identidade existente entre os juristas dos
dois países, no referente à crítica ao Estado burguês e à sua teoria jurídica, mas evitar-se-ão mais
transcrições para não se chegar ao excesso.
Toda a discussão teórica sobre o Direito ocorrida no seio da Associação Nacional de
Magistrados, no período de 1965 (Congresso de Gardone) até 1970, pode ser resumida nas
seguintes proposições ou, dito de forma mais precisa, conclusões:
1) ser a linguagem jurídica polissêmica, ou seja, o sistema normativo admite várias opções
interpretativas, inclusive divergentes, todas de caráter valorativo, frente à sua forma;
2) maior valorização do papel do juiz, que deve reduzir as incertezas decorrentes da
possibilidade de várias interpretações do sistema normativo, por sua atividade criadora;
3) e tal criatividade é determinada em dois sentidos. O primeiro referente à conhecida
discussão sobre o silogismo jurídico, e o segundo referente ao papel do julgador como agente
transformador da situação jurídica (política) consolidada ou hegemônica;
4) necessidade de se criar mecanismos ou instrumentos capazes de permitir ao julgador
condições de reduzir a incerteza normativa. Fazia-se referência à personalidade do juiz, aos valores,
ou seja, a opção política do magistrado. Em contrário, era enfocado o espectro do Direito Livre;
5) o desejo de se continuar trabalhando dentro do sistema normativo (uma forma de evitar o
Direito Livre), valorando-se seus níveis hierárquicos e relendo-se-o a partir da “centralidade” da
norma Constitucional e
6) a redefinição do papel social e profissional do juiz.
“En otras palabras, el debate sobre la interpretación (y la consiguiente redefinición del
papel del juez) no es sólo un hecho 'doctrinal' (con efectos políticos mediatos e indirectos)
sino que es (también) un momento importante del conflicto interno del grupo profesional
de la 'magistratura', la ocasión para un salto cualitativo: las tensiones y las
reivindicaciones 'particularistas', endo-orgánicas (el conflicto con la alta magistratura, el
problema de la carrera, etc.) se amplían hasta poner en discusión (no ya 'corporativa', sino
tendencialmente 'universalista') la legitimación social y profesional del tradicional 'oficio'
del juez.”496
Esse movimento de juristas não era, por certo, de todo homogêneo. Havia divergências,
como há no Brasil atualmente. Uns criticavam a figura do juiz funcionário, outros polemizavam
com uma postura antilegalista e alguns pretendiam privilegiar a Constituição como fonte central da
interpretação e base de todo o ordenamento jurídico. Pietro Costa vê duas grandes linhas de tensão:
“La primera tenía un carácter general y de algún modo preliminar y afectaba a la
valoración del papel de derecho y del Estado ('burgueses') en el proceso de transición (y
por tanto de los límites, o incluso en la posibilidad misma, de un 'uso alternativo' del
derecho); la segunda se refería a la identificación de los 'sujetos' externos y las
modalidades de la articulación deseada: el 'partido', la 'clase', el 'movimiento obrero' eran
locuciones rituales y recurrentes que, sin embargo, dejaban intuir fácilmente direcciones
estratégicas diversas, de la misma forma que la 'articulación real con el exterior', en la que
por lo demás todos estaban de acuerdo, adquiría sentidos bastante diversos según se
compartiera más o menos la tesis de que dicha articulación debía tender a conseguir 'un
contacto directo con las masas'.”497

495
Ibid., p. 163.
496
COSTA, Pietro. Op. cit. p. 169.
497
Ibid., p. 184.
Existia, entretanto, alguns pontos compartidos por todos, como uma crítica à desigualdade
material entre as pessoas e o desejo/exigência de uma prática jurisprudencial de igualdade. Também
se compreendia, após o fim da idéia de consenso social, a Justiça como uma Justiça de classe a ser
exercida em uma sociedade em luta de classes. “El conflicto social se traduce, pues, de algún modo,
en términos, por así decirlo, endo-institucionales, imponiendo al juez, al jurista, un papel propio en
el conflicto y por tanto una estrategia propia; y es en el plano de la estrategia donde la nueva
imagen del cambio social tiende a compactarse con los instrumentos de la polémica (para
entendernos, antiformalista) de los años precedentes: la 'politicidad' del juez, el recurso a la
Constitución como eje de la operación interpretativa.”498 Esses juristas criticavam e se distanciavam
da função só mediadora e pacificadora, ou seja, antipolítica do Direito, para assumirem sua
politicidade.

Todas as tentativas de mudanças no papel do jurista e, em particular, do juiz, não eram e


não são motivadas por interesses particulares, ou corporativos, mas, sim, possuíam e possuem como
base as exigências, os anseios e os objetivos da sociedade. O processo histórico é dialético e sofre
constantes modificações. Brasileiros e italianos estão de acordo que os juristas não podem ficar
excluídos desse processo de transformação. As atribuições a serem desempenhadas por eles, no
entender de Barcellona e Cotturri são:
“Intervenir en estos sectores para modificar en alguna medida la lógica del desarrollo
mismo: he aquí pues la tarea que consideramos que los juristas pueden desempeñar
útilmente; esforzarse por legitimar la práctica social que se plantea como actuación de
estas instancias de transformación, tratar de estructurar normativamente los intereses de
los sujetos excluidos; preparar y elaborar los instrumentos y dispositivos técnicos que
permiten una inserción del sujeto excluido en el área de ejercicio del poder. De este
análisis puede obtenerse además un criterio para privilegiar objetivamente aquellos
valores constitucionales que parecen orientados hacia funciones de emancipación: esto es,
los principios constitucionales de enseñanza para todos, de servicio sanitario generalizado
para todos los ciudadanos, de acceso a la vivienda para los trabajadores.”499
Por certo, essas funções são aceitas pelos membros do Direito Alternativo brasileiro.
Depois de tantos anos de polêmicas sobre o Direito, surgiu ou, talvez melhor, organizou-se
a proposta do uso alternativo do Direito a partir da reunião de juristas (profissionais dedicados ao
Direito nas universidades e nos tribunais) efetuada em Catania 500, em maio de 1972, dedicada ao
Uso alternativo del diritto. Dessa reunião resultou uma ampla obra, publicada em dois volumes,
denominada L'uso alternativo del diritto, coordenada por Pietro Barcellona. Nessa época, a Itália
vivia uma situação tensa política e socialmente. O conflito social estava agravado, e o Partido
Comunista era uma opção real de poder, com condições de ganhar as eleições nacionais e tomar o
governo. Nesse contexto histórico a M. D. começa a pôr em prática o uso alternativo do Direito, ou
jurisprudência alternativa, com o escopo de transformar a ação de julgar num instrumento, não para
afiançar os interesses das classes dominantes, mas, ao contrário, para garantir os espaços e as
conquistas obtidos pelas classes populares. A importância de uma hermenêutica crítica foi colocada
em relevo.

498
Ibid., p. 175.
499
BARCELLONA, Pietro e COTTURRI, Giuseppe. Op. cit., p. 209.
500
Outros encontros foram realizados naquela época, para debater os problemas da justiça e o próprio papel dos
magistrados. Exemplos são: a) uma mesa redonda realizada em fevereiro de 1973, em Livorno, organizada pela
publicação católica Quaderni di Corea, para discutir “A função do juiz na ordem constitucional”, e b) o encontro de
magistrados e estudantes acontecido na Universidade Estatal de Milão, em maio de 1973, para examinar os problemas na
administração da Justiça na Itália.
Em realidade, o tema já vinha sendo discutido desde antes, e já no I Congresso de
Magistratura Democrática, realizado em Roma, 1971, foram traçadas as linhas políticas de atuação
da corrente, para desenvolver uma jurisprudência alternativa, num trabalho apresentado por
Vincenzo Accattatis, Luigi Ferrajoli e Salvatore Senese. Essas linhas podem assim ser resumidas:
há, de início, uma declaração de opção ideológica para, em seguida, serem traçadas as estratégias de
luta para se chegar a ela. Assim, “el papel alternativo que los magistrados democráticos quieren
cumplir en contraposición a los módulos tradicionales de la justicia de clase, se funda en una
consciente elección de campo de contenido político opuesto a la que informa la jurisprudencia
burguesa de inspiración autoritaria o reformista-racionalizadora: una opción no más politizada, sino
politizada en sentido distinto y contrario, es decir, orientada no a la defensa y al servicio del sistema
capitalista vigente, sino a la emancipación de las clases oprimidas.”501
Delimitado o objetivo, o primeiro passo seguinte foi estabelecer uma nova fonte de
legitimação à prática alternativa. Foram buscar nas antinomias internas do próprio ordenamento
burguês esta legitimação. Para eles, as forças populares e os trabalhadores conseguiram arrancar da
burguesia certos direitos e princípios, que foram introduzidos na Constituição Republicana e em
algumas leis ordinárias. Entretanto, essas conquistas se constituíram em “letras mortas”, pois
mesmo previstas, legalmente, não foram aplicadas, não possuíram efetividade, resultando uma
profunda contradição no aparelho normativo burguês. Portanto, a legítima função do jurista não é a
de desaplicar a lei e, isto sim, a de aplicar os princípios e Direitos emancipatórios já incluídos no
arcabouço jurídico do Estado. Isto porque a aplicação real dessas normas, como, por exemplo, a
igualdade real e substancial entre os cidadãos, só se pode dar com uma (ou após a) transformação da
estrutura capitalista da sociedade, para um sentido socialista. Portanto:
“No se trata de desaplicar la ley, sino, por el contrario, de cumplir una norma cardinal del
ordenamiento; no se trata del derecho libre, confiado a la arbitraria discrecionalidad y
creatividad del intérprete, sino antes bien de derecho estrictamente vinculado al programa
emancipador y enunciado por la Constitución; no se trata de negación de la normatividad
ni de su reducción a mera expresión de las dinámicas sociales, sino, al contrario, de
negación del modo burgués de entender la normatividad como instrumento exclusivo de la
clase dominante. En conclusión, no se trata, para la jurisprudencia alternativa, de una
arbitraria toma de partido, sino de fidelidad a un compromiso en favor de las clases
sometidas ya asumido por la Constitución republicana.”502
Como estratégia de atuação, os magistrados democráticos delinearam dois campos de ação:
um interno, referente à prestação jurisdicional, ou o exercício da função da magistratura e outro
externo, concernente à relação magistrados e demais movimentos sociais.
O campo interno possuía dois aspectos, um de conteúdo e outro de método. No tocante ao
conteúdo, tratava-se da opção judicial feita pela jurisprudência alternativa em defesa dos conteúdos
jurídicos que afirmem a prevalência de interesses funcionais à emancipação das classes submetidas.
Por ilustração, entre a tutela dos direitos dos trabalhadores e a tutela do Direito de propriedade
privada, escolhia-se a primeira. Já em relação ao método, buscaram criar um novo modo de relação
entre o jurista e a realidade de fato. Ao contrário do tecnicismo burguês, fracionado, alheio ao
contexto histórico, efetuado sobre o discurso do «juridicamente relevante» (o que significa
«abstrações», pois só considera a forma como verdade jurídica, relegando a realidade fática, as
diferenças materiais, ao plano do «juridicamente irrelevante»), pretendiam efetuar uma análise
jurídica em totalidade, vendo o fato em sua dimensão global, historicamente contextualizado, “de
tal manera que no sea el hecho el que haya de plegarse a la norma sino la norma al hecho, que no
tenga la realidad que adaptarse al derecho sino que sea éste el que deba adecuarse a la realidad, y no
resulte el contenido modelado por la forma sino ésta perfilada sobre el contenido. Solamente este

501
FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Op. cit. p. 132.
502
Ibid., Op. cit., p. 134.
método hará posible romper el uso burgués de la jurisprudencia que pretende someter al juicio de
los tribunales fragmentos cristalizados del hecho y hacer pasar estas briznas de verdad
arbitrariamente recortadas como «toda la verdad».”503 Com esse método não colocavam num
mesmo plano, por exemplo, a resistência efetuada contra uma autoridade policial por um
manifestante ou um grevista e a efetuada por um mafioso ou criminoso comum.
No que diz respeito ao campo externo, os magistrados democráticos entendiam não ser
possível qualquer mudança social sem a união da jurisprudência alternativa com as massas, com os
demais movimentos sociais. Pretendiam essa aproximação, não só para romper com a própria
cultura burguesa dos magistrados, mas, também, para aproximar o Poder Judiciário à sociedade
civil e quebrar o tradicional discurso que tenta separar Direito e Política.
“El error más grave sería pensar que cabe seguir las dinámicas sociales desde la mesa,
mediante una consideración puramente intelectualista y libresca, como si pudiera darse un
profundo «comprender» sin un «participar», es decir, un comprender al margen de la
praxis. (...)
La jurisprudencia alternativa es, por consiguiente, posible sólo a condición de que los
magistrados alternativos participen de una praxis social, tendencialmente global, y al
mismo tiempo alternativa.
Si en última instancia lo que decide sobre la posibilidad de éxito de la jurisprudencia
alternativa es siempre y sólo su constante vinculación al movimiento, el trabajo en su
campo específico no es más que un momento de la acción política general que el
magistrado democrático debe desarrollar para el avance del movimiento obrero. Acción
interna y acción externa llegan a ser de este modo no dos momentos diversos, sino partes
integrantes de una misma tarea política.”504
Com suporte nesse programa político geral, os magistrados democráticos chegam às
seguintes conclusões: 1) pode o juiz de Direito, em um Estado burguês, sem violar as regras do jogo
e sem praticar o voluntarismo, deixar de ser um instrumento das classes dominantes e transformar
seu labor em uma ação emancipatória; 2) é possível uma jurisprudência autenticamente alternativa,
não-conservadora e não-reformista, contrária à praticada pela burguesia, sem que isso venha a ferir
o ordenamento jurídico e 3) ser possível uma atuação mais ampla dos magistrados, dentro do
movimento popular, como resultado de sua consciência política e opção antiburguesa.
Após tantas considerações de caráter político e estratégico, os magistrados democráticos
reconhecem a existência de uma contradição no movimento, qual seja: sendo o magistrado um
técnico e um agente da máquina estatal burguesa, deverá desaparecer após a reapropriação da
função judicial pelo povo. Isto porque sua existência, como tal, é instrumento inevitável de
exploração política e ele não poderá, ao contrário dos engenheiros, dos médicos e demais técnicos,
continuar trabalhando, mesmo a serviço de um novo poder, após as transformações sociais
pretendidas. Para responder a esta questão, argumentam:
“Pero esta más marcada contradicción, antes que justificar una ausencia del grupo del
movimiento, constituye por el contrario una razón más para comprometerse dentro de él.
La aportación más provechosa que los magistrados democráticos pueden llevar a la lucha
de clases es precisamente éste su tendencial negarse como magistrados, es decir, como
miembros de un cuerpo separado, insertándose como grupo en el interior del movimiento.
Su constante contestación de la «naturaleza técnica» de la actividad judicial niega lo que
se ha visto que es una connotación esencial de la justicia de clase. De este modo, anticipan

503
Ibid., p. 211.
504
Ibid., p. 140 e 149.
la superación de su papel y apuntan concretamente a la vía que puede llevar a poner en
crisis el Estado burgués, «desarrollando la democracia hasta el fin».”505
Pode-se afirmar, sem medo de errar, haver uma total sintonia entre as propostas políticas e
as estratégias de lutas apresentadas no Congresso de Roma e as defendidas atualmente pelos juristas
alternativos brasileiros. Entretanto, em relação à contradição acima apontada, bem como à resposta
dada pelos magistrados democráticos italianos, não há, por certo, uma identidade entre as posturas
dos dois movimentos. No Brasil, critica-se o tecnicismo do julgador e sua função de agente da
máquina estatal burguesa, mas isso não significa compartir com os italianos a idéia de sua extinção.
Luta-se por um novo tipo de magistrado, atuando segundo pressupostos democráticos,
essenciais, também, numa nova sociedade, mesmo após a “reapropriação da função judicial pelo
povo”. Não há motivos para se concordar com este determinismo de se entender a função do
magistrado como condição intrínseca, sempre, de inevitável exploração política. Qualquer tipo de
organização social necessita de um mecanismo de resolução de conflitos e controle social. Aqui
entram os magistrados. No futuro poderá sua função, ser desempenhada por um outro profissional,
com outros compromissos, ou pelo povo organizado, ou por um não-profissional, ou até mesmo por
uma máquina. No entanto, todas essas formas podem, em tese, resultar, tanto em práticas
autoritárias, quanto em democráticas. De qualquer forma, há a necessidade do exercício desta
atividade. O essencial é democratizá-la ao extremo. Por isso, não se crê na superação da função do
magistrado, não se acredita em uma sociedade sem Estado, sem Direito e sem juristas. O fim da
democracia não é, ao ver dos brasileiros, a supressão destas instituições. Aliás, este tipo de proposta
é vista como superada pela história.
Também no Congresso de Florença, 1973, foram definidas algumas tarefas principais para o
grupo, quais sejam:
“a) la valoración de los aspectos democráticos igualitarios de la Constitución y la defensa
intransigente de las libertades constitucionales y de la legalidad democrática; b) la
desmitificación de la imagen tradicional del juez neutral, que oculta el papel clasista de la
función judicial y la reafirmación del significado garantista de la independencia de la
Magistratura respecto a las opciones políticas del ejecutivo (...) c) la adecuación de la
acción política de M. D. a las conquistas realizadas a través de las luchas sociales, en el
sentido de hacer imposible el intento de neutralizar mediante la acción judicial las
conquistas obtenidas a nivel normativo por la lucha de clases”506
O problema da interpretação jurídica, desde os anos sessenta, foi colocado como um ponto
central, mas entendida de forma ampla, atingindo um debate sobre o próprio papel do juiz na
sociedade, sua legitimação e a relação entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo. Não eram
propostas meramente técnico-jurídicas, “iban más bien en dos direcciones diversas pero
confluyentes: por un lado, contribuían a poner la temática constitucional en el corazón de la teoría
de la interpretación; por otro, destacaban el problema de la valoración y, con ella, el de la
'politicidad' de la decisión judicial.”507
Pietro Costa apresenta uma definição de alternatividade, da seguinte forma:
“La 'alternativa' se define ante todo 'negativamente', como 'lo contrario de la
interpretación evolutiva': ésta se inspira en el estereotipo de la adecuación de la norma a
una 'realidad social' concebida como movimiento unitario, orgánicamente progresivo, y en
consecuencia atribuye al juez el papel de 'mediador de los conflictos sociales'. Es a esta
imagen de cambio y a su traducción político-jurídica a lo que la metajurisprudencia

505
Ibid., p. 145.
506
Ibid., nota 13, p. 14.
507
COSTA, Pietro. Op. cit., p. 168.
'alternativa', si se me permite el juego de palabras, quiere ser precisamente alternativa: en
cuanto comprometida no en un trabajo de adecuación o mediación sino en un intento de
'hacer explotar las contracciones inherentes a la relación capital-trabajo'“508
Já para Barcellona e Cotturri, o uso alternativo do Direito é “entendido en el único sentido
posible de esta fórmula, como práctica jurídica en contradicción con el designio de desarrollo social
expresado (también jurídicamente) por la clase dominante, sin plantearse igualmente el problema de
una cultura jurídica alternativa, en el sentido de un análisis del sistema y de una elaboración de
técnicas y categorías conceptuales divergentes de las que emplean los modelos culturales
dominantes.”509 Para eles, uma cultura alternativa não significa uma dogmática alternativa, proposta
apresentada pelo brasileiro Clèmerson Merlin Clève510.
Mariano Maresca conseguiu, com bastante perfeição, resumir as distintas interpretações
feitas por Pietro Costa e por Pietro Barcellona sobre o uso alternativo do Direito, colaborando, com
isso, para um melhor entendimento sobre aquele movimento. Para ele,
“la primera, debida a Pietro Costa, en el Uso Alternativo del Derecho se sumaban dos
ingredientes heterogéneos: una teoría de la interpretación del derecho que en realidad
venía de la tradición y era compartida por muchos juristas no adscritos a la corriente, y
una concepción marxista de la historia y de los conflictos sociales desde la que aquella
teoría de la interpretación sufría un vuelco práctico de inspiración directamente política. Y
así, una vez abierta la crisis del marxismo y desaparecido el telón de fondo desde el que se
proyectaba la estrategia politizadora del Uso Alternativo, la aventura acabaría - por así
decir - de muerte natural. Según la segunda lectura de esta historia, la que propone Pietro
Barcellona, lo que el Uso Alternativo planteó fue una estrategia más compleja: la
operación de hacer explosionar, dentro del sistema y la teoría de las fuentes del derecho, la
idea democrática.”511

Não está errado dizer ter produzido o movimento italiano um encontro entre o saber jurídico
e o marxismo, conectando o Direito e a política, com o objetivo de construir uma nova sociedade,
como um todo. Dito de outra forma, os requisitos teóricos do movimento devem ser buscados nos
suportes teóricos do materialismo histórico sobre o Direito512.
“El programa jurisprudencia 'alternativa', pues, se funda a sí mismo volviendo a las
categorías de dialéctica, totalidad, contradicción, pero también explica una actividad
propositiva, por así decirlo, propia. Esta se presenta, ante todo, como una jurisprudence
comprometida a sugerir definiciones innovado del método y del objeto del saber jurídico:
desde la denuncia del carácter económica y socialmente condicionado de las categorías
jurídicas, a la afirmación de la 'separación' del derecho (del saber jurídico, de la casta de
los juristas) en el marco de la dinámica económica e institucional de la sociedad
capitalistas, a la crítica del saber jurídico tradicional y de la relación que éste establece
entre 'normas' y 'hechos'.”513

508
Ibid., p. 181-182.
509
BARCELLONA, Pietro e COTTURRI, Giuseppe. Op. cit. p. 254.
510
Ver capítulo II, p. 166-168.
511
“El lugar de la Justicia”, in Jueces para la Democracia, nº 20, 3/1993, p. 10.
512
Sobre este ponto é importante transcrever a crítica de Perfecto Andrés Ibáñez, realizada no texto “Para una práctica
judicial alternativa”, Op. cit., p. 159. “Y hemos de reconocer con CERRONI que la teoría marxista del derecho ha dejado
muy pocas obras dignas de sobrevivir a sus autores, al mismo tiempo que ha producido una impresionante cantidad de
escritos mediocres e incluso indignos de figurar en la descendencia de un pensador como Marx.”
513
COSTA, Pietro. Op. cit., p. 183.
No tocante ao marxismo, ambos os movimentos criticam a ortodoxia de alguns autores que
vêem o Direito como pura expressão de dominação de classe, como reflexo da infra-estrutura
econômica, sem qualquer interesse para o câmbio social.
“No por azar, frente a quienes niegan la posibilidad de un uso alternativo del derecho
apelando a las razones de la «ortodoxia jurídica» (que impondría en cualquier caso una
utilización política del derecho de acuerdo con el papel jurídico-político-institucional de
los instrumentos jurídicos del sistema dado), están quienes consideran la fórmula del uso
alternativo como una fuente de ilusiones peligrosas. Y, ciertamente, si se considera que el
Estado y el derecho son emanación unilateral de la clase dominante, una representación
falsa y distorsionada de la estructura, un mero reflejo de las relaciones económicas, parece
imposible poner la hipótesis de una vía constitucional al socialismo, del mismo modo que
parece contradictorio el intento de construir un «derecho alternativo» respecto al derecho
burgués. Derecho alternativo significaría permanencia del Estado y del derecho, cuando
transformación radical de la sociedad equivale a extinción del derecho y del Estado.”514
Igual ao que ocorre no Brasil, os italianos fizeram ou desenvolveram uma teoria crítica,
desmitificadora, da Ciência Jurídica tradicional. E não pretenderam ficar só na crítica à ideologia
hegemônica. Desejaram algo mais, pois viam o capitalismo e o sistema liberal legal em crise, o que
possibilitava, ou pelo menos criava esperanças, de mudanças na sociedade. A sentença, por
exemplo, buscava ter uma relação com o sistema positivo e ter um comprometimento com uma
nova leitura das normas em vigor, para buscar superar as contradições lógico-históricas da
sociedade italiana, mediante uma hermenêutica que punha a norma constitucional em supremacia às
normas infraconstitucionais. Tal interpretação com base na Constituição, especialmente, em seus
princípios, pode parecer uma prática não-alternativa (ou de pouco potencial transformador), pois
encontra-se no interior do próprio sistema hegemônico que, afinal, elabora também a Carta Magna.
A resposta é dada, de uma forma simples, mas bastante esclarecedora, por Pietro Costa. “La
jurisprudencia es 'alternativa' en la medida en que también resulta 'alternativo', no realizable en el
marco del sistema económico vigente, el principio general sancionado en el artículo 3515 .”516
Todos esses pressupostos teóricos, ou conclusões dos juristas e magistrados italianos são
compartidos pelo brasileiros. Estes, como já visto em todo o capítulo primeiro, partem de uma
postura antiformalista, de crítica ao positivismo jurídico. Não aceitam a neutralidade jurídica,
proclamam a inter-relação entre Direito e Política, o caráter de classe da Ciência Jurídica, do
sistema normativo e do próprio Poder Judiciário. Efetuam uma análise da sociedade a partir da luta
de classes. Também vêem a linguagem jurídica como polissêmica, admitem várias opções
valorativas existentes na interpretação do sistema normativo e utilizam a Constituição e seus
princípios como base central de interpretação. Preocupam-se com as condições materiais das
pessoas e laboram pela igualdade, realçando a atividade criadora do julgador. Para eles a atividade
jurídica é uma atividade política, motivo pelo qual vislumbram um novo papel para o juiz. Enfim,

514
BARCELLONA, Pietro e COTTURRI, Giuseppe. Op. cit., p. 258-259.
515
O art. 3 da Constituição da República Italiana de 1947 contém a seguinte redação: “Todos los ciudadanos tienen la
misma dignidad social y son iguales ante la ley, sin distinción de sexo, raza, lengua, religión, opiniones políticas ni
condiciones personales y sociales. Es misión de la República remover los obstáculos de orden económico y social, que,
limitando de hecho la libertad y la igualdad de los ciudadanos, impidan el pleno desarrollo de la persona humana y la
efectiva participación de todos los trabajadores en la organización política, económica y social del País.” LÓPEZ
CALERA, Nicolás Maria, Modesto Saavedra López, Perfecto Andrés Ibáñez. Op. cit., nota 5, p. 65. A Constituição
brasileira, também em seu artigo 3º, permite essa opção, já assumida pelos juristas alternativos. O dispositivo
constitucional está assim redigido: “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I-
construir uma sociedade livre, justa e solidária; II- garantir o desenvolvimento nacional; III- erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
516
COSTA, Pietro. Op. cit., p. 188.
brasileiros e italianos trabalham e trabalhavam para mudar a sociedade, tendo como objetivo os
interesses das massas, das classes trabalhadoras.
Existem identidades, sob uma ótica jurídica, entre a situação italiana daquela época com a
brasileira de hoje. Por ilustração, pode-se mencionar o fato de o Direito, entendido como o
ordenamento normativo em vigor, ser usado, cada vez mais, por um grupo menor de pessoas.
Também a burocracia judicial e sua morosidade tornaram-se uma forte arma de pressão em favor
das classes ricas e, por óbvio, contra as classes média e pobre, ficando excluídos os miseráveis, pois
não adentram no Poder Judiciário.
Em alguns documentos elaborados pela seção de Milão, da Magistratura Democrática 517,
encontram-se idéias que hoje são repetidas, quase com as mesmas palavras, pelos juristas
brasileiros, como: 1) “Nuestro papel de alternativa se basa en una elección de bando consciente, de
contenido opuesto al que informa la jurisprudencia burguesa de inspiración autoritaria o reformista-
racionalizadora: una opción no ya politizada, sino politizada en sentido inverso y contrario, o sea,
no orientada a la defensa y al servicio del asentamiento capitalista, sino a la emancipación, de las
clases subalternas.”; 2) “Una jurisprudencia que ... encuentra su título de legitimación en el artículo
3 de la Constitución, que con el deber impuesto a la República de realizar una igualdad substancial
entre los ciudadanos, permite una clara y legítima opción en favor de las clases subalternas.”; 3)
“Parece evidente que el concepto de legalidad es una de tantas mixtificaciones de la ideología
burguesa, dada la mutabilidad del contenido de este concepto respecto de la situación histórico-
social a la que se refiere en cada momento.”; 4) “La norma, por tanto, puede ser negada, incluso
dejando intacta su proposición formal.” e 5) “El nuevo papel del juez, en este contexto histórico, es
precisamente negar la legalidad cuantas veces ésta, en su concreción, o sea, a través de la
interpretación, recibe contenidos correspondientes a los intereses de la clase dominante.”
Há, entretanto, um fato a ser realçado, o qual eriça e causa pruridos nos conservadores, seja
no Brasil, seja na Itália. É o não conferir aos juízes o status de técnicos, de neutros e de imparciais.
“La piedra de escándalo del programa jurisprudencial 'alternativo' es, desde este punto de
vista, la efervescente, provocativa contestación de una de las imágenes más celosamente
custodiadas en el hecho de la tradición: el jurista como técnico de la mediación, como
responsable de la mediación, como responsable de la 'acomodación respectiva de los
diversos puntos de vista', 'las diversas ideologías', 'los diferentes y contrastados valores'; el
juez como componedor 'imparcial' del conflicto.”518
Na história contemporânea de todas as sociedades ocidentais, é comum a presença de
juristas críticos, de esquerda, ao ponto de o tema não chamar muita atenção, ressalvados os casos
em que esses profissionais são assassinados por todos os tipos de ditaduras. O não-comum, e aí sim
assunto de interesse geral, incluindo a grande imprensa, é a participação de magistrados nessa
corrente ideológica. A imagem eqüidistante, neutra e mítica519 do julgador é o símbolo maior do
sistema liberal legal, uma grande fonte de legitimação, a ser preservada a todo o custo. Por esses
motivos, há uma forte reação contra os magistrados que ousam assumir um discurso crítico,
colocando em perigo toda essa imagem, essa ilusão, sobre a função jurisdicional.
Há uma certa discrepância entre o posicionamento defendido por Amílton Bueno de
Carvalho520, de colocar os Princípios Gerais do Direito, e não a legalidade, como o limite ao
julgador, e as críticas apresentadas por Barcellona e Cotturri a respeito do assunto. Mesmo vendo
tais princípios como uma construção (conquista) histórica elaborada pela sociedade civil, Amílton 521

517
Transcritos, em parte, por Pietro Barcellona e Giuseppe Cotturri, op. cit., p. 88-90.
518
COSTA, Pietro. Op. cit., p. 194-195.
519
Sobre o assunto ver o capítulo II do livro “Juiz Alternativo e Poder Judiciário”, do autor, Editora Acadêmica, 1992.
520
Ver capítulo II, p. 134 e seguintes.
não consegue eliminar, de todo, o caráter subjetivo dos mesmos e, também, sair do círculo vicioso
da argumentação jurídica tradicional, conforme advertem os autores italianos nos seguintes trechos.
“Las operaciones de los juristas que recurren a los llamados principios generales del
derecho en sustancia, se resuelven en la absolutización «arbitraria» de determinados
valores. Asumido un valor determinado como preeminente, como «privilegiado», se opera
la reconstrucción del sistema de modo que todas las demás fórmulas o proposiciones
normativas que parecen indicar el surgimiento de valores distintos o contradictorios se
consideran genéricamente de grado inferior, o bien en la relación de una excepción
respecto de la regla.

“Ahora bien: esta operación, que se resuelve precisamente en la reconstrucción del


sistema, es en sustancia una operación de tipo tradicional, ya que todas las operaciones de
los juristas, como veremos, son reconstrucciones del sistema y se realizan con el método
de la interpretación sistemática y de la abstracción generalizadora.

“Vuelve a caerse así en uno de los círculos viciosos característicos de la argumentación


jurídica. Se toma determinado valor (obtenido de un sector de normas dado) como
privilegiado; sobre la base de este valor se reconstruye el sistema a fin de «descubrir» su
unidad y su coherencia; el sistema se considera dotado de unidad intrínseca y de
coherencia. Después se confirma la opción realizada, o sea, la afirmación del carácter
preeminente del sector de normas, del criterio de valor, mediante el recurso a la unidad y
coherencia del sistema que ya ha sido reconstruido partiendo del punto de vista
previamente elegido.

“Está claro que en estos términos ninguna reconstrucción del sistema conducirá a
resultados distintos de los implícitos en las premisas. De este modo queda fuera de la
argumentación el análisis de la sociedad, el análisis de las relaciones reales que pueden
constituir la justificación de la opción realizada y por tanto la motivación efectiva sobre
cuya base se atribuye al valor seleccionado previamente, a la fórmula normativa o a la
proposición normativa en que se expresa este valor, ese carácter eminente y prioritario.

“Queda marginado todo análisis de la sociedad y toda valoración de la misma, de modo


que el razonamiento jurídico se presente en términos de operaciones lógicas puras.” (...)

“Está claro, pues, que no hay posibilidad de verificar empíricamente si un principio es la


regla y otro la excepción. Habrá argumentaciones dotadas de una mayor o menos
plausibilidad, de una credibilidad mayor o menor, pero nunca un criterio de verificación
absoluto que permita determinar si un juez se ha equivocado y otro, en cambio, ha
acertado; no habrá un criterio de verificación absoluto para decir, por ejemplo, que la
voluntad es la regla y la promesa la excepción. O mejor: el único criterio de control
dotado de una cierta objetividad -como veremos a continuación- es exterior al sistema
normativo y atañe directamente a la relación entre principios jurídicos y estructuras
económico-sociales. Desde este punto de vista, fácil será advertir que la opción entre la
configuración de un principio como regla o como excepción suele expresar la inclinación
a tutelar (o no) los intereses económicos de ciertos grupos o clases sociales.”522

521
Ao comentar ponderação do autor, Amílton referiu-se a este assunto da seguinte forma: “é que entendo inexistir critério
absoluto de verificação.”
522
BARCELLONA, Pietro e COTTURRI, Giuseppe. Op. cit. p. 97-98 e 103-104.
Arrematam os autores italianos, de modo oposto ao pensamento do magistrado brasileiro,
da seguinte forma:
“La intención del legislador y los principios generales son fórmulas vacías, a semejanza
de las llamadas nociones fundamentales y el propio concepto de derecho. Pues la misma
ambivalencia del sistema, la inevitable contradictoriedad de los principios, está en la raíz
del debate de la ciencia jurídica y de las divisiones de la magistratura. Los datos
normativos no proporcionan, pues, ningún criterio de interpretación del debate, y podría
decirse paradójicamente que cada corriente y cada orientación es fiel a su modo a algún
principio del código o de la Constitución.”523
Há uma identidade entre os dois movimentos no tocante à atuação dos juristas como
intelectuais, colocados tanto nos aparelhos de Estado (magistrados e promotores de justiça), como
na sociedade civil (professores, advogados e estudantes), com o objetivo de buscar (construir) uma
nova dimensão da política. No entanto, existe uma diferença na base teórico-ideológica desses
intelectuais. Enquanto na Itália havia uma vinculação ao marxismo, no Brasil a vinculação existe
somente em relação a uma parte do movimento, pois a maioria busca suporte teórico mais na
teologia da libertação, em particular, no cristianismo, em geral, e, também, no idealismo
jusnaturalista.
Um ponto que foi polêmico, quando se iniciava o Direito Alternativo brasileiro, foi o da
quebra da imparcialidade do juiz no momento de sua opção ideológica. Muitos autores dedicaram-
se a elucidar o assunto524, buscando demonstrar a diferença entre neutralidade ideológica e
parcialidade em relação às partes do processo. A conclusão alcançada pelos juristas alternativos
brasileiros em nada difere da defendida pelos italianos, nos tempos da jurisprudência alternativa: A
imparcialidade do julgador só possui sentido quando entendida como o necessário distanciamento
pessoal a respeito dos particulares interesses em jogo, o que não significa um descompromisso
ideológico (neutralidade), pois é impossível em qualquer atividade humana. Vista sob esta
concepção, em uma possível hegemonia do Direito Alternativo, não haverá exclusão da
imparcialidade do juiz.
Em terras brasileiras repete-se o embate teórico sobre o compromisso de militância
ideológica do juiz, entre juristas de esquerda e de direita nos mesmos moldes do acontecido na
Itália. Portanto, ainda são atuais, no Brasil, as seguintes divergências:
“Magistratura Democrática consideraba que los jueces tienen el deber, en cuanto
intelectuales y ciudadanos, de comprometerse directamente ante la opinión pública en
defensa de los valores de dignidad del hombre, de libertad, de garantismo, enérgicamente
afirmados en la Constitución de la República y también confiados por ésta a la vigilancia
de la Magistratura. (...) A este planteamiento, por el contrario, la mayoría de los
magistrados respondió que la función del juez se cifra exclusivamente en asegurar al país
la aplicación de la ley y que por tanto los valores constitucionales deberían encontrar
tutela, por parte del magistrado, exclusivamente a través de las resoluciones judiciales y
no mediante formas de presión ejercidas sobre la opinión pública.”525
Resta analisar como terminou o uso alternativo do Direito italiano. Como já visto, a
jurisprudência alternativa pretendia, dentro de um determinado contexto histórico, criar condições
para a transformação da sociedade, de forma pacífica, até o socialismo. Entretanto, esse mesmo
contexto histórico sofre profundas mudanças, principalmente com o advento do terrorismo. A
situação política italiana tornou-se demasiado tensa, e as forças dominantes, aproveitando-se dessas
523
Ibid. p. 104.
524
O próprio autor discorreu sobre o tema em ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz alternativo e poder judiciário. Op. cit., p.
87-89.
525
FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Op. cit. p. 72.
condições, iniciaram um processo de ataque a todos os avanços democráticos, colocando em perigo
as conquistas populares. Teve início o período conhecido como de emergência. De início, a
proposta estatal era reagir ao terrorismo com situações de emergência, com o sacrifício de alguns
direitos coletivos e, fundamentalmente, individuais. Foi a chamada emergência penal. Após, veio a
emergência laboral, para atacar as greves e as manifestações dos obreiros. Outras surgiram, como a
emergência das drogas e a da máfia. Em realidade, essas situações emergenciais passaram a ser
constantes e resultaram em uma forma eficaz de tolher direitos populares, e não de combater a
criminalidade e as situações de risco social. Já as forças de esquerda tiveram um grande desgaste
com a perda das eleições de 20 de junho de 1976, pelo Partido Comunista, quando tinha
possibilidade concreta de chegar ao governo. Por outro lado, o golpe de estado no Chile criou medo
na Itália. Todos esses fatores influenciaram na mudança de estratégias das forças de esquerda
italianas, que passaram a colidir com a postura da M. D., principalmente o P.C.I, que assumiu uma
política de acordos com a Democracia Cristã e voltou-se contra qualquer movimento social com
objetivos de mudanças sociais radicais, praticando a defesa do próprio Estado526. A nova ordem era
a defesa das instituições, para evitar o iminente retrocesso posto em prática pela direita. Neste
contexto perdeu sentido a jurisprudência alternativa, pois pretendia a mudança, e a nova ordem era
proteger o já conquistado.
No Congresso de Rimini, 1977, a M. D. debate todos esses temas e opta por mudar de
estratégia, começando a praticar o garantismo527, ou seja, garantir a constituição, as instituições
democráticas e todas as liberdades e direitos conquistados. Dessa forma, não mais devia levar as
contradições sociais, seus conflitos, para o Poder Judiciário. Agora necessitava neutralizá-las, para
não aprofundar a crise e desestabilizar as instituições. Passou, então, a exercitar uma jurisprudência
evolutiva e não mais alternativa. Houve um abandono da tática alternativa, inclusive Pietro
Barcellona, um dos magistrados mais influentes do movimento, que jamais aderiu ao garantismo,
chegou a afirmar: “uso alternativo del derecho, en cuanto fungibilidad y manipulabilidad del texto
normativo, es ahora ya un concepto superado, presentando dos límites: uno de carácter teórico,
porque el mismo permanecería siempre en el álveo de la interpretación; y uno de carácter práctico,
en cuanto aseguraría a los magistrados un papel defensivo y reductivo en función suplente.”528
Em realidade, o uso alternativo do Direito terminou, não por ter sido derrotado por seus
opositores e críticos, mas devido ao abandono de seus próprios integrantes, que seguiram os novos
rumos da esquerda política, mais precisamente, do Partido Comunista Italiano, deixando a atividade
jurídica transformadora. Até certo ponto é de se estranhar as afirmações de Pietro Barcellona, pois
foi ele mesmo quem afirmou, conforme demonstrado no início do presente capítulo529 não ser a
jurisprudência alternativa só um movimento de interpretação. Em princípio, parece ser correta a
crítica feita por Perfecto Andrés Ibáñez a esse tipo de postura.
“En el fondo de tesis como la de BARCELLONA o, lo que es lo mismo, las de PCI, se
hace perceptible la presunción de detentar el monopolio de toda la legitimidad política

526
Para uma análise crítica desta mudança de estratégia, ver ROSSANDA, Rossana. La política del derecho en la cultura
comunista. Anales de la Cátedra Francisco Suárez, nº 30, 1990, p. 205-220.
527
O conceito de garantismo não é pacífico, existindo muitos autores que o identificam só com os direitos processuais do
cidadão, suas garantias, frente à atividade repressiva do Estado. O jurista italiano Arnaldo Miglino afirma: “O problema
do garantismo, então, é conciliar o respeito aos indivíduos submetidos à repressão do Estado com o respeito dos direitos
dos outros indivíduos que, através do próprio Estado, esperam livrar-se da opressão alheia.”, in RODRIGUES, Horácio
Wanderlei Rodrigues (org.) Amílton Bueno de Carvalho, Antonio Cláudio da Costa Machado, et al. Lições alternativas
de direito processual. São Paulo, Editora Acadêmica, p.47. No texto o termo é usado de forma mais ampla, significando
uma postura ideológica, um política de ação de não reivindicar reformas ou mudanças (revolucionárias) das instituições e,
sim, garantir (manter) o já conquistado, frente ao perigo de retrocesso e perdas.
528
FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Op. cit. p. 23.
529
A citação transcrita nas páginas 299-300 é, frontalmente, contrária ao argumento apresentado por Pietro Barcellona,
para não mais justificar a jurisprudência alternativa.
revolucionaria, de ocupar todo el espacio político en que la lucha por el cambio de
sociedad es posible en términos razonables. Cuando lo cierto es que existen cada vez más
amplios movimientos sociales que no acaban de reconocerse en la izquierda histórica y
para los que la corriente mayoritaria de MD no quisiera ver cerrado el camino de las
instituciones y en concreto de la judicial.”530
Entretanto, sua atitude pode ser perfeitamente entendida. Em entrevista ao autor, na
Universidade de Barcelona, no dia 03 de novembro de 1995, acompanhado pelo professor José
Antonio Estévez Araujo, Pietro Barcellona esclareceu ter ocorrido uma certa euforia dos juristas
fundadores do uso alternativo do Direito, isto devido à crise mais geral dos intelectuais de
esquerda, o que culminou com um sobrevaloramento das potencialidades transformadoras do
próprio movimento. Para ele, o realmente fundamental é a democratização da produção normativa,
e não de sua interpretação e aplicação. Concluiu ter sido muito importante o movimento italiano,
para o pensamento jurídico crítico, mas sua capacidade de produzir câmbios sociais profundos, na
prática, não se evidenciou e não poderia ser diferente. A atividade judicial, em termos de
transformações sociais, para Pietro Barcellona, na conclusão do autor, é tida como restrita, o que
parece ser certo, motivo pelo qual o Direito Alternativo brasileiro sempre buscou caminhar unido
com as demais forças populares organizadas.
Por outro lado, a postura garantista, defendida por Perfecto, também pode ser colocada em
dúvida, pois se as organizações de esquerda não possuíam força suficiente para promover
transformações sociais, também não a teriam para garantir as conquistas populares efetivadas. Pode-
se duvidar ter sido acertada a opção tomada pelos juízes democráticos de pôr fim à jurisprudência
alternativa. Preferiram, em 1977, não colocar em risco as instituições e garantir o mínimo já
conquistado. Passados dezoito anos, vê-se que muito não foi conseguido, pois a composição do
gabinete governante italiano incluía, recentemente, o fascismo partilhando o poder com Silvio
Berlusconi. E todos os quadros ascenderam ao poder através de eleições diretas, livres e
democráticas, dentro dos conceitos liberais, realizadas na Itália. Ademais, qual o significado de
garantismo nos países pobres do terceiro mundo, onde nada está assegurado, apesar das inúmeras
previsões legais? As condições de vida da sociedade civil não podem ser garantidas só através das
instituições jurídicas, inclusive nos países ricos.
Para concluir esta parte do capítulo, pode-se dizer que o uso alternativo do Direito, na
Itália, de início com idéias bastantes otimistas, foi teorizado por alguns professores, magistrados e
outros juristas. Acabou, contudo, consubstanciando-se em uma estratégia executada, em um
determinado contexto histórico, por um grupo de juízes de ideologia de esquerda, oriundo da
Magistratura Democrática. Já o Direito Alternativo brasileiro não pretende ser apenas uma forma de
ação judicial crítica, mas, repetindo o otimismo inicial italiano, deseja constituir-se em um grupo de
juristas (no começo de juízes de Direito, na atualidade de todos os tipos de juristas), com ideologia
de esquerda e com o escopo de transformar as relações sociais de poder. O uso alternativo do
Direito (entendido na versão hermenêutica) é uma de suas práticas, estando os juristas alternativos,
no momento, buscando aperfeiçoamento, elaborando suas bases teóricas e exercitando um labor
jurídico alternativo, considerando as experiências históricas vividas, nestes últimos cinco anos.

2. ESPANHA E JUECES PARA LA DEMOCRACIA

Como medida propedêutica, são necessários alguns esclarecimentos iniciais. A Espanha,


assim como a Itália, foi submetida a uma terrível ditadura militar. Entretanto, o regime de força de
Mussolini teve seu fim com o término da segunda guerra mundial, enquanto Franco permaneceu no
poder até o ano de 1975. Esse fato histórico é importante, pois no mesmo momento em que os

530
FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Op. cit., p. 24-25.
italianos respiravam os ventos democráticos do pós-guerra e construíam novas formas de viver, os
espanhóis padeciam sob um regime tirânico, não podendo exercer qualquer atividade democrática.
Isso não só atrasou o desenvolvimento da Espanha, como impediu sua participação no período de
euforia da expansão tecnológica, do consenso social, quando pensava-se na possibilidade de serem
atendidas todas as necessidades dos cidadãos, como resultado da nova produção industrial. Quando
a sociedade espanhola conseguiu livrar-se do regime franquista, toda a Europa já havia retornado à
idéia do conflito social como base estrutural da sociedade. Ademais, no campo jurídico, a
experiência italiana do uso alternativo do Direito, após anos de debates, já havia desmascarado
todos os tabus da ideologia jurídica burguesa e apresentado formas alternativas de se lidar com a
Ciência Jurídica. Já na Espanha, sequer estavam implantados os pressupostos do Estado de Direito,
e debater a Ciência Jurídica poderia levar ao cárcere, quando não, à morte. Houve um evidente
retraso no desenvolvimento do Direito nesse país.
Recordando a história, pode-se constatar que na Itália, com o fim da fascismo (1945),
iniciou-se uma discussão democrática em toda a sociedade, sendo a promulgação da Constituição da
República (1947) um momento-chave do processo. Após, a sociedade italiana continuou
desenvolvendo-se de forma dinâmica, durante as décadas de cinqüenta e sessenta, com a
participação ativa das forças de esquerda. O grupo Magistratura Democrática surgiu em 1964,
vinte e um anos depois do fim do regime de terror italiano. Já na Espanha os fatos históricos de
formação de uma magistratura crítica ocorrem sob a ditadura, para combatê-la, sem a realização de
um amplo e prévio debate. Justiça Democrática surgiu em 1971. O regime militar terminou em
1975, a Constituição foi promulgada em 1978, e a organização Jueces para la Democracia, nascida
sob influência do movimento italiano na formação dos juristas democráticos espanhóis, formou-se
somente em 1983, oito anos após a transição.
Um outro ponto importante a esclarecer diz respeito à formação classista da magistratura,
que na Espanha (como na Itália), é diferente do Brasil, tendo como característica a pluralidade
associativa. Assim, os magistrados espanhóis também estão agrupados por identidade ideológica e
não só por interesses corporativos.
É de ser feito um parênteses, para comentar sobre a existência, no Estado de São Paulo, de
uma ramificação da corrente Jueces para la Democracia, organizada por um grupo de juízes de
Direito paulista. Eles já possuem, inclusive, um veículo de divulgação de suas idéias, um boletim
informativo. Esse fato, entretanto, não quebrou a unidade da Associação do Magistrados
Brasileiros, que continua englobando todos os magistrados do Brasil e isso sem divisão interna em
correntes de pensamento. Tanto o grupo de juízes paulistas, como os juízes alternativos, estão
organizados fora da A.M.B. (extra-instituição), mas também dela fazem parte. Torna-se difícil a
união de todos os movimentos democráticos, pois o grupo de São Paulo de Juízes para a
Democracia, a exemplo do espanhol, cinge-se a magistrados, enquanto o Direito Alternativo é bem
amplo, abrangendo todos os profissionais da área jurídica, além de estudantes. Ainda há uma
diferença ideológica, e isso será elucidado a seguir, pois a maioria do membros do Direito
Alternativo defende mudanças radicais na estrutura social, enquanto os juízes democráticos
ocupam-se mais na defesa do constitucionalismo e do Estado de Direito. Isso não impede, no
entanto, uma boa convivência entre ambos, com a participação recíproca nas atividades realizadas
por cada grupo.
Voltando ao tema, antes da formação do grupo Jueces para la Democracia (maio de 1983),
as idéias alternativas italianas foram trazidas para Espanha com a tradução e publicação de alguns
livros, como: El Juez y la Sociedad, de Renato Treves, tradução de Francisco J. Laporta e Angel
Zaragoza, 1974; El Estado y los Juristas, de Pietro Barcellona e Giuseppe Cotturi, tradução de Juan
Ramón Capella, 1976, e Política y Justicia en el Estado Capitalista, de Ferrajoli, Senese, Scarpari e
Accattatis, tradução de Perfecto Andrés Ibáñez, 1978. Além dessas publicações, autores espanhóis
escreveram sobre o assunto, destacando-se Perfecto Andrés Ibáñez, Nicolás Mª López Calera e
Modesto Saavedra López, autores do livro Sobre el uso alternativo del derecho531, 1978, e, ainda,
um artigo do primeiro com o título: Para una práctica judicial alternativa, 1976532. Aqui já surge
uma primeira diferença com o Direito Alternativo brasileiro, pois, no Brasil, por falta de tradução
para o português, não foi publicado nenhum livro sobre o tema e as poucas obras que chegaram
formam as acima mencionadas, muitos anos após a primeira edição, com uma circulação muito
restrita, só acessível a uns poucos intelectuais.
Antes de adentrar na análise do movimento Jueces para la Democracia, cabe efetuar uma
síntese dos textos escritos pelos autores espanhóis sobre o uso alternativo do Direito, a fim de se
verificar como o tema foi entendido nesse país533.
A pessoa com maior envolvimento no assunto foi o magistrado Perfecto Andrés Ibáñez.
Dedicou-se à tradução de textos italianos como, também, escreveu vários outros. Além disso, teve
participação primordial na criação do grupo Jueces para la Democracia. Seu primeiro texto foi
escrito em 1976534 e, já em suas primeiras linhas, busca definir o tema: “El 'uso alternativo del
derecho' supone algo así como un empeño táctico de reconvertir políticamente los instrumentos
jurídicos a una orientación progresiva, de modo que puedan ser actuados como factor de cambio
social.”535 Esse texto contribuiu, de forma eficiente, para desconstituir o discurso da neutralidade e
da apoliticidade do Direito e da decisão judicial.
Perfecto elabora seu raciocínio a partir de um exemplo, qual seja, o próprio Direito italiano.
Sua ilustração pode ser assim resumida: O Direito italiano, após o fim do fascismo, era composto
por normas contraditórias. De um lado estavam em vigor algumas leis oriundas do regime de
Mussolini, como o Código Penal, o Código de Procedimento Penal, o Texto Único da Lei de
Segurança Pública e o Regulamento Penitenciário, todas normas portadoras de um concepção
autoritária, negadoras da própria dignidade humana. Por outro lado, havia a nova Constituição
Republicana, elaborada por uma Assembléia Constituinte, formada, em grande parte, por pessoas de
esquerda. Esse texto albergava uma diversidade de tendências ideológicas, mas primava pelos
valores de liberdade e democracia, pela defesa da pessoa humana e pelo desejo de emancipação das
classes populares. Todas essas normas eram válidas, estavam em vigor e criavam uma grande
contradição interna, uma antinomia, no ordenamento jurídico italiano. Isso significa, entre outras
coisas, que as normas jurídicas vigentes em uma sociedade burguesa, ao contrário do afirmado por
alguns autores mais radicais, não representam, monoliticamente, os interesses e o poder da classe
dominante. Ao contrário, são fruto da dinâmica da luta de classes e representam, em certa forma,
também os interesses das classes populares e suas conquistas que são impostas à burguesia536.
Frente a esse fato, houve uma verdadeira guerra hermenêutica entre a Corte de Cassação e a
Corte Constitucional. A primeira ampliava ao máximo possível a interpretação das leis fascistas e
reduzia ao extremo as normas constitucionais, atuando com forte autoritarismo contra os direitos
individuais e coletivos. Já a segunda exercia a defesa do constitucionalismo, declarando
inconstitucional a maioria das leis advindas do regime de força, exercitando a judicatura em defesa
da liberdade, da pessoa humana e da democracia.
Nessa disputa, não havia uma Corte contra a lei e outra a favor. Ao contrário, ambas
atuavam perfeitamente dentro da legalidade. Ocorreu o fenômeno denominado pelo professor

531
Esta obra foi, provavelmente, a de maior circulação entre os intelectuais brasileiros, no mais das vezes por fotocópias,
pois trata-se de um livro esgotado.
532
Andrés Ibáñez, Perfecto. Para una práctica judicial alternativa. Granada. Anales de la Catedra Francisco Suares,
Universidad de Granada, Departamento de Filosofía del Derecho. Derecho y soberania popular. Nº 16, 1976, p. 155-175.
533
Os livros traduzidos do italiano para o espanhol já foram analisados.
534
IBAÑEZ, Perfecto Andres. Para una práctica judicial alternativa. Op. cit., p. 155-175.
535
Ibid., p. 155.
536
Perfecto socorre-se do pensamento de Lelio Basso. Ibid., p. 172.
Boaventura de Souza Santos de pluralismo jurídico interno ao sistema normativo estatal537. Então,
qual a diferença? A diferença está exatamente na opção política assumida pelas Cortes e isso
significa não ser o Direito neutro e/ou apolítico, bem como não ter o ordenamento jurídico uma
coerência, uma uniformidade e uma universalidade. Ao optar por formas diversas de interpretar o
arcabouço jurídico italiano, cada Corte (ou cada magistrado-membro) exercitou uma eleição entre
as várias hermenêuticas possíveis e isso não só com critérios puramente jurídicos. Esta escolha teve
como base critérios meta ou extrajurídicos, em outras palavras, valorativos, ideológicos e políticos.
Para Perfecto, o Direito italiano, como qualquer outro, não pode ser visto como neutro, pois é
impossível a um juiz ser fiel, ao mesmo tempo, a uma Constituição democrática e a um Código
tirânico, como os de Mussolini. “La opción de la Corte Constitucional, conscientemente política en
la interpretación con un sentido democrático del nuevo ordenamiento, venía contrariada por la Corte
de Casación, que, postulando la neutralidad de la función jurisdiccional, hacía de hecho una
elección política sólo que de signo contrario y en un sentido fuertemente limitador de
fundamentales garantías ciudadanas.”538
Assim, descrito o mito, cabe sua destruição para se chegar a uma alternativa, que pode ser
entendida da seguinte forma:
“La antinomia jurídica entre Constitución y leyes fascistas se revela como una antinomia
política y sobre esta base se postula una justicia alternativa, una jurisprudencia alternativa
respecto de la tradicional de inspiración autoritaria: una jurisprudencia que no se pretende
de espaldas a la política, sino inspirada en una política de signo contrario, es decir,
orientada no al mantenimiento del 'status quo', sino a la tutela de los espacios de acción de
las fuerzas sociales democráticas y a la emancipación de las clases subordinadas539.
Para ele, o uso alternativo do Direito não pretendia soluções globais, mas, através de
atitudes práticas, levar a luta por mudanças sociais ao tão distante mundo do Direito. Ou seja,
substituir o tradicional rechaço à Ciência Jurídica existente nos meios revolucionários, por uma
recuperação dialética do nível jurídico institucional, transformando-o em mais um campo de esforço
para a conquista de democracia. No referente à atuação judicial, propunha uma prática, pela via
interpretativa, de ampliação de possíveis espaços democráticos existentes no ordenamento jurídico.
Há, também, no campo não especializado, a tarefa de crítica política, crítica jurídica e política
jurídica, principalmente de desmitificação dos marcos de referências dos dogmas positivistas de
unidade, completude, coerência e certeza do Direito burguês. Enfim, “se trata, podría decirse, de
convertir tantas proclamaciones demagógicas y pretendidamente democráticas e igualitarias como
pueblan los modernos ordenamientos - nacidas precisamente con el inconfesado designio de
sustituir por palabras los hechos que se reclaman - en un nivel de exigencia, en una plataforma
desde la que entender e interpretar el resto de las normas.”540
Nicolás María López Calera, na introdução ao livro Sobre el uso alternativo del derecho,
elabora uma interessante análise da teoria alternativa, tida como simples, mas de grande

537
Em entrevista ao autor, em outubro de 1994, na cidade de Coimbra, o prof. Boaventura de Souza Santos criticou a idéia
restritiva de pluralismo jurídico sustentada por autores que vêem este fenômeno só quando há dois ordenamentos jurídicos
vigentes, ao mesmo tempo, em um mesmo território, sendo um estatal e o outro não. Para o professor português, o tema é
bem mais amplo e pode ser assim sintetizado: pluralismo jurídico internacional (contratos efetuados por grandes empresas
sem considerar os Direitos nacionais) e nacional. Este se subdivide em interno (dentro do próprio Direito Positivo. Ex.:
um ramo do Direito progressista e outro reacionário) e externo (normas de conduta não-estatais). Também afirmou ser um
equívoco pensar no pluralismo nacional externo com um fato positivo em si, sem uma análise mais geral, incluindo o
contexto histórico. Exemplificou com os Direitos das favelas brasileiras, pois em um determinado momento podem ser
progressistas , mas em outro reacionários. O tema é muito complexo e merece um estudo mais percuciente.
538
IBAÑEZ, Perfecto Andres. Para una práctica judicial alternativa. Op. cit., p. 166.
539
Ibid., p. 173.
540
LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria, Modesto Saavedra López, Perfecto Andrés Ibáñez. Op. cit., p. 84.
importância. Parte da constatação de crise dos modelos de Ciência Jurídica e da própria aplicação
de Justiça. Está presente em seu pensamento o objetivo de liberação e emancipação da classe
trabalhadora, como sendo o da doutrina alternativa. Esta se inscreve nas tendências neomarxistas e
pode ser abreviada nos seguintes tópicos: 1) estruturou uma nova concepção do próprio conceito de
Direito, tido como uma forma política, ou como a vontade de uma classe erigida a forma de lei, mas
possuindo em seu interior também algumas conquistas da classe trabalhadora, pois faz parte da luta
de classes, motivo pelo qual é contraditório e repleto de lacunas e antinomias; 2) efetuou uma
redefinição das categorias marxistas de estrutura econômica e superestrutura jurídica, ou melhor,
das relações existentes entre ambas. Trata-se de uma crítica à redução economicista da
superestrutura jurídica efetuada por alguns autores marxistas, que colocavam o Direito em um plano
secundário no processo dialético da história social. Portanto, recupera a Ciência Jurídica, inclusive o
ordenamento jurídico burguês, como espaço de conquistas democráticas para as classes populares e
sua relativa importância no processo de liberação. “La historia del marxismo y más aún esa historia
referida al problema del derecho muestra un decidido progreso en el reconocimiento de una relativa
autonomía a la superestructura jurídica y en el reconocimiento de su importancia e incidencia en la
estructura social y económica.”541 e 3) desmitificou os dogmas de objetividade, univocidade,
universalidade e coerência do Direito, demonstrando sua generalidade e, conseguintemente,
ambigüidade. Ficou clara a possibilidade de várias interpretações sobre o mesmo texto legal,
inclusive contraditórias. Termina alegando que não pretendiam os teóricos alternativos fazer uma
revolução via Direito, tão-só reconhecer sua relativa importância nas sociedades capitalistas
avançadas, alertando para o perigo de seu abandono na luta de classes.
Responsável, em grande parte, pelo conceito de uso alternativo do Direito como a
interpretação do Direito Positivo de uma forma distinta da pretendida pelo legislador, López Calera
efetuou uma análise542 sobre a transição democrática espanhola quando aprofundou essa discussão.
Para ele, o fim da ditadura de Franco e o início da democracia na Espanha deu-se através de um uso
alternativo da legalidade franquista. Após a morte de Franco, em 20 de novembro de 1975, a
sociedade espanhola deparou-se com o seguinte dilema: ignorar as leis do franquismo poderia levar
a outra ditadura. Manter a legalidade instituída, sem mudanças, poderia levar o povo à revolução.
Portanto, optou-se por um uso alternativo da legalidade franquista, quando foi aprovada a Lei de
Reforma Política, em 1976, tendo o então presidente do governo, o ex-franquista Adolfo Suárez,
conduzido o processo de transição.
“El caso español permite confirmar la tesis de que el derecho no es una normatividad
susceptible de reducciones absolutamente científicas en su interpretación y aplicación,
sino que es más bien y sobre todo un instrumento social y político que, por su generalidad
y contradicciones, permite a veces resultados distintos y contrarios a los propuestos
inicialmente por el legislador. (...) En un Estado de Derecho, que funciona con leyes
coherentes con esos intereses sociales mayoritarios, no será normal este uso alternativo del
derecho. En definitiva, hay razones teóricas y razones éticas para entender que un uso
alternativo del derecho es, en primer lugar, posible y, en segundo lugar, necesario, si el
derecho no responde a la voluntad de un pueblo. Evidentemente, cuanta más sintonía haya
entre las convicciones de un pueblo y su derecho, menos sentido tendrán esos usos
alternativos del derecho y mayor seguridad jurídica se producirá, la cual es otro valor
jurídico fundamental que no puede ignorarse.”543

541
Ibid., p. 23.
542
LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria. El uso alternativo de la legalidad franquista y el nacimiento de la democracia
española. Op. cit. p. 34-44.
543
Ibid. p. 43-44.
Modesto Saavedra544, além de retomar alguns temas já discutidos, efetua uma análise mais
profunda sobre dois pontos distintos, quais sejam, o problema da crise do sistema social
hegemônico e a interpretação como um fenômeno lingüístico. Para ele, a sociedade capitalista passa
por uma crise econômica crônica, uma crise política e, por conseqüência, por uma crise jurídica.
Essas crises acarretam uma crise geral de estrutura e são originárias da degradação do sistema,
estruturado sobre a lógica da persecução de interesses minoritários, da exploração de classe e da
falta de planificação, autenticamente democrática, de objetivos e meios. Não havendo soluções
definitivas para os problemas sociais, há uma continuidade da crise, o que leva as classes populares
a pleitear mudanças globais no sistema. No relativo à hermenêutica, vê os meios de interpretação
como formas de fundamentar a posteriori o já falado sobre o texto normativo. “El intérprete crea
porque no hay reglas unívocas para interpretar, porque siempre se encuentra frente a diversas
opciones, porque el lenguaje normativo, como todo lenguaje, es forzosamente ambiguo, flexible y
contradictorio.”545
A Espanha, como já mencionado, conforme um ponto de vista teórico-doutrinal, não teve a
mesma experiência da Itália. Não houve a mesma atividade crítica, nem os inúmeros debates e
escritos produzidos nas décadas de cinqüenta, sessenta e setenta naquele país. Em realidade, a
produção de livros jurídicos na Espanha dedicou-se a produzir, salvo algumas exceções, obras
técnicas, de exegese legal, no máximo alguns trabalhos com fundo jusnaturalista, mas todos
convenientes para o sistema jurídico/político hegemônico. Sempre houve, para a felicidade do
desenvolvimento histórico, as exceções. Menciona-se, por ilustração, as obras do professor Juan
Ramón Capella, El Derecho como Lenguaje, 1968 e Sobre la extinción del derecho y la supresión
de los juristas, 1970.
Alguns esforços isolados de juristas foram realizados, como o Congresso de Advogados
realizado em León, em junho de 1970, quando advogados das mais variadas ideologias
concordaram com uma plataforma comum de reivindicação contra a ditadura, embasada em
liberdade e justiça, quando pediam o fim dos tribunais de exceção e a implantação do Estado de
Direito. Ademais, houve reuniões e trabalhos de professores de Direito Penal e Processual das
universidades espanholas e alguns números extraordinários da revista Cuadernos para el diálogo,
tratando de temas como: “Justiça e Política” e “Delito e Sociedade”, nos anos de 1969 e 1971.
Já, quanto ao universo do Poder Judiciário, “el mundo de los jueces ha permanecido durante
decenios, pudiera decirse, ensimismado e inmerso en la dócil aplicación de todo lo que le llegaba
formalmente sancionado como derecho.”546 Muitos juízes e promotores de justiça não eram só
coniventes com o terror praticado pelo Estado, mas, também, buscavam se beneficiar com isso. “He
conocido fiscales y jueces que recurrieran a doña Carmem Polo de Franco o movieron altísimas
instancias políticas para ocupar una magistratura de Trabajo [maior salário da estrutura judicial].
Muchos sólo buscaban mejorar su estatus económico y vivir en una capital de provincia. Algunos
pretendían también colocarse en la rampa de lanzamiento hacia el mundo de la designación
política.”547
Entretanto, na década de setenta, houve uma aproximação de alguns magistrados com as
doutrinas críticas produzidas em outros países, principalmente da Itália, dando-se início a
esporádicas experiências coletivas, como Justiça Democrática (1971) e um escrito elaborado por
juízes de Barcelona, publicado na revista Mundo, em fevereiro de 1976, intitulado Jueces contra el
bunker, com um conteúdo renovador e democrático. Um fato também muito importante foi a
realização do seminário sobre uso alternativo do Direito, realizado em Granada, em 1977,

544
LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria, Modesto Saavedra López, Perfecto Andrés Ibáñez. Op. cit., p. 35-60.
545
Ibid., p. 47.
546
Ibid., p. 87.
547
NAVARRO, Joaquin. Manos sucias : el poder contra la justicia. Madri, Temas de Hoy, 1995, p. 64. (Colección
grandes temas v. 47, serie 75-95).
organizado pelo Departamento de Filosofia do Direito da Universidade daquela cidade, resultando
na publicação do livro Sobre el uso alternativo del derecho, composto por três trabalhos
apresentados no evento.
Após quase quarenta anos de ditadura, os juristas espanhóis, repita-se, ainda viviam sob um
regime de força violento, sob um ordenamento jurídico com uma coerência repressiva enorme.
Houve um recrudescimento dessa legislação no início da década de setenta com a edição de muitas
outras leis autoritárias. O panorama jurídico da época pode ser assim resumido: com o fim da guerra
civil, apoderou-se do poder (1936) um governo militar violento, chefiado pelo general Francisco
Franco Bahamonde. Esse militar foi nomeado pela Junta de Defesa Nacional e recebeu, entre outros
poderes, o de ser fonte única de Direito. Ele era o autor único da legalidade e, por ter tal poder, não
estava submetido a ela. O resultado foi a criação de um ordenamento jurídico tirânico, elaborado
para manter a elite governante, com total desrespeito aos direitos das pessoas.
O Poder Judiciário ordinário, praticamente, ficou sem função, totalmente dependente do
Poder Executivo, apenas julgava causas de menor importância, pois os litígios de interesse geral,
em especial os “crimes” políticos e de opinião, foram transferidos para a competência da Justiça
Militar e seus Conselhos de Guerra, com poder de impor até a pena de morte, o que fizeram por
várias vezes.
Por intermédio da Ley de la Jefatura del Estado, de 1º de março de 1940, criou-se o
Tribunal para a Repressão da Maçonaria e do Comunismo. Era a época do “coronel-inquisidor
actuando de juez, con sede intinerante en las jefaturas de policía de toda España,
incondicionalmente respaldado por consejos de guerra, autores o cómplices más bien de
monstruosas sentencias, por sus dimensiones antijurídicas y sus severíssimas penas.”548 Vigorava a
Lei de Ordem Pública, de 1959, tirânica como todas as leis ditatoriais sobre Ordem Pública, quando
os ditadores, em nome da ordem, “sinónimo de sumisión absoluta y servil a cuanto desean las
autoridades políticas o gubernativas y sus agentes”549, impõem ao povo a violência, para manterem-
se no poder. Após muitos anos, foram dissolvidos tais conselhos, sem significar um avanço
democrático, pois em seu lugar foram criados os Juízos e Tribunais de Ordem Pública, em 02 de
dezembro de 1963, com ampla competência jurisdicional, principalmente para processar e julgar
crimes de opinião, formados por “juízes” nomeados por decreto do ministro de Justiça. Os recursos
das decisões dessa Corte de Justiça, que pode ser chamada de “Corte da Criminalidade Legal”, só
eram cabíveis à sala 2ª da Corte Suprema, também controlada pelo Executivo. Estas duas esferas do
Poder Judiciário sempre agiram de forma entrosada e identificada com a ideologia franquista. “En
la jurisprudencia de ambas entidades judiciales, la unidad espiritual, nacional, política y social de
España aparece como el máximo valor jurídico protegido frente a la horda sediciosa representada
por cualquier intento de pluralidad, es decir, de libertad. Se llamaba unidad a la uniformidad
impuesta.”550 Além disso, foi mantida a Jurisdição Militar de Guerra, para o julgamento de vários
atos descritos como crimes com fins políticos, isto mais de três décadas depois de terminada a
guerra civil.
Situação mais grave era a dos trabalhadores, pois estavam submetidos, também, à Justiça
Laboral, constituída por juízes do governo, com a função de acabar com as organizações obreiras e
proteger o grande capital. Ademais, a Brigada de Investigação Social, polícia política de Franco,
possuía uma espécie de carta branca para suas ações, sem necessidade de respeitar os direitos
individuais e coletivos, como a inviolabilidade de domicílio. Vários trabalhadores foram presos ao
saírem das salas de audiência da Justiça Trabalhista, onde foram pleitear só seus direitos laborais.

548
JUSTICIA Democrática. Los jueces contra la dictadura : justicia y política en el franquismo. Madri. Tucar Ediciones,
1978, p. 44. (Documentos políticos).
549
Ibid., p. 82.
550
NAVARRO, Joaquin. Op. cit., p. 63.
No geral, pensar era um delito perigoso e expressar o pensamento um crime punido, no
mais das vezes, com a pena de morte. Ao lado desse terrorismo legal contra a povo, havia as
facilidades e a impunidade para os grandes empresários, para os amigos do regime, para a polícia e,
até mesmo, para grupos paramilitares, violentos e armados, como os Guerrilheiros de Cristo Rey e
os Comandos de Luta Antimarxista. Todos agiam livremente, descumprindo leis, desrespeitando
direitos, matando e torturando, com a cumplicidade do regime.
O fato é comum em todas as ditaduras, mas, normalmente, esquecidos ou, pelo menos, não
denunciados energicamente pela história. Narra-se a violência praticada pelos militares no poder,
mas pouco se diz da conivência de grupos civis, principalmente da alta burguesia, que aproveitam
das facilidades legais e da complacência do governo, para explorar trabalhadores, muitas vezes até
crianças, impondo-lhes enorme carga horária de trabalho, sem a mínima proteção, ocasionando
várias mortes por acidente de trabalho, tudo isso mediante pagamento de baixos salários, não
suficientes, sequer, para a sobrevivência de uma família. Para aumentar a produtividade e o
conseqüente lucro, os empresários praticam atos materiais de violência e de exploração, tão cruéis
como as torturas e mortes ocasionadas pelos militares.
Após as transições democráticas, tudo é esquecido, os militares ficam com a culpa
exclusiva, e as grandes empresas posam de democratas, sinônimo de progresso e desenvolvimento.
Em verdade, as ditaduras são feitas para o desfrute dessa classe social que usufrui de todas as
facilidades legais e da violência institucionalizada. Para aumentar ganhos, não lhes importa quantos
vão morrer ou sofrer por isso. Se estivessem contra o regime, não aceitariam as condições postas,
não explorariam os trabalhadores, agiriam com decência, e a ditadura teria fim breve. Permanecem
todos, todavia, de mãos dadas e usufruem juntos os resultados da barbárie, porque as ditaduras são a
soma de capitalismo econômico com totalitarismo ou autoritarismo político, significando a defesa
armada do capital contra os interesses (quase sempre desarmados) dos trabalhadores. Não se pode
olvidar “y la mayor parte de los historiadores actuales ponen de manifiesto, en efecto, el apoyo que
los grandes grupos capitalistas prestaran, tras alguna explicable indecisión, a los regímenes de la
Alemania hitleriana y de la Italia de Mussolini.”551 Trata-se de apoio extensivo a todas as ditaduras
ocidentais contemporâneas, inclusive algumas, no países do terceiro mundo, são planejadas e
financiadas por estes grupos.
Frente a esse quadro degradante, o Poder Judiciário, articulado dentro de um rígido
esquema hierárquico e governado pelo Executivo, sempre ficou inerte, nada fez pela
democratização da sociedade, em cumplicidade com a grande maioria dos juízes e pelo terror
imposto aos demais magistrados descontentes, que necessitavam calar para continuarem vivos. O
clima de pavor não era criado só por ameaças veladas, mas por atos reais e concretos dos superiores
hierárquicos, em cumprimento das leis franquistas. Os magistrados estavam submetidos às
Inspeções de Tribunais (Lei nº 20, de dezembro de 1952), podendo ser punidos a qualquer
momento, sem um motivo muito sério, inclusive devido ao mérito de suas decisões. Bastava
contrariar o “espírito do Movimento Nacional”, ou seja, o general Franco. Os promotores de justiça
não tinham melhor sorte. Seus superiores, por determinação do art. 97 do Regulamento Orgânico do
Ministério Fiscal, efetuavam informes de caráter reservado ao ministro da Justiça e ao procurador
do Tribunal Supremo, comunicando sobre a vida profissional e pessoal dos mesmos.
Como ilustração, pode-se mencionar as punições aplicadas aos promotores de justiça de
Barcelona, José María Mena Alvarez e Carlos Jiménez Villarejo, como conseqüência do informe do
procurador da Audiência Territorial de Barcelona, referente ao ano de 1973, delatando ter o
primeiro firmado, sem consultar seu superior, parecer favorável à liberdade de determinados presos
detidos pelo Tribunal de Ordem Pública, e o segundo por ser contestador e não possuir lealdade ao
franquismo552.

551
DÍAZ, Elías. Estado de derecho y sociedad democrática. Madrid, Editorial Cuadernos para el Dialogo S. A., 1975, p.
53 (Divulgación universitária, 5).
552
Ver ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. Justicia/conflicto. Madri, Tecnos, 1988, nota 17, p. 67-68.
De fato, o poder dos juízes tornou-se um poder meramente nominal diante do poder efetivo
dos grandes interesses ideológicos, econômicos ou políticos. Bom resumo da situação nos dá
Perfecto Andrés Ibáñez: “Durante el período franquista la administración de justicia se caracterizó
por su integración en condiciones de subalternidad y dependencia en el interior del aparato estatal
del franquismo, al extremo de que la misma careció básicamente de algún grado de significación
política autónoma.”553
Nada melhor do que as palavras dos próprios juízes espanhóis para expressar a situação
social e jurídica no ano de 1975:
“Una vez más tropezamos con un panorama desconsolador: continuación de la extensión
desorbitada de la jurisdicción castrense y de la multiplicidad de fueros personales en la
justicia penal; persistencia y aun aumento de la práctica de nombrar jueces especiales
elegidos discrecionalmente; continuación de la llamada justicia de Orden Público
especializada en castigar delitos de opinión y en sofocar los intentos de los trabajadores de
organizarse para la defensa de sus intereses; prosecución de las presiones sobre jueces,
fiscales y magistrados por parte del Ministerio de Justicia y de las Inspecciones
respectivas para que extremen el rigor o para que cierren los ojos según casos y personas;
permanencia de las facultades gubernativas de imponer multas y prolongados arrestos
sustitutorios; continuación de los excesos de la policía político-social y de la protección
que dispensan a los que comete el gobierno y las jerarquías judiciales que siguen las
instrucciones del mismo; continuación de la impunidad de los poderosos del régimen y de
sus allegados que participan en las grandes estafas y en las quiebras y suspensiones de
pagos que las encubren... En resumen, una maquinaria judicial debilitada, desasistida y
obstaculizada en el cumplimiento de sus deberes.”554
O ambiente de medo e terror foi comum às sociedades italiana, espanhola e brasileira
durante o período de ditadura a que cada uma foi submetida. As poucas diferenças surgem na forma
de articulação das forças democráticas, para enfrentar a situação e lutar pelo fim da violência do
governo. Já em relação a uma mudança radical da sociedade, mais profunda do que uma
substituição ocasional de governantes, foi na Itália onde as forças de esquerda mais perto chegaram
do poder. Na Espanha chegou-se à social democracia e, no Brasil, a direita sempre governou e até a
presente data vive-se sob as regras de um capitalismo periférico selvagem, com grande parte da
sociedade civil imersa na mais profunda miséria.
Os espanhóis, vivendo esse quadro desolador, viram surgir, em 1971, na cidade de
Barcelona555, Justiça Democrática, um grupo de funcionários da Justiça, integrados por juízes (de
primeiro e segundo grau), promotores de justiça e demais servidores da Justiça, com as mais
variadas ideologias (liberais, democratas cristãos, socialistas e comunistas), que, em plena vigência
da ditadura franquista, decidem agir na clandestinidade e iniciam um trabalho político de denúncia e
crítica contra o despotismo e o desrespeito dos direitos individuais e coletivos, pleiteando a
independência do Poder Judiciário e a implantação dos princípios do Estado Liberal Democrático
de Direito. “Pequeños grupos de compañeros -secretarios judiciales, jueces, fiscales- fueran
creándose en torno a relaciones de amistad. Problemas de justicia, problemas políticos, problemas
de dignidad ciudadana hicieron de aquellas reuniones focos de debate y de acción en varios puntos
de España. Y empezaron a entrar en relación unos con otros y con organizaciones y personalidades
críticas o de oposición al régimen político.”556 Agiam às escondidas e se manifestavam através de

553
Ibid., p. 17.
554
JUSTICIA Democrática., p. 273.
555
Logo se estendeu para Madri, Baleares, Valência, Galícia, Andaluzia e outras regiões.
556
VICENTE CHAMORRO, Jesús. “Antonio Carretero y justicia democrática.” Jueces para la Democracia. Madrid, nº
12/1989, vol. 8, p. 8.
escritos anônimos, publicados, posteriormente, no livro sem autor, firmado por Justiça Democrática,
intitulado: Los jueces contra la dictadura : justicia y política en el franquismo. O primeiro escrito
circulou em 1971 e chamou-se El Gobierno y la Justicia. Posteriormente foram publicados mais
três textos, respectivamente, em 1972, 1973 e 1974, todos denominados Justicia y Política. Além
desses trabalhos anuais, outros foram escritos, para tratar de temas concretos, como Justicia
Democrática ante el 1001, para discutir um determinado processo, ou um estudo crítico combativo
ao Decreto-Lei 10/1975, sobre o terrorismo, com a implantação da pena de morte. Manuel Peris
Gomez, falando sobre um amigo morto, revive com emoção a criação deste combativo grupo de
juristas.
“Fue a mediados de 1967. Recuerdo que fue Pedro Nacher, valenciano como Antonio y
yo, quien nos dijo a los dos que podíamos organizar unas tertulias semanales para hablar
de cine, de arte, de filosofía, etc. a las que podía venir también Luis Valentín, gran amigo
suyo. Nos pareció muy bien y nosotros aportamos los nombres de Fernando Ledesma,
recién llegado a Barcelona en su primer destino y Carlos Jiménez Villarejo. En menos de
un mes, el grupo se duplicó - entre otros José María Mena recién llegado de Canarias - y a
los dos meses se estaba hablando de filosofía marxista, de partidos políticos y de
democracia, hasta que un día Antonio Carretero dijo, poco más o menos, «bueno ya está
bien; quitémonos las caretas y vamos a conspirar. Vamos a crear una conciencia y
corriente democrática dentro de la Administración de Justicia». En un año el grupo
superaba las veinte personas y creímos necesario salir del ámbito catalán. Acordamos
destacar a Antonio para que se pusiera en contacto con Jesús Cambiar en Madrid. Fue el
primero de lo que Antonio Carretero intituló, con el sentido del humor que le
caracterizaba, «viaje de conspiración». En dos años se extendió por toda España y en 1974
acordamos llamarle Justicia Democrática.”557
Vê-se uma grande diferença entre os juristas democráticos espanhóis em relação aos
italianos e brasileiros. Estes só se organizaram após o fim dos regimes de força de cada país,
enquanto aqueles iniciaram suas atividades enfrentando os perigos oriundos da vigência de uma
ditadura, motivo pelo qual socorreram-se do anonimato e da clandestinidade, criando uma figura
muito significativa, ao ponto de chamar a atenção da imprensa internacional, qual seja, a do juiz
delinqüente, pois qualquer tipo de associação, com esses propósitos, era tipificada no Código Penal
como delito. Sem dúvida, trata-se de um grande paradoxo jurídico, pois torna-se quase
incompreensível e inaceitável a existência de juízes e promotores - membros do próprio Estado,
defensores e aplicadores da legalidade - criminosos, ativistas clandestinos e anônimos antiditadura,
na época expressão do Estado e da legalidade. Em outras palavras, os funcionários do Estado,
membros do Poder Judiciário, atuavam na ilegalidade para alcançarem a legalidade, buscando
modificá-la e torná-la justa. Uma parte dos intelectuais orgânicos do aparato franquista converteu-se
em oposição clandestina, atuando para destruir a ditadura. Eles próprios, em duas ocasiões, 1971 e
1974, esclarecem esta situação:
“Nuestra organización, con escándalo de algunos, hubo de «hacer política» precisamente
por la justicia. Por eso, su presencia en la vida del país durante los últimos años, para, a
través de la denuncia precisa y la elaboración de alternativas viables, contribuir al
replanteamiento de la función sobre bases realmente democráticas (...)
Somos conscientes de que nuestro rechazo, aun siendo en primer lugar de carácter ético,
tiene un indudable alcance político y hemos elegido deliberadamente la clandestinidad, no
tanto por rehuir el riesgo profesional y personal, como por hacer tangible la
irrevocabilidad de nuestra repulsa. Partimos de la firme convicción de que esta infracción
de la legalidad formal establecida por el régimen está moralmente justificada e intentamos

557
PERIS GOMEZ, Manuel. “Antonio Carrero Pérez. Recordando a un juez demócrata.”Jueces para la Democracia.
Madri, nº 12/1989, vol. 8, p. 7.
incorporar a nuestras reflexiones el desapasionamiento y la imparcialidad que convienen a
nuestra función.”558
O realmente inacreditável é que após exemplos históricos como este e o patrocinado pela
guerra interpretativa entre as Cortes de Cassação e Constitucional italianas, ainda existam juristas
defendendo a neutralidade, a apoliticidade, a universalidade e a coerência do Direito.
A insatisfação desse grupo agravou-se sobremaneira devido ao desprezo do governo ao
Poder Judiciário, à utilização deste para “santificar” medidas arbitrárias, para justificar ou dar ar de
legalidade às ações de força dos militares. Não estavam satisfeitos, por óbvio, com a situação geral
do país, mas o aniquilamento do sistema de Justiça, sua subordinação à jurisdição militar, a
constante interferência do Poder Executivo (ora nomeando magistrados, ora punindo-os, quando
não mudando as leis, para subtrair funções dos juízes ordinários em favor dos castrenses e, ainda,
destruindo todos os princípios básicos de Direito Penal, aprovando leis rigorosíssimas contra atos de
consciência, ignorando os mais elementares procedimentos, como o direito de defesa), fez
ultrapassar os limites de tolerância desse grupo, remetendo-o à ação ilegal aos olhos do governo
militar.
A luta inicial era por respeito ao Estado de Direito, à segurança e à técnica jurídica, às
garantias processuais e jurisdicionais, à igualdade ante a lei, pela independência real do Poder
Judiciário. No ano de 1973 pediam um Estado Social de Direito. A discussão chegou ao político.
“Para nosotros la justicia es el valor supremo. Y queremos hacer una justicia libre en una política
justa. Por eso el problema político es previo. Sin un orden político justo, no hay un orden jurídico
justo.”559 Assumem essa condição política como base de uma sociedade democrática e criticam os
juristas que, em nome da apoliticidade do Direito, estão contra o posicionamento do grupo. “Se
politiza en cambio, y se mancha, el que se hace cómplice de una situación de poder desnudo e
injusto y lo tolera, lo permite y lo sanciona. Se politiza el que pide silencio y adulación, disciplina y
servilismo hacia el poder. El que llama «rojo» al magistrado independiente; «subversivo» al que
quiere ser limpio y honesto; «tonto útil» al que defiende y habla de los derechos fundamentales del
hombre.”560. No entanto, não possuíam um discurso revolucionário como os italianos e não estavam
vinculados ao pensamento marxista, só desejavam viver em uma sociedade onde o cidadão comum
tivesse a segurança de que não seria preso e/ou executado, a qualquer momento, sem nenhum
motivo a não ser a antipatia do governo. Estas palavras de desespero esclarecem a situação:
“Fuera de nuestro entendimiento la realización de actos heroicos a lo quijotesco, hemos de
lanzar esta indignada repulsa a través del único medio que está a nuestro alcance: en unas
páginas anónimas cuya sola forma ya constituye de por sí una triste prueba del sistema en
que vivimos.
Lo que se dice en coversación no nos es permitido decirlo a la luz del día. Sólo se os
concede el derecho al rumor, al comentario y al temor de haber hablado. Gozamos de la
posibilidad de padecer la humillación, y de la de desempeñar «oficialmente» el papel de
jueces y magistrados mientras tenemos que ignorar lo que sucede en una gran parte de la
realidad, vedada a la justicia. Hemos de ocultar nuestros pensamientos para no ser
perseguidos o condenados al ostracismo. Tenemos que tolerar que nos agobie el trabajo o
la insuficiencia de medios de que disponemos para realizar nuestra función, que por ello
sufre y no puede ser realizada cumplidamente. Y habremos de cuidar que no se irrite
nunca el león, que nos puede herir con expedientes, con postergaciones, con olvidos
intencionados.”561

558
Democrática. Los jueces contra la dictadura : justicia y política en el franquismo. Op. cit., p. 11 e 274.
559
Ibid., p. 186.
560
Ibid.
561
Ibid., p. 63-64.
O discurso dos Juízes Democráticos não era só de crítica. Eles procuravam realizar um
informe paralelo ao apresentado, anualmente, pelos chefes do Poder Judiciário que, coniventes com
o governo, elogiavam as realizações do Poder e ignoravam a realidade social. Ademais, procuravam
sensibilizar todos os juízes da Espanha, convocando-os à luta, à realização de uma interpretação
progressiva dos textos legais, para efetivar-se justiça social. Os objetivos do grupo foram bem
delimitados no seguinte trecho:
“Los demócratas españoles queremos que este país, nuestro país, tal y como es ahora en el
punto de evolución material y espiritual en que se encuentra, recobre la voz y el impulso y
se pronuncie sobre los grandes temas políticos y sociales de nuestro tiempo. Esto supone:
limpiar al Estado español de las adherencias y hábitos fascistas; reconocer las libertades
individuales tanto tiempo sofocadas, rechazando enérgicamente la falsa premisa de que el
progreso material de España sólo ha sido posible sin libertad y gracias a la clarividencia
de un hombre providencial; buscar y encontrar soluciones políticas y sociales sin dictados
ni exclusiones arbitrarias tanto en cuanto al cuadro constitucional como en lo que respecta
a la vida económica y cultural; expulsar de los cargos públicos a personas y grupos
manchados de corrupción, lo cuales para el régimen son intocables; borrar de las leyes
penales la artificiosa y vaga delincuencia de opinión; rechazar y castigar las prácticas
policiales vejatorias y opresoras tan favorecidas por el Régimen; luchar contra toda
mediatización de la justicia e impedir que los tribunales se presten a cubrir abusos y que
se premie a los jueces y magistrados que se avienen a ellos, y, para terminar, aunque en
nuestro ánimo debe ir antes que todo lo demás, abrir las prisiones a tantos y tantos
hombres condenados por su amor a la libertad, es decir, promulgar la amplia amnistía que
reclama el país.”562
Ainda na ilegalidade, mas de forma pública, foi realizado o I Congresso Nacional de
Justicia Democrática563, nos dias 7 a 9 de janeiro de 1977, em Madri, onde chegaram a várias
conclusões, que de maneira geral pode-se resumir na proposta de instalação de um sistema
democrático, sob a base de um Estado liberal e social de Direito, com liberdade ao Poder Judiciário,
com uma eficaz organização de justiça, sob as garantias processuais típicas deste tipo de Estado. No
específico, é de ser salientado dois pontos importantes. O primeiro referente à intenção do grupo de
manter a mesma estrutura e objetivos iniciais, com o propósito de fundar, no futuro, um sindicato
comum a todas as categorias de funcionários da justiça, englobando magistrados, promotores de
justiça e demais servidores do Poder. O segundo diz respeito a uma menção ao uso alternativo do
Direito como proposta de ação, mas não com o conteúdo revolucionário utilizado na Itália.
“Además, la propia utilización de las leyes con arreglo a criterios interpretativos tradicionales,
origina y acrecienta la conservación de los intereses extrajurídicos amparados de hecho por las
leyes. Para evitarlo, y lograr que el ordenamiento legal sea un instrumento de justicia, se propuso
«el uso alternativo del derecho», precisándose su sentido dinámico y progresivo.”564
Na Catalunha iniciou-se o processo de sindicalização, que depois alastrou-se para Galícia,
Baleares e Astúrias. Essas tentativas foram contestadas judicialmente e, posteriormente, proibidas
pela Constituição. Assim, a idéia de manter todos os funcionários da Justiça unidos não durou
muito, e a conseqüência foi a divisão associativa entre juízes, promotores de justiça e demais
funcionários.
Foi exatamente a ala mais conservadora da magistratura que deu os primeiros passos para
criar associações territoriais de caráter não-político e não-sindical, como a Unión Territorial de

562
Ibid., p. 299.
563
A realização deste congresso levou o Presidente do Tribunal Supremo a ordenar a Subsecretaria da Ordem Pública que
determinasse a todos os chefes de polícia a realização de uma ampla investigação sobre todos os participantes do mesmo.
564
Ibid., p.314.
Magistrados, Jueces y Fiscales, constituída em Andaluzia. Para a organização de uma associação
em nível nacional, foi realizado um encontro em Sigüenza, Guadalajara, entre 7 e 9 de dezembro de
1979, sem a participação de representantes de Madri, de onde saíram os primeiros atos de
constituição da Asociación Profesional de la Magistratura - A.P.M., que teve seus estatutos
aprovados em janeiro de 1980. Na mesma época, na Capital da Espanha, organizou-se outro
encontro para dar início à Asociación de Jueces y Magistrados de España, também conservadora,
com pretensões só profissionais. Esse grupo praticamente se extinguiu, ficando apenas constituído
por alguns ultradireitistas, após seus membros serem aglutinados pela A. P. M., nas vésperas de seu
I Congresso, realizado em março de 1980.
Neste evento, os magistrados progressistas (quase todos membros da Justiça Democrática e
identificados, ideologicamente, na maioria, com uma moderada esquerda genérica e, em minoria,
com os partidos socialista e comunista) foram bem representativos e chegaram a 30% do total, mas,
por filigranas jurídicas, esta importante parcela de juízes ficou excluída da formação do Consejo
General del Poder Judicial - C. G. P. J., órgão de gestão político-administrativa do Poder Judiciário
criado pela Constituição de 1978. Composto o Conselho, A. P. M. teve uma vida associativa
apática, não obstante ter organizado mais dois congressos, nos anos de 1981 e 1983. No último
evento, o grupo progressista de magistrados, aproveitando-se do triunfo eleitoral do partido
socialista e o conseqüente medo dos juízes reacionários, conseguiram, entre outras conquistas,
aprovar o reconhecimento e a autorização para a formação de correntes dentro da A. P. M.
Nesse novo contexto associativo, um grupo de magistrados progressistas, representantes de
todas as partes de Espanha, reuniram-se em Madri, no dia 28 de maio de 1983, e decidiram, em
assembléia, adotar o nome de Jueces para la Democracia, aprovando um documento de fundação
de uma corrente interna na A. P. M.. A ata constitutiva565 iniciou com uma crítica à jurisdição, com
o reconhecimento da função política da mesma, bem como de sua utilização como arma de
repressão ao serviço dos interesses dominantes. A partir dessas premissas, denunciam: “Por eso
precisamente el afán de hacer de los jueces el cauce meramente 'fonográfico' de expresión del
derecho que únicamente el legislador hace. De negar toda creatividad a su función. Y de ahí
también que no se quiera aún el judicial como 'poder'. Evidentemente no interesa.” 566 No relativo ao
Poder Judiciário, criticam seu isolamento da sociedade, sua estrutura piramidal com raízes no Poder
Executivo, seu caráter sacramental e sua aversão à crítica. Concluem: “En este contexto, el juez,
profesional puro, apolítico, ahistórico, imparcial, neutro, confinado en una existencia puramente
individual y sin otra dimensión colectiva que la estrictamente burocrática, es bien políticamente
disponible e instrumentalizable desde otras sedes de poder. Excelente vehículo de represión y de
control social. Eficaz filtro para la integración y tratamiento de los antagonismos de clase 'sub
specie' de aséptica conflictividad individual.”567
Os magistrados espanhóis buscaram na Justiça Democrática um ponto de referência, em
especial na prática de fazer política dentro da área judicial, para combater a ordem estabelecida,
para construir possibilidades de Justiça, entendida como função do Estado de Direito Democrático.
No referente à organização associativa, o grupo não poupou críticas à ala conservadora da
magistratura, principalmente, a sua tentativa de fazer uma associação só profissional, formada com
um rigor hierárquico igual à própria carreira. Também censuraram a apatia da A. P. M., o
desrespeito à ala minoritária da associação e o só interesse em compor o C. G. P. J.
Assumiram vários compromissos de luta e traçaram objetivos comuns do grupo, como:
1- dever o juiz assumir responsabilidade histórica, em concreto, abrir o Direito aos novos
princípios constitucionais, destacando-se a igualdade, a justiça, a liberdade e o pluralismo político;

565
Jueces para la Democracia. Ata de fundación. Guadalajara, Gráficas Pontón, s. n., 1983, 9 p.
566
Ibid., p. 3.
567
Ibid., p. 4.
2- democratização da carreira judicial, prevalecendo o princípio da igualdade sobre o da
hierarquia;
3- abrir aparelhos de controle popular sobre o Poder Judiciário, sendo a crítica, interna e
externa, uma necessidade do novo sistema;
4- um novo tipo de juiz, assumido como cidadão, implicado, como qualquer outro membro
da sociedade, no mundo da polis;
5- lutar pela independência judicial frente ao poder, mas aberta à sociedade;
6- romper com a hiperburocratização da função e com qualquer tipo de esoterismo,
principais motivos do distanciamento do Poder de sua única fonte de legitimação, qual seja, o povo;
7- buscar que os princípios de liberdade e igualdade sejam reais e efetivos e não só
declarações formais;
8- um novo tipo de julgador, com uma nova postura. “La actitud propia de un juez
intérprete no sólo de leyes sino también de relaciones sociales en continuo fluir. Un juez consciente
de que su trabajo se da en un permanente contexto de conflicto, que exige de él en cada resolución,
una toma de partido.”568
Sob estes critérios, traçaram linhas de futura atuação do grupo, podendo ser destacados os
seguintes pontos:
1- necessidade de formas de legitimação complementárias ao Poder Judiciário, sendo
fundamental: a) instauração do júri popular; b) implantação de uma justiça de paz com base eletiva;
c) liberdade de expressão e crítica sobre a administração de justiça e d) controle parlamentário sobre
a justiça;
2- criação de um novo tipo de estrutura hierárquica do Poder Judiciário, totalmente
descentralizada, com cargos diretivos temporais e providos por sufrágio, sem diferença entre os
juízes que não seja o posto de trabalho;
3- efetivação dos princípios constitucionais. Para tanto, sendo necessário: a) desaparecer a
Audiência Nacional e os Julgados Centrais; b) redução da competência da justiça militar ao
estritamente castrense; c) revogação da legislação excepcional e d) redução da diversidade de
procedimentos penais;
4- interpretação da legalidade vigente com o propósito de efetivar justiça social;
5- realizar uma nova política criminal, colocando a pena como ultima ratio;
6- justiça para toda sociedade, sem que a justiça gratuita signifique justiça de menor
qualidade;
7- reformulação da justiça de menores;
8- controle real dos juízes sobre a polícia judicial;
9- colaboração entre Jueces para la Democracia e todos os demais movimentos
associativos democráticos.
A formação desse grupo de juízes, politicamente identificados como de esquerda, teve uma
grande repercussão na imprensa, com mais ênfase nos jornais conservadores, de onde saíram fortes
críticas e acusações. Também no interior da A. P. M. houve reações, e os juízes mais conservadores
realizaram uma verdadeira cruzada nacional contra o que eles chamavam de perigo vermelho. Foi
convocado um congresso para março de 1984, com o propósito de discutir o assunto. No mesmo
ano, em fevereiro, o grupo Jueces para la Democracia se reuniu em Sitges, Barcelona, em sua II
Assembléia, quando decidiram por sua permanência na A. P. M. No mês anterior foi constituída
uma outra corrente dentro da A. P. M., denominada Francisco Vitoria, com ideologia de centro.
Nesse clima foi realizado o IV Congresso da Associação Profissional de Magistrados, quando
houve um total regresso nas conquistas efetuadas no congresso anterior pelos grupos minoritários.
Foi decidida a proibição da formação de correntes e a volta do sistema majoritário para eleição do
C. G. P. J., o que excluía os juízes não-conservadores. Diante destas decisões, a corrente Jueces
para la Democracia, em sua III Assembléia, no mês de maio seguinte, deliberou, em maioria, pela

568
Ibid., p. 8.
saída da A. P. M. e por deixar as portas abertas para outros grupos. No mesmo sentido foi a atitude
da corrente Francisco de Vitoria, que também abandonou a A. P. M. e fundiu-se com um pequeno
grupo chamado Grupo Judicial, formado por magistrados de ideologia liberal.
Com vida autônoma, a direção de Jueces para la Democracia lança o primeiro número de
uma revista, com o mesmo nome do grupo, em abril de 1987. O último número publicado foi o
vinte e três, referente à terceira publicação do ano de 1994. Nela são debatidos os mais variados
temas jurídicos, buscando enfocar a democratização da sociedade. Sobre Direito Alternativo
brasileiro foram publicados três textos, o primeiro de autoria dos professores Joaquín Herrera Flores
e David Sánchez Rubio, intitulado Derecho alternativo en Iberoamérica, nº 20, 3/1993; o segundo,
da lavra do autor deste trabalho, com o nome Brasil: magistratura y guerra de posición, nº 22,
2/1994; e o terceiro, produzido por Amílton Bueno de Carvalho, La jurisdicción criminal en Brasil,
hoy, nº 23, 3/1994.
O grupo nunca assumiu uma postura revolucionária em relação ao Direito. Sua preocupação
central é a de garantir as conquistas democráticas hoje já introduzidas na Constituição, lutando para
impedir qualquer regressão. Não pretendem a construção de uma nova sociedade, com a superação
da social democracia, ou seja, do capitalismo. Desejam a manutenção das atuais situações: social,
política e econômica, para evitar possíveis retrocessos. Em palavras bem claras, querem a
manutenção do Estado do Bem-estar, sem discutirem, sequer, suas contradições e discriminações.
É, sem dúvida, uma luta merecedora de respeito, pois a direita, os liberais “pós-modernos”, estão
cada vez mais fortes e retornando ao poder na Europa.
Essa estratégia, de toda sorte, é uma opção pelo não-avanço social. É de ser recordado,
inclusive, que o movimento italiano, ao deparar-se com o retorno das forças reacionárias, também
assumiu uma postura de “garantismo”, abandonando qualquer reivindicação transformadora, mas o
resultado não pode ser considerado muito animador, pois, exatamente, resultou em triunfo da
direita. Trata-se de um problema estratégico. Se as forças democráticas não possuem poder
suficiente para transformar as relações sociais, também não o terão para garantir as conquistas
populares já feitas leis.
Os reacionários no poder (Berlusconi na Itália e Aznar na Espanha) significam um
retrocesso na legislação social e torna-se difícil acreditar na força de Magistratura Democrática e
Jueces para la Democracia, mesmo unidas com os demais movimentos sociais, para impedir esta
política e exercitar o “garantismo”. Quem não tem força para mudar, dificilmente terá para garantir.
Assim, essa postura, se entendida como uma tática momentânea de luta, pode ser aceita, mas como
uma proposta política para a sociedade, não. Por falta de qualquer perspectiva de mudança,
representaria a estagnação da própria história.
Já no Brasil, tal tipo de luta torna-se sem objetivo, pois neste país jamais foram praticados
nem sequer os princípios do Estado de Direito, muito menos as condições sociais do Estado do
Bem-estar. Não se pode lutar por manter o que nunca foi conseguido. A liça é por conquistas, por
alteração do status quo. Talvez aqui esteja a grande diferença dos dois movimentos.

Conclusão

No transcorrer deste trabalho, foi estudado o contexto socio-econômico brasileiro, o


surgimento, no Brasil, do movimento denominado Direito Alternativo, sua história, seu
pensamento, suas correntes, seus resultados, bem como sua relação com os movimentos europeus
uso alternativo do Direito, na Itália, e Jueces para la Democracia, na Espanha. Todos os dados
sociais, econômicos e históricos, bem como todas as teorias analisadas permitem uma série de
conclusões, dentre as quais as mais importantes serão apresentadas aqui.
1) A miséria existente no Brasil não é uma falha setorial do sistema capitalista responsável
por sua forma de organização de vida. Bem ao contrário, é conseqüência dele. Neste país existem
fatos reais, envolvendo homens, mulheres e crianças, marcados pela mais absoluta desconsideração
e crueldade, capazes de colocar em dúvida a própria existência, tanto de alguma racionalidade,
quanto de qualquer solidariedade nos seres humanos. A culpa disso tudo não é exclusiva da classe
política. Outras pessoas concretas, como empresários, latifundiários, representantes de
multinacionais, também se beneficiam das relações geradoras de toda essa pobreza. São pessoas
ricas, inteligentes, bem informadas e sabem muito bem o que fazem e o corolário de seu fazer.
Possuem plena consciência de serem as condições de obtenção de suas riquezas a origem maior de
toda a pobreza e miséria existentes ao seu redor. Muitos agem sob o manto da neutralidade do
mercado e conseguem ter “paz” em suas consciências. Outros perderam qualquer sentimento e se
lançam em uma luta fratricida em busca de dinheiro, chegando ao extremo da desumanidade de
contratar pistoleiros para assassinar seus oponentes, muitos deles crianças em tenra idade.
Além da perversidade existente na sociedade civil, as instituições do Estado mais servem
para aguçar esta guerra do que para pacificar os conflitos sociais. O dinheiro público, arrecadado
por um sistema tributário injusto, forte contra a classe média e contra os trabalhadores, é
distribuído, via corrupção, desmandos, benefícios, nepotismos, superfaturamentos, subfaturamentos,
subsídios, mal uso dos bens públicos, e muitos outros meios, para um grupo de apadrinhados do
poder, gente com capacidade de escandalosos desperdícios, tendo, muito perto das portas de suas
casas, milhares de pessoas que morrem na miséria, que têm fome e sede, ou que sobrevivem
comendo lixo. A legislação não reprime semelhante prática e, em muitos casos, permite-a e mesmo
a favorece. O Poder Judiciário, quando não age para beneficiar a essas gentes, garantindo seus
“direitos”, mantém-se inerte, administrando uma justiça seletiva, descompromissada com o mundo
social. Cumprir a lei é a justificativa, mesmo atuando-se contra o próprio Estado de Direito.
A situação é de calamidade pública e está a exigir, há muito tempo, atitudes concretas em
todos os meios sociais e organismos estatais, aí incluído o jurídico.
2) O Direito Alternativo brasileiro é exatamente isto: uma atitude concreta assumida por um
grupo de juristas contra uma realidade social considerada bestial. Partiu-se direto para a prática, sem
muitas preocupações teóricas, pois a angústia profissional e pessoal somadas ao desespero social
circundante não mais permitiam esperar. Algo havia de ser feito, urgia a necessidade de uma ação-
reação. No campo da teoria do Direito, muitos equívocos foram cometidos, mas no campo da
realidade social os acertos ultrapassam, em grande quantidade, os erros. As propostas alternativas
não buscam privilégios, não se vinculam às elites e, concretamente, muitas das suas decisões
evitaram chacinas, salvaram vidas. Seus membros, no tocante à auferição de vantagens pessoais
e/ou profissionais, mais perdem do que ganham. Não são paladinos da justiça e não agem imbuídos
de atitudes quixotescas. São homens e mulheres, juristas comprometidos com a história de seu país
e movidos por um objetivo comum. Talvez sejam todos sonhadores, mas ainda acreditam na
possibilidade de transformação social e construção de novas formas de se viver.
Muitos atos palpáveis já foram produzidos: livros publicados, congressos realizados, novas
jurisprudências criadas, procurando dar sentido social à atividade jurisdicional, e professores
alternativos tentam não doutrinar, mas preparar estudantes para um agir liberto e democrático. Tais
conquistas, mesmo trazendo vantagens à sociedade, não são bastantes para a maioria dos
alternativistas. Entendem que se claudica em suporte teórico e se está a dever, em especial, à teoria
do Direito.
3) Em termos teóricos, ou de elaboração de uma teoria jurídica alternativa, sempre
existiram e ainda existem incertezas. A chuva de críticas lançada contra o movimento foi enorme, e
as respostas nem sempre acertadas. Nesse aspecto, o tema pode ser visto sob o seguinte enfoque: de
início, houve uma espécie de ira por parte dos juristas tradicionais, inclusive de alguns tidos como
de esquerda, que passaram a atacar os juristas alternativos, pessoalmente, qualificando-os de
irresponsáveis, de despreparados e com outros adjetivos desapreciativos. Essas agressões foram
respondidas com serenidade, uma a uma, em vários artigos e textos 569, e hoje em dia já não mais
existem, ou são muito raras.
Com o desenvolvimento do movimento, muitos juristas, críticos em um primeiro momento,
foram vendo a seriedade de seus objetivos e mudaram de atitude, se não para a de adeptos, pelo
menos, para a de respeito, mesmo sob fortes discordâncias ideológicas.
Outros acreditavam no fim breve do Direito Alternativo, mas ao testemunharem sua
sobrevivência e seu crescimento, passaram a preocupar-se mais seriamente e começaram a escrever
textos, tentando atingi-lo ideologicamente. É o caso, por exemplo, de juristas de extrema direita,
pertencentes à Tradição, Família e Propriedade - T.F.P. -570, para os quais o movimento alternativo
está em colisão com a Doutrina Social Católica, por defender a luta de classes, o que é antinatural,
um novo diabo. As cruentas diferenças do derredor, sob o ponto de vista dessas pessoas, fazem
parte do corpo vivo da sociedade, onde todos os órgãos funcionam, cada um com sua função, para o
bem-estar comum e isto é, exatamente, o desejo de Deus571. Não vale a pena responder a essas
críticas, alegando, por ilustração, existir no organismo humano (usado como paradigma neste
argumento organicista) uma perfeita socialização na distribuição das energias necessárias para cada
órgão funcionar, sem privilégios e sem importar a função de cada um, com ela resultando o bem
comum de todo o corpo. O mesmo não ocorre no “corpo social vivo”, onde a produção não é
dividida e muitos morrem de fome, mesmo sobrando comida.
O importante não é combater a T. F. P., mas concordar com ela em quase572 todas as suas
“acusações”. Realmente, os alternativos não estão de acordo com a divisão de classe. É certo
partirem os alternativos de uma análise social que leva em conta a luta de classes, pois não aceitam
o caráter natural dessas diferenças. Todos os alternativistas (e é de ser relembrado abrigar o
movimento desde marxistas até católicos, passando por desvinculados a qualquer doutrina) são
contra qualquer forma de exploração.

569
Não existe uma publicação, nem sequer uma catalogação, destes artigos e textos. Ver capítulo V, Reações, in
ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz Alternativo e Poder Judiciário. São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, p. 119-128.
570
A T.F.P. é o único grupo organizado a cuidar de se fazer presente, rotineiramente, inclusive em revistas especializadas,
sustentando argumentos contra o Direito Alternativo.
571
Inobstante não ser membro inscrito na T.F.P., o promotor de justiça catarinense Gilberto Callado de Oliveira defende
seus postulados e com esta base ideológica escreveu o livro A Verdadeira Face do Direito Alternativo, Curitiba, Juruá
Editora, 1995, 130 p., o único publicado especificamente para combater o movimento alternativo. Para ele, todo o
ordenamento jurídico está subordinado a um ordenamento natural, ditado pelo criador. Na metafísica divina, encontra-se o
justo natural, onde “a cada um é devido o que lhe pertence.” Como Deus não fala, arvora a si e aos ideologicamente
identificados o direito de dizer o significado do justo natural. Nessas condições, afirma estarem de acordo com a vontade
de deus as diferenças entre os homens, não havendo, portanto, luta entre classes. A nobreza e a miséria são, simplesmente,
coisas sagradas e naturais. Com uma visão maniqueísta, vê no mundo uma eterna liça do bem contra o mal, um processo
revolucionário global contra a justa ordem divina, sendo parte de uma mesma revolução a pseudo-Reforma, a Revolução
Francesa e o Comunismo prega a morte do Direito Alternativo e defende a sociedade feudal e aristocrática, representativa
de um hierarquia sacral e natural. Sua proposta política para a sociedade é um retorno ao modelo monárquico, geral e
harmonioso, segundo a doutrina da igreja, existente na idade média, localizável nos séculos XII a XIV. Como se vê, não
há necessidade de combater estas idéias, apenas marcar as diferenças, pois o que para ele é pressuposto (justo natural)
para os alternativos é engodo ideológico. Lembre-se, tão-só, das palavras do italiano Settembrini, in A Montanha Mágica
de Thomas Mann: “Pois sim, o regime! Os princípios sagrados, intangíveis do regime! Com efeito, o senhor fala deles no
tom que convém; o tom de disciplina e submissão. Há apenas uma coisa surpreendente, embora num sentido
perfeitamente favorável; é que, entre esses princípios, gozam de respeito ilimitado justamente aqueles que coincidem com
os interesses financeiros dos potentados, ao passo que se faz vista grossa diante da violação de outros princípios menos
dispendiosos...” MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. de Herbert Caro. 7ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova
Fronteira, 1980, p. 110-111. (Coleção grandes romances).
572
Fala-se em quase todas porque é impossível concordar com a paranóica e ultrapassada concepção de serem comunistas,
representantes de mefistófeles, todos os opositores da ideologia defendida por estes juristas de extrema direita.
Naqueles juristas extremados, que vêem no povo o excremento, há de ser elogiada, contudo,
a honestidade: dizem claramente seu pensamento e a serviço de quem estão, marcando bem as
diferenças, o que já não se percebe no discurso de muitos outros juristas, pronunciado em nome da
liberdade, da igualdade e da democracia, mas contrário a suas práticas mantenedoras de privilégios
materiais, tolhedoras de liberdades até formais e defensoras de um sistema antidemocrático em
todas as suas conseqüências.
Contudo, as críticas mais contundentes estão sendo efetuadas pelos juristas tradicionais,
representantes da cultura jurídica hegemônica ou do Direito Científico. Para eles, o Direito
Alternativo é inaceitável, porque não possui um método, uma teoria e coloca em risco o Estado de
Direito e a própria democracia. São críticas muito fortes. Especialmente duras foram as efetuadas
no curso Seguridad Jurídica y Crítica del Derecho en Iberoamérica, na Universidade Internacional
de Andaluzia, na Sede Ibero-americana Santa Maria de la Rabida, Huelva, Andaluzia, Espanha, no
ano de 1994.
O impacto sobre os membros do movimento alternativo tem sido muito grande, ao ponto de
se dizer que o Direito Alternativo é uma atividade prática, sedenta por uma teoria. Para resolver
esse problema, muitos teóricos alternativos lançaram-se em estudos para desenvolver um método ou
uma teoria alternativa, capaz de responder às acusações e de fundamentar, teoricamente, o
movimento. Todos os esforças até o momento realizados partem da concepção de crise do
paradigma liberal legal e do próprio Direito dentro de uma sociedade capitalista.
4) As teorias mais importantes surgidas até o momento são: os princípios gerais do Direito
como limite ao julgador, defendida por Amílton Bueno de Carvalho; o novo paradigma jurídico
com base nos novos movimentos sociais, elaborada por Antônio Carlos Wolkmer; e a proposta de
Edmundo Lima de Arruda Júnior, no sentido de ser o marxismo o referencial teórico, a fonte
primária do movimento, sem se confundirem. Estas destacam-se e merecem uma análise
particularizada. Outras existem, como a postura garantista, defendida pelos juristas identificados
com o movimento espanhol Jueces para la Democracia.
O autor, como membro ativo do movimento e amigo pessoal dos juristas acima citados,
poderia cingir-se a apontar as coincidências entre os pensamentos de todos. No entanto,
pretendendo contribuir com o desenvolvimento do Direito Alternativo, e nisto exercitando
democracia, buscará, exatamente, os poucos pontos de discordância, a fim de tentar construir um
degrau a mais na sua consolidação.
Da polemização de aspectos pontuais, chegar-se-á a uma crítica geral à idéia de construção
de uma teoria jurídica alternativa fetichizada (ao fim e ao cabo erigida sob os dogmas criticados)
que, como todas as outras, necessita ser prévia, universal, coerente, eterna, prescritora de normas
(até mesmo morais) a serem seguidas e reguladora de uma prática, mesmo vista ou elaborada sob
uma concepção dialética.
O primeiro tema a ser revisto é a tão propalada crise do Direito e/ou do paradigma liberal
legal, o que se faz necessário para alertar contra o excesso de entusiasmo demonstrado por muitos
alternativistas, todos convictos de uma profunda crise do Direito burguês, ao ponto de permitir a
crença em seu breve fim. Não se duvida da ineficiência desse ordenamento jurídico para resolver a
atual demanda por justiça social e, muito menos, de sua ineficácia para resolver os problemas da
população. Os dados socioeconômicos mencionados no capítulo I não permitem dúvidas. Nessa
desserventia não se pode, entretanto, ler uma profunda crise geral do Direito. Também é verdade
possuir toda a burocracia judiciária graves problemas de legitimação (73% dos brasileiros não
confia na Justiça, 82% não acreditam na igualdade jurídica, e, respectivamente, 61% e 80% acham
que na prática de um mesmo crime serão tratados, pelo Poder Judiciário, de forma mais rigorosa, os
negros em relação aos brancos e os pobres em relação aos ricos573). É, ademais, um fato

573
Dados coletados por pesquisa realizada por Vox Populi. Só 26% dos brasileiros confiam nos Tribunais e juízes. Ver:
POPULAÇÃO não confia na justiça. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 abr. 1995, p. 6 e MAIORIA acha igualdade um
mito. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 abr. 1995, p. 7.
insofismável, estar perdendo o Poder Judiciário o monopólio da função mediadora. As classes ricas
estão optando pela autonegociação, bem como fazendo acertos com os grandes sindicatos, e as
classes pobres, cada vez mais, estão submetidas à lei do mais forte. Quem pode desconhecer a
impotência reguladora, pacificadora e resolutiva de um sistema jurídico privatista, elaborado sob a
idéia de livre contrato entre partes iguais, para lidar com os conflitos existentes em um país gerido
pelas regras do capitalismo monopolista? Mesmo aos juristas defensores da estrutura jurídica
estabelecida fica difícil negar que o Direito Positivo não protege os interesses dos grupos
minoritários excluídos. Entretanto, o fato de o Direito burguês não agir em conformidade com os
desejos dos juristas alternativos, não praticando justiça social, não significa “uma profunda crise” e,
muito menos, que esteja moribundo, perto de seus últimos dias. Ao contrário, ele está, sólido,
cumprindo sua função.
“A estas alturas es necesario preguntarnos si el proceso que hemos definido, de forma
sintética, como deterioro de la función del Derecho no tiene una explicación diversa. ¿No
es, quizá, la pérdida de significado del Derecho un fenómeno que corresponde a una
exigencia funcional del sistema en sí mismo considerado? y, en particular, el esquema de
desarrollo social ¿no exige, tal vez por la misma lógica que lo guía, que el Derecho (de
todos) se limite a rozar los «márgenes» de la zona en que se ejercita el poder (económico)
del propietario y del empresario?
Si se acepta como buena la hipótesis de que el modelo de desarrollo actual es el del
desarrollo tecnocrático; se fuese cierta esta hipótesis, el sometimiento a los tribunales de
justicia de todos los intereses excluidos, la posibilidad de un control judicial sobre las
opciones económicas del empresario, constituiría sin lugar a dudas un gran obstáculo, una
considerable rémora, ya que introduciría un elemento de imprevisibilidad, al mismo
tiempo que de retraso, en la realización de las políticas empresariales. Mientras los
juristas, ante la crisis de la mediación jurídica, buscan explicaciones en términos de escasa
«eficiencia» de la máquina de la administración de justicia, por el contrario,
probablemente nos encontremos frente a un fenómeno absolutamente congruente con la
lógica de desarrollo del sistema.”574
O sistema capitalista, a ideologia liberal e seu discurso jurídico sempre enfrentaram
problemas de legitimação, por praticar a exclusão e o privilégio, entre outras coisas. Mas é
absolutamente certo ter tido, até o atual momento histórico, plena capacidade de reciclagem, de
superar os problemas e continuar hegemônico no comando da quase totalidade dos países “que
contam”. No profundo trabalho de Alan Wolfe575, pode-se encontrar uma excelente análise do
sistema capitalista, de suas crises e seus auges, de como trocou, várias vezes, seu discurso, para
manter sua legitimação. Como o autor deixa bem claro já na primeira página do prefácio de sua
obra, nos últimos dois séculos, muita coisa mudou no capitalismo para manter constante o domínio
da burguesia, sua propriedade privada, seu direito de obter lucros e de acumular capital. Relembre-
se a conhecida frase de Tancredi, personagem de Tomasi Di Lampedusa, em O Leopardo: “Se
queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude.”576
“A pesar de una cierta tendencia de los escritores a percibir cualquier matiz novedosa
como un cambio revolucionario, hay en la actividad política, dos cosas, por lo menos, que
se han mantenido bastante constantes en los últimos doscientos años, especialmente en los
574
BARCELLONA, Pietro, HART, Dieter & MÜCKENBERGER, Ulrich. La formación del jurista: capitalismo
monopolístico y cultura jurídica. Trad. de Carlos Lasarte. 3ª Edição, reimpressão. Madrid, Civitas, 1993, p. 27-28
(Cuadernos cívitas).
575
WOLFE, Alan. Los límites de la legitimidad : contradicciones políticas del capitalismo contemporáneo. Trad. de
Teresita Eugenia Carbó Pérez. 2ª Edição. México. Siglo Veintiuno, 1987, 401 p. (sociología y política).
576
LAMPEDUSA, Tomasi Di. O leopardo. Trad. de Rui Cabeçadas. 1ª Edição. São Paulo, Abril Cultural, 1974, p. 42.
(Classicos modernos).
Estados Unidos y en Europa occidental. Una de ellas es algo que por lo general se ha
producido dentro de un sistema económico que fomenta la propiedad privada, que se
orienta hacia la obtención de ganancias y que sigue la lógica de la acumulación, y que por
consiguiente, crea divisiones entre ricos y pobres, poderosos y desprotegidos. Antes de
que la palabra se volviera oprobiosa, ese tipo de sistema solía llamarse capitalismo, una
buena palabra descriptiva que seguiré usando. Al hacer tal cosa, solamente me propongo
discutir un concepto que alguna vez fuera orgullosamente defendido por un sistema que ya
no se atreve a definirse así. Esto que llamamos capitalismo ha cambiado de tiempo en
tiempo (...), pero la existencia de una clase que pide ayuda al sistema político para la
acumulación de capital ha sido una constante desde fines del siglo XVIII. La segunda es
que durante la mayor parte del tiempo han existido en los países capitalistas diversas
expectativas sobre cómo debería organizarse la vida política. Una palabra que describe
esas expectativas es la de democracia y en tanto que sus modificaciones pueden haber
cambiado (agraria, industrial, liberal, de masas, social), como en el caso del capitalismo,
el término mismo está todavía en uso. Es posible que la política parezca estar en cambio
constante, pero la persistencia de los parámetros dentro de los cuales se producen los
cambios es igualmente impresionante.”577
Portanto, acreditar num fim próximo do sistema capitalista e da ideologia liberal, como
resultado de sua profunda crise, isto num momento histórico em que a tecnologia avançada, em
particular a dos meios de comunicação (manipulação) de massas e a da informática determinam as
ilusões e desejos das gentes, não só vai contra as evidências históricas e contra os fatos, inclusive no
mundo jurídico (o Poder Judiciário está se reciclando, construindo novos fóruns e tribunais578,
informatizando-se, pondo em prática juizados rápidos, modernizando-se, para enfrentar, a seu
modo, as novas demandas), como pode constituir-se numa grande ingenuidade, capaz de alimentar,
ainda mais, seu prolongamento. O capitalismo consegue recompor-se e reforçar-se nessas crises.
Aqueles que não concordam com esse sistema e essa ideologia como formas de regular a
vida em sociedade devem pensar em termos mais amplos, para superá-los. Não se trata de
catastrofismo, mas de encarar a realidade como ela tem sido, sem falsos entusiasmos. Portanto, há
de se ver com muita cautela a tão propalada e muito esperada crise do paradigma liberal legal.
Conforme já demonstrado no capítulo II, Amílton Bueno de Carvalho desenvolve seu
raciocínio sobre os Princípios Gerais do Direito, incluídos os Direitos Humanos, como limite ao
julgador. Afirma: “E estes princípios são tidos como históricos, construídos pela sociedade civil na
sua caminhada em busca da utopia vida em abundância para todos. Estes princípios servem de norte
interpretativo de todo o fenômeno jurídico e dão conteúdo racional ao ato decisório.” É notável o
esforço de Amílton para conseguir uma teoria capaz de justificar atitudes que colaborem para
resolver os problemas das classes oprimidas. Entretanto, em termos de teoria jurídica, sua proposta
encontra os mesmos problemas epistemológicos e metodológicos das demais teorias 579. O primeiro
deles situa-se já na própria conceituação de Princípios Gerais do Direito. Afinal, o que isto
significa? A própria teoria jurídica acusada de dominante e opressora possui seus princípios gerais

577
Ibid., p. 9.
578
Alguns até com exagero, como a construção do edifício do Superior Tribunal de Justiça, na Capital Federal do Brasil,
orçado, inicialmente, em 210 milhões de dólares, tendo o S.T.J., em outubro de 1993, requerido uma suplementação de
700 mil dólares. Segundo a revista Veja, este dinheiro era suficiente para construir quarenta conjuntos habitacionais, com
quinhentas casas populares cada um, ou seja, um total de 20 mil casas. A reportagem termina com uma denúncia: “Noutro
constrangimento, um dos quatro responsáveis pela fiscalização da obra chama-se Joaquim Gaião, coincidentemente filho
do ministro Antônio Torreão Braz, presidente do STJ até o início deste ano. 'Não há problema nisso, já que é uma pessoa
competente, de confiança e concursada', afirma Costa Leite. De confiança, certamente.” PAUL, Gustavo. A justiça é luxo
só. Veja. São Paulo, v. 26, nº 46, nov. 1993, p. 44-45.
579
As críticas de Pietro Barcellona, transcritas no capítulo anterior, já são suficientes para demonstrar a fragilidade deste
tipo de teoria.
e, certamente, Amílton não fala deles. Afirmar serem os princípios históricos construídos pela
sociedade civil também não diz muita coisa. A história da humanidade, e nela estão incluídos os
Princípios Gerais do Direito, não é traçada pela sociedade civil. Esta, além de manipulada,
dominada e explorada, vem dando razão, historicamente, às palavras de Etienne de La Boétie, que
há mais de quatrocentos anos, afirmou: “Son, pues, los propios pueblos los que se dejan, o, mejor
dicho, se hacen encadenar, ya que con sólo dejar de servir, romperían sus cadenas. Es el pueblo el
que se somete y se degüella a sí mismo; el que, teniendo la posibilidad de elegir entre ser siervo o
libre, rechaza la libertad y elige el yugo; el que consiente su mal, o, peor aún, lo persigue.”580
Os modernos meios de controle social não param na manipulação e na alienação. Hoje
chega-se à planificação das vontades das gentes, restando modeladas as suas estruturas de
compreensão do mundo, para que coincidam com as possibilidades postas à disposição. Criar
crenças é um dos meios eficazes para isto. “Un caso particularmente importante de sistemas de
creencias ideológicas es la tendencia de las clases oprimidas y explotadas en una sociedad a creer en
la justicia o al menos en la necesidad del orden social que las oprime. Esta creencia puede deberse
en gran medida a la distorsión, es decir, a mecanismos tales como la racionalización. Pero también
hay un elemento de ilusión, un prejuicio que proviene de fuentes puramente cognoscitivas.”581 Isso
pode ajudar a tornar a vida, a curto prazo, mais agradável, mas não é uma prática a serviço dessas
classes. O Direito Alternativo não pode atuar para criar novas crenças ilusórias. Ao contrário, deve
manter uma desagradável atitude realista. Portanto, associar Princípios Gerais do Direito (uma
construção jurídica) a conquistas populares torna-se bastante problemático.
Mesmo não aceitando todos os argumentos acima mencionados e admitindo a autonomia e
autodeterminação da sociedade civil, resta um outro problema: quem vai decidir quais os princípios
criados por ela? Isso sempre foi tarefa dos dominantes. Até mesmo os Direitos Humanos, conquista
tão importante e pela qual se deve lutar, para ver-se sua aplicação efetiva, além de ser uma
declaração patrocinada pela Organização das Nações Unidas, um órgão multinacional bem distante
do povo, são manipulados e usados para a dominação e, quando exigidos na prática, acabam
ocasionando matanças e massacres da sociedade civil.
“Las ideas no son realidades autónomas, no son sujetos sino predicados, son ilusiones
engendradas por una realidad hostil, son racionalizaciones (en sentido freudiano) que
ocultan una situación social de dominio. Cuando Marx critica a los derechos humanos lo
hace en tanto que discurso de imposible ejecución en la práctica que propugna. Para él, un
discurso que incluyera referencias a los derechos humanos y que nunca pudiera ser
realizado en (o verificado por) la práctica, podría tacharse de irracional o ideológico.”582
Ademais, os Direitos Fundamentais não são só direitos subjetivos das pessoas, mas,
principalmente, uma forma de controle do poder. Nessa condição também estão submetidos a um
grande paradoxo, qual seja: “se presentan como figuras que limitan la actuación del poder, pero es
este poder el encargado de proteger a esos derechos. Así, parece que es el mismo poder el que
puede afectar a los derechos fundamentales y el que protege contra esa posible actuación. En
definitiva, el poder protege contra su misma actividad.”583 O Direito como um todo, aí incluídos os
Direitos Fundamentais, os Direitos Humanos, os Princípios Gerais do Direito e o Sistema
Normativo, não pode ser estudado, interpretado e/ou aplicado senão como produção de poder,
580
LA BOÉTIE, Etienne de. El discurso de la servidumbre voluntaria : la boetie y la cuestión de lo político. Trad. de Toni
Vicens. Barcelona, Tusquets Editores, 1980, p. 57. (Acracia, v. 31).
581
ELSTER, Jon. Uvas amargas : sobre la subversión de la racionalidad. Trad. de Enrique Lynch. Barcelona, Península,
1988, p. 208-209 (Ideas, v. 4.).
582
EYMAR, Carlos. Karl marx, crítico de los derechos humanos. Madrid, Tecnos, 1987, p. 14. (Colección ventana
abierta).
583
ROIG, Rafael de Asís. Las paradojas de los derechos fundamentales como límites al poder. Madrid, Debate, 1992, p.
103.
mesmo sendo para fundamentar uma atividade jurídica, qualquer atividade jurídica que é, em
primeira e em última instância, uma atividade política. Aí está a razão pela qual o sistema
normativo ora protege, ora reprime um mesmo bem jurídico, como, por exemplo, a liberdade.
“Los postulados liberales en torno a 'la libertad' no son, pues, categorías jurídicas
inamovibles, abstractas o neutrales: responden a criterios políticos y varían según va
evolucionando la coyuntura. Los derechos resultantes de tales postulados toman la
estructura jurídica de derechos subjetivos (aquellos predicados de una persona que
consisten en posibilidades de acción ligadas a su voluntad) y cumplen las funciones que el
sistema jurídico del Estado liberal les otorga; en consecuencia, cuando las funciones que
puedan cumplir esos derechos individuales dependientes de la voluntad obstaculicen los
fines para los cuales han sido categorizados, entran en el campo de acción de la función
represora del Estado que prohibirá su ejercicio en el caso concreto; y si la formulación de
tal o cual derecho puede comportar un peligro para el orden estatal establecido, el
mandato general de no intervención estatal propio del liberalismo dejará de existir, para
dar paso a una acción preventiva o de prohibición general. El derecho, es decir, el
ordenamiento jurídico, cumple así una función preventiva o represora de los derechos, al
mismo tiempo que, cuando los derechos se acomodan a lo permitido por el sistema, gozan
de una garantía judicial que impedirá su violación por parte de los poderes públicos y lo
delimitará en su ejercicio para evitar la colisión con los derechos de los demás.”584
E resta evidente que qualquer arcabouço jurídico do qual se lance mão para alargar direitos,
por históricos, submetido às relações concretas de poder, não escapará dessas injunções. Não estará
intocável (neutro) acima delas.
Em termos de limite, qual a diferença, por exemplo, entre os Princípios Gerais do Direito e
das Leis? Se a sociedade civil, em seu desenvolvimento histórico, pode construir os primeiros,
também poderá elaborar as segundas. O problema reside no fato de os Princípios Gerais do Direito
serem uma abstração e, uma vez aceitos como valores absolutos e prévios, capazes de dar
racionalidade à decisão jurídica, não só impedem os cidadãos de tomarem consciência dos
condicionamentos de suas vidas, como reproduzem a ideologia jurídica dominante e seu sistema no
que diz respeito à neutralidade, à coerência, à universalidade e à autonomia da Ciência Jurídica.
Mesmo com muito boa vontade,
“se vuelve a caer, así, en uno de los característicos círculos viciosos de la argumentación
jurídica: se acepta un cierto valor (sostenido por un determinado sector normativo) como
privilegiado; sobre la base de este valor, se reconstruye el sistema a fin de descubrir su
unidad y coherencia, pues el sistema se representa como algo dotado de intrínseca unidad
y coherencia. Después, se confirma la elección realizada, o sea, la afirmación del carácter
preeminente del sector normativo y del criterio de valoración, a través de la remisión a la
unidad y coherencia del sistema, el cual ha sido reconstruido precisamente partiendo del
punto de vista elegido con anterioridad585.
Resolvidos, por hipótese, os problemas da elaboração dos Princípios Gerais do Direito,
outros surgiriam. Alguém há de interpretar tais princípios, para aplicá-los aos casos concretos. De
novo está-se diante de todas as dificuldades referentes à atividade do intérprete (ser ou não ser
neutro; praticar ou não praticar uma ação ideológica, etc). Em termos de teoria interpretativa, de
exegese, não há qualquer diferença na aplicação de uma lei, ou de um Princípio Geral do Direito ao
caso concreto. Ambos são valores prévios, transformados em normas, e podem ser aplicados

584
SANJUÁN, Teresa Freixes. Constitución y derechos fundamentales : I - estructura jurídica y función constitucional de
los derechos. Introducción al sistema de derechos de la constitución española de 1978. Barcelona, PPU, 1992, p. 23
(Colección Manuales, v. 5).
585
BARCELLONA, Pietro, HART, Dieter & MÜCKENBERGER, Ulrich. Op. cit. p. 35.
utilizando-se os mais variados tipos de raciocínio jurídico, como: formalista, técnico-legal,
dedutivo, crítico, etc.. Inclusive o velho e desgastado silogismo jurídico também é, perfeitamente,
aplicável aos Princípios Gerais do Direito. Estes são a premissa maior. O caso concreto é a premissa
menor. Chega-se a uma conclusão através do uso do método dedutivo. Como limite ao julgador,
trocar o sistema normativo vigente pelos Princípios Gerais do Direito significa manter valores
prévios, universais, apenas com um novo nome. Ou seja, não só se permanece no ciclo vicioso
mencionado, como não se resolve qualquer das dificuldades referentes à exegese jurídica.
Agregue-se ao dito até o momento outro fator de dificuldade, qual seja, a possível
existência de conflito entre dois princípios quando da aplicação ao caso concreto. Há a necessidade
de fazer uma hierarquia de princípios? Caso positivo, o que fazer quando o conflito for com dois
princípios hierarquicamente iguais? Como se vê, as dificuldades superam as soluções.
Ademais, há um outro aspecto não muito claro. O que significa vida em abundância para
todos? Trata-se de abundância para consumir, para ter dinheiro? Ou abundância de espírito para
entrar no reino dos céus? Vida em abundância está muito perto de significar felicidade para todos.
Este lema, não se pode esquecer, foi a bandeira principal do utilitarismo. “El único criterio
defendible racionalmente del bien social era la mayor felicidad del mayor número, en el cual se
definía la felicidad como la cantidad de placer individual una vez restado el dolor.”586 Dificilmente
um democrata contrariaria uma proposta política defensora de felicidade para o maior número de
cidadãos. Entretanto, os terríveis efeitos do utilitarismo para a sociedade civil são bem conhecidos e
não se justifica repeti-los neste estudo. Portanto, vida em abundância, em uma primeira leitura pode
significar tudo, mas vista no seio da ideologia, donde não pode sair, pode significar nada, ou pior,
pode representar mais uma forma de querer levar concepções subjetivas à prática de todos.
Assim, eleger como referência os Princípios Gerais do Direito, o Direito Natural, o
ordenamento normativo estatal, ou qualquer outra escala de valores, acaba sendo a repetição de
velhas práticas, ou seja, a escolha ideológica de um discurso simbólico, tido como correto,
previamente, e com capacidade de justificar todo o sistema, mas, na realidade, esses valores não
passam de formulas vazias, passíveis de serem manipuladas e de manipularem a opinião pública,
cumprindo a função de legitimar determinado poder instituído. Trata-se de um equívoco que o
Direito Alternativo não pode cometer ou, pelo menos, deve estar atento para todas estas
implicações.
As ponderações até o momento feitas em relação às posições de Amílton podem ser
repetidas no tocante às idéias de Antônio Carlos Wolkmer, pensador, como já visto, contrário ao
monismo jurídico e defensor de um Direito Comunitário, com várias fontes de produção normativa,
capaz de efetivar justiça social, entendida como igualdade de oportunidades e condições de vida.
Sua teoria possui como base o pluralismo jurídico e os novos movimentos sociais enquanto sujeitos
coletivos capazes de produzir Direito. Este Direito, por ter origem na população organizada, é
entendido como mais justo e legítimo em relação ao Direito Estatal, motivo pelo qual serve de base
para o novo paradigma jurídico.
Afirma não haver uma delimitação apriorística do justo. O critério para apontá-lo será o da
comunidade diretamente interessada. Entretanto, logo em seguida, esse brilhante intelectual,
redundando amarrações praticadas pelas classes dominantes, pretende ditar àquelas comunidades
interessadas os limites norteadores do que seria, ou não, o justo. Estabelece só haver o critério justo
se estiverem presentes os princípios de eticidade, de respeito à vida humana e do próprio valor
justo, sem o que não haveria Justiça. Ora, é de se perguntar: a partir de quais valores se estipularia o
ético? O que se definiria como o respeito à vida humana? E, o mais importante, quem poderia deter
a unidade valorativa do critério justo, para saber-se se há Justiça?

586
MACPHERSON, C. B.. La democracia liberal y su epoca. Trad. de Fernando Santos Fontela. 1ª Edição, 2ª
reimpressão. Madrid, Alianza, 1991, p. 37. (Sección humanidades, v. 870).
Além disso, essa sociedade libertária, a qual construiria seu próprio Direito, é apontada
como sendo aquelas “coletividades submetidas às relações de dominação.”587 Lamentavelmente,
pessoas ou comunidades levadas a essas condições, têm seu imaginário preenchido pelos
argumentos de quem as domina e não agem com autonomia outra a não ser aquela que os interesses
dos dominantes fazem acreditar seja autodeterminação.
“Ser coerente, para o povo manipulado, é preservar o que existe. No estado de coisas
vigente, ele vê refletidos seus valores, ele lê a sua história. Então será isso mesmo que ele
quererá preservar. (...) Resta nas conseqüências de tal forma de existir que o injusto não
vem de ser, para o explorado, o sistema explorador, mais é, sim, a sua posição dentro dele.
Como acordar, dizer ao manipulado que o que ele sabe do mundo, de si mesmo, é um
equívoco? Qualquer formulação será a partir dos dados que tem recebido da própria
leitura que faz dos fatos e são produzidos e vividos na sua experiência cotidiana concreta -
que lhe parecem não apenas reais, mas os únicos possíveis - e configurar-se-á aos moldes
e padrões ideológicos cristalizados em seu imaginário e com os quais lê o mundo. Aí está
a sua realidade, este círculo vicioso é a informação da sua verdade. (...) E, isto posto, que
caminho resta à humanidade, 'como podem as pessoas que tenham sido objeto de
dominação eficaz e produtiva criar elas própria as condições de liberdade?' Tem-se, ainda,
que levar em conta que a própria aspiração de liberdade pode servir, se bem apropriada
por quem domina, para mais e melhor dominar.”588
Wolkmer também cria novos valores (o Direito surgido do povo), tidos como bons,
universais, coerentes, etc. Seus propósitos são os melhores, mas, também, volta a cair no ciclo
vicioso acima mencionado.
Além disso, existem outros problemas da mesma forma importantes. O primeiro está em
considerar todo sistema normativo produzido dentro do pluralismo e oriundo dos novos
movimentos sociais como bons e justos, respeitados os critérios já apontados. Como adverte
Agostinho Ramalho Neto, trata-se de uma confusão entre necessidades e desejos (no sentido
freudiano). Ora, afirmar ser bom e justo, ainda que com delimitações, só porque possui origem no
povo é afirmar a partir de concepções subjetivas, abstratas e voluntaristas. Wolkmer desconsidera e
dá por inexistente a possibilidade de corrupção, de ganância, de avareza ou, de forma geral, de
relações de poder dentro dos nos novos movimentos sociais, sem falar nas pulsões (ainda Freud.).
Também dá por certa a boa intenção coletiva desses movimentos, no sentido de construir uma nova
sociedade, descartando a possibilidade de agirem com intenção individual, de resolverem seus
próprios problemas e nada mais. Entretanto, até mesmo o movimento dos sem-terra, o mais
significativo entre todos, muitas vezes demonstra o contrário. Antigos posseiros, quando
transformados em proprietários, portanto sujeitos dentro da ordem jurídica estatal, passam a ser os
mais ferrenhos defensores da propriedade privada. A história da humanidade sempre foi construída
sob violência e isso não surgiu com o advento do capitalismo. Da mesma forma, o uso da violência
não é privilégio dos dominadores. Não há nada, nenhuma evidência real, ressalvados os discursos
ideológicos, capaz de avalizar a bondade humana. Não se defende o Leviatã hobbesiano, mas fica
difícil aquiescer com a idéia da pureza do homem, defendida por Rousseau.

René Girard589 efetuou um profundo estudo sobre o assunto, e suas conclusões dificultam os
argumentos em favor da bondade humana. Em seu entendimento, o ser humano é portador de uma
violência intestinal, e a sociedade busca desviar essa violência para uma vítima expiatória,

587
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico : fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo, Editora
Alfa-Omega, 1994, p. 305.
588
ANDRADE, Léo Rosa de. Liberdade privada e ideologia. São Paulo, Editora Acadêmica, 1993, p. 32, 33 e 76.
589
GIRARD, René. A violência e o sagrado. Trad. de Martha Conceição Gambini. São Paulo, Paz e Terra - Unesp, 1990,
391 p.
sacrificável. Um ato de violência gera um processo de vingança infinito, quedando a própria
existência da sociedade em perigo. Esse processo de vingança interminável, segundo Girard, pode
ser contido por 1) meios preventivos ou desvios sacrificiais; 2) regulações ou entraves à vingança,
como composições, duelos justiceiros, etc. e 3) intermediação do sistema judiciário. “É o judiciário
que afasta a ameaça da vingança. Ele não a suprime, mas limita-a efetivamente a uma represália
única, cujo exercício é confiado a uma autoridade soberana e especializada em seu domínio. As
decisões da autoridade judiciária afirmam-se sempre como a última palavra da vingança.”590
Contrário a Wolkmer, que acredita na possibilidade de um Direito comunitário formulado e
legitimado na apodíctica bondade humana, o escritor francês apresenta argumentos mais plausíveis,
capazes de, no mínimo, pôr sob grandes dúvidas essa crença.
“O mundo ocidental e moderno escapou até agora das formas mais imediatamente
restritivas da violência essencial, ou seja, da violência que pode aniquilá-lo
completamente. Este privilégio não tem nada a ver com uma dessas 'superações' que
apetecem aos filósofos idealistas, pois o pensamento moderno não reconhece nem sua
natureza nem sua razão. Ele ignora até mesmo sua existência; situa sempre a origem da
sociedade em um 'contrato social', explícito ou implícito, enraizado na 'razão', no 'bom
senso', na 'benevolência mútua', no 'interesse bem compreendido', etc. Este pensamento é
portanto incapaz de identificar a essência do religioso e de atribuir-lhe uma função real.
Esta incapacidade é de ordem mítica. Prolonga a incapacidade religiosa, ou seja, o
escamoteamento da violência humana, o desconhecimento da ameaça que esta faz pesar
sobre qualquer sociedade humana.”591
Por ser uma teoria, pode-se discordar dela, construindo-se muitos outros argumentos em
contrário, procurando demonstrar a benevolência do ser humano. Difícil, entretanto, é desconstituir
as evidência históricas, os dados que demonstram a consumação dessa violência.
“ La historia reciente muestra que la mayoría de los conflictos bélicos de esta centuria han
acabado convirtiéndose en auténticas matanzas indiscriminadas. Las aproximadamente
207 guerras del siglo XX han provocado algo más de 78 millones de víctimas (más un sin
números de heridos, mutilados, etc.), seis veces más, por cierto, que las guerras del siglo
XIX. De esa cifra, aproximadamente 35 millones han sido víctimas civiles, es decir casi la
mitad, según un cálculo ciertamente conservador. Además, el número de civiles muertos
en el transcurso de las guerras se ha incrementado desde el final de la segunda guerra
mundial. [Sem falar na violência praticada pelos soldados, como roubos, estupros, etc.]
(...) Entre los civiles se encuentran obviamente los niños. Según un informe de UNICEF
de 1992, más de un millón y medio de niños han muerto a consecuencia de las guerras
ocurridas solamente en la década de los ochenta; más de cuatro millones han quedado
físicamente incapacitados (con miembros amputados, lesiones cerebrales, pérdidas de la
visión o del oído); asimismo, cinco millones de niños viven en campamentos de
refugiados y otros doce millones han perdido sus hogares a causa de la guerra. Y, según el
citado informe, se calcula que existen actualidad unos diez millones de niños en todo el
mundo afectados por traumas psicológicos directamente provocados por acciones
bélicas.”592
Some-se a isto as milhares de mortes por fome, enfermidades de fácil cura, violência rural e
urbana e se chegará a cifras astronômicas, incompatíveis com qualquer idéia de bondade. E não se

590
Ibid., p. 29.
591
Ibid., p. 315-316.
592
GORDILLO, José Luis. La objeción de conciencia : ejército, individuo y responsabilidad moral. 2ª Edição. Barcelona,
Paidós, 1993, p. 172-173. (Estado y sociedad, v. 19.).
diga ser toda essa violência de responsabilidade exclusiva dos Estados, dos governos ou do
capitalismo, sem a participação do povo. Basta lembrar-se das guerras religiosos e étnicas.
Já dentro do campo do Direito, outras dificuldades surgem. O pluralismo jurídico, em si,
não é algo bom ou ruim. Tudo depende do contexto onde é praticado e das intenções dos
aplicadores. Há o Direito da máfia, de outras organizações criminosas, racistas, etc. Vendo este
problema, Wolkmer tenta resolvê-lo, alegando: “A ausência de respeito à vida humana, de eticidade
e do valor 'justo' esvazia a validade desses 'direitos' ou dessas práticas irracionais de 'Justiça'.
Portanto, a legitimidade dos direitos produzidos pelos agentes coletivos emergentes depende
intimamente do 'justo', do 'ético' e do respeito à vida humana.” (argumento já rebatido.). Esse ponto
talvez seja o de maior dificuldade para os defensores do pluralismo jurídico, pois até o momento
não conseguiram, de forma convincente, diferenciar teoricamente o conceito do jurídico e do não-
jurídico nas relações extras-estatais.
Complementa argüindo a necessidade de busca do bem comum, também sem defini-lo.
Quando tenta fechar sua teoria, Wolkmer depara-se com o equívoco que se tem feito presente: fixar
pressupostos. Para solucionar a questão, socorre-se das mesmas categorias e conceitos pertencentes
ao sistema jurídico dominante e criticado. Ora, bem comum é um conceito demasiado estudado pela
teoria crítica do Direito e já está mais do que demonstrado ser uma, das tantas, fórmulas vazias do
discurso jurídico. Trata-se de uma expressão que não diz nada, pois tem vários sentidos, ou nenhum
sentido, ou o sentido que interessa às classes dominantes.
Por conseguinte, “si se quiere continuar hablando de efectiva vigencia de la relación entre
Derecho y sociedad, es necesario aclarar previamente de qué forma son utilizadas estas fórmulas
vacías y absolutamente privadas de contenido normativo (como bien común, útil, social, etc.): son
utilizadas para tutelar los intereses ya realizados y no para promover la protección de los intereses
de la emancipación.”593
Muitas são as dificuldades a impedir, no momento, a aceitação dessa teoria como um
sistema discursivo capaz de sustentar o movimento do Direito Alternativo, sendo necessário um
amadurecimento e um aprofundamento de muitas questões ainda não elucidadas devidamente.
Por derradeiro chega-se à proposta de Edmundo Lima de Arruda Jr., de colocar o marxismo
como fonte primária, não única, do Direito Alternativo. Por suposto, não se pretende efetuar uma
crítica ao marxismo, mas mencionar alguns problemas que surgem com essa proposta. Não há
motivos para amarrar o movimento ao marxismo, como a qualquer outro corpo teórico. Aderir a
uma doutrina é dogmatizar um movimento prático, é criar uma nova religião. Absorver do
marxismo seu método de análise da sociedade e suas críticas ao capitalismo, por ilustração, admite-
se como possível, pois permite demonstrar que existe um sistema que só sobrevive a partir de uma
lógica de exploração. Mas, servir de suporte teórico para fundamentar uma denúncia, não implica
servir de delimitação teórica para o agir do jurista, mormente do juiz, o que nega qualquer
necessidade de eleger o marxismo como fonte primária do Direito Alternativo. Vincular o
movimento a uma determinada doutrina é limitá-lo aos seus adeptos. Ora, entre os membros do
Direito Alternativo não falta quem creia que ser materialista, negando a interferência divina na
história, é estar em pecado. Muitos lutam por maiores igualdades movidos por pressupostos lidos na
bíblia. Outros são espíritas e há os católicos/marxistas. Também existem os ateus.
Ou seja, não há uma ideologia justificando a opção pelo Direito Alternativo. Há alegações
no sentido de o socialismo ser o veículo de todos. Desde logo, surge a questão: um socialismo
construído, considerando ser a história produto de relações materiais de poder e o ser humano seu
agente, ou um outro que aceite um messias como reitor da história? São incompatíveis. Não, não há
uma ideologia que ofereça trânsito para todos. Há um objetivo comum, ao qual aderem os
descontentes com a ordem estabelecida. Essa adesão é justificada pelas mais diversas formas de ler
o mundo. Algumas bem confusas, outras sincréticas. Isto para não entrar nas teorias da
personalidade, que identificariam agires baseados em impulsos inconscientes, os mais variados.

593
BARCELLONA, Pietro, HART, Dieter & MÜCKENBERGER, Ulrich. Op. cit., p. 32.
Cai-se, novamente, no vício dos valores prévios necessários. Edmundo não chega a definir
o bom e o mau, ou seja, o que deve ser escolhido pelo jurista ou pelo julgador, mas acaba
estabelecendo pressupostos de onde partir, o que não deixa de ser uma forma de estabelecer
premissas comprometendo a conclusão. O marxismo não é uma “fonte imprescindível” para as
razões de sentenciar de um juiz religioso, quando julga lendo a norma a favor dos pobres apenas
porque acredita necessário “repartir o pão.” Concluindo, há independência, no sentido de
desvinculação ideológica recíproca entre os juristas e do conjunto deles com relação aos
referenciais teóricos de modos de ler o mundo, incluindo o marxismo.
Frente à argumentação desenvolvida até este momento, conclui-se não ter sido acertada a
resposta alcançada, na tentativa de construir uma teoria alternativa (com os mesmos pressupostos
das tradicionais) que respondesse às críticas anteriormente mencionadas. O equívoco parte da
origem, ou seja, acreditar na hipótese de o Direito possuir uma teoria perfeita, acabada, universal,
coerente, eterna, auto-suficiente, com capacidade de lhe dar caráter científico. Uma resposta
pertinente aos críticos que argumentam sobre a falta de cientificidade do alternativismo foi dada
pelo professor Ruan Jamón Capella, em entrevista ao autor, quando deixou bem claro ser esta
argumentação só um discurso, pois os mesmos também não possuem uma teoria apta para esse
propósito. Por certo os juristas hegemônicos possuem uma ideologia e um discurso, os quais dizem
ser uma teoria e um método. Na realidade, não passa de uma ilusão incapaz de dar a tão buscada
autonomia e cientificidade ao Direito, incapaz de conseguir a certeza e a garantia jurídica. De uma
forma ou outra, estas teorias criam mais ambigüidades do que certezas e terminam sendo
substituídas por outras inicialmente perfeitas, mas que muito cedo apresentam também suas
ambigüidades. Volve-se ao mesmo ponto.
Bom estudo sobre o tema, já mencionado, foi elaborado por Manuel Calvo García, em seu
livro Los Fundamentos del Método Jurídico: Una Revisión Crítica, onde remata: “El estudio
realizado permite concluir que la autonomía de lo jurídico y la neutralidad u objetividad en la
aplicación del derecho no han podido demostrarse fehacientemente, lo único que se entrevé con
claridad son sus fines ideológicos y políticos en orden a legitimar las decisiones de agentes técnicos
(funcionarios y jueces) que carecen de una legitimidad democrática plena.”594
O debate sobre a cientificidade do Direito cria, nas palavras de José Eduardo Faria, o
chamado “dilema hamletiano” (ser ou não ser). O jurista “cientista” separa a Ciência Jurídica da
Política e da Economia, atrela-se à técnica e ao formalismo do método e se distancia da realidade
social, criando a deslegitimação do Direito. “Al reducirse el derecho a técnica de tratamiento igual,
homólogo y homologador, queda ya sellado su destino de instrumento del «poder invisible», que se
organiza aparentemente en la esfera separada de la política y de la economía.” 595 O jurista social
busca justiça distributiva, interferir nas relações de poder, perdendo autonomia dentro dos conceitos
científicos fetichizados, mas aproximando-se da sociedade. Pietro Barcellona arremata o assunto
com perfeição ao afirmar: “El jurista parece, pues, prisionero de un dilema: si reconoce la
compenetración entre Derecho y Política, entre Derecho y Ética, se ve constreñido a negar el
carácter científico y la autonomía de la propia disciplina; si subraya la autonomía de la ciencia
jurídica debe permanecer con los ojos vendados frente a los procesos reales. El precio de la
comprensión es la confusión y el miedo a lo desconocido; el precio de la autonomía es la
ceguera.”596

O Direito, no entender do autor, é um fenômeno de poder e, como tal, não possui um


método perfeito, uma teoria neutra e não é uma ciência autônoma, no sentido de uma desvinculação

594
CALVO GARCÍA, Manuel. Los fundamentos del método jurídico : una revisión crítica. Madrid, Editorial Tecnos,
1994, p. 249.
595
BARCELONA, Pietro. Postmodernidad y comunidad : el regreso de la vinculación social. Op. cit., p. 49.
596
BARCELONA, Pietro, HART, Dieter & MÜCKENBERGER, Ulrich. Op. cit., p. 45-46.
das relações sociais. O Direito, as normas jurídicas são importantes para a vida em sociedade, mas
não podem ser encaradas de forma mística ou mítica. O Direito há de ser visto como realmente é:
regras de conduta coercitivas oriundas do jogo de poder na sociedade, ou um fenômeno de exercício
de poder de maneira normativa. É constituído por normas, por textos prescritivos, mas, também, por
um discurso, praticado pelo juiz, pelo promotor, pelo advogado, pelo professor, enfim, por todos os
juristas, com o objetivo de convencer ser certa e justa a distribuição de poder na sociedade. Isto é
ideologia. Entretanto, seu funcionamento pode ser regido por uma teoria aberta, sem prescrições
morais prévias, sem intenções de universalidade e perenidade, relacionada com os fenômenos
históricos, sociológicos, filosóficos, políticos, econômicos e ideológicos, inserida na dialética
social. O Direito Alternativo não pode prescindir de uma teoria, mas deve afastar-se da fetichização
jurídica.
5) A inspiração do Direito Alternativo brasileiro foi o movimento italiano do uso
alternativo do Direito, seguido, posteriormente, pela organização espanhola Jueces para la
Democracia. Em termos de proposta teórica e política, o movimento italiano, bem ao contrário do
que se pensa dele no Brasil, era bastante revolucionário e pretendia uma substituição de bloco
histórico. Entretanto, no desenvolvimento histórico prático, esse movimento caracterizou-se mais
pela atividade hermenêutica crítica de alguns juízes, perdendo seu caráter inicial transformador.
Diante disso, Pietro Barcellona, Giuseppe Cotturri e outros juristas, ao perceberem a
impossibilidade de profundas mudanças sociais por essa via, ambandonaram o movimento. Após a
emergência italiana, o que sobrou do uso alternativo do Direito foi uma atitude garantista
(defendida por muitos juristas, destacando-se Luigi Ferrajoli), ou seja, garantir as conquistas
populares já normatizadas pelo ordenamento jurídico estatal, frente ao perigo de retrocesso. Essa foi
a postura seguida pelos juízes espanhóis.
No caso brasileiro, falar em garantismo jurídico é laborar no vazio, pois nossa legislação é
pródiga em listar direitos e avara quando se trata de efetivá-los, o que não afasta a necessidade de se
lutar pela manutenção de direitos já reconhecidos no aparelho legal do Estado. A situação
socioeconômica do país já ficou demonstrada, e qualquer jurista com um pouco de sensibilidade
necessita trabalhar para modificá-la. De nada serve organizar um movimento a fim de só garantir
leis que são criadas para não serem cumpridas. Portanto, a alternatividade brasileira vincula-se mais
à postura inicial do movimento italiano, ainda acreditando ser possível transformações nas relações
de poder na sociedade.
Se a história se repetirá e o movimento brasileiro também se cingirá à mera prática
interpretativa (mesmo criadora e crítica), ao ponto de fazer perder as esperanças em possíveis
câmbios sociais com a ajuda do mundo do Direito, ocasionando um afastamento dos juristas mais
descontentes com o estabelecido, é um fato impossível de ser previsto no atual momento histórico.
Luta-se para evitar essa possibilidade. Os magistrados brasileiros, protagonistas iniciais do
movimento, abdicaram dessa liderança, para não torná-lo um movimento de juízes, uniram-se aos
demais partícipes da esfera jurídica e buscam uma aproximação com os movimentos populares
organizados, percorrendo, então, um caminho não seguido pelos juristas italianos e espanhóis.
Pietro Barcellona possui razão quando afirma que é necessária a democratização da
produção normativa por ser fundamental à criação de uma democracia para além do formal. Da
mesma forma, uma prática conjunta, envolvendo juristas, trabalhadores e todas as demais áreas da
sociedade civil também é crucial nesta luta.
6) Há ainda uma questão pendente: Qual o limite ao julgador? Esta pergunta até a atual
fase do desenvolvimento do Direito não encontrou resposta. Todas as teorias desenvolvidas até o
momento com o desejo de respondê-la são conhecidas por suas falhas, ambigüidades e falácias.
Qualquer jurista com vida prática, freqüentador dos foruns e dos tribunais, sabe estarem as
pretensões das partes em juízo sujeitas às mais diversas susceptibilidades. O humor do juiz no dia
do julgamento, a troca de magistrado, o nervosismo das testemunhas, a classe social da parte, as
crenças do julgador e inúmeros outros fatores acabam com qualquer esperança de certeza e
segurança jurídica. Ressalte-se o desinteresse dos juízes em geral, quando não total
desconhecimento, em relação às teorias jurídicas. Acrescente-se a isto toda a problemática da
ideologia, da lingüística, da semiologia, da exegese, da ambigüidade e incongruência do sistema
normativo e confirma-se a incerteza e a dúvida jurídica.
Não há limites teóricos perfeitos, pois a lei (Direito Positivo) é sempre vista e aplicada
politicamente. Não se trata da constatação genérica de estar o Direito vinculado à Política, mas, sim,
aos objetivos políticos perseguidos pela sentença, ao se decidir um caso concreto. “La verdadera
fuente, la verdadera justificación del mandato jurídico y de la sentencia es, sin embargo, el objetivo
político perseguido, el poder efectivo entendido como poder de hecho.”597 A fonte alternativa do
Direito está localizada nessa esfera política e nela deve-se trabalhar, mas compromissado com a
sociedade, contra a miséria e a opressão. São, ainda, palavras subjetivas, mas podem servir de
começo para uma prática de transformação (que já existe) e para uma teoria jurídica aberta e
democrática.
É bastante conhecido o discurso jurídico hegemônico sobre a prática política da Ciência
Jurídica. Diz produzir o caos, a insegurança do mundo jurídico. Em outras palavras, faz-se política
em nome da apoliticidade. Entretanto, a própria Teoria Geral do Direito reconhece a soberania
popular como titular do poder, mesmo sendo um mito. Portanto, o juiz, originariamente, não está
vinculado ao parlamento ou ao Presidente da República, mas ao povo. Seu julgamento se legitima
por suportar-se nele, não no discurso oficial, pelo menos dentro da retórica jurídica. “Numa
democracia o poder constituinte originário não reside no Congresso, mas no povo. O poder
originário de gestão da coisa pública não reside no Presidente da República, mas no povo. Assim,
também o poder originário de julgar é do povo, o juiz exerce em seu nome. Mandante é o povo. Juiz
é mandatário. Quando os papéis se invertem, a democracia sofre.” 598 Assim, o juiz possui a
obrigação política de decidir buscando, não favorecer pessoas ou grupos, mas toda coletividade. Isto
não se pode objetivar, mas deve ser perseguido.
No terreno teórico, o ex-magistrado italiano Luigi Ferrajoli esclarece bem o tema, e suas
palavras merecem ser transcritas:
“En el plano teórico no son ya muchos los estudiosos dispuestos a sostener aún que el juez
es simple voz de la ley. Es tesis comúnmente aceptada entre los estudiosos de teoría de la
interpretación y de la argumentación jurídica que en cualquier ordenamiento, incluso en el
más perfecto y riguroso, el juez debe elegir siempre entre las diversas interpretaciones
técnicas que admite la mayor parte de las normas que están llamados a aplicar; y puesto
que tales opciones no pueden hacerse con criterios jurídicos dado que, en hipótesis, las
varias interpretaciones entre las que cabe elegir son todas jurídicamente posibles, es decir,
todas técnicamente correctas habrán de darse necesariamente sobre la base de criterios que
no son técnico-jurídicos, sino metajurídicos, de valor ético o ideológico o más
genéricamente político. (...) Cuando dos normas se contradicen no cabe ser fieles a una sin
ser infieles a la otra al mismo tiempo. La opción sobre la fidelidad a normas de matriz
histórica y contenido político opuesto es una opción política que no puede ser, y de hecho
no lo es nunca, eludida por el intérprete. (...) Todo esto no debe causar sorpresa. La razón
de tan obstinada resistencia de la mayoría de los jueces a una toma de conciencia tan
elemental como la del carácter ilusorio de su profesada apoliticidad no es ciertamente la
aversión intelectual frente a una adquisición teórica, sino el reflejo de una concreta
posición política. Ser apolíticos o declararse tales no significa en efecto estar fuera o por
encima de la política, sino aceptar pasivamente los valores políticos e ideológicos
dominantes, por cuya virtud el poder es siempre «apolítico», mientras «políticas» son sólo
las oposiciones.”599

597
Ibid., p. 33.
598
FALCÃO, Joaquim. O supremo e a mentira. Folha de São Paulo. São Paulo, 23 jun. 1995, Tendências/debates, p. 1-3.
Qualquer pessoa sabe serem as leis elaboradas obedecendo aos mais variados jogos de
conveniências. Conforme afirmou Ferdinando Lassale em 1862, uma Constituição é o resultado das
mais variadas forças de interesses e poder. O mesmo pode ser dito sobre todo o arcabouço jurídico
estatal. Esse jurista teve a capacidade de transmitir, em linguagem simples, o verdadeiro
significado, não só de Constituição, mas de toda norma estatalmente produzida.
“He ahí, pues, señores, lo que es, en esencia, la Constitución de un país: la suma de los
factores reales de poder que rigen en ese país.
Pero, ¿qué relación guarda esto con lo que vulgarmente se llama Constitución; es decir,
con la Constitución jurídica? No es difícil, señores, comprender la relación que ambos
conceptos guardan entre sí.
Se cogen esos factores reales de poder, se extienden en una hoja de papel, se les da
expresión escrita, y a partir de este momento, incorporados a un papel, ya no son simples
factores reales de poder, sino que se han erigido en derecho, en instituciones jurídicas, y
quien atente contra ellos atenta contra la ley, y es castigado.
Tampoco desconocen ustedes, señores, el procedimiento que se sigue para extender por
escrito esos factores reales de poder, convirtiéndolos así en factores jurídicos.

Claro está que no se escribe, lisa y llanamente: el señor Borsig, fabricante, es un


fragmento de Constitución; el señor Mendelssohn, banquero, es otro trozo de
Constitución, y así sucesivamente; no, la cosa se expresa de un modo mucho más pulcro,
mucho más fino.”600
Portanto, por ilustração, no processo constituinte que elaborou a atual Constituição
brasileira, muitos grupos organizados pressionaram os constituintes, incluindo-se latifundiários,
banqueiros, empresários, servidores públicos, trabalhadores, magistrados, religiosos, etc. Fruto de
todas essas pressões, surgiu o texto constitucional. Não se poder dizer que o mesmo é científico,
neutro, apolítico. Ao contrário, resulta do jogo de poder. Os interesses melhor organizados, com
maior força de pressão, foram os mais beneficiados. Assim, a idéia de legislador ideal é de todo
descartada, ao contrário do pregado pelos juristas hegemônicos. “El estudio de la metodología
jurídica racionalista pone de manifiesto el hecho de que, como resultado del proceso de
modernización y racionalización del mundo jurídico, la ley acaba encerrando en sí misma la unidad
de poder y razón que la tradición teológica medieval predicaba sólo de Dios. El largo camino hacia
la secularización ha acabado deificando la ley o, quizá con mayor precisión, ha divinizado la figura
de un legislador ideal tras el texto de la ley.”601 Não é necessário retomar a discussão efetuada no
capítulo I sobre a ideologia dos legisladores. Basta mencionar ser a maioria das leis hoje em vigor,
inclusive o Código Penal, elaborada pelo Poder Executivo, mais precisamente pelo Presidente da
República, que não é legislador.
Pois bem, no campo do Direito ocorre a mesma coisa. Foi assim como na Itália pós-fascista,
quando o mais alto tribunal - até a criação, para combatê-lo, do Tribunal Constitucional - e seus
seguidores optaram, ideologicamente, por uma prática jurídica antidemocrática e, nesta condição,
julgaram inúmeros casos concretos, pondo na cadeia, por exemplo, membros da resistência, ao
mesmo tempo em que libertavam os antigos companheiros de Mussolini. Foi assim na Espanha,
quando juízes agiram na clandestinidade e atuaram como criminosos frente ao Direito vigente e,
nessa vida dupla, decidiram muitas ações, enquanto a maioria seguia as diretrizes do ditador Franco,
dentro e fora dos tribunais. Foi assim nos Estados Unidos, quando o Tribunal Supremo entendeu,

599
FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Política y justicia en el estado capitalista. Trad. de
Perfecto Andrés Ibáñez. Barcelona, Editorial Fontanella, 1978, p. 200-201.
600
LASSALLE, Ferdinand. ¿Que es una constitución? Trad. de Wenceslao Roces. 4ª Edição. Barcelona, Ariel, 1994, p.
92-93. (Colección ariel, v. 11).
601
CALVO GARCIA, Manuel. Op. cit., p. 58.
por quase um século, com base na doutrina de iguais mas separados, criada por um acórdão em
1896, ser perfeitamente constitucional toda legislação segregacionista e racista dos Estados do Sul
daquele país. Com base em crenças, preconceitos e valores funcionam todos os Direitos, em todos
os país, do planeta.
Na Itália, os julgadores identificados com o fascismo buscavam amparo na legislação do
antigo regime, para enfrentar os progressos da nova Constituição. No Brasil, passa-se o mesmo, ou
seja, os julgadores mais reacionários se apegam, de forma extremamente legalista, às leis antigas,
elaboradas, em sua maioria, sob ditaduras militares (Código Comercial, Código Civil, Código
Penal, parte especial, etc) e buscam restringir as normas modernas de conteúdo social (Constituição
Federal, Código do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, etc), enquanto os
progressistas procuram ampliar ao máximo estes últimos textos legais, restringindo os antigos. Essa
é a luta ideológica, de classes, dentro do Poder Judiciário e um caminho para a elaboração de uma
teoria jurídica efetivamente alternativa.
Tais polêmicas vêm gerando uma certa confusão teórica no movimento alternativo, razão
pela qual muitos de seus membros encontram-se meio desalicerçados teoricamente. Entretanto, não
há motivos para tanto. É preciso apenas acabar com a pretensão de uma teoria perfeita,
transformada em necessidade pelas mentes dos juristas condicionados pela ideologia jurídica
tradicional. De efeitos muito fortes, a referida ideologia ainda perturba até mesmo os que têm por
missão criticá-la. Isso não significa, como será visto em seguida, um abandono à Teoria do Direito.
7) A obediência à lei, mesmo sendo ela aplicada politicamente, possui sua importância. Os
motivos são vários, mas três se destacam:
a) Como já foi demonstrado, o parlamento, em sua maioria identificado com as classes
ricas, pende em favor destas na elaboração normativa, o que permite atribuir muitos privilégios e
provocar injustiças. Mesmo assim, até certo ponto, o cumprimento dos textos normativos é
importante, pois existe uma casta social imune a eles, como se houvesse um Estado anômico para
alguns brasileiros. Estes necessitam ser atingidos pelas leis, o que depende de uma atitude de
política jurídica. A impunidade gerada, ou falta de alcance, pela legislação estatal, de certa elite, é
muito ampla, indo desde violações a empregadas domésticas, consumo de drogas, sonegação de
impostos, contrabando de jóias, especulação, falcatruas financeiras, corrupção, dirigir veículos sem
habilitação, até assassinatos e inúmeros outros tipos de violência, para ficar-se só no campo penal.
b) A idéia determinista de considerar a lei como expressão única da vontade da classe
dominante é insustentável no atual momento histórico. Muito sangue já correu, muitos
trabalhadores já foram mortos na luta por reconhecimento de Direitos. Se por um lado a legislação é
uma arma de dominação, por outro, também o é de liberação. A dialética social é assim, mas o
importante é, cada vez mais, ampliar os espaços populares no arcabouço jurídico do Estado. Não há
dúvida sobre a hegemonia dos interesses elitistas nas normas, entretanto não são menos verdadeiras
as conquistas sociais, ainda que em expressivo menor número. Tanto é verdade, que o Poder
Judiciário, conforme já analisado, muitas vezes, é usado como forma de reduzir estas conquistas
legislativas populares por intermédio de uma interpretação restritiva. Portanto, só o reconhecimento
legal de um direito não basta. É necessário lutar por sua efetivação. Pensar assim é possível e os
argumentos podem ser apreendidos na citação a seguir:
“Que el reconocimiento constitucional de un derecho no constituye una garantía definitiva
de su efectiva aplicación, pues la interpretación que de su contenido hagan los órganos del
Estado puede llegar a desvirtuarlo completamente; que aunque el órgano encargado de
controlar la interpretación de la Constitución haga en momento dado una interpretación
amplia de un determinado derecho, su doctrina puede resultar anulada o desvirtuada por
decisiones posteriores; y que las autoridades estatales cuentan con un gran número de
recursos para poner trabas a la efectiva aplicación de las decisiones del órgano que ejerza
las funciones de tribunal constitucional.”602
Por certo, o dito acima também é aplicável às normas infraconstitucionais. Portanto, após a
conquista legislativa, mediante a democratização do processo de produção de normas, falada por
Pietro Barcellona, há a necessidade da batalha pela sua efetividade e eficácia, em que será decisiva
a atuação não só dos juristas alternativos, mas de todos que sejam comprometidos com a
democracia.
c) O cumprimento das normas estabelecidas também é importante, para conter o próprio
reacionarismo da magistratura. Muitos juristas críticos, aí incluídos vários alternativistas, pleiteiam
uma maior liberdade ao magistrado na hora de julgar. Este pleito leva a vários resultados e pode
mais ferir do que beneficiar. Mesmo sabendo-se ser 49% 603 dos magistrados do Brasil oriundos das
classes baixa e média baixa, parece ocorrer a perversa situação do ontem oprimido e hoje opressor;
do antigo trabalhador explorado e do atual patrão explorador; do filho reprimido tornando-se pai
repressor. Não existe nada, absolutamente nada com capacidade de garantir que a maior liberdade
do julgador venha em favor das classes baixa e média baixa. Ao contrário, a tendência é que a
vontade de pertencer às classes altas torne esses julgadores os maiores defensores da sociedade
estratificada. Essa possibilidade já foi afirmada por Luigi Ferrajoli:
“En el momento en que se pasa de la legislación a la jurisdicción, es decir, del plano de
los enunciados normativos abstractos al de su aplicación concreta, se produce, casi
indefectiblemente, una tendencial desvirtuación del contenido de los principios favorables
a las clases oprimidas. La práctica judicial está siempre, en definitiva, por debajo de la
legalidad formal. La libertad y los derechos proclamados en el plano normativo, fruto de
largas luchas de las clases populares, tienden a ser negados en la práctica a través de
interpretaciones [políticas] restrictivas y opresoras cuando no abiertamente contrarias a la
ley.”604
O problema não se reduz só a esta função do Poder Judiciário, de conter, via interpretação
jurídica, as conquistas legislativas das massas. Ele chega até as questões filosóficas. As palavras do
magistrado Fernando Cotta, no ano de 1974, ao tomar posse como Diretor-Geral de Justiça do
ditador Franco, são explicativas: “Una sentencia puede ser conforme al Derecho, pero no justa, si
perjudica a los intereses del Estado; una sentencia puede ser justa, aunque no sea conforme al
Derecho, si beneficia esos intereses supremos.”605 Esse tipo de pensamento, não muito excepcional
nos meios forenses, deve preocupar não só aqueles que defendem uma ampliação dos poderes do
julgador, mas, também, os juristas defensores do ideal justiça como parâmetro ou paradigma para
diferenciar o bom do mau Direito.
Portanto, antes da eufórica defesa de maiores liberdades para o magistrado, torna-se
importante ponderar a prudente advertência do sociólogo Renato Treves: “A los magistrados de
orientación abierta y progresista que sostienen con tanta convicción la exigencia de dar al juez la
mayor libertad posible en el ámbito de la ley, quisiera pedir que procedieran por encuesta, que

602
ESTÉVEZ ARAUJO, José Antonio. La constitución como proceso y la desobediencia civil. Madrid, Trotta, 1994, p.
19.
603
A TOGA desvendada. Veja. São Paulo, v. 28, nº 36, set. 1995, p. 88. Outros interessantes dados sobre os juízes de
primeiro grau em atividade: a) Faixa etária: até 30 anos, 14%; de 31 a 40 anos, 38%; de 41 a 50 anos, 32%; de 51 a 60
anos, 13%; e 61 anos ou mais, 2%; b) Escolaridade do pai: sem primário, 25%; primário, 30%; segundo grau, 14%; e
superior, 32%; e c) Políticas públicas prioritárias: educação, 98,3%; combate à pobreza, 92;3%; desburocratização, 55,8%;
reforma agrária, 43,1%; privatização, 30,9%; internacionalização, 28,3%; e investimento público, 21%. Fonte:
DIAGNÓSTICO do Judiciário. Jornal do Magistrado. São Paulo, ano VI, nº 30, out. 1995, p. 16.
604
FERRAJOLI, Luigi, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis et al. Op. cit., p. 108-109.
605
NAVARRO, Joaquín. Manos sucias: el poder contra la justicia. Madrid, Temas de Hoy, 1995, p.59. (Colección
grandes temas v. 47, serie 75-95).
consultaran estadísticas o que se remitieran simplemente a la propia experiencia personal y me
dijesen si están bien seguros de que la mayoría de los jueces a los que se daría tal libertad la
utilizarían después en los casos concretos en el modo que pronostican.”606 Diante do exposto, vê-se
que as normas legais servem como uma espécie de limite, pelo menos teoricamente, mesmo não o
sendo, de todo, na prática forense. Portanto, inapropriadas as preciptadas palavras do alternativo
Edson Vieira Abdala, quando afirma: “O Juiz pode tudo, dependendo apenas da sua habilidade para
fundamentar, não necessitando esconder-se na legislação inflexível para ser mais ou menos Juiz.”607
8) Para exercer sua função, o julgador alternativo não necessita preterir os requisitos
formais do Direito Positivo, em especial o processual. O âmago da proposta está no discurso
persuasivo e na conseqüente conclusão dispositiva da sentença, onde o Direito é dito, onde as
normas abstratas e todos os valores que as circundam tornam-se disposições concretas a serem
aplicadas mediante a violência monopolizada do Estado. Hão de ser assumidos os conteúdos
políticos e ideológicos do ato de julgar, isso porque “si los fundamentos últimos de la decisión
jurídica consisten en criterios valorativos, políticos, económicos, sociales, etc., hay que llamarlos
por su nombre y reconocer que la decisión jurídica descansa en fundamentos políticos y sociales,
esto es, que se abre a espacios de «no derecho».”608
Ressalte-se, em digressão, não culminar, a fase interpretativa, com a prolação da sentença,
pois o meirinho e/ou a polícia necessitam verter em atos concretos (prender, despejar, desalojar,
reintegrar posse, retirar um filho da posse de um pai ou uma mãe, etc.) o linguajar jurídico do juiz,
quase sempre não muito claro sobre como cumprir a execução, sendo necessária, pois, nova
interpretação (a matança de posseiros no Estado de Rondônia, mencionada no capítulo I, não foi
determinada, expressamente, na decisão do magistrado, entretanto alguém entendeu poder agir
daquela forma).
Portanto, a preocupação é julgar de forma comprometida com uma proposta de vida social
(ideologia), mas, também, de fundamentar essa decisão, para persuadir e para permitir seu
cumprimento nos termos desejados, a fim de dar eficácia à política nela latente.
9) Por fim, há de ser abordada uma forte crítica contra o Direito Alternativo, inclusive
efetuada por muitos juristas progressistas e simpatizantes do movimento. Alegam ser a prática
alternativa perigosa, pois, voluntarista, permite aos juristas reacionários, de direita, também usarem
o Direito para seus fins, colocando em risco o Estado de Direito e a própria democracia. A
abordagem será feita em etapas:
a) Há de ser perquirido se realmente existe um Direito central, portanto neutro, passível de
ser levado para a esquerda pelos alternativos e para a direita pelos juristas reacionários. A
neutralidade jurídica é tema demasiado debatido e não necessita ser revisto. Simplesmente não
existe. O Direito é dialético, e as normas e o discurso jurídico sempre tenderão para o lado
hegemônico, realidade não criada pelos juristas alternativos. Estes combatem os atuais detentores
do monopólio do discurso jurídico, da produção legislativa e da interpretação do Direito, porque são
pessoas não identificadas com as massas populares. Portanto, se perigo existe, sua origem é anterior
ao movimento, faz parte da própria Ciência Jurídica e não foi criado pelos alternativos.
b) Como ficou visto no capítulo I e, principalmente, no capítulo II, são exatamente os
juristas tradicionais os maiores agressores à legalidade instituída. E isso também é um fato histórico
anterior ao advento do movimento alternativo. Este, em muitos casos, cinge-se a preservar as
normas, ou defendendo-as dos ataques interpretativos reacionários (desnecessidade de citação do
posseiro, por exemplo) ou exigindo seu cumprimento, quando são simplesmente desprezadas

606
TREVES, Renato. El juez y la sociedad : una investigación sociológica sobre la administración de justicia en Italia.
Trad. de Francisco J. Laporta e Angel Zaragoza. Madrid. Edicusa, 1974, p. 239.
607
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. (org.) Amílton Bueno de Carvalho, Antonio Cláudio da Costa Machado, et al.
Lições alternativas de direito processual. São Paulo, Editora Acadêmica, 1995, p. 65.
608
CALVO GARCÍA, Manuel. Op. cit., p. 282.
(direitos sociais previstos na Constituição, por ilustração). Assim, a prática alternativa não cria o
perigo de o Direito ser levado para a direita, ao contrário, tenta tirá-lo de lá.
c) Os argumentos mencionados até o momento são de caráter prático, relacionados com os
acontecimentos cotidianos do mundo forense brasileiro. Há que se adentrar na questão teórica. É de
ser reconhecido, mesmo diante de toda a problemática teórica já suscitada, ter ocorrido uma grande
evolução na teoria jurídica. Hoje, em alguns países, realmente a sociedade não está submetida a um
Direito de fonte divina, pelo qual alguns homens, intitulados re-presentantes de Deus, faziam da
sociedade o que bem entendiam. Também não está à mercê de um ditador qualquer, seja aristocrata,
seja militar, seja comunista, seja religioso, ou seja de qualquer outra espécie, legitimado em um
Direito Natural, ou em uma concepção organicista ética (fascismo), ou comunitária (nazismo) de
Estado. O avanço está exatamente na estipulação de normas positivas (limitativas), as conhecidas
regras democráticas, para se chegar ao poder e para exercê-lo, como, também, para regular a vida
em comunidade. Por certo aqui está a preocupação desses juristas, pois temem um retrocesso e a
volta das ditaduras. Entretanto, este fato também é ponderado pelos juristas alternativos que, do
mesmo modo, lutam contra todo tipo de despotismo. A ação alternativa combate ditaduras e não as
facilita.
Os juristas alternativos, pelo menos sua grande maioria, são defensores do Estado de
Direito, entendido como: “el Estado sometido al Derecho, o mejor, el Estado cuyo poder y actividad
vienen regulados y controlados por la ley. El Estado de Derecho consiste así fundamentalmente en
el «imperio de la ley»: Derecho y ley entendidos en este contexto como expresión de la «voluntad
general».”609 Desse conceito, surgem suas características básicas, mencionadas por Elías Díaz: “a)
Imperio de la ley: ley como expresión de la voluntad general. b) División de poderes: legislativo,
ejecutivo y judicial. c) Legalidad de la Administración: actuación según ley y suficiente control
judicial. d) Derechos y libertades fundamentales: garantía jurídico-formal y efectiva realización
material.”610
Defende-se o Estado de Direito, mas não se deve ser demasiado jurista, acreditando bastar a
institucionalização da democracia. Aliás, mesmo sob o ponto de vista jurídico, o Estado de Direito
possui vários conceitos. Muitas das liminares responsáveis pelas matanças de vários sem-terra, já
noticiadas, foram deferidas para garantir o Estado de Direito, segundo as concepções do juízes que
as firmaram.
“D. Irineu não acreditou que os 2800 homens da PM poderiam usar o verdadeiro arsenal
de guerra preparado para a desocupação da fazenda em nome da liminar de despejo, do
estado de direito. Os sem-terra eram 6500, sendo 2 mil mulheres e 1800 crianças e
adolescentes.
'A situação é insustentável e a permanência dos infratores é uma verdadeira afronta ao
ordenamento jurídico e ao estado de direito', dizia a ordem judicial de despejo.
A realidade mostrava pessoas famintas e a terra ociosa.”611
Esse não é o mesmo significado dado pelo autor e pelos alternativos ao tema.
A vida em grupo é muito complicada e não se pode esperar a evolução da sociedade até um
Estado onde as instituições funcionarão conforme previsto nos manuais de ciência política. Não há
e dificilmente haverá um Estado de Direito e/ou uma democracia pura. Ao se lidar com seres
humanos, está-se lidando com solidariedade, amizade e outras qualidades, mas também está-se
lidando com sede de poder, corrupção, ganância, avareza e outras maldades. Portanto, há de se estar
atento para o perigo da conceituação, muitas vezes transfiguradora e falseadora de fatos reais. Em

609
DÍAZ, Elías. Estado de derecho y sociedad democrática. Madrid, Editorial Cuadernos para el Dialogo S. A., 1975, p.
14. (Divulgación universitária, 5).
610
Ibid. p. 29.
611
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços : direitos humanos no brasil. Op. cit., p. 141. Grifo do autor.
relação aos conceitos acima, necessário ser indagado: A lei, de fato, regula e controla o Estado e o
uso do poder? O Direito e a lei são, realmente, expressão da vontade geral? Há uma efetiva divisão
de Poderes? A Administração, em verdade, atua dentro da lei e está submetida a controle judicial?
Ocorre efetiva realização material dos direitos e liberdades fundamentais? A resposta é não a todas
as perguntas, tendo-se o Brasil como exemplo. Melhor sorte não teriam, acredita-se, inclusive os
países ricos. Diante desse contexto, o Direito Alternativo efetua críticas, não contra o Estado de
Direito, mas, sim, contra sua inobservância. Ademais, não basta só limitar o poder, necessário,
também, lutar por democracia econômica e social e, para isso, não basta somente o Estado de
Direito. Não se renuncia à discussão sobre a democratização das relações de produção, bem como a
tentativa de transformar a democracia formal em uma democracia real, o que significa atacar a
permanência do capitalismo como forma de organização social.
Para encerrar este tema, prudente transcrever a advertência do jurista espanhol, escrita sob a
ditadura franquista, muita vezes esquecida por alguns alternativos: “Frente al normativismo y
formalismo liberal se alza el extremismo antinormativista y voluntarista, abierto a toda arbitrariedad
e injusticia: frente al normativismo, el decisionismo. Derecho será así pura y absolutamente la
voluntad del Führer.”612 Deve-se lutar por efetivação formal e real de direitos, mas com critérios de
sensibilidade social, referenciados pela lei positiva e pela teoria do Direito, sem nunca considerá-las
como construções definitivas. Seja qual parâmetro seja, não pode ser visto de forma dogmatizada,
mística, afastada das efetivas relações de poder na sociedade.
O Estado de Direito deve ser defendido como conquista definitiva, mas como ponto de
partida para se chegar a um estado de efetiva democracia econômica, social e individual.
Compartilha-se, pois, estes fins:
“a) una correcta institucionalización jurídica del poder, en favor de la libertad, el
pluralismo político y el respeto y fortalecimiento de los derechos humanos, como
irreversible superación de todas las formas, pasadas y presentes, de absolutismos,
autoritarismos y totalitarismos; b) consecuentemente, la defensa de la seguridad jurídica
personal y de una auténtica paz social, más allá de todas las supervivencias desgraciadas
de arbitrariedad y despotismo, y c) a su vez como base y meta (y sin ruptura entre las
denominadas libertades formales y las materiales), la instauración de una real (u realista)
igualdad social y económica, capaz de ir solucionando las evitables injusticias y las
injustificadas desigualdades impuestas por los hombres a los hombres.”613
Até o presente momento histórico, o movimento do Direito Alternativo vem funcionando
satisfatoriamente. Não tem resposta para todos os seus desafios, mas consegue convencer de suas
razões muitos dos que procuram instrumentos de interferência na sociedade. Amplia, inclusive, seus
quadros porque sua prática é, exatamente, a de politizar o caso concreto, o que já fornece elementos
para a formulação de uma teoria jurídica aberta e dialética. Os primeiros atos alternativos a causar
escândalo nos meios forenses tradicionais foram o de tornar sujeito de direito civil alguns pobres,
ou seja, demandas judiciais na área do Direito Civil foram julgadas em favor de partes sem poder
aquisitivo, até então excluídas destes direitos. Tenta-se interligar os conceitos jurídicos à realidade
social, com objetivos bem definidos.
Aqui não se pretende cometer o erro de tentar fechar uma proposta, conceituando o
significado do juridicamente e/ou politicamente correto ou errado. Não há forma de fazê-lo. Perante
o caso concreto, cada jurista, de acordo com sua consciência, com as normas em vigor, com os
costumes, com a jurisprudência, com a doutrina, com a economia, com a política, com o social, etc,
decidirá o que é mais correto. Não se trata de um voluntarismo ou de um individualismo, como se
vê, pois essa escolha está condicionada por vários fatores e não só pelo desejo pessoal do jurista. Os
militantes alternativos estão comprometidos, ideologicamente, com as classes excluídas e agem

612
Ibid. p. 90.
613
Ibid. p. 11.
politicamente para acabar com a miséria, com a fome, com a discriminação e com toda a prática
opressora e dominadora. Estes são, portanto, os objetivos políticos perseguidos, o poder de fato
aplicado, os parâmetros que justificam (ou deveriam justificar) a ação decisória e a prática
alternativa.

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