Cabo Verde
6 • P2 • Quinta-feira 7 Abril 2011
escolheu pôr “a semente na terra”
Quando se tratou de dar mais formação aos enfermeiros, Cabo Verde enfrentou o “dilema do
camponês, que não sabe se põe a semente na terra ou na panela”. Havia quem achasse que
eles faziam falta no terreno, não nas aulas. Venceu a lógica da terra. Num país que, apesar
das carências humanas e materiais, tem progredido na saúde, eles querem ir mais longe e
prometem actualizar práticas, fazer novas investigações, e aprovar a lei que regule a profissão.
Por Maria João Lopes, em Cabo Verde
a Língua-de-vaca para a febre e
dores de estômago. Alecrim-brabo
para as dores musculares. Aipo-
rotcha para a dor de cabeça e
problemas de menstruação. Para as
doenças do útero e fracturas ósseas,
há folhas da árvore marmulano. E
para combater a falta de apetite nos
animais, há quem garanta que a erva
sabão de feiticeira é bom remédio.
Mas para todas estas e outras
doenças, Mafaldo Amarante, cabo-
verdiano de 75 anos, só usa uma
planta: aloé vera. Até sida e cancro
garante já ter curado.
Em cima da mesa, numa sala
meia abandonada que usa como
refúgio, na Calheta, interior da ilha
de Santiago, há vários papéis e,
pelo menos, dois livros: um Lunário
Perpétuo, com tudo o que precisa de
saber sobre a lua e as estrelas, e O
Novo Guia do Aloés, que um familiar
lhe comprou em Portugal. Mas já
antes deste livro conhecia o poder da
planta. Não é feiticeiro ou bruxo, é
um entre os muitos curandeiros que
há em Cabo Verde.
“Aprendi a curar sida, cancro,
diabetes. Já curei umas 12 pessoas
com sida”, diz. Não é só chegar e
apanhar a planta: “O aloé deve ser
colhido antes do nascer do sol e
depois de ele se pôr. Durante o sol, o
remédio torna-se ineficaz”, explica.
Para fazer o xarope junta-lhe mel,
água, conhaque, grogue, uísque…
Depende dos casos. O curandeiro,
que em tempos deu aulas na escola
primária, acredita que o aloé “limpa
tudo do cérebro à ponta dos pés”.
Claro que há ervas perigosas,
reconhece, mas a planta, também
conhecida por “babosa”, nunca o
deixou ficar mal.
Maria José Pereira, enfermeira
responsável pelo banco de
urgência de pediatria do Hospital
Agostinho Neto – um dos dois
hospitais centrais de Cabo Verde,
situado na capital, cidade da Praia
–, conta, porém, que já houve
casos de crianças que morreram
por causa de remédios caseiros
desconhecidos: “Tivemos aqui
crianças com gastroenterites que
nunca se chegou a saber bem o que
se passou, porque ninguém diz
o que é [dado às crianças]. Antes
de morrerem, vomitam escuro, as
fezes são escuras e a criança fica
dura, dura, dura… Morreu um
bebé de seis meses e uma criança
com cerca de dois anos. Podiam ter
sobrevivido, só não sobreviveram
por causa desse maldito ‘remédio
di terra’”. Já fez queixa à Polícia
Judiciária, mas nunca soube o
desfecho.
Por isso, um grupo de três
professores de Enfermagem e dois
de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade de Cabo Verde (Uni-
CV) decidiu que seria importante
ir para o terreno, para várias ilhas,
conhecer os curandeiros, ou, como
também lhes chamam, mestres em
medicina tradicional.
Uma das docentes é portuguesa,
chama-se Ana Albuquerque Queiroz
e está em Cabo Verde a colaborar na
criação da primeira licenciatura em
Enfermagem do país. É professora
da Escola Superior de Enfermagem
de Coimbra, que tem um protocolo
com a Uni-CV que prevê que a
universidade receba, regularmente,
duplas de professores de Coimbra
durante cerca de três semanas. Ana
Albuquerque Queiroz embarcou,
pela primeira vez, em Outubro de
2008 e repetiu a experiência em
Março. Nessa altura, o Governo
português assinou um protocolo
que permite que professores
portugueses doutorados, de
qualquer área, permaneçam
durante um período que pode ir até
um ano. Novamente em Outubro,
mas de 2009, voltou a partir.
Ficará, pelo menos, até ao final
do ano. Depois está em aberto.
Esteja onde estiver, gostava de
estar presente quando, em Julho
2012, os primeiros licenciados em
Enfermagem do país receberem
o diploma. A Portugal não deve
regressar, já pediu a aposentação.
Como tem 57 anos e a reforma só
chegaria aos 65, vai perder algum
Vocês vão ouvir que
a enfermagem que
nós ensinamos é para
Portugal, Estados
Unidos e Suíça, e não
para Cabo Verde. Nós
temos que fazer a
enfermagem de acordo
com a ciência e a arte
no mundo”
Ana Albuquerque Queiroz
dinheiro, mas neste momento
tem outros objectivos, como
contribuir para estender o ensino
da enfermagem a países onde isso
possa fazer a diferença: “Acredito
que a enfermagem é central para o
desenvolvimento dos países”, diz.
Mas porquê uma licenciatura se
há países, como a Bélgica, a França,
a Espanha e a Itália, onde o ensino
da enfermagem é sobretudo feito
em bacharelatos? A docente admite
que o que interessa é aprofundar
as competências dos enfermeiros,
sobretudo em países como Cabo
Verde, em que estes profissionais
têm que estar preparados para
inúmeras situações, como fazer
partos – o que em Portugal só
acontece se forem especialistas em
saúde materna.
“A Organização Mundial de
Saúde [OMS] preconiza para a
região ocidental africana que os
enfermeiros até possam prescrever
alguns medicamentos, que estão
tipificados, antibióticos não, e fazer
pequenas cirurgias, como suturas,
que também se fazem nos centros
de saúde”, explica Odete Mota,
cabo-verdiana de 27 anos, que
estudou Enfermagem em Coimbra
e agora ensina na Uni-CV. Acredita
que é possível melhorar a saúde
através do ensino aprofundado da
enfermagem: “As boas práticas dos
enfermeiros vão influenciar muito a
saúde da população. Sem dúvida.”
Dilema do camponês
Em marcha está também a criação
da lei que vai regular o exercício
da profissão: “Uma das metas da
Organização Mundial de Saúde,
em conjunto com o Conselho
Internacional de Enfermagem, é que
cada país tenha o seu regulamento
profissional, uma lei. Dos PALOP,
só Angola é que tem”, diz Ana
Albuquerque Queiroz.
Até agora, o que existia em
Cabo Verde, onde há cerca de 500
enfermeiros, era um curso técnico.
A Uni-CV, a única pública do país,
criada em 2006, abriu não só a
primeira licenciatura (que também
já existe no ensino privado), mas
ainda uma formação complementar
que permite a quem fez o curso
profissional ficar licenciado.
Foi em 2008. Nessa altura, havia
sete enfermeiros licenciados no país,
que tinham estudado no estrangeiro.
Agora, no terreno, há mais 100 que
fizeram o curso de complemento. O
reitor, Correia e Silva, conta que foi
preciso “um esforço muito grande”:
“Tínhamos alunos de Santo Antão,
do Paul, que, mesmo quando não
estão a trabalhar, estão de chamada
e não podem sair da sua localidade.
Isto criou-nos algumas tensões com
o Ministério da Saúde. Era o dilema
do camponês que não sabe se põe
a pequena semente na terra ou na
panela. Nós estávamos a querer pôr
na terra.”
Hoje em dia, já há médicos em
todas as ilhas, mas não em todas
as zonas: “Por isso, os enfermeiros
continuam a ter um papel
importantíssimo”, diz Sousa Santos,
director clínico do Hospital Baptista
de Sousa, no Mindelo, que, entre
1987 e 1993, chegou a ser o único
médico no Sal.
Sousa Santos estudou em Lisboa
(não há curso de Medicina em Cabo
Verde) e passou por vários hospitais
portugueses: Santa Maria, São

Uma das estagiárias trata o pé de uma criança
José, Egas Moniz, Estefânia... “Em
Portugal, há outros meios auxiliares
de diagnóstico e uma medicina
mais diferenciada, por isso é que
os nossos doentes de oncologia,
de neurocirurgia e cirurgia
cardiotorácica são evacuados para
Portugal.”
Poucos médicos
Em Cabo Verde, faltam
neurocirurgiões. Não há
radioterapia. Nem ressonância
magnética. Tomografia axial
computorizada (TAC) existe há três
anos. Por ano, o país pode evacuar
para Portugal 300 doentes – em
2009, foram 341. De acordo com
o relatório de 2009 do Ministério
da Saúde de Cabo Verde, as
especialidades que registaram mais
evacuações foram cardiologia,
cirurgia cardíaca, neurocirurgia,
oncologia e ortopedia.
Elizabete Alves, de 25 anos,
desempregada no Mindelo, recorda
que um primo, que teve um
problema num rim, morreu dois
dias antes de ser evacuado. Diz que
esteve demasiado tempo à espera.
Djoy, “nominho” de Jercelino da
Luz, de 31 anos, também do Mindelo,
conta que a irmã de 13 anos teve
uma infecção grave numa perna,
resultante de uma queda, e só foi
evacuada quando o pai, emigrante
no Luxemburgo, regressou a Cabo
Verde e pagou a viagem. “Mas não
chegou a tempo, morreu em cima do
aeroporto.”
O país também enfrenta novos
desafios: “Houve alteração dos
hábitos alimentares dos cabo-
verdianos, passamos a ter patologias
como doenças cardiovasculares,
diabetes, hipertensão, colesterol,
doenças oncológicas…”, enumera
o director do Hospital Baptista de
Sousa. Como a esperança de vida
aumentou – 70 anos para os homens,
75 para as mulheres –, é preciso dar
resposta a idosos com “múltiplas
patologias”.
Ao mesmo tempo, continuam a ter
tuberculose, febre tifóide, infecções
respiratórias, doenças diarreicas
(a última epidemia de cólera foi há
cerca de 15 anos), e, no ano passado,
houve casos de dengue. Há uma
“dupla situação que cria dificuldades
aos serviços de saúde”.
Por isso, defende Sousa Santos, é
necessário “investir nos hospitais,
em tecnologia mais avançada”,
mas antes “resolver o problema
dos cuidados primários”: “A porta
de entrada para o serviço de
saúde continua a ser a urgência e
devia ser o centro de saúde. Caso
contrário, vemos apenas o doente e
os seus episódios agudos, de forma
fragmentada”, diz.
Bons indicadores
Apesar das carências técnicas e da
falta de especialistas, Cabo Verde
tem progredido. No Índice de
Desenvolvimento Humano, está
no melhor lugar entre os estados
africanos de língua portuguesa e os
da Comunidade de Estados da África
Ocidental (no continente africano,
ocupa o 11.º lugar). E os avanços
também são visíveis na saúde.
Segundo dados da OMS, a taxa de
mortalidade infantil em menores de
cinco anos era, em 1990, de 63,1 por
mil nados vivos, e, em 2009, desceu
para 27,5. Neste indicador, Cabo
Verde ocupava, em 2010, o terceiro
melhor lugar em África, atrás apenas
das Seychelles e da Maurícia.
Quanto à saúde materna, o
Relatório dos progressos realizados
para atingir os Objectivos do
Milénio, de 2009, aponta “para
uma tendência de melhoria”,
embora “a prestação de cuidados
de saúde materna no período
pré-natal” continue “deficitária”
nas zonas rurais, assim como “a
presença de pessoal qualificado
na hora do parto”. A enfermeira
superintendente do Hospital
Agostinho Neto, Isabel Sanches, diz
que está para breve a abertura da
nova maternidade. Porém, apesar
dos avanços, há mulheres que,
mesmo vivendo na capital e sendo
familiares de dirigentes hospitalares,
preferem dar à luz no estrangeiro.
Para além de dois hospitais
centrais, há três regionais, vários
centros de saúde, e ainda unidades e
postos sanitários. Foi há cerca de 10
anos que a rede foi alargada. Mas há
dificuldades de comunicação entre
as ilhas: na Brava não há aeroporto
e, com as limitações dos horários do
barco, não há garantias de se evacuar
um paciente numa situação de
emergência. O Governo já prometeu
helicópteros.
Mesmo tendo em conta todas
as dificuldades, se o director do
Hospital Agostinho Neto, Artur
Correia, tivesse dinheiro, as
primeiras medidas que tomaria
seria remodelar a rede eléctrica, de
esgotos e o abastecimento de água:
“Temos muitos constrangimentos,
é um stress permanente resolver
esses problemas, com 300 doentes
internados todos os dias. Temos
um camião que trabalha desde
madrugada num vaivém permanente
[para que não falte a água]. Quando
há problemas na cidade, também
sofremos as consequências”, diz.
Os apagões no país são frequentes.
Outra prioridade era dotar o hospital
de uma unidade de cuidados
intensivos. Há o espaço, falta equipá-
lo.
Hora do estágio
Lá fora, o vento característico da
estação, conhecida como tempo das
brisas ou da bruma seca, não pára.
Os lençóis do hospital – poucos, uma
vez que a maior parte das pessoas
leva os seus de casa – secam ao ar
livre, por vezes soltam-se, caem no
chão. A lavandaria não funciona
em condições, queixam-se os
enfermeiros. São eles quem mais se
queixa. Dizem que a assepsia não
é a ideal, que a esterilização devia
passar a ser feita, em todos os sítios,
por autoclave, não por estufa.
Nas urgências pediátricas, o ar
condicionado está avariado. Reparar
equipamentos nem sempre é fácil,
por falta de mão-de-obra habilitada.
Há poucas ambulâncias, e as que
existem não têm suporte básico de
vida.
Mas há sinais de mudança e, ao
contrário da Urgência de pediatria,
onde tudo tem um ar velho e
ferrugento, o hospital tem duas alas,
que ainda cheiram a novo: uma
para doentes oncológicos, onde já
se faz quiomioterapia, e outra para
consultas externas.
Às 7h00, o jipe pára em frente
do portão da Uni-CV, na Cidade da
Praia. Vai levar três professores de
enfermagem a centros de saúde no
interior da ilha de Santiago, para
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ANDRÉ JEGUNDO
orientar estágios. Pela frente há
duas horas de viagem. O enfermeiro
Nélson Correia, também português,
fica no centro Pedra Badejo, em
Santa Cruz, onde há internamentos e
se fazem partos.
Quando chega, veste a bata e
dirige-se a uma sala onde já estão as
alunas Zilma Duarte e Maria Semedo.
Vê mais de dez doentes: trata dedos
sem unhas, braços feridos por
facadas, vidros alojados dentro
da pele, crianças com a cabeça
rachada, pés diabéticos, pernas com
úlceras… E vai enumerando o que
gostava de ter à mão, mas não tem:
ligaduras elásticas – as que há são de
pano –, cola biológica que não deixa
cicatriz e evita os pontos, tábuas de
imobilização de madeira e não de
cartão, como aquelas feitas a partir
dos caixotes do soro… De Portugal,
levou algumas pomadas e pensos de
plástico para os doentes poderem
tomar banho. Enquanto trabalha,
vai deitando as compressas usadas
e outros materiais para um balde.
À excepção das seringas, que são
colocadas numa caixa de cartão e,
depois, queimadas atrás do centro,
não há separação de lixo.
Ana Albuquerque Queiroz tem
consciência das dificuldades que
eles enfrentam no terreno, mas
não abdica do rigor: “Vocês vão
ouvir que a enfermagem que nós
ensinamos é para Portugal, Estados
Unidos e Suíça, e não para Cabo
Verde. Nós temos que fazer a
enfermagem de acordo com a ciência
e a arte no mundo.” O que podem
é depois, acrescenta, adequar esses
cuidados às condições que têm.
Aqueles alunos sabem que vão ter
que improvisar, o melhor possível.