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RESENHAS REVIEWS 687

O QUE É BIOÉTICA? Debora Diniz & Dirce Gui- zação da bioética, tal constatação é fundamental pa-
lhem. São Paulo, Editora Braziliense, 2002. 70 pp. ra compreender a influência americana nas bioéticas
ISBN: 85-11-00074-7 presentes em diferentes contextos mundiais.
As autoras apontam o Relatório Belmont, docu-
Bioética: um convite à tolerância mento elaborado pelo Congresso dos Estados Unidos
que tinha como meta estabelecer princípios éticos a
O livro da antropóloga Débora Diniz e da enfermeira serem contemplados nas pesquisas científicas com
Dirce Guilhem pode ser considerado uma descrição seres humanos, como um marco fundamental para
sociológica da trajetória da bioética no mundo con- “...a formalização definitiva da bioética como um no-
temporâneo. A obra é dividida em seis partes que vo campo disciplinar...” (p. 23). O Relatório Belmont
abordam os seguintes assuntos: Introdução – breve ao eleger o “respeito pelas pessoas”, “beneficência” e
análise sobre a produção disponível em Língua Por- “justiça”, como os princípios que deveriam pautar os
tuguesa no campo da bioética e apresentação dos procedimentos científicos, promoveu o surgimento
motivos que levaram a produção do livro; Capítulo I – de várias publicações na década de 70 que explora-
gênese e desenvolvimento da bioética no mundo; Ca- ram sob diferentes aspectos os embates morais exis-
pítulo II – a difusão da bioética nos Estados Unidos e tentes no campo da saúde, e culminaram no surgi-
sua importância para a consolidação da disciplina; mento da teoria principialista que tem na obra inti-
Capítulo III – a teoria principialista e sua influência tulada Princípios da Ética Biomédica, sob autoria do
em bioéticas produzidas em países periféricos, como filósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress,
o Brasil; Capítulo IV – as contribuições teóricas de publicada em 1979, um de seus expoentes. Apresen-
Tristam Engelhardt, Peter Singer e de autoras femi- tados e didaticamente exemplificados os pressupos-
nistas para o avanço da disciplina; Conclusão – o pa- tos da teoria principialista, Diniz & Guilhem expõem
pel e os desafios da bioética no mundo contemporâ- as dúvidas que passaram a recair sobre a legitimida-
neo. Partindo das teorias centrais presentes no cam- de e adequabilidade dos princípios propostos. Se-
po da bioética e as contribuições que representaram riam os princípios aplicáveis às diversas sociedades
para o estabelecimento da disciplina, o leitor é leva- presentes ao redor do mundo? Inicialmente, os de-
do a construir uma concepção sobre o significado e o fensores da teoria principialista acreditaram na su-
papel desse novo campo do conhecimento científico posta universalidade dos princípios, mas, posterior-
na contemporaneidade. mente, foi possível constatar que “...as diferenças exis-
A década de 60 abrigou importantes avanços tec- tentes entre as inúmeras culturas e mesmo dentro dos
nológicos e o surgimento de vários movimentos so- arranjos sociais de cada cultura foram deliberada-
ciais, responsáveis pela promoção de direitos huma- mente ignoradas...” (p. 33). A bioética perdia assim o
nos ou mesmo a defesa da liberdade de expressão rei- seu propósito original de “instância mediadora”, uma
vindicada por diferentes grupos étnicos, religiosos, vez que determinava por meio de princípios, compar-
políticos, culturais e ideológicos. Foi nesse cenário tilhados apenas por algumas moralidades, procedi-
que as pesquisas no campo da medicina passaram a mentos capazes de lidar com situações conflituosas.
ser alvo de questionamentos morais. O livro apresen- Como resultado das ambigüidades presentes na
ta episódios marcantes desse período e também de teoria principialista, surgiram perspectivas críticas
outras épocas, tais como os controversos experimen- que contribuíram para o amadurecimento da disci-
tos científicos realizados durante a II Guerra Mun- plina e difusão desse novo campo da ciência no ce-
dial, a publicação de artigos nos quais são apresenta- nário mundial. Nesse sentido, as autoras adotam os
das as maneiras como os profissionais da medicina conceitos de central e periférico para descrever e
se arrogavam os procedimentos a serem adotados analisar as diferentes perspectivas bioéticas. São
com relação aos pacientes, e a utilização de cobaias identificados como países centrais aqueles pioneiros
humanas para pesquisas. Esses são alguns dos fato- na produção, consolidação e disseminação da bioéti-
res apontados no texto como os desencadeadores do ca; e no grupo dos países periféricos se encontram
processo que conduziu “...a opinião pública a perce- aqueles que posteriormente ingressaram no campo
ber que nem tudo estava moralmente correto no cam- de estudos da bioética e ainda são grandes importa-
po da ciência, da tecnologia e da medicina...” (p. 18). dores das teorias produzidas em países centrais. Nes-
A autoridade da medicina passa a ser questionada em se sentido, o texto apresenta o Brasil como um país
virtude dos conflitos morais suscitados, fez-se neces- periférico onde se pode observar, por exemplo, forte
sário estabelecer o diálogo entre as diferentes pers- influência da teoria principialista, por vezes, equivo-
pectivas envolvendo os vários aspectos relacionados cadamente adotada em detrimento das especificida-
às práticas de saúde, e sendo assim emerge a “...bioé- des presentes no contexto brasileiro. Ao sugerir os
tica como uma instância mediadora e democrática conceitos de central e periférico as autoras destacam
para os conflitos morais” (p. 20). Merece destaque a que se tratam de conceitos relacionais, ou seja, o Bra-
maneira como os Estados Unidos são identificados sil embora periférico em relação aos Estados Unidos,
no livro como pioneiro no processo de institucionali- pode ser considerado um país central no cenário da

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América Latina, em virtude do avanço das pesquisas rizada por ser epistemicamente ampla e socialmente
e disseminação dos conhecimentos. relevante, a desafiar estudos e gestões consistentes e
O livro O Que é Bioética?, ao destacar a impossi- confiáveis. Das várias abordagens que comportam
bilidade do estabelecimento de princípios universais sua polissemia, talvez a que concentra maior grau de
legítimos no sentido de comportar o pluralismo ca- complexidade e maior número de armadilhas seja
racterístico entre as pessoas portadoras de moralida- aquela que busca entendê-la na dimensão dos indi-
des distintas, propõe o surgimento de diferentes cadores macrossociais, envolta em questões como
bioéticas que almejam reconhecer as diferenças e valores culturais, desenvolvimento, sustentabilidade,
promover a tolerância como requisito fundamental à organismos internacionais, controle social, avaliação
mediação das situações conflituosas sobre as quais a de gestões locais, organizações populares, iniciativas
bioética tem se debruçado. Desse modo, é possível institucionais, enfim, todo um conjunto de saberes e
observar que o livro destaca as vantagens que o mé- fazeres referentes à participação dos diferentes gru-
todo etnográfico pode conceder aos pesquisadores pos sociais nas decisões que lhes dizem respeito. Pro-
da bioética cônscios do papel a ser desempenhado duções elaboradas para tratar da matéria, portanto,
pela disciplina. Explorando o conceito de “relativis- resultam de processos executados por protagonistas
mo”, as autoras destacam a importante contribuição organizados e comprometidos, fato que, admitamos,
que estratégias etnográficas de investigação podem não é dos mais encontradiços na cena universitária
oferecer no sentido de identificar os diferentes atores brasileira. Daí celebrar-se com o mais diferenciado
sociais em situação de conflito, e estabelecer mecanis- interesse e entusiasmo as iniciativas que emergem
mos de mediação capazes de promover a tolerância. em nosso meio lidando com QVS nessa perspectiva.
Autores como Tristam Engelhardt e Peter Singer, De fato, há aproximadamente três anos contou-se
são apresentados no livro como contribuintes de im- com obra paradigmática nesse sentido, capitaneada
portância destacada no estabelecimento de pressu- pelo respeitável grupo da Escola Nacional de Saúde
postos bioéticos que reconhecem e analisam a ques- Pública e publicada em volume temático da Ciência
tão das diferenças morais em suas produções teóri- & Saúde Coletiva. Desde então, o respectivo acúmulo
cas. As autoras apresentam e explicam conceitos co- de informação foi clamando cada vez mais por uma
mo os de “estranhos morais” e “amigos morais”, como atualização sucedânea. Ei-la que aparece neste livro
categorias chave que foram introduzidas por Enge- simultaneamente técnico e simpático!
lhardt no campo da bioética. A teoria especista é tam- Trata-se de coletânea de eventos nucleados pela
bém explorada no livro e possibilita que o leitor com- iniciativa conjunta de três setores da realidade inte-
preenda questões polêmicas proposta por Singer, co- lectual paulista: a municipalidade, a instituição de
mo a sacralidade da vida humana tão aclamada em pesquisa e o órgão de fomento. De fato, da articula-
culturas ocidentais. As autoras apresentam também ção entre a Prefeitura Municipal de Santo André, o
a gênese e o avanço das perspectivas feministas para Instituto de Saúde e Fundação de Amparo à Pesquisa
a bioética, que baseadas nas desigualdades entre gê- do Estado de São Paulo surgiu a conjugação de esfor-
neros têm contribuído substancialmente para o ama- ços acadêmicos, sociais e políticos, que desova este
durecimento dos debates estabelecidos. primeiro produto documental bibliográfico. Consiste
A obra apresenta a bioética como um mecanismo da composição de dois principais componentes: no
acadêmico que promove o exercício da tolerância primeiro, reúnem-se textos conceituais sobre aspec-
junto a sociedades plurais. Como os demais exempla- tos contemporâneos das políticas públicas relaciona-
res que compõem a Coleção Primeiros Passos da Edi- das à QVS e recuperam-se experiências encetadas em
tora Braziliense, o livro O Que é Bioética? pode ser nosso país a respeito, como a preparar melhor enten-
considerado uma obra seminal, visto que não se res- dimento para o segundo, destinado a dizer mais dire-
tringe a expor a trajetória da bioética no mundo e seu tamente do Observatório de Qualidade de Vida de
desenvolvimento no Brasil, como também apresenta Santo André, entendido este, como se verá mais à
os principais desafios que se colocam para esse novo frente, como “um sistema de informações”, uma “me-
campo do conhecimento científico. Trata-se de uma todologia de monitoramento” (p. 120). Assim se põe,
leitura indispensável não somente a estudantes de portanto, o objetivo específico em tela: narrar funda-
graduação, público alvo desse tipo de publicação, mas mentos e primeiras manifestações decorrentes da de-
aos pesquisadores e profissionais envolvidos no seu cisão política de transformar a qualidade de vida de
cotidiano com questões relacionadas à bioética, visto uma cidade brasileira na atualidade, no caso Santo
que o livro é antes de tudo um convite à reflexão. André, localizada como sabido, na região metropoli-
tana de São Paulo.
Cristiano Guedes Importa então, começar pela verticalização da re-
ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos
lação entre planejamento urbano e QVS. A isto se lan-
e Gênero, Brasília, Brasil.
ça Claudete Silva Vitte, da Universidade Estadual de
Campinas, logo no primeiro segmento. Partindo da
associação básica entre cidade e cidadania, demons-
QUALIDADE DE VIDA: OBSERVATÓRIOS, EXPE- tra ela um esvaziamento político dessa discussão em
RIÊNCIAS E METODOLOGIAS. T. Keinert & A. P. nosso meio, no contexto da evolução trifásica do ur-
Karruz. São Paulo, Annablume/Fundação de Am- banismo: em seus termos, no primeiro estágio, têm-
paro à Pesquisa do Estado de São Paulo, 2002. se a face funcionalista, resultante de modelos erigi-
208 pp. dos por sanitaristas, sociólogos e outros profissio-
ISBN: 85-7419-283-X nais, para estabelecer a ordem social, ameaçada por
epidemias, rebeliões e delinqüências; o paradigma
Qualidade de Vida em Saúde (QVS) constitui, atual- subseqüente foi o ecologismo, ou ambientalismo, em
mente, área do conhecimento e intervenção peculia- que persiste a característica de crença no poder ra-

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cionalizador da ciência para dissipar a angústia da são problematizados”. Daí a necessidade imperiosa
catástrofe ecológica: em outros termos, ao planeja- de mudança a respeito e a singular contribuição des-
mento esverdeado cabe minimizar a degradação ta obra no processo.
energética e desacelerar a trajetória da irreversibili-
dade. A terceira matriz discursiva da sustentabilidade Aguinaldo Gonçalves
Faculdade de Educação Física,
urbana vê a cidade como espaço da qualidade de vi-
Universidade de Campinas, Campinas, Brasil.
da: tal visão leva a um questionamento, a uma busca
de diálogo e negociação, que compõem o processo de
construção de direitos, como os relativos à existência
saudável e à preservação dos patrimônios histórico e BIOÉTICA E BIORRISCO. ABORDAGEM TRANS-
natural. O hipertexto de tal movimento é contempla- DISCIPLINAR. Silvio Valle & José Luiz Telles. Rio
do a seguir. de Janeiro, Editora Interciência, 2003. 417 pp.
Prosseguindo nesse quadro teórico-metodológi- ISBN: 85-7193-075-9
co, o capítulo dois trata de operar essas abordagens
pela agenda social de diferentes organismos interna- Este é um livro impressionante sobre a fronteira da
cionais, destacadamente a Organização Mundial da ciência e tecnologia e que focaliza a engenharia ge-
Saúde, o Banco Mundial, o Centro das Nações Unidas nética, em diferentes níveis, como na sua relação com
para Assentamentos Humanos, conhecido como Ha- o mercado, riscos, segurança, sociedade, ética e mí-
bitat. Isso implica o rever a inserção de correspon- dia, colocando brilhantemente juntos, assuntos de
dentes indicadores sociais nas políticas públicas, ou diferentes especialidades sobre o bem-estar e a so-
seja, exige explicitar tanto os elementos conceituais brevida da espécie humana. Composto de vinte arti-
como as propriedades dos mesmos e suas diferentes gos, desenvolvidos por vinte e oito destacados e so-
naturezas setoriais, quanto fatos concretos relaciona- fisticados profissionais, não poderia ter sido escrito
dos à disponibilidade de fontes para sua construção e por pessoas que não tivessem a prudência, a sensibi-
à mitificação do Índice de Desenvolvimento Humano. lidade, a sabedoria e a percepção necessárias para
Outra pertinência diretamente envolvida na revi- olhar o futuro possível e sumariar o excitante pro-
são de indicadores de qualidade de vida numa cidade gresso da ciência e tecnologia nessa área, bem como
paulista configura-se no procedido a seguir, isto é, o suas conseqüências para o planeta. A previsão é di-
conhecimento do chamado Índice de Responsabili- fícil, principalmente quando é sobre o futuro, mas
dade Social. Iniciativa da Fundação Seade da Secreta- atual. Urgente e escrupulosamente escrito, o livro te-
ria de Estado de Planejamento de São Paulo, por en- rá grande impacto no debate sobre bioética, biorris-
comenda da Assembléia Legislativa, alcançou classifi- cos e biossegurança nos próximos anos. É indispen-
car os 645 municípios paulistas em cinco padrões de sável que se compreenda as vantagens, potenciais
qualidade de vida, a partir dos três parâmetros básicos riscos, desafios e impactos desta área sobre o bem-
de riqueza municipal, longevidade e escolaridade. estar e a sobrevida da espécie humana.
Assim referenciada, a equipe local, coordenada
pela Profa. Tânia Kainert, inicia o relato da aventura Eloi S. Garcia
Academia Brasileira de Ciências, Rio de Janeiro, Brasil.
andreense. O desafio 1 identifica-se pelo que pontua
de definição dos conceitos, reducionismos e priori-
zações. Ao recuperar numerosas concepções de QVS,
rememora a questão do viver mais e melhor, onde CONFLITOS MORAIS E BIOÉTICA. Debora Diniz.
destaca o chamado “paradoxo francês”, ou seja, a es- Coleção Bioética. Brasília, Letras Livres, 2001.
perança de vida na França é maior que a dos Estados 212 pp.
Unidos, não obstante a renda média ser maior neste ISBN: 85-901938-2-9
último e a população francesa ser mais freqüente-
mente tabagista e mais consumidora de álcool, em Bioética: caminho para a tolerância nos conflitos
média. Em outros termos, vale dizer que QVS não é a morais freqüentes no campo da saúde
soma aritmética de frações de risco ou de fatores de
proteção, mas algo que, vivo, deflui de situações cul- O papel da bioética não é ser tão-somente uma ferra-
turais e interpessoais. menta de intermediação de confrontos morais sobre
Outras experiências de sistemas locais de infor- questões envolvendo seres humanos e animais não-
mação para gestão pública da QVS são apreciadas na humanos: a bioética surgiu da necessidade de culti-
seqüência com objetivos pedagógicos, como a do Es- var o espírito da tolerância como ingrediente de pre-
tado do Paraná, a do Programa de Aprimoramento servação do dissenso ético e da pluralidade moral
das Informações sobre Mortalidade da Cidade de São que permeiam a vida humana em coletividade. Va-
Paulo, a do Índice de Qualidade de Vida Urbana de lendo-se desta idéia, a antropóloga Debora Diniz de-
Belo Horizonte e a do Observatório da Cidadania, em cidiu subverter o estilo tradicional de apresentação
Belém do Pará. Uma riqueza de acumulações vai sen- do tema bioético no Brasil. Ao contrário do que se po-
do aportada sucessivamente, cabendo citar enfática deria esperar, não se discute teoria bioética propria-
e conclusivamente a denúncia de Maria Célia Nunes mente dita neste livro. Como diz o filósofo Sérgio Pau-
Coelho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao lo Rouanet no prefácio do livro, Debora Diniz é ousa-
lembrar a existência de “um certo voluntarismo nas da: apresenta uma nova fenomenologia das atitudes
análises convencionais de impactos ambientais que as morais, mostrando sua convicção de que os seres hu-
tornam pobres e superficiais”: “há um senso comum manos são resultado do processo de moralização so-
mesmo dentro das academias sobre o que seja impacto cial a que são submetidos ao longo da vida, e de que
ambiental e Qualidade de Vida – tais conceitos, com é importante duvidar das marcas morais que eles re-
raras exceções, são tidos como já dados e raramente cebem durante esse processo. A autora acredita que a

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dúvida sobre a própria moralidade é um caminho 123), consegue atingi-lo: para ele, nada é real. O espí-
possível para o reconhecimento dos estranhos mo- rito antitrágico, por sua vez, no extremo oposto, reve-
rais e da variedade das metáforas e fantasias huma- la a ética da exclusividade, em nome da qual ele bus-
nas: é o estágio preliminar para aprender a exercitar a ca difundir pela palavra suas verdades morais, como
tolerância. missionários que catequizam. Intolerante por natu-
Em geral, os pesquisadores da bioética são inicia- reza, o espírito antitrágico vive sob o manto das cren-
dos no tema do conflito moral por um encontro es- ças morais.
treito com a alteridade, em que estudos de caso sobre Mas o personagem que provoca o maior fascínio
“..africanas mutiladas, chinesas que matam suas fi- no decorrer de sua narrativa é certamente a ironista:
lhas bebês, indianos que vendem órgãos, holandeses “...o que caracteriza a ironista, afora sua semelhança
que matam seus velhos, russas que ignoram humani- com os outros personagens antitrágicos, é o exercício
dade no feto...” (p. 31), entre outros, permeiam as ati- permanente da curiosidade. Pela curiosidade, a iro-
vidades de reflexão no campo. A antropóloga propõe nista acredita poder aperfeiçoar sua sensibilidade
um caminho para sublimar este casuísmo: para lidar para a mudança moral...” (p. 141). Esta semelhança
com o imperialismo ético que caracteriza as discus- com os personagens antitrágicos existe porque a iro-
sões sobre os conflitos morais na bioética, a autora nista, surpreendentemente, também serve a valores
faz uma tipologia das atitudes morais. Para isso, ela morais. Assim, embora busque inspiração no cavalei-
elegeu três personagens alegóricos para ilustrar sua ro do absurdo para ampliar seu olhar moral, a ironis-
narrativa: Abraão, Antígona e Zaratustra. ta vive sob as amarras das ilusões morais, mas não na
Um aspecto curioso de sua abordagem está no fa- mesma medida do herói antitrágico, o que marca sua
to de que, apesar de haver buscado nos personagens diferença em relação a ele. A ironista é fascinante exa-
do filósofo dinamarquês Soren Aabye Kierkegaard e tamente porque traz em si a vontade de auto-supera-
do filósofo americano Richard Rorty o referencial pa- ção para abandonar suas crenças morais: ela cultiva a
ra construir sua leitura sobre a fenomenologia da capacidade de realizar, com freqüência, um movi-
moral, Diniz não os replicou da maneira como foram mento de autocrítica contra seus próprios pressupos-
concebidos originalmente por seus criadores. A auto- tos morais, perfazendo, dessa forma, um ciclo inter-
ra buscou uma inspiração livre para apresentar os minável de morte/renascimento moral, como sugeria
mesmos personagens sob diferentes ângulos: para Nietzsche. A ironista simboliza a dúvida; o reconhe-
ela, o cavaleiro da fé de Kierkegaard, interpretado por cimento da falibilidade de suas escolhas morais.
Abraão, passa a ser o cavaleiro do absurdo, em nome É estimulante perceber que, em sua narrativa, di-
da insanidade de sua individualidade. A ironista, uma vidida em três capítulos para cada alegoria, a autora
personagem criada por Rorty, por sua vez inspirada não abandona o(a) leitor(a) à tentação de comparar e
em Zaratustra (de Friederich Nietzsche), teve suas confrontar as atitudes morais dos personagens entre
qualidades nietzscheanas de desprezo e sarcasmo re- si: ciente da possibilidade de confusão entre alguns
forçadas pela autora. comportamentos morais dos personagens ilustrados
A partir da narrativa de Kierkegaard, Diniz recon- em suas sagas, ela identifica com precisão o exato
ta a trajetória bíblica de Abraão, que, guiado pelo seu ponto de suas diferenças e as sutilezas que marcam
pacto de fé com Deus, aceita como possível assassi- as características de cada um. Uma passagem inte-
nar o próprio filho, e mostra que a prerrogativa de lo- ressante e fundamental para compreender melhor
calizar-se na tragédia, isto é, de estar imune aos refe- a figura do cavaleiro do absurdo, está presente, por
renciais morais existentes, é exclusiva deste persona- exemplo, quando a autora, valendo-se de uma figura
gem. Na trama das moralidades, Abraão é o único de retórica, explica que o cavaleiro do absurdo posi-
personagem capaz de viver a tolerância sem ser ani- ciona-se além dos limites do real – livre das pressões
quilado pela diferença moral. Para representar o es- aniquilantes das moralidades –, mas não por pura in-
pírito antitrágico e intolerante, que defende inflexi- consciência ignorante. O cavaleiro do absurdo “...sa-
velmente suas convicções morais, Diniz recorreu à be sem sofrer...”, ou seja, ele tem consciência do pior,
peça de Sófocles, encontrando em Antígona a figura apenas não sofre por ele, localizando-se acima dele
exemplar e que, segundo Rouanet, esta seria a perso- (p. 85). Nesse sentido, o cavaleiro do absurdo é a úni-
nagem mais original de seu livro: o herói antitrágico, ca possibilidade de execução de um projeto trágico
ícone da submissão humana às ilusões morais. para a humanidade, mas, ao mesmo tempo, suas fa-
Para compreender a narrativa, no entanto, é pre- culdades estão fora do alcance das faculdades dos se-
ciso estar atento ao fato de que o trágico, no campo res humanos, pois o homem suporta mal a crueldade
das moralidades, não significa o inesperado, a catás- da realidade, tese defendida pelo intérprete do pen-
trofe ou a dor, nem associa-se a uma ação própria pa- samento trágico, Rosset, em seu livro O Princípio da
ra suscitar o par terror/piedade que culmina em um Crueldade (p. 85).
acontecimento funesto de uma peça teatral. O trági- Assim, a história de cada um destes personagens
co é a ausência de natureza nas crenças morais. Trá- serve de pano de fundo para a reflexão sobre as três
gico e antitrágico são formas de expressão da cruel- formas de atitude moral que a autora acredita pode-
dade e da ilusão, segundo o filósofo Clement Rosset, rem resumir a expressão humana: a loucura, a certeza
uma fonte de inspiração constante em Conflitos Mo- e a dúvida. Essas três atitudes morais, condensadas
rais e Bioética. O pensamento trágico caracteriza-se na figura de outra personagem ficcional, Tashi, são o
pela ética do acolhimento: não exclui quaisquer cren- ponto de partida escolhido pela autora para anteci-
ças morais possíveis, pois não defende nenhuma par as idéias do livro. Valendo-se de Tashi, do roman-
crença, o que o torna completamente tolerante. Por ce Possuindo o Segredo da Alegria, da feminista negra
isso, Abraão, símbolo da tragédia, não sofre a dor da Alice Walker, Diniz aborda uma questão clássica da
realidade com o assassinato de seu filho, porque na- bioética: o choque de valores culturais a respeito da
da, “...por mais grotesco que soe à moralidade...” (p. prática da circuncisão genital feminina. A história re-

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vela uma mulher pertencente a uma sociedade ima- significa que seria impossível criar um tribunal defi-
ginária da África de colonização francesa, a etnia nitivo e universalmente válido além das moralidades,
Olinka, que não se submete à mutilação genital. Mais voltado a decidir sobre as diferenças morais. Definiti-
tarde, no entanto, movida pelo sentimento de exclu- vamente, a bioética não é um projeto moral que se
são do grupo, de perda da identidade de mulher Olin- arroga a missão de resolver conflitos – o que é dife-
ka e de sua feminilidade, Tashi decide mutilar-se já rente de dizer que possa intermediá-los. É possível
adulta. Mas, após casar-se com um afro-americano, dizer que a bioética tem o papel de assimilar o hori-
mudar-se para os Estados Unidos e engravidar, Tashi zonte moral no campo dos conflitos morais em saú-
é objeto de reprovação moral durante o parto, em um de, assumindo um papel educativo de sensibilização
mundo onde sua cicatriz é apenas o símbolo rude de moral. Com o reconhecimento da pluralidade moral
um ritual cruel de opressão feminina. Sentindo-se de humanidade, Diniz acredita que a tolerância é a
humilhada, ela reage pela loucura: retorna à África e primeira virtude fundamental na moralidade do res-
mata a mulher que lhe castrou. peito mútuo, e que talvez a melhor solução seja en-
A autora reconta essa trajetória antitrágica/trági- contrar mecanismos para garantir uma coexistência
ca, exatamente porque a personagem “...é uma alego- pacífica entre os estranhos morais diante de suas di-
ria de todos os personagens reais que cotidianamente ferenças. A convivência com personagens tão inten-
experimentam a dor da desilusão moral nos conflitos sos quanto Zaratustra ou Antígona, embora seja uma
bioéticos...” (p. 30). Com isso, a autora mostra a plau- experiência de sofrimento, é uma janela para que os
sibilidade do princípio da flexibilidade moral, isto é, seres humanos reconheçam a contingência de todas
da viabilidade das metamorfoses morais diante de as crenças. E, exatamente por isso, o livro de Diniz
desilusões. Tashi, entretanto, é apenas o impulso em tem importância no cotidiano pragmático dos pes-
direção à cruzada das atitudes morais: ela é o fio da quisadores do campo da bioética e usuários e profis-
meada que resume os três personagens do livro: sionais do campo da saúde, onde as diferenças mo-
Abraão, Antígona e Zaratustra. E, neste exato ponto, é rais são tão freqüentes e o exercício da tolerância é
possível encontrar uma afinidade de idéias com o algo doloroso.
pensamento rortyano quanto ao princípio da solida-
riedade humana, segundo o qual é preciso ver os es- Arryanne Queiroz
ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos
tranhos morais como companheiros de sofrimento,
e Gênero, Brasília, Brasil.
na esperança de aumentar a sensibilidade e tornar
mais difícil marginalizar pessoas com percepções e
valores morais distintos dos hegemônicos. Nesses
termos, a idéia é colocar à prova o vocabulário moral EVALUACION Y MEJORA DEL DESEMPEÑO DE
final disponível na busca pela constante reconstru- LOS SISTEMAS DE SALUD EN LA REGION DE
ção individual. Para a autora, a dúvida serve aos pro- LAS AMERICAS. Organización Panamericana de
pósitos deste processo. la Salud. Washington, DC, Organización Paname-
A opção pela ficção em detrimento dos persona- ricana de la Salud, 2001. 71 pp.
gens reais foi o mecanismo eleito pela autora para, ISBN: 92-75-07387-2
em primeiro plano, atender às qualidades estéticas
sugeridas por Rorty, e ainda, para alcançar um dis- Diversos organismos nacionales e internacionales
tanciamento cínico – porém, saudável – da infelicida- han enfatizado durante décadas la necesidad de avan-
de que assombra os conflitos morais. Essa forma de zar en el planeamiento, organización e implementa-
enfrentar a crueldade do real foi, sem dúvida, uma al- ción de los servicios de salud. Y no es sino hasta fe-
ternativa confortável para viabilizar uma maior flexi- chas recientes que se alzan múltiples voces destacan-
bilidade no trato da dor e do sofrimento inerentes aos do la ausencia de evaluaciones sistemáticas y perma-
conflitos morais. Essa ausência proposital de referên- nentes de los sistemas y prácticas de atención médi-
cias a casos bioéticos tal como tradicionalmente se ca. Este interés, según ciertos estudiosos, deriva de la
põe a bioética é uma característica interessante de imposición de los organismos financieros, más que
sua abordagem, que permite ao(à) leitor(a) valer-se de las necesidades y propuestas de la población, los
da imaginação e repertório de discórdias morais coti- usuarios o los directivos del mismo sector.
dianas para compreender a proposição teórica sobre La obra objeto de esta reseña Evaluación y Mejo-
a tragicidade que Diniz apresenta no livro. Exatamen- ra del Desempeño de los Sistemas de Salud en la Re-
te por isso, embora existam raríssimas referências à gión de las Américas cubre esta laguna. Se trata del
bioética no decorrer do livro, o título escolhido ajus- producto más reciente de las iniciativas llevadas a ca-
ta-se com precisão ao objetivo de seu texto. Para Sér- bo por la Organización Panamericana de la Salud
gio Paulo Rouanet, que prefaciou o livro, o título curto (OPS) en torno a la evaluación de los sistemas de sa-
conseguiu aguçar a curiosidade do(a) leitor(a) e con- lud. La misma es el resultado de varias reuniones rea-
vidá-lo(a) para uma reflexão filosófica sobre a mora- lizadas en la región de las Américas durante el año
lidade feita com “...estupenda originalidade...” (p. 9). 2001 en respuesta al trabajo El Informe sobre la Salud
Neste exato ponto, a antropóloga esclarece que a en el Mundo 2000. Mejorar el Desempeño de los Siste-
bioética deve voltar seus esforços argumentativos pa- mas de Salud el cual fue publicado por la Secretaría
ra o espírito antitrágico, o espírito da intolerância por de la Organización Mundial de la Salud (OMS)a fines
excelência, revelando uma das principais conclusões del año 2000. Tal informe ofrece un examen crítico de
de seu livro: “...os pesquisadores da bioética são, antes los atributos de los sistemas de salud que a juicio de
de tudo, missionários da dúvida...” (p. 68). Mas, ainda sus autores deben ser evaluados y mejorados para
assim, a bioética é essencialmente antitrágica: “...não obtener mejores resultados en salud.
há como mediar ou mesmo solucionar conflitos mo- El libro presenta, tanto en español como en in-
rais senão pelo recurso a certas ilusões...” (p. 68). Isso glés, cuatro documentos íntimamente relacionados:

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692 RESENHAS REVIEWS

la Consulta regional sobre la evaluación del desem- Esta obra ofrece un panorama de la perspectiva
peño de los sistemas de salud, el Grupo de trabajo de adoptada por la OPS en relación al tema. No se trata
la región de las Américas sobre la evaluación del de- ni de la única ni la mejor. De hecho, la obra ofrece
sempeño de los sistemas de salud y, la Discusión so- una perspectiva de corte utilitarista cuyo objetivo
bre la evaluación del desempeño de los sistemas de central es impulsar modelos de atención a la salud
salud en el 43 o Consejo Directivo del Comité Regio- más eficientes. La propuesta de trabajo parece incor-
nal de la OPS/OMS, así como anexos con dos resolu- porar elementos novedosos al campo de la salud; sin
ciones relativas al tema. embargo, persisten múltiples supuestos y elementos
El lector interesado en el tema encontrará en es- de modelos considerados del pasado. Entre otros, se
tos documentos una serie de propuestas en torno a aspira a encontrar indicadores objetivos, mensura-
tópicos centrales de la misma evaluación desde la bles y aplicables a diversos sistemas y contextos. Den-
perspectiva de la máxima instancia regional en mate- tro de esta propuesta no caben criterios subjetivos o
ria de salud. Entre otros, destacan señalamientos so- acordes a las condiciones sociales y culturales de la
bre el interés de estos organismos en la adopción de población a que se hace referencia. Grupos de exper-
enfoques normatizados para evaluar los servicios de tos determinan el marco, los fines y los criterios a em-
salud. Pero también hallará un conjunto de propues- plear; en consecuencia la población termina siendo
tas sujetas al debate sobre los indicadores, los méto- objeto de dicha evaluación. A pesar del reconoci-
dos y los datos utilizados para llevar a cabo la evalua- miento del papel de la población como actor central
ción de dicho desempeño. Aquí sobresale la reco- de los sistemas de salud. Tampoco se encuentran ves-
mendación de ambos organismos para desarrollar tigios de los modelos de evaluación crítica, transfor-
una metodología con el fin de evaluar en forma com- madora o interpretativa. Para el caso Latino America-
parativa el desempeño de los sistemas de salud a ni- no tales consideraciones han sido de peso en la dis-
vel internacional por lo cual es apremiante desarrol- cusión sanitaria en las últimas décadas.
lar indicadores en esa dirección. Lo anterior no obsta para revisar esta obra con
A una de las propuestas más desarrolladas por los detenimiento. Sin duda, habrá de ser un documento
participantes de estas reuniones convocadas por la de referencia de un modelo que parece habrá de de-
OPS se le denomina el enfoque “tablero de mandos” sarrollarse ampliamente en la región en el futuro.
(traducción del inglés del término dashboard ap- Ojalá su lectura sirva para ampliar el debate y llevar
proach). Tal enfoque incluye cinco grandes campos al plano de lo público preguntas como ¿quién debe
de acción que se considera están involucrados y por evaluar las políticas y programas socio-sanitarios?,
lo cual habrán de ser objeto de evaluación: la situa- ¿se debe aspirar a encontrar indicadores únicos y uni-
ción de salud (condiciones de salud, capacidad para versales en torno a la evaluación?, ¿qué papel juega la
valerse, bienestar y muerte), determinantes no médi- población en la evaluación de los programas y servi-
cos de la salud (comportamientos saludables, condi- cios?, ¿habrá de ser diferente la evaluación impulsada
ciones de vida y trabajo, recursos personales, factores por los partidos y gobierno de izquierda respecto a
ambientales), los sistemas de salud (rectoría, finan- los de derecha?, ¿habrá de impulsar el movimiento
ciamiento y aseguramiento), prestaciones de servi- médico social propuestas específicas de evaluación
cios de salud (cuidado clínico, cuidado preventivo y en contraposición a aquellas impulsadas por estos
cuidado a largo plazo) y las características del siste- organismos?. Estas y otras preguntas determinarán la
ma de salud y de la comunidad (características de- discusión en un futuro no muy lejano tanto en las re-
mográficas, humanas, financieras y recursos mate- vistas académicas como en los foros de discusión de
riales; resultados del sistema de prestación de servi- las políticas públicas.
cios de salud).
La obra aquí comentada no ofrece una visión ho- Francisco J. Mercado-Martínez
Coordinador Programa Investigación Cualitativa
mogénea sobre la evaluación de los sistemas de sa-
en Salud-México, Guadalajara, México.
lud. Varios puntos de tensión aparecen a lo largo de fmercado@cucs.udg.mx
la misma. Frente a las propuestas unívocas de la Se-
cretaría de la OMS destacan críticas de ciertos países
y académicos sobre lo inadecuado de algunos de los
indicadores empleados para dar cuenta de las reali- THE XAVÁNTE IN TRANSITION: HEALTH, ECOL-
dades nacionales. También se enfatiza que una pro- OGY AND BIOANTHROPOLOGY IN CENTRAL
puesta de esta naturaleza contraviene los acuerdos BRAZIL. Carlos E. A. Coimbra Jr., Nancy M. Flow-
establecidos previamente entre los representantes de ers, Francisco M. Salzano & Ricardo V. Santos.
la sanidad de los países y la misma OMS. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2002.
La evaluación de los servicios de salud constituye 344 pp.
una de las acciones prioritarias de los servicios médi- ISBN: 0-472-11252-X
cos a nivel mundial, regional, estatal y municipal en
el futuro próximo. Sea por convencimiento personal, A primeira imagem na exposição Da Antropofagia a
como una lucha para impulsar el cambio social o por Brasília, montada pelo Museu de Arte Brasileira da
la imposición de los organismos financieros interna- Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em co-
cionales, atrás habrán de quedar aquellas modalida- memoração à Semana de 1922 é a fotografia de um
des de evaluación de los servicios de atención a la sa- índio do Brasil Central “empurrando” um avião da ex-
lud en donde criterios personales o políticos eran los pedição nacional à Serra do Roncador, em 1943. Esta
determinantes del diagnóstico final de los servicios. imagem simboliza, à perfeição, uma das questões
El creciente recorte de los recursos financieros, para- centrais do livro The Xavánte in Transition: Health,
dójicamente, habrá de influir en una mayor inversión Ecology and Bioanthropology in Central Brazil. A
en materia de evaluación. transição mencionada no título remete não somente

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RESENHAS REVIEWS 693

à transição epidemiológica experimentada por esse identificar claramente os impactos das diferentes fa-
grupo étnico, mas, principalmente, à transição entre ses da história das relações entre a sociedade local e a
a cultura tradicional desse povo antes do contato e sociedade nacional. Os autos e baixos dessa aproxi-
integração na sociedade nacional, e seu modo de vi- mação se tornam visíveis nas taxas de natalidade e
da atual, no qual parte das tradições culturais estão mortalidade desse grupo. Pode-se afirmar que a di-
preservadas porém trazendo as marcas indeléveis nâmica populacional apresenta as cicatrizes desse re-
dos contatos com o modo de vida dos outros habitan- lacionamento.
tes do Brasil Central. O capítulo seis é dedicado ao modo de vida dos
The Xavánte in Transition: Health, Ecology and Xavánte, suas atividades produtivas, sua subsistência
Bioanthropology in Central Brazil representa o resul- nos diferentes períodos da história e algumas tentati-
tado da cooperação entre autores com diferentes ba- vas desastradas de interferência da sociedade nacio-
gagens científicas, interessados em compreender de nal sobre a local. Ainda que se conceda o benefício da
que maneira as relações entre comunidades locais dúvida sobre as intenções dos governos nacionais ao
(aldeias) e a sociedade nacional podem moldar os di- tentarem modificar os modos de vida dos indígenas,
ferentes modos de vida repercutindo na saúde das a quantidade e o acúmulo de erros e equívocos cha-
populações. ma a atenção. A forma isenta com que os autores tra-
A introdução é dedicada a apresentar os autores, tam essas questões permitem aos leitores tirar suas
suas experiências bem como estudos anteriores a res- próprias conclusões, sem interferência de posições
peito desse grupo de indígenas brasileiros. Delineiam- militantes.
se aí as intenções dos autores em tratar da maneira Os três capítulos seguintes dedicam-se mais es-
mais integrada os diferentes enfoques utilizados no pecificamente aos aspectos de saúde e doença. O ca-
estudo dos Xavánte: o biológico, o epidemiológico, o pítulo sete apresenta um breve relato das diferentes
ecológico e o antropológico. Assim, este livro interes- organizações dedicadas a fornecer serviços de saúde
sa, não apenas aos autores dedicados ao estudo dos aos indígenas desde meados do século XX. Estas in-
problemas étnicos mas também a todos aqueles que formações são especialmente úteis no momento em
trabalham com objetos complexos de investigação, que, mais uma vez, o governo federal parece estar
buscando articular nesse trabalho a contribuição de empenhado em modificar as regras do jogo. Nos últi-
diferentes disciplinas científicas, métodos e técnicas mos dois anos, vem sendo feito um esforço conside-
de análise. rável por parte da Fundação Nacional de Saúde (FU-
O segundo capítulo apresenta o cenário geográfi- NASA) e dos governos estaduais no sentido de im-
co no qual os Xavánte se inserem. Trata-se de uma plantar os distritos sanitários indígenas que, aparen-
abordagem geopolítica situando os Xavánte em rela- temente, são uma forma mais apropriada do que as
ção a outros grupos indígenas da região, abordando anteriores para o enfrentamento dos problemas de
as características principais de sua organização so- assistência médico-sanitária aos indígenas. Entretan-
cial e descrevendo as peculiaridades do cerrado co- to, fala-se na desativação da FUNASA com a devolu-
mo suporte geográfico para essas etnias. Os proces- ção da responsabilidade pela saúde indígena à Fun-
sos interativos entre comunidade e espaço físico e as dação Nacional do Índio (FUNAI), representando as-
transformações decorrentes dessa interação consti- sim, claro retrocesso não somente na organização da
tuem o cerne desse capítulo. assistência mas também nas tentativas de inclusão
A seguir os autores apresentam um histórico do dessas etnias na sociedade nacional, respeitadas as
povo Xavánte desde o início da colonização até os dias suas particularidades.
atuais. Este capítulo, além de ser de leitura extrema- O oitavo capítulo trata do perfil epidemiológico
mente agradável, dá as chaves para a reconstrução da entre os Xavánte da aldeia Etéñitépa. Sempre, basea-
história de povos que não dominam a escrita. Assim, dos em dados empíricos, os autores traçam o perfil
para além das informações preciosas sobre as rela- dos principais problemas de saúde relacionados com
ções entre os habitantes originais da terra e os euro- a nutrição e as doenças infecciosas, caracterizando o
peus recém chegados, e os desdobramentos dessa re- perfil epidemiológico tradicional para populações
lação até hoje, este capítulo tem ainda importância pobres e relativamente excluídas.
metodológica para aqueles interessados em empreen- No capítulo nove os autores apresentam as pecu-
der a recuperação histórica em situações semelhantes. liaridades dos processos de transição epidemiológi-
O quarto capítulo trata da modificações genéti- ca, com a sobreposição de novos problemas de saú-
cas ocorridas entre os Xavánte, utilizando na análise de, destacadamente, os processos crônicos metabóli-
dados empíricos obtidos em diferentes ocasiões ana- cos como a obesidade, o diabetes e as alterações nos
lisando diferentes marcadores. A intenção principal níveis pressóricos. Os autores apresentam sua crítica
dos autores é verificar até que ponto as transforma- ao modelo linear da transição epidemiológica, de-
ções socioculturais e a interação com o ambiente se monstrando com base em dados empíricos, sua ina-
encontram impressas no patrimônio genético desse dequação pelo menos à compreensão do processo
grupo étnico. Embora o período de observação seja saúde-doença de grupos étnicos específicos. A com-
relativamente curto, a comparação com estudos fei- plexidade resultante das alterações historicamente
tos entre outras etnias latino-americanas permite produzidas nas formas de contato entre o local e o
análises interessantes para a compreensão dos pro- nacional, mais uma vez se traduz em perfis epide-
cessos de saúde-doença. miológicos de semblantes pouco nítidos, isto é, em
O quinto capítulo trata da dinâmica demográfica figuras nas quais permanecem antigos problemas e
dos Xavánte. Novamente, trata-se de um exercício se agregam novos, conferindo dinâmica própria e pe-
metodológico valioso na recuperação de informações culiar a cada grupo em particular.
para as quais os registros habituais não fornecem da- O último capítulo é dedicado a pontuar as princi-
dos suficientes. Os aspectos demográficos permitem pais conclusões dos autores, reforçando aqueles as-

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pectos que melhor permitem evidenciar as relações


local-nacional, ou seja, a trama que se constrói coti-
dianamente entre as peculiaridades e particularida-
des de um grupo de indivíduos na construção de sua
via material e simbólica, e a sociedade nacional na
qual estão inseridos, esta também com as particula-
ridades que toda formação social apresenta.
Há inúmeras razões para se ler The Xavánte in
Transition: Health, Ecology and Bioanthropology in
Central Brazil dentre as quais gostaria de destacar al-
gumas. A primeira razão é a própria construção do
texto, em linguagem clara, correta e agradável. A lei-
tura é um prazer tanto pelo estilo quanto pelas infor-
mações que o texto traz. A segunda tem a ver com o
conjunto de informações, baseadas em estudos em-
píricos desenvolvidos ao longo de mais ou menos 50
anos, que permitem aos leitores excelente aproxima-
ção relativa ao cotidiano desses indivíduos. A terceira
razão é de ordem metodológica.
O texto em questão constitui excelente exemplo
de abordagem interdisciplinar na qual não se perce-
bem justaposições ou simples encadeamentos entre
diferentes enfoques. Os autores lograram construir
sua abordagem de maneira integrada, harmonizando
os distintos aspectos tornando o texto acessível e in-
formativo. Para todos aqueles que procuram, no cam-
po da saúde, dar conta da complexidade de seu obje-
to de investigação, The Xavánte in Transition: Health,
Ecology and Bioanthropology in Central Brazil consti-
tui-se em leitura obrigatória.
Finalmente, os pesquisadores cujo interesse in-
vestigativo está centrado na compreensão das ques-
tões étnicas ou nas desigualdades sociais em saúde,
encontrarão nesse texto inspiração e sugestões meto-
dológicas imprescindíveis.
A mensagem ética desse texto, assim como a be-
leza e a contradição contidas na fotografia da expedi-
ção Roncador-Xingu, apontam para a necessidade de
se refletir sobre os erros e acertos nessa história da
convivência entre os indígenas e a sociedade nacio-
nal no Brasil. Que ambas possam servir de inspiração
e alerta para todos aqueles que pretendem com sua
ciência e tecnologia promover a inclusão das diferen-
tes etnias.

Rita Barradas Barata


Departamento de Medicina Social, Faculdade de Ciências
Médicas, Santa Casa de São Paulo, São Paulo, Brasil.

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