You are on page 1of 54

Angu do Gomes

breve relato sobre


o prato oficial da noite carioca

Juliana Dias e Carolina Amorim


Copyright © 2009 por Malagueta Comunicação

Coordenação editorial: Carolina Amorim e Juliana Dias

Texto: Juliana Dias

Fotos: Carolina Amorim e i| z fotos

Projeto gráfico: Nube Estudio por Beatriz Lamanna

Ilustrações: Nube Estudio por Beatriz Lamanna

Edição de imagens: i|z fotos

Editoração eletrônica: João Paulo Gino do Rego

Revisão de texto: Juliana Esteves, Pedro Prates Amorim, Viviana Navarro e Thais Chris

Patrocínio: Granfino

Malagueta Comunicação
Rua Maria Quitéria, 121, sl 101, Ipanema
Rio de Janeiro, CEP: 22410-040
www.malaguetacomunicacao.com.br
contato@malaguetacomunicacao.com.br
Agradecimentos

Nosso agradecimento é coisa de Granfino.


Agradecemos à marca, que alimentou a vida cultural do Rio de
Janeiro e continua abastecendo outras aventuras culinárias.
E nosso sincero carinho a nossa equipe apimentada, ao revisor-
poeta Pedro Prates Amorim, ao pauteiro Fernando Rovari,
ao geógrafo Álvaro Leite e ao grande parceiro Marcelo Malta.
Ayrton Quaresma
Sumário

Capítulo 1
Milho, pièce de résistance da civilização
Comfort food urbano
Confraria do Angu

Capítulo
Cidade, samba e angu, harmonia ritmada
2
Memorial do mingau de milho
Geração Angu do Gomes
O novo gosto pelo Brasil

Capítulo 3
Baixa gastronomia
Da rua para a memória gustativa
Encontro de tradições cariocas

Capítulo 4
Tradições culinárias em produção industrial
Comida de rua com rigor e qualidade
Angu by Gomes

Capítulo 5
Coisa de Granfino
Angu de caroço
Enquanto você vai com o fubá,
já estou voltando com o angu
PREFÁCIO

Fiel ao Angu do Gomes


Se é verdade que ele está de volta,


vai me encontrar pronto – e salivando.

Não há carioca acima de 50 anos que não tenha, no âmago mais
remoto de seu coração ou de suas papilas gustativas, a memória de um
prato do angu do Gomes, devorado com paixão e sofreguidão numa
praça pública do Rio em alguma madrugada do passado. Para alguns, o
sublime angu pode estar associado ao largo do Machado, à praça Saeñs
Pena ou à Central do Brasil. Para mim, é o clássico mesmo: o da praça
XV, responsável por gozos quase imorais a partir do momento em que
saía da panela na carrocinha fumegante, fazia um estágio no prato de
louça e ia gloriosamente para o pandulho.

Os filósofos da gula já devem ter escrito tratados associando a comida a
um conjunto de fatores que realçam a qualidade deste ou daquele prato na
memória afetiva do glutão. Um suflê de chuchu desidratado ou uma salada
de falfilhas com breufas, por exemplo, por mais respectivamente insosso
ou inócua, parecerá inesquecível se tiver sido degustado na companhia
do ser amado, num banco de praça à luz da lua e ambos, o garoto e a
garota, tendo 20 aninhos. No meu caso, o angu do Gomes vinha sempre
na seqüência de livros e discos raros e usados, comprados nos sebos das
ruas São José e Rodrigo Silva – lembro-me especialmente de uma dessas
ocasiões, perto do Arco do Telles, bem de noite, talvez em 1968. Na minha
memória, estou mandando para dentro um genial angu enquanto, com
a outra mão, folheio um exemplar de “A marca do Zorro”, de Johnston
McCulley, na linda edição da Vecchi, que eu procurava desde a infância e
tinha acabado de encontrar (depois, perdi de novo). E, ah, sim, naquele
momento, eu tinha também 20 anos e uma namorada a tiracolo.

Mas o angu do Gomes dispensa essas filigranas da memória. Ele
era ótimo porque era – porque sua combinação de mingau de fubá com
miúdos de porco falava aos instintos básicos de todo ser humano que,
para sua sorte, ainda não se civilizara por completo e continuava tão
gourmand quanto gourmet.

Em algum momento, em fins dos anos 70, eu e o angu do Gomes


nos separamos. Por algum motivo, não sei se por minha culpa ou dele,
perdi-o de vista. Ouvi dizer que tinha acabado – o que podia ser verdade,
porque todos os meus amigos passaram a falar dele com um travo de
saudade. Mas, na verdade, eu próprio já não zanzava pelas ruas como
antes – ou pelas ruas abençoadas por suas carrocinhas fumegantes.

Ouço agora que o angu do Gomes voltou ou está voltando, a princípio


nas proximidades da praça Mauá. Se isso se confirmar, será a grande
notícia do ano. E seus panelões me encontrarão pronto – e salivando. Os
anos se passaram, mas, nesse departamento, não evoluí nem um pouco.
Continuo louco por ele e ainda sou capaz de bater um ou mais pratos, em
pé mesmo, de colher, como sói, lambendo os beiços e querendo mais.

E vou avisando desde já que, quando se trata do angu do Gomes, não


adianta me tentar com altas gastronomias ou prosopopéias. Assim como
Carmen Miranda era do camarão ensopadinho com chuchu, eu sou
daquele molho que vai abrindo canais dourados no angu e dos miúdos
que, à luz do lampião da praça, parecem reles pedaços de carvão, mas
sabem a diamantes puros.

Ruy Castro
capítulo 1
Milho, pièce de résistance da civilização

“Quem tem milho tem farinha;


quem tem farinha tem pão”.
Câmara Cascudo
O milho poderia ser considerado uma pièce de résistance da
alimentação humana. A espécie americana Zea Mays atravessou o
Atlântico com os portugueses e conquistou a Europa, na segunda
década do século XVI. Daí seguiu para outros territórios, como a África,
desenhando o mapa de uma das principais plantas da civilização.
Rústico, de fácil plantio, versátil, abundante, resistente, indispensável
e subalterno, o milharal era proveitoso para escravos, índios e animais.
Em cem anos de colonização no Brasil, o cereal ocupava o terceiro lugar
no abastecimento da população.

Segundo o folclorista e etnógrafo Câmara Cascudo1 “os aproveitadores


do milho foram os portugueses, que o utilizaram no preparo de bolos,
canjicas e pudins; e os africanos, com papas, angus e mungunzás”. Seu
uso sempre esteve ligado à comida do dia a dia, de pessoas simples,
que dependiam de um mata-fome substancioso. Enquanto o verde
milharal acenasse ao vento, pão não haveria de faltar. Cascudo afirma
que a convergência das culinárias indígena, africana e portuguesa levou
o brasileiro ao complexo alimentar do milho, que a industrialização
tornou permanente.

A fusão entre o mito das três raças deu origem a um prato popular e
democrático, que colaborou para a construção da identidade alimentar
do Rio de Janeiro. O angu - mingau de fubá de milho enriquecido
com miúdos de boi ou de porco - é descrito pelo artista francês Jean-
Baptiste Debret como uma “iguaria suculenta e gostosa”. Em “Viagem
Pitoresca pela História do Brasil”2(1834), ele observa que o prato era
vendido nas ruas pelas negras livres e também agradava a diferentes
níveis sociais: “Figura também, não raro, à mesa das brasileiras
tradicionais de classe abastada”.

Outro ponto de venda eram as casas de Angu ou Zungú, instaladas


no Centro do Rio. Os locais serviam de abrigo para cativos, africanos e
crioulos, onde encontravam comida e companhia, além de servir como
esconderijo da polícia. O angu foi o elo dessa população, proporcionando
convívio, provisão e segurança. Os ex-escravos empreenderam uma
indústria alimentar na cidade e deixaram um legado, que tornou-se
símbolo da vida noturna carioca. Desde o século XIX a receita, que une
três povos, foi incorporada ao hábito da cidade e se firmou como um
bem cultural.

Comfort food urbano

A sociabilidade no Rio de Janeiro começa a se desenvolver a partir


do início do século XIX, consolidando-se nas últimas décadas3. A
atividade dos citadinos, na recém-formada República, girava em torno
de refeições em locais públicos, intercaladas com idas aos teatros4. A
Belle Époque carioca fervia com bares, cafés, restaurantes e cabarés.
A rua ganhou vida, circulação, movimento de nobres e plebeus na
refinada “Paris do Brasil”, então capital do país. À medida que a cidade
era construída e moldada aos padrões europeus, o comércio urbano
ganhava consistência firme e se incorporava aos hábitos dos cidadãos.
A diplomacia do angu penetrou até no cardápio do último baile da Ilha
Fiscal, prenúncio do final do regime monárquico.

Na metade do século XX, o angu estreitou sua relação com


o carioca, tornando-se um prato típico, provisão de notívagos
trabalhadores e boêmios. A comida de rua, da madrugada, barata
e forte, colaborou para edificar ruas, prédios, avenidas e movimentos
musicais, como o samba. Parceiro indispensável para noitadas ou
jornadas árduas. Sua hegemonia não se constituiu no doce abrigo do
lar. Esse comfort food urbano foi esquadrinhado em praças públicas,
como um monumento, celebrado por letrados, artistas, políticos,
prostitutas, apontadores do jogo do bicho, estudantes, taxistas,
policiais e autoridades.

Em plena passagem do regime militar para o democrático, o


angu foi o prato eleito pelo povo, por agregar diferentes tribos. A
industrialização do milho, como cita Cascudo, possibilitou a construção
dessa via cultural e alimentar. Em 1951 foi inaugurado o primeiro
moinho de fubá e farinha de mandioca da Baixada Fluminense,
chamado Irmãos Coutinho Cereais S.A. Em 1962 passou a se chamar
Indústrias Granfino. Esse foi o início de um casamento harmonioso
entre o fubá de milho e o angu à moda carioca. A empresa utilizou a
expressão de um tipo de pessoa classificada como refinada, termo
muito utilizado durante o século XX. Ironicamente, a marca ficou
associada a um prato popular.

Foram os portugueses que constituíram a base do matrimônio.


Manuel Gomes da Silva desembarcou no Rio de Janeiro com a família,
em 1955. Era a época de JK e seus 50 anos em 5. Como bom mineiro, o
presidente Juscelino era fã de Chico Angu (frango com quiabo e mingau
de milho) e aprovou a iguaria popular no Rio, durante seu governo. No
ano em que a escola de samba Império Serrano foi a campeã do Carnaval
carioca e Carmem Miranda morreu, Gomes deu continuidade a atividade
de venda de angu na rua. Para driblar o desemprego, começou a fornecer
para restaurantes. Ainda em 1955, numa barraquinha instalada na Praça
XV, Manoel instituiu a receita oficial da noite carioca com assinatura
própria. Angu, no Rio de Janeiro, é do Gomes.
Confraria do Angu

As barraquinhas viviam cercadas por uma multidão que se apinhava


para receber sua porção diária. O angu dava sustância ao peão de obras,
aplacava a fome do taxista na madrugada, forrava o estômago do boêmio e
encerrava com louvor um dia de trabalho exaustivo na redação do jornal.
Era ‘pão nosso de cada dia’. Os jornalistas faziam parte dessa confraria
do angu, que só tem veteranos.

Para o jornalista e apresentador da rádio MEC, Jota Carlos, o Angu


do Gomes representa um Rio de Janeiro que está apenas registrado na
memória. “Era a cara de um Rio que, infelizmente, não existe mais:
romântico, democrático, aglutinador de várias camadas sociais e
culturais, reduto da boemia carioca. A Praça XV parecia um oásis para
artistas, intelectuais, gente da noite, como eu, e muitos que lá revigoravam
as energias combalidas pelos embalos da madrugada. Lembro que
lá pelo final dos anos 60 e ainda na década de 70 - época em que era
músico-roqueiro - saíamos dos shows com a galera mortos de fome, isto
porque a grana era pouca e nem sempre o cachê das apresentações nas
boates e clubes cobriam nossas necessidades gastronômicas”, recorda.
A praça também virara palco. Jota conta que, entre um prato de alumínio
e outro, seu grupo improvisava um verdadeiro show de rock. “Com isso
acabávamos atraindo mais fregueses para a barraca. Decididamente,
o Angu era uma festa, um point, um autêntico cartão-postal da noite
carioca”, define.

Quem também se recorda é Washington Rodrigues, o Apolinho,


comunicador da rádio Tupi AM. “O Angu do Gomes era o favorito
de todos nos fins de noite. Cansei de encerrar minhas noitadas na
carrocinha saboreando o meu”, conta. Washington lembra que, devido
ao movimento intenso de pessoas, o local era referência para encontros
e quem precisava pegar táxi. Como a frota ainda não estava organizada
em locais fixos, as barracas do Gomes serviam como ponto. Próximo às
carrocinhas os carros formavam fila à espera de passageiros.

Miro Teixeira, que trabalhava de madrugada nos jornais A Noite e A


Notícia, diz que o angu, barato, virou necessidade. Depois, um cacoete e
um sonho de consumo. “Era um prato generoso, que tinha que pegar com
cuidado para não derramar pela borda”, disse em entrevista ao jornal
Extra em 05 de dezembro de 1999. O jornalista da revista Época, Nelito
Fernandes, acompanhou o final do Gomes nas barraquinhas. Quando
trabalhava na rádio Roquete Pinto, batia ponto na Praça XV. “Era um
mata-fome bem gostoso e confiável. As pessoas comiam sem medo. O
Angu Amigo valia por uma refeição. Hoje, a maioria das barraquinhas
oferecem lanches rápidos. E talvez, se o choque de ordem existisse na
época, a atuação desse comércio fosse restrita”, diz.

A jornalista Cora Rónai, do jornal O Globo, também freqüentava a


Praça XV, entre os anos 70 e 80. “Eu sempre gostei de comer na rua na
hora do almoço. Muita gente acha pouco civilizado, mas eu adoro ficar
na rua, vendo o povo passar. Comer no Angu do Gomes tinha uma nítida
vantagem sobre os habituais sanduíches, cachorros quentes e espigas de
milho: matava a fome de verdade”, comenta Cora. Para ela, o Angu do
Gomes era democrático, além de ser uma marca registrada do Rio. “Em
torno das barraquinhas você encontrava gente de todas as profissões e
extratos sociais”, conclui.
capítulo 2
Cidade, samba e angu: harmonia ritmada

“Quem pesquisasse a gastronomia carioca,


atribuiria o x-tudo à cultura popular, porém
o angu teria a assinatura do Gomes”.
Carlos Lessa
A tradição das negras foi transferida para as mãos de hábeis
portugueses, que encontraram apetite na tradição culinária da cidade.
No mesmo ano em que o Angu do Gomes iniciou sua trajetória, a televisão
brasileira emitia sinais de novos tempos. A primeira transmissão
externa e ao vivo aconteceu em 18 de setembro de 1955 com a partida
entre Santos e Palmeiras. A TV também ganhou o primeiro programa de
perguntas e respostas, “O Céu é o Limite”, de J. Silvestre e o infantil “A
grande gincana Kibon”, que ficou no ar por 16 anos.

A política, a cultura, os meios de comunicação e o esporte estavam


em ponto de ebulição. E as caçarolas de angu, espalhadas pelo Rio,
acompanhavam essas mudanças com colher de pau em punho, num
movimento constante para não encaroçar a relação com os comensais. O
fluxo de pessoas em torno dessa comida de rua não era apenas um ponto
mata-fome. Tratava-se de um fenômeno que dá conta de explicar a época
em que a sociedade carioca vivia e as transformações pelas quais passava.

A cozinha é um lugar de permanente transformação. É um


microcosmo da sociedade. E a trajetória do Angu do Gomes fornece
pistas para mapear a formação de uma identidade alimentar. Hoje
está associada ao imaginário de um grupo de pessoas, que se sentem
orgulhosas ou privilegiadas por fazerem parte desse “Rio Antigo”.
A lembrança do mingau de milho abriga um receituário de histórias
pessoais, misturadas à própria história da cidade.

Instalado em nove pontos estratégicos, o Angu do Gomes era um fast-


food caprichado. Depois da Praça XV o itinerário da rede de barraquinhas
mais famosa do Rio bateu ponto na Lapa, Praça Mauá, Largo da Carioca,
Largo do Machado, Central do Brasil, Rodoviária Novo Rio e Praça Saens
Peña. Também chegou à Zona Sul, em Copacabana. Mas, de acordo com
os frequentadores, a Praça XV foi um marco histórico. Com localização
privilegiada, estava situada próximo à estação das Barcas, ligando Niterói
e Paquetá. Era parada obrigatória.

Na roda, em volta das concorridas carrocinhas, no ritmo acelerado


de vai e vem dos pratos de alumínio e na quentura da panela, a comida
de raiz alimentou o samba de raiz. A mistura b atucada e angu deu caldo,
e dos bons. Em 1958, o jovem João Nogueira, que aos 17 anos era diretor
de um bloco carnavalesco no Méier, fez uma composição que já retratava
a importância do prato na cidade.

“Espera, oh Nega”, gravado na mesma época pela gravadora


Copacabana, dava o tom das práticas alimentares do carioca: “Porém, por
enquanto, quando sentir fome/ Um angu do Gomes, já dá prá enganar/A
digestão é caminhando a beira-mar”. No samba, Nogueira explica para
sua “nega” que, enquanto não tem capital para oferecer um jantar com
caviar, champanhe francesa e toalha de mesa do Ceará, o mingau de fubá
pode alimentar o romance e a promessa de que “o dia vai chegar”.

É o prato da espera, para suportar os dias temerosos, mas com o


sabor reconfortante do milho e calor aconchegante do mingau. Em
entrevista ao jornal Extra de 05 de dezembro de 1999, João Nogueira
declarou que promoveu várias festas em casa, servindo o Angu do
Gomes. “Ligava e fazia o pedido de cem, 200 pratos e ele entregava em
casa. O pessoal saía satisfeito”.

O músico Sérgio Mendes5 conta que tinha o hábito de frequentar


a barraquinha da Praça XV junto com Tom Jobim e o produtor musical
Armando Pittighani. Segundo ele, a parceria entre músicos e angu rendeu
o samba-jazz. A clientela incluía artistas como Dicró, Roberto Carlos,
Erasmo Carlos e Tim Maia. Repertório arrojado em plena praça pública.

Memorial do mingau de milho

A urbanidade cresceu junto com o angu, durante o século XX. Serviu


como coluna para sustentar os cidadãos que movimentavam a nova
arquitetura da cidade. O Angu do Gomes contribuiu para construir a
identidade alimentar dos habitantes da nova metrópole. Não inaugurou
ruas ou pavimentou calçadas, não baixou decretos, não compôs música. Era
mais uma atividade cotidiana, pequena, diante de mudanças tão profundas
que aconteciam no Rio de Janeiro. No entanto, o prato democrático edificou
uma memória, um patrimônio que está bem vivo na lembrança do carioca.
Experimente perguntar quem se lembra do Angu do Gomes. A resposta
positiva é imediata, acompanhada de saudosismo e boas histórias.

Hoje, a internet reúne parte desses admiradores, que compartilham


a memória dos tempos do angu. Em sites, blogs, fotologs e redes de
relacionamentos eles expressam seu apreço pela iguaria. “Ícone
da baixa gastronomia carioca, infecto, anti-higiênico, famoso e
delicioso. Feito com miúdos de porco refogado e deitado sobre um
saboroso prato de lata cheio de angu. Socorreu muita gente faminta
nas madrugadas do Rio. Quem, principalmente morador da boêmia
área de Vila Isabel, em suas noitadas na Zona Sul, não recorreu a ele
no fim de noite, dando uma paradinha na Praça XV, à caminho de
casa, para acordar mais bem-disposto no dia seguinte?”, comenta
Derani Gurgel Valente, no Fotolog “Rio de Fotos”6. Sobre a higiene
precária da rua ele declara: “Das multidões que conhecemos e que
desfrutavam dessa iguaria, não soubemos de nenhuma, absolutamente
nenhuma que tivesse passado mal. Bons, irresponsáveis e deliciosos
tempos!”, completa. Esse tipo de declaração é unânime na voz dos
frequentadores.

Em outro depoimento, o jornalista Celso Cerqueira defende que o


Angu do Gomes foi mais incisivo que obras assistencialistas. “O prato
proporcionou por décadas a sobrevivência dos menos afortunados;
estava em toda a cidade, era altamente nutritivo e custava uma merreca.
Quem experimentava ficava freguês”, afirma.

O historiador Henrique Renteria frequentava pelo menos uma vez


por semana a barraca da Praça XV. “Gostava por ser barato, despachado
e saboroso. Quando podia, chegava cedo porque assim pegava o prato
em seu primeiro uso da noite. Mais tarde, eles eram limpos dentro do
tacho de água, antes que os restos de angu deixado pelo freguês colasse,
ficando prontos para o freguês seguinte”, comenta. Renteria afirma que
prefere esses locais, comuns no ambiente urbano, aos restaurantes. “A
higiene entre esses dois tipos de vendedor não é diferente e não tem
relação direta, em nenhum dos casos, com a qualidade e o sabor do que
vendem. O ambulante tem menos restrições de horário”, completa.

Geração Angu do Gomes

Manoel faleceu em 1964, nove anos depois de dar início ao


empreendimento. Seu saber foi transmitido ao filho João Gomes, que
herdou o talento para a cozinha, mas era inexperiente para administrar.
No ano do Golpe Militar, João sofreu uma dura baixa com a morte do pai.
Foi somente em 1965 que ele convidou dois sócios experientes no ramo de
bares e restaurantes para dar continuidade ao negócio. O português José
Bernardo e o filho Basílio Pinto, associaram-se ao Angu do Gomes.
José Bernardo, assim como Manoel Gomes, também se mudou com
a família para o Brasil, porém dezesseis anos antes de seu conterrâneo,
em 1939. Bernardo empreendeu na área de restauração. Ele era dono de
um bar na Praça Tiradentes, próximo aos teatros João Caetano, Carlos
Gomes e Recreio; uma padaria e restaurantes no Centro do Rio. O filho
Basílio Pinto, que tocou a empreitada Gomes até o final da década de 80,
cresceu nesse ambiente badalado por artistas, boêmios e toda a sorte de
frequentadores, que perambulavam pela região.

“Meu pai servia comida para os artistas e o bar não fechava. Só às


5 horas da manhã as portas arriavam para a limpeza”, lembra Basílio,
que hoje tem 79 anos. Nas mesas, figuras como Oscarito, Grande Otelo,
Erivelto Martins e Nelson Cavaquinho, só para citar alguns nomes.
Com a experiência adquirida no ramo de bar e restaurante, Bernardo
e Basílio apostaram no empreendedorismo de Manoel. Ao lado do
herdeiro João, os sócios iniciaram uma nova etapa, que resultou num
império da alimentação fora do lar. Em 1970, cinco anos depois de
assumir a sociedade, o pai de Basílio faleceu. Os dois filhos assumiram
o compromisso de não parar de mexer a panela de angu. João aportou o
conhecimento culinário; e Basílio, a expertise em administração. Dois
ingredientes que permitiram a continuidade da tradição.

O novo gosto pelo Brasil

No ano em que a dupla de portugueses assumiu o negócio, o Brasil


comemorava o tricampeonato mundial de futebol, conquistado na Copa do
México. A vitória abriu o apetite do brasileiro pelo Brasil, trouxe à memória o
gosto bom da esperança, fez a boca salivar pela crença de que os dias melhores
finalmente viriam, como anunciou João Nogueira. Em 15 de setembro de 1970,
a escritora Raquel de Queiroz publicou a crítica “Gosto do Brasil”, na revista
O Cruzeiro7. Ela associava a conquista da Copa ao novo fôlego para driblar
estagnação, subdesenvolvimento, atraso, pobreza e desordem. “Estávamos
ansiosos por qualquer coisa que levantasse o orgulho nacional. Estávamos
fartos da esterilidade da contestação e do protesto”, escreveu.

A onda Patropi de Jorge Ben Jor contagiou a música popular brasileira


com o êxito do País Tropical. A colunista destacou que os letristas da MPB,
sintomaticamente, deixaram de falar só em irmão, em paz, em mão aberta, em
guerra, em fome, em sangue e demais chavões do cancioneiro contestatório. O
controle da inflação pôde ser percebido na ida ao supermercado. A exportação
estava cada vez maior e diversificada com o selo “Indústria Brasileira” ou
“Made in Brazil” espalhados pelo mundo. Ela comenta também que até o “tal
do Produto Interno Bruto crescia a olhos vistos”.

Raquel encerra sua coluna com uma declaração que evidencia a


efervescência da noite carioca: “Mas o bom mesmo é o cheiro de madrugada
que se sente por toda parte. Um gosto de deixar que os meninos cresçam.
Uma confiança, uma segurança novas, como se de repente houvéssemos
descoberto que nem tudo está perdido ou, pelo contrário, que nada está
perdido. Que a terra é bela e é nossa e quem tinha razão era mesmo o
escrivão Caminha: ‘em se querendo plantar, dar-se-á nela tudo’ ”.

Na visão gastronômica de digerir o mundo, esse cheiro e esse gosto


tinham nome, sobrenome e ponto fixo. Em meio a esse clima de entusiasmo
e desenvolvimento, o Angu do Gomes inaugurava novos pontos pelas praças
da cidade e marcava, definitivamente, sua presença na vida cultural. João
e Basílio souberam prosperar em tempos áureos, multiplicando o legado
deixado pelos pais portugueses. Em sintonia com a pulsação do Brasil, os
panelões de angu saciavam os desejos da população. Enquanto “você vai
com o fubá” essa dupla já voltava com o angu quentinho. Já havia 15 anos
desde o início da empreitada e o melhor ainda estaria por vir.
capítulo 3
Baixa gastronomia

“Prato popular e típico da paisagem carioca,


geralmente vendido nas ruas,
em carrinhos próprios para isso.
É uma papa de farinha de milho, servida
com carne ensopada com miúdos”
(Pequeno Dicionário de Gastronomia)8
De locais improvisados por escravos, a tradição da venda de angu
nas ruas ganhou uma complexa estrutura. O Angu do Gomes empregou
cerca de 300 funcionários em 40 barraquinhas, que chegavam a vender
mil pratos por dia cada uma. A façanha foi registrada em reportagem
de quatro páginas, assinada por Edison Torres com fotos de Ayrton
Quaresma, na edição da revista O Cruzeiro de 20 de outubro de 1974.
Sob o título “O angu nosso de cada dia”, a matéria contou a trajetória das
barraquinhas comandadas com sucesso por João Gomes e Basílio Pinto.
O exemplar é uma relíquia guardada como troféu por Basílio. Afinal,
ganharam destaque na revista de maior prestígio do país.

Na época, o “mestre-cuca” era Sebastião, que desde 1965 assumiu


o posto de chef oficial das caçarolas. Torres abre a reportagem com a
seguinte descrição desse hábito popular na alimentação da cidade:
“Quebra-galho para uns, refeição normal para outros, o angu à baiana
é um prato comum no Rio de Janeiro acostumado aos bifes com arroz,
feijão e fritas. Hoje é comum avistar-se grupo de pessoas em volta das
carrocinhas espalhadas pela cidade”. O jornalista também confirma
essa ligação com angu com a cidade: “Incorporado à vida noturna do
Rio, o angu é o preferido dos motoristas de táxi, policiais, trabalhadores
da noite, além dos boêmios, que sempre reservam 5,00 cruzeiros para
reforçar o físico e recuperar as energias perdidas”.

Para explicar esse movimento em torno do angu, talvez o aforismo


mais famoso de Brillat-Savarim: “Diga-me o que comes e te direi quem
és”. Quem eram esses comensais cariocas que, democraticamente,
se aglomeravam em barraquinhas nas ruas para alimentar-se com
um prato tão simples e popular? Em face de dissabores e alegrias da
vida, era na avenida que a população vivenciava o convívio, a partilha,
a memória, a esperança. Esses comedores de angu refletiam a cidade
frenética, que respirava o frescor da madrugada, a chegada renovadora
da alvorada e o inquieto entardecer da metrópole urbana. A reportagem
de O Cruzeiro finaliza com a seguinte frase: “Aqui, é muito procurado
com temperatura amena. No forte calor do Verão, seu consumo diminui.
Mas o carioca se habituou a comê-lo e o faz sempre, no frio ou no calor”.
O hábito alimentar ajustou-se ao clima do Rio e ao perfil do citadino.

Da rua para a memória gustativa

A vida noturna do Rio, entre as décadas de 50 e 80, está representada


por um prato subalterno. Talvez para mostrar que a nobreza da tradição
vem do que é cotidiano, banal, trivial, familiar e costumeiro. As cozinhas
regionais francesas e italianas, por exemplo, ostentam em sua haute
cuisine receitas simplórias, criadas em situações de fome, crise ou guerra,
como ragôut, cassoulet, ratatouille e polenta. Pratos que são valorizados
na mesa e nas tradições daqueles países por importantes chefs.

O angu à moda carioca tem a tradição da rua e não da casa; de


gente simples e não de rainhas do lar; apreciada por famintos e não
por refinados convivas; da comida para se comer em pé e não sentado
à mesa; do desprendimento para ignorar regras de higiene e não da
limpeza de casa. Apesar de todos os cuidados e zelo dispensados pelos
proprietários, era comida de rua, sujeita à contaminação e higiene
precária. Era o oposto da caseira, mas tão confortante quanto a que é
preparada com afinco pela dona de casa.

Essa memória coletiva, que também nutre histórias pessoais, não


é comida de mãe. É a comida da barraquinha de uma praça pública. Os
hábitos alimentares são norteados pelas circunstâncias e o Rio de Janeiro
da segunda metade do século XX - permeado de tensões, grandes mudanças
e conflitos – combinou com a receita substanciosa, que só poderia ser
preparada por mãos fortes e firmes de cozinheiros retirantes.
Encontro de tradições cariocas

Em 1977, o Angu do Gomes inaugurou seu restaurante, no número


41 do Largo São Francisco da Prainha, situado na Praça Mauá, Zona
Portuária do Rio. Prainha era o antigo nome da Praça Mauá, que já se
chamou Praça 28 de Setembro. Depois da inauguração da Avenida Rio
Branco, recebeu o nome que permanece até hoje. A região é um ponto
histórico, onde funcionava o comércio de negros e circulavam trapiches
e estaleiros, além de marcar os limites da zona urbanizada da cidade. A
área compreendia o litoral da Baía de Guanabara, o cais do porto, a rua e
a Igreja de São Francisco8.

O Barão de Mauá criou a Imperial Companhia de Navegação e a Estrada


de Ferro de Petrópolis, ligando a Prainha à cidade serrana, em 1853. Este
era o ponto de encontro de famílias abastadas, que passavam o verão em
Petrópolis. A Praça Mauá transformou-se na sala de visitas da capital,
onde começava a Avenida Central, cartão postal da Belle Epóque.

Outro ponto histórico da região é a Pedra do Sal, no coração do bairro


da Saúde e no caminho do Morro da Conceição. Durante o século XIX foi
reduto de colonizadores e escravos, que garimpavam o sal da Prainha,
conhecidos como os arquitetos da escadaria da Pedra. Ao longo do
século XX, o local foi palco para festas e batuques, ensaios e encontros
que viraram blocos carnavalescos. Na ladeira que deu ritmo ao samba,
nomes como Pixinguinha, Cartola e Donga desfilaram nessa avenida. A
instalação da sede oficial do Angu do Gomes na Praça Mauá reforçou a
vocação da região em abrigar as tradições da cidade.
capítulo 4
Tradições culinárias em produção industrial

“Ambiente com ar condicionado, música


em FM, de segunda a sexta-feira, das 10h30
às 16h. Comidas típicas. Roda de samba às
sextas-feiras e almoço domingueiro”.
Anúncio do Restaurante Angu do Gomes
Em tempos de gastronomia, Basílio poderia ter sido eleito o
restaurateur do ano por guias e revistas especializadas. O restaurante
Angu do Gomes, além de servir como base para abastecer as barraquinhas,
funcionava como um robusto estabelecimento com capacidade para
300 pessoas, serviço de uisqueria, além de inaugurar um buffet para
coquetéis, casamentos, batizados e aniversários. E, ainda entregas para
viagem “em embalagens térmicas”.

Com visão empresarial, a dupla transformou um prato típico de


escravos em comércio lucrativo, sucesso da restauração carioca. Na
carteira de clientes, empresas como IBM, O Globo, Shell, Telerj,
Fundação Oswaldo Cruz, Vale do Rio Doce, Caixa Econômica Federal,
Unibanco, CEG e Varig. Até o ex-presidente Juscelino Kubitschek
saboreava o Angu do Gomes. “Mandei fazer panelas de inox para servi-
lo”, lembra Basílio. Quem solicitava a encomenda era Ema Negrão de
Lima, esposa do ex-governador e embaixador Negrão de Lima.

Segundo Basílio, o sucesso do negócio se deve à comida de qualidade,


boa matéria-prima, higiene e disciplina. “O olho do dono é que engorda
o gado”, diz, exibindo fotos dos panelões de alumíno brilhando. Os
uniformes dos funcionários eram lavados em lavanderia e distribuídos
por ele, que fiscalizava aparência, unhas e barbas. Os empregrados
tinham carteira assinada, comissão e metas de venda. As barraquinhas
saiam do Largo de São Francisco às 17h e seguiam para os pontos da
cidade. O preparo começava às 7h da manhã sob o comando dos mestres
Sebastião e Joãozinho Carioca. Em ritmo de cozinha industrial eram
produzidos oito caçarolas com 200kg de miúdos de boi e porco e 60kg de
fubá Granfino, em um fogão de 16 bocas. Nos finais de semana, a receita
dobrava. Isso sem contar o serviço de buffet.

O único segredo que Basílio gosta de revelar é que o fubá era


da tradicional marca carioca Granfino. “A indústria fornecia uma
moagem especial para o preparo do angu. O tempero é a alma de
qualquer comida”, diz. No mesmo ano em que ele e o ex-sócio João
inauguraram o restaurante, a Granfino foi transferida para o novo
Parque Industrial no Km 13, da Rodovia Presidente Dutra, onde
permanece até hoje. A industrialização do milho caminhou com o
consumo de tradições culturais.

Comida de rua com rigor e qualidade

Basílio faz questão de esclarecer que a cozinha do restaurante Angu


do Gomes estava sempre limpa e a água era filtrada. Como as barracas
não tinham provisão de água, foi criado o prato individual. Os pratos
de alumínio utilizados eram acondicionados em um compartimento
especial, junto com os talheres, e retornavam para a sede, onde eram
limpos e esterilizados.

A féria do dia era contabilizada pela quantidade de louça suja.


Ninguém comia no prato do outro. “Era um diferencial que fidelizava
a freguesia”, orienta o ex-empresário. Cada carrocinha tinha dois
panelões: um de fubá, outro de miúdos. A mistura se dava no prato.
Primeiro, uma concha caprichada do mingau de milho. Depois, outra de
miúdos de boi e porco, envolvidos num caldo vigoroso, bem temperado
de cor ferrugem. O molho se alastrava pelas bordas do prato e se infiltrava
no angu, formando veios marmorizados em tons de amarelo-dourado,
enquanto parte da carne afundava.
Cheirosa e fumegando, a porção revigorante era devorada em
colheradas ininterruptas. Depois desta parada, o cliente estava pronto
para seguir caminho. Além das carrocinhas, Basílio adaptou kombis
para o transporte do angu. Mais tarde as kombis também serviram como
ponto de venda, onde foram acopladas prateleiras-balcão e até uma
pia de inox para lavar a mão. A garagem ficava na Rua Sacadura Cabral,
próxima ao restaurante. Lá as carrocinhas eram limpas diariamente.

O ex-proprietário se diverte ao relembrar a história do funcionário


Moleza, que fez fama com a clientela da Praça XV e era o melhor vendedor
da rede. Às sextas-feiras, Moleza preparava um panelão especial para
um grupo de juízes, que degustava a iguaria harmonizada com uma boa
cachaça. Outro caso que ele gosta de relembrar é o de um ex-presidiário,
que chegou pedindo um prato de angu e ganhou emprego.

A rede faturava, em média, 20 mil pratos de angu por dia, o que


corresponde a 7,2 milhões por ano. Para fazer um comparativo, em
1998, o Mc Donald’s vendeu 72 milhões de Big Macs em todo o Brasil.
Apenas no Rio de Janeiro, o fast-food carioca somou 10% das vendas do
sanduíche americano mais famoso9.
Angu by Gomes

Na edição de 17 de junho de 1982, a revista Fatos e Fotos10 publicou


a matéria intitulada “Angu by Gomes”, assinada por Jeff Thomas. A
notícia era que o prato foi servido durante a inauguração do Porto de
Sepetiba com a presença do presidente João Figueiredo e convidados
especiais. Segundo o colunista, depois de os refinados comensais terem
aprovado o menu exótico, o angu passou a ser incluído em buffets. Após
a apresentação formal à elite da década de 80, foi introduzido à mesa dos
dois restaurantes mais caros do Rio: Chez Castel e Hippopotamus.

Thomas até ousou escrever que o angu poderia ameaçar o tradicional


strogonoff que fazia presença nas festas mais badaladas. Na época em que
os chefs franceses Paul Bocuse e Gaston Lenôtre representavam as cozinhas
de hotéis na cidade, o desejo do colunista era que a “cultura culinária”
conquistasse prestígio no paladar da sociedade carioca. Até então coisa de
granfino era degustar crevette (camarão) e langouste (lagosta).

O angu pode até não ter chegado à nobreza, mas os chefs Claude Troisgros
e Laurent Suaudeau, enviados por Lenôtre e Bocuse, respectivamente,
enalteceram as virtudes dos ingredientes brasileiros. Os cozinheiros
enriqueceram o gosto sofisticado com sabores como batata-baroa,
jabuticaba e outras brasilidades. Entre os apreciadores de angu, a atriz
Tônia Carreiro dizia na reportagem que, em casa de granfino, preferia
angu à Coq au vin. E o playboy Jorge Guinle ofereceu à celebridades como
Rita Hayworth, Kim Novak, Lana Turner, Marlene Dietrich.
capítulo 5
Coisa de Granfino

“Vinde a mim todos os que estão cansados


e sobrecarregados e eu vos aliviarei”.
(Mateus 11: 28)
Quando surgiram os primeiros restaurantes na França, no início
do século XIX, a proposta era oferecer um local para restaurar,
revigorar as forças. E uma dessas primeiras casas trazia a seguinte
inscrição bíblica: “Vinde a mim todos os que estão cansados e
sobrecarregados e eu vos aliviarei”. A definição parece adequada
para esclarecer a função restauradora da comida. Da mesma
forma, o angu tem a virtude de aliviar e recobrar as energias. Os
frequentadores das carrocinhas associam o prato a essa condição
de saciar e reanimar.

O fim do Angu do Gomes é permeado de mistérios. Não se sabe


ao certo quando acabou e os motivos. Entretanto, a portuguesa
Ana Campos Pereira, de 53 anos, foi a responsável por preservar a
tradição e alimentar a memória dos comensais órfãos. Há 13 anos,
na Rua de Santana 183, no Centro do Rio, D. Ana prolongou a fama
do angu, servindo a receita oficial do Gomes, às quartas-feiras, sob o
pseudônimo de “Angu da Ana”.

A cozinheira conta que recebeu a receita escrita a mão pelo


próprio João Gomes. Antes de ser dona de restaurante, ela era
bancária e atendia João no extinto banco Andrade Arnaud, na Rua
Senador Pompeu, 187. Com o término da rede de barraquinhas e a
falência da instituição financeira, D. Ana pediu para o herdeiro de
Manoel a receita do prato, que arrebatou a noite carioca. “Ele recebeu
propostas até de São Paulo para vender a receita”, relata a cozinheira.
No fim das contas, quem levou o prêmio foi ela, que guarda a folha de
caderno com a tal fórmula como se fosse uma herança.
“João foi levar a receita no restaurante. Mal dava para entender
porque ele é semi-analfabeto. Segui à risca, mas fiz minhas adaptações.
Deu certo”, comemora. Ao invés da mistura de miúdos com boi e porco,
paio e bacon, ela optou por colocar mais rabada (aquela bem desfiadinha
que desmancha) para agradar os fregueses. A única orientação que
Ana não abriu mão foi sobre a marca do fubá que, por indicação do
cozinheiro, só poderia ser Granfino, expressamente escrito na receita.
“Angu do Gomes só pode ser com fubá Granfino”, ensina. De tempero,
salsa, cebolinha, pimenta do reino e cuminho.

Ana diz que se sente privilegiada por manter a tradição do angu.


Essa foi uma estratégia para manter sua casa movimentada com famosos
saudosistas, que trataram de espalhar a boa nova: “Gomes não acabou”.
A cozinheira se orgulha do quadro na parede com fotos de famosos como
Jaguar, Miele, Paulo Casé e Chico Caruso; além da confraria de jornalistas,
testemunhas dessa história. Ela diz que, graças a essa receita, alcançou
o prestígio da clientela. “Não ganho muito dinheiro com o angu. É uma
homenagem ao Gomes”, afirma, dizendo que vende, em média, cerca de
20 a 30 pratos a cada quarta-feira. O local se transformou no novo point
dos comedores de angu.

Sobre o João Gomes, ela revela que ele está vivo e mora na Rua
Leôncio de Albuquerque, próximo à Praça da Harmonia, no Bairro da
Saúde. “Ele empobreceu, perdeu tudo com dívidas de jogo. Vive só de
aposentadoria”, conta. Por isso, não gosta de dar entrevistas ou falar
de seu negócio. “Sempre admirei a cozinha do Angu do Gomes. Dava
gosto de ver como era limpa”, lembra Ana, que freqüentava com um
tio, garçom do Bar Luiz. O outro sócio, Basílio, também é amigo de
longa data da cozinheira. Além do Angu da Ana, outras assinaturas
habitam a cidade, perpetuando a tradição alimentar: Angu do Pardal,
Angu do Alemão e Angu do Wando.
Angu de caroço

Morador da Tijuca há cerca de 40 anos, vô Basílio, como é conhecido, é


uma figura cativante e disponível para uma boa prosa, principalmente se
o assunto é Angu do Gomes. Ele não disfarça o orgulho de ter comandado
com pulso firme, como gosta de dizer, a rede de barraquinhas mais famosa
do Rio. Às vésperas de completar 80 anos, recorda com precisão datas
e fatos de sua trajetória, que está imbricada com a tradição alimentar do
Rio. “Sinto-me bem, feliz e realizado”, diz sobre o seu legado, que agora
está sob a responsabilidade do neto Rigo Duarte, de 27 anos, recém-
formado em gastronomia pela Universidade Estácio de Sá.

Em 1988, Basílio vendeu sua parte na sociedade para um gerente


da casa e se aposentou. Ele e o ex-sócio João se conheceram através do
escritório de contabilidade de um primo, no Largo do Machado, que
tinha o pai Manoel como cliente. A parceria durou, aproximadamente
25 anos e, segundo Basílio, os sócios tinham um bom relacionamento.
Hoje, os dois não têm mais contato.

Do outro lado, João Gomes não gosta de falar sobre o assunto porque
“dá tristeza”. Foi a declaração que ele deu ao jornalista Nelito Fernandes
para a matéria “O angu desandou de vez”, publicada em 05 de dezembro
de 1999, no Jornal Extra. Na época, com 69 anos, a reportagem descreve
que ele estava doente, dependente de remédios e que “vive atormentado
com dívidas”.

Na sua versão, Gomes conta que também vendeu sua parte no


negócio em 1988. Ele alegou que estava doente e cansado com a jornada
de trabalho de, no mínimo, 12 horas. Três novos sócios assumiram o
negócio, mas Gomes ainda permaneceu na empresa. No entanto, a partir
daí, o angu encaroçou. Insatisfeito com o rumo da empresa, decidiu
abandoná-la de vez. Em 1995, a firma faliu afogada em dívidas.

Quanto ao início do Angu do Gomes, João diz na reportagem que


a receita começou primeiro a ser vendida no bar do pai. E, depois do
sucesso, Manoel e Gomes resolveram abrir uma barraquinha na Sacadura
Cabral. A história é diferente da que está publicada na revista O Cruzeiro
de 1974. Parece que ainda tem muito caroço nesse angu.

Enquanto você vai com o fubá, já estou voltando com o angu

O neto de Basílio, Rigo Duarte, é juiz de futebol, mas decidiu trocar


a bola pela panela e encarar o time da cozinha. A ideia de reabrir
o restaurante Angu do Gomes surgiu da iniciativa do irmão, Diogo
Duarte, que inaugurou a Confraria dos Amigos do Samba Choro e Angu
(C. A. S. C. A.), em outubro de 2005. Os encontros aconteciam no bar
do Chico’s, no Maracanã, com roda de samba promovida pelo grupo
Abrindo o Berreiro. Basílio, como presidente de honra da confraria,
era responsável pelo angu. A festa seria mensal, mas na segunda edição
os membros perderam um de seus idealizadores. Diogo faleceu em
novembro. O carro que estava dirigindo foi atingido por uma árvore de
12 metros, nas proximidades do Maracanã. O avô, que estava no banco
do carona, conseguiu escapar ileso.

Mas como o samba não pode morrer e o angu não pode faltar, o avô
apostou no recomeço com o neto Rigo. O jovem chef diz que pretende
investir nas tradições culinárias que marcaram o Rio de Janeiro. Em
dezembro de 2008, eles retomaram o restaurante Angu do Gomes em
parceria com Marcelo Klang, amigo da família. O endereço não poderia
ser outro: Largo São Francisco da Prainha. Só o número mudou, agora é
um sobrado no número 17, novo reduto de samba e angu.
A receita, claro, é original e Basílio não gosta de dar detalhes. O fubá
Granfino continua sendo o ingrediente principal. De bermudão, camisa
pólo, boina e sandália franciscana, ele fiscaliza o trabalho da equipe do
salão e da cozinha. Sentado, com a mão descansando sobre a barriga, não
deixa escapar nada. Chama a atenção dos garçons, confere se os clientes
estão sendo bem atendidos e monitora os pratos que chegam à mesa.
Qualquer diferença notada, chama logo o neto para tomar providências.
Os sócios mais jovens estão animados com a repercussão entre o público
da faixa dos 50 e o interesse dos mais novos. Eles apostam no potencial
da Prainha como novo pólo gastronômico da cidade.

O cardápio da casa traz quatro versões de angu, além do tradicional:


calabresa, carne moída, frango e até um vegetariano. Pratos como polenta
frita, moela com farofa e sanduíche de carne assada estão no menu do
bom e velho Angu do Gomes. O fubá continua sendo Granfino. É a regra
de ouro dessa receita. “Quero continuar o trabalho do meu avô, que foi
muito importante para a cidade. Vamos ter roda de samba e boa comida.
Não quero nada sofisticado. Meu objetivo é valorizar pratos e tradições
do carioca”, afirma o chef. O restaurante também vai abrir para almoço
e Basílio pretende inaugurar lojas do Angu do Gomes.

Os saudosistas batem ponto no novo Angu do Gomes para conferir


se a receita ainda é a mesma. E também para matar as saudades. O
retorno tem sido aprovado pelos fãs da iguaria. Como o boca a boca
agora é na internet, eles partilham a memória do angu em sites e blogs.
Em entrevistas nas mesas, também foi possível encontrar comensais da
época das barraquinhas. Eles também levam a família para contar um
pouco de suas histórias.

Em tempos de nostalgia, retorno às origens e tradições, não há


nada mais confortante do que se apegar às lembranças mais seguras,
como o prato da juventude, que representa um tempo de liberdade.
Angu não é prato para se comer sozinho, não é para panelinhas; não se
come em silêncio, sem música, sem ruído. É receita que se acomoda
em panelões e reúne multidões. É o anti-solidão. É aquela comida que
encurta as distâncias, aproxima, aconchega, aquece. Relembrar o prato
da juventude significa recordar seus feitos, seus louros, seus méritos e
conquistas. O Angu do Gomes deu sabor, sustância e ritmo a uma geração
faminta por construir o mundo. O ritual de frequentar as carrocinhas
deixou memória, legado, patrimônio, história ....

Este livro é uma iniciativa 2.0, que agora será construído com
a participação de admiradores e interessados no lendário Angu do
Gomes. Por isso, não colocamos um ponto final. O angu é prato para ser
compartilhado, assim como o ambiente da internet, proporcionando
convívio e memória. Estamos famintos para solucionar esse angu
de caroço e ouvir novas histórias. Quanto mais gente meter a colher
nessa panela, a receita ficará ainda mais saborosa. Se você freqüentou
as barraquinhas e tem causos para compartilhar, envie e-mail para
angudogomes@malaguetacomunicacao.com.br .
Cordel do Angu do Gomes

Para manter um sujeito notívago de pé


Não espere um prato comportado
Arrumado com delicadeza
Com folhas, verduras e outras levezas.
Prato que dá sustância
Aquele que mata a fome
Tem que ter mistura.
Não me venha com frango grelhado
Ou peixe bem apresentado
Tem que ser mistura forte
Para quem tem disposição de matar por dia um leão.

Então, cozinhe a rabada até desmanchar,


Acém também até ficar macia,
Coração de boi para quem aprecia,
Bofe para quem não teme vísceras,
Tudo cozido separado e cortado em pequenos pedaços.
Depois, concilie-os em um belo refogado,
Cebola, bacon e linguiça paio para deixar bem perfumado.
Agora, junte as carnes e os miúdos
E despeje o caldo ferrugem da rabada.
Tempere com pimenta e cominho a gosto
Mas tenha parcimônia
Vá temperando e provando
Para o freguês poder apimentar sua mistura conforme o paladar
Finalize com a dupla salsa e cebolinha bem batidinhas
Depois da mistura pronta, prepare o mingau de milho
Coloque água para ferver
Com sal, cebola ralada, alho e azeite
É preciso habilidade para não encaroçar o angu.
À parte, dissolva o fubá Granfino em água fria
Com colher de pau em punho, vá despejando
o caldo de milho na água quente
Mexa vigorosamente
Não tenha outra coisa em mente
Caroço no angu não tem quem agüente.

Quando aparecer o angu brilhante e espelhado,


Desligue o fogo e corra para o prato.
Despeje o bálsamo fumegante
E não hesite em colocar o restante:
Aquele caldo vigoroso e reconfortante
Que se infiltra sorrateiramente no angu
Formando veios marrom-dourado
Afundando parte da carne preguiçosamente.
Não é preciso convite solene para matar a fome
Bem-vindo ao Angu do Gomes.

Juliana Dias
Referências bibliográficas
1 – CASCUDO, Câmara. História da Alimentação no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Global
Editora, 2004.

2 – DEBRET, Jean Baptiste. Negras cozinheiras, vendedoras de angu In: Viagem


pitoresca e histórica ao Brasil (Tomo Segundo, Belo Horizonte/ São Paulo: Ed.
Itatiaia/ Ed. da Universidade de São Paulo, 1989)

3 - GUERRERO, Enrique Raúl Renteria. O sabor moderno: da Europa ao Rio de


Janeiro na República Velha. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 207.

4 – ibid., p.208.

5 – MOREIRA, Jorge Antônio Terzi. A Praça Mauá e o Angu do Gomes. Monografia


não publicada do departamento de História da Universidade Veiga de Almeida.
Rio de Janeiro, 2003, p 19.

6 - Fotolog “Rio de Fotos”: http://fotolog.terra.com.br/nder

7 – DE QUEIROZ, Raquel. Gosto do Brasil In: Revista O Cruzeiro.


Rio de Janeiro, 1970.

8 - MOREIRA, Jorge Antônio Terzi. A Praça Mauá e o Angu do Gomes. Monografia


não publicada do curso de história da Universidade Veiga de Almeida.
Rio de Janeiro, 2003, p 11.

9- FERNANDES, Nelito. O Angu do Gomes desandou de vez: idealizador do prato


hoje vive doente e sente o gosto amargo da pobreza. Matéria Jornal Extra, 05/12/1999.

10 – Revista Fatos e Fotos. Rio de Janeiro, 1982.

11 - CARVALHO, Joana Müller de. Angu à baiana: memórias e identidades no Rio de


Janeiro. Monografia não publicada do departamento de Sociologia da PUC-Rio, 2007.

You might also like