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À Sombra de Tânatos

PRÓLOGO

Dizem que existe uma linha filosófica denominada NOVENTA/DEZ. Não se sabe ao certo a sua
origem, uns dizem que tem origem na China, outros dizem que ela provém do Tibet, alguns
outros ainda, afirmam que é Indiana. O certo é que essa filosofia prega que no Teatro da Vida,
noventa por cento da trama é escrita pelo Acaso, com uma margem de erro de dois a três por
cento, para mais ou para menos. O restante da trama é escrito pelo livre arbítrio.

Segundo ainda essa linha filosófica, é esse dez por cento, ou oito, ou sete, dependendo da
margem erro, que determina o desfecho da trama... O epílogo.

CENA 1 – ATO 1.

O casal passeia despreocupadamente pelo calçadão da Praia do Bessa, praia urbana de João
Pessoa, Paraíba, tendo como companhia um pequeno e gracioso cão da raça Lhasa Apso nas
cores preto e branco. Conversando amenidades entre si e brincando com o pequeno animal
não vêm três Ratos de praia que, da areia, os observam sorrateiramente. Um dos Ratos
continua caminhando pela areia, olhos atentos no cenário em volta, os outros dois desviam
para o calçadão e seguem o casal a uma relativa distância. Disfarçam a espreita fingindo
conversas entre eles. Olham para os lados. Acendem cigarros. Arrumam os cadarços dos
tênis... Aceleram um pouco os passos e ultrapassam o casal mantendo o disfarce da vigília.
Transitam no cenário mimetizados no ambiente. São predadores... O casal de meia idade a
presa.

CENA 2 – ATO 1.

O casal ao término do passeio dirige-se ao carro, estacionado como sempre, no lugar de


costume. Eles passam por dois jovens sentados no banco do calçadão, são os dois ratos na
cobertura da emboscada, o terceiro arma o bote. É um rato bem jovem, diminuto e franzino,
raquítico até.

A mulher de meia idade abre a porta do motorista e o homem, primeiro, abre a porta do
carona, depois a porta traseira e incontinente instiga o pequeno cão a saltar para o banco
traseiro do veículo. Distraído, não percebe a aproximação do rato jovem e franzino.

RATO JOVEM – Voz cavernosa, nasalada, gélida e sibilina:

-Dotô! Num se mexa! Passa a corrente. É um assalto!

VÍTIMA HOMEM – Expressão de surpresa estampada do rosto, sem entender direito o que
está acontecendo e pensando que o jovem é um “flanelinha” pergunta:

-O quê? O que é que você quer garoto?

VÍTIMA MULHER – Ajudando o marido a acomodar o pequeno cão no banco traseiro


argumenta com o companheiro:

-Amor! Dá um real para ele que ele vai embora.


RATO JOVEM – Levantando a camisa e deixando à amostra o revólver preso à cintura repete a
ordem:

-Dotô! Dê cá a corrente! É melhor num se bulir dotô!

VÍTIMA MULHER – Entendendo a situação e estremecendo de pavor, suplica:

-É um assalto, Rafael! Pelo amor de Deus! Não reaja! Por tudo o que é sagrado faz o que ele
quer. Entrega a corrente para ele.

PALCO DA VIDA

Enquanto a Cena 2 - Ato 1 transcorre, o cenário mostra os carros passando pela rua,
freqüentadores do bar em frente ao carro das vítima pedindo mais uma rodada de chope,
petiscos, caipiroskas e outras bebidas. Ao lado, carros estacionam e partem. Alguns fregueses
alheios ao drama do estacionamento procuram mesas enquanto outros pedem a conta ao
garçom. Dos personagens do ‘Cena 2 - Ato 1’ somente o Rato Jovem está atendo a todo o
cenário. As vítimas estão concentradas em seus dramas pessoais. A mulher, angustiada, suplica
ao marido para ter calma. Ele, somente com os olhos, elétricos, sem mover a cabeça, busca
desesperado uma saída para a emboscada que caiu.

Num átimo de segundo o Homem percebe que o rato somente apontou para a arma presa à
cintura. Não a está segurando ainda. Ele pensa:

“Eu tenho somente uma chance, só uma”. “O filhodaputa desviou os olhos. Ele está olhando
para o casal de namorados que está descendo do carro ao lado. Se eu grito, ele puxa a arma e
atira em todo mundo aqui. O sacana está a um metro de mim... Ele vai ter que empunhar a
arma, puxar da cintura e apontar para mim... São três movimentos... Um metro só... Ele é
franzino e deve pesar uns cinqüenta quilos... Cara! Eu tenho um metro e oitenta e peso
noventa quilos... Ele acha que eu vou fazer o que ele quer... Um metro só... Uma porrada bem
dada... Vai dar tempo... Esse filhodaputa é meu. É agora...”

Com as mãos em garras o Homem pula para frente. O Rato Jovem percebendo o movimento
mais ou menos esperado leva a mão ao revólver com uma idéia fixa martelando o seu cérebro
primitivo, matar o otário metido a valente. Os dois Ratos, cúmplices na cobertura da
emboscada se erguem dos bancos, estiletes à mão.

As mãos do Homem e do Rato se fecham juntas na coronha do revólver. O dedo polegar do


Rato com a unha suja, imunda, abre um sulco na virilha e se encaixa na coronha da arma, o
dedo indicador no gatilho. As mãos do Homem se aferram ao pulso e mão do Rato. O dedo
indicador do Rato se contrai... Um clarão seguido de um estouro ilumina a cintura do Rato... O
cheiro de carne queimada inunda as narinas dos contentores... A bala de calibre .38 abre um
rombo na perna esquerda do Rato... Ele urra com a dor lancinante... A bala rompe a veia
femural... O sangue jorra aos borbotões... O Homem toma o revólver das mãos do Rato, o
empunha, aponta para os outros dois ratos que faziam a cobertura da emboscada e
instintivamente aperta o gatilho várias vezes... Uma das balas atinge a cabeça de um dos
Ratos, o outro consegue escapar correndo em direção à escuridão da praia.
#Tânatos exulta... A coleta foi boa... Afinal, ele esperava somente um.

A esposa do homem grita desesperada de dentro do carro... A fumaça da pólvora queimada


que encobria o rosto crispado do Homem é dissipada pela brisa marinha... Os fregueses do bar
se aproximam cautelosamente... Alguém pega o celular e filma o final da cena... Outro, mais
pragmático, liga para o 190.

A polícia chega, faz as averiguações de praxe e todos vão para a delegacia prestar depoimento.

FINAL da Cena 2 – Ato 1.

Epílogo 1 – Depois dos desembaraços jurídicos o casal, vítima do assalto, em jantar


comemorativos com amigos, recebe cumprimentos efusivos e críticas.

O palco da vida continua encenando o espetáculo do cotidiano.

CENA 3 – ATO 1.

Este ato é a mesmo da “Cena 2”, o que muda é o PALCO DA VIDA ( Recapitulando... O casal
termina o passeio à beira mar, dirige-se ao carro e é abordado por um rato de praia).

PALCO DA VIDA 2 - Enquanto a Cena 3 - Ato 1 transcorre, o cenário mostra os carros passando
pela rua; freqüentadores do bar em frente ao carro das vítima pedindo mais uma rodada de
chope, petiscos, caipiroskas e outras bebidas. Ao lado, carros estacionam e partem. Alguns
fregueses alheios ao drama do estacionamento procuram mesas enquanto outros pedem a
conta ao garçom. Dos personagens do ‘Cena 3 - Ato 1’ somente o Rato está atendo a todo o
cenário. As vítimas estão concentradas em seus dramas pessoais. A mulher, angustiada, suplica
ao marido para ter calma. Ele, somente com os olhos, elétricos, sem mover a cabeça, busca
desesperado uma saída para a emboscada em que caiu.

Num átimo de segundo o Homem percebe que o Rato somente apontou para a arma presa à
cintura. Não a está segurando ainda. Ele pensa:

“Eu tenho somente uma chance, só uma”. “O filhodaputa desviou os olhos. Ele está olhando
para o casal de namorados que está descendo do carro ao lado. Se eu grito, ele puxa a arma e
atira em todo mundo aqui. O sacana está a um metro de mim... Ele vai ter que empunhar a
arma, puxar da cintura e apontar para mim... São três movimentos... Um metro só... Ele é
franzino e deve pesar uns cinqüenta quilos... Cara! Eu tenho um metro e oitenta e peso
noventa quilos... Ele acha que eu vou fazer o que ele quer... Um metro só... Uma porrada bem
dada... Vai dar tempo... Esse filhodaputa é meu. É agora...”

Com as mãos em garras o Homem pula para frente. O Rato Jovem percebendo o movimento
mais ou menos esperado, salta de lado desviando-se do ataque da vítima, leva a mão ao
revólver com uma idéia fixa martelando o seu cérebro primitivo, matar o otário metido a
valente.
Surpreso, o Homem abraça o vazio sem entender como é que aquele moleque filhodaputa
conseguiu se mover tão rápido. Sem perceber o Homem tropeça nas próprias pernas e cai ao
solo, de bruços. Ainda de quatro tenta armar novo bote em direção ao Rato, mas ao se voltar
para o oponente recebe dois tiros fatais, um no peito e outro no pescoço estraçalhando-lhe a
carótida.

Quando o Homem voltou a cair ao solo já estava morto, porém, no milésimo de segundo que a
vida se esvaiu de seu corpo ele ainda ouviu o grito desesperado da companheira amada.

O paramédico que examinou o corpo achou estranho aquele cadáver ter uma lágrima
escorrendo de um dos olhos esbugalhados.

#Tânatos com os olhos brilhando deixa transparecer um sorriso satânico.

A esposa do Homem grita desesperada de dentro do carro... A fumaça da pólvora queimada


que encobria o rosto crispado do Rato é dissipada pela brisa marinha... Os fregueses do bar
correm em busca de abrigo. Alguém pega o celular e liga para o 190.

O Rato calmamente se abaixa, arranca a corrente de ouro do pescoço da vítima e junto com os
outros dois Ratos corre em direção à escuridão da areia da praia.

A polícia chega, faz as averiguações de praxe e sai em captura aos assaltantes.

FINAL da Cena 3 – Ato 1.

Epílogo 2 – Depois dos desembaraços jurídicos a viúva na missa de sétimo dia lamenta com os
filhos e amigos a notória impulsividade do falecido.

“O palco da vida continua encenando o espetáculo do cotidiano.”

CENA 4 – ATO 1.

Este ato é a mesmo da “Cena 2 e 3”, o que muda é o PALCO DA VIDA ( Recapitulando... O casal
termina o passeio à beira mar, dirige-se ao carro e é abordado por um rato de praia).

PALCO DA VIDA 3 - Enquanto a Cena 4 - Ato 1 repete rigorosamente a ação das Cenas 2 e 3 e
seus respectivos Atos, o cenário mostra os carros passando pela rua; freqüentadores do bar
em frente ao carro das vítima pedindo mais uma rodada de chope, petiscos, caipiroskas e
outras bebidas. Ao lado, carros estacionam e partem. Alguns fregueses alheios ao drama do
estacionamento procuram mesas enquanto outros pedem a conta ao garçom. Dos
personagens do ‘Cena 3 - Ato 1’ somente o Rato está atendo a todo o cenário. As vítimas estão
concentradas em seus dramas pessoais. A mulher, angustiada, suplica ao marido para ter
calma. Ele, somente com os olhos, elétricos, sem mover a cabeça, busca desesperado uma
saída para a emboscada que caiu.

Num átimo de segundo o Homem percebe que o Rato somente apontou para a arma presa à
cintura. Não a está segurando ainda. Ele pensa:
“Eu tenho somente uma chance, só uma”. “O filhodaputa desviou os olhos. Ele está olhando
para o casal de namorados que está descendo do carro ao lado. Se eu grito, ele puxa a arma e
atira em todo mundo aqui. O sacana está a um metro de mim... Ele vai ter que empunhar a
arma, puxar da cintura e apontar para mim... São três movimentos... Um metro só... Ele é
franzino e deve pesar uns cinqüenta quilos... Cara! Eu tenho um metro e oitenta e peso
noventa quilos... Ele acha que eu vou fazer o que ele quer... Um metro só... Uma porrada bem
dada... Vai dar tempo... Esse filhodaputa é meu. É agora...”

No entanto, quando seus músculos se contraíram acossados pela extraordinária descarga de


adrenalina para se distenderem na explosão do salto planejado, ele ouviu em algum canto da
razão ou do bom senso, ele nunca soube discernir, a súplica de Sophia, sua esposa:

-É um assalto, Rafael! Pelo amor de Deus, meu amor! Não reaja! Por tudo o que é sagrado faz
o que ele quer. Entrega a corrente para ele.

As mãos do Homem se descontraíram parcialmente, a adrenalina foi se diluindo pelas fibras


musculares, a têmpora do Homem latejou de dor e ele fez tudo o que o marginal mandou.
Entregou a corrente de ouro, presente da filha querida; entregou o anel com São Jorge
esculpido em alto relevo, símbolo do time do coração, Corinthians; entregou a aliança em ouro
branco e amarelo, comemorativa dos trinta anos de casamento; engoliu amargamente a
dignidade e o orgulho, mas preservou a vida, dele e da esposa. Vão-se os anéis, ficam os
dedos.

Tânatos, ainda não foi desta vez... Sophia, meu amor... Obrigado!

Epílogo 3 – Toda a cena não demorou mais que três ou quatro minutos. Ao redor, ninguém,
absolutamente ninguém viu nada. O marginal... O filhodaputa do Rato saiu andando
tranquilamente, arma na mão colada à perna direita. O Homem ficou lá, parado, estático,
vendo o Rato ir embora. O peito do Homem arfava de raiva... O orgulho ferido por uma chaga
ardente. A dúvida martelando, vou ou não vou correr atrás desse filhodaputa, ele pensava...
Sophia argumentava... “Deixa pra lá, meu amor... Não vale a pena... Vamos embora... Vamos
para casa”.

De repente o Homem sentiu um leve contato úmido na perna, olhou para baixo, era o
pequeno cão que havia pulado do assento traseiro do carro e o olhava com os olhos brilhando
de carinho pelo dono. O Homem por um momento esqueceu-se do Rato... O cãozinho
mordiscou de leve o tênis do Homem, deu um quase inaudível latido e pulou de volta para o
assento traseiro. O Homem pensou: “Estranho, esse cão nunca fez isso... Ele quer ir embora...”

O Rato estava dobrando a esquina... Tânatos ainda jogou uma última cartada, afundou o dedo
na chaga aberta no orgulho do Homem e sussurrou em seu ouvido: “e se a arma for de
brinquedo?”

Sophia clamou mais uma vez... O Homem sentou no banco do carona e deu um beijo na
Mulher... O cãozinho grunhiu satisfeito, a Mulher deu partida no carro...

Tânatos, decepcionado, fez um muxoxo e chutou uma garrafa peti, o objeto quase atingiu um
passante que olhando para os lados pensou espantado:
“Oxente! De onde saiu essa garrafa? Vote!”

Dias depois, durante um jantar de desagravo que os amigos ofertaram para o casal, um dos
comentários mais freqüentes era “foi melhor assim, afinal, os dois estão vivos, não é mesmo?”

Tânatos ainda insistiu... “e se aquela arma fosse de brinquedo”

O Homem pensou... “Será?”

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