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DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — MAX SCHELER E A GÊNESE 13

Max Scheler e a gênese


axiológica do conhecimento

CARLOS MATHEUS

Resumo first decades of the Century XX, not only to


the development of ethical philosophy as
Ainda não foi reconhecida a importân- also to the sociology of the knowledge.The
cia e a influência que a obra de Max text intends to situate his thought in the
Scheler, nas primeiras décadas do Século genesis of the social relative theories that
XX, teve, tanto no desenvolvimento da fi- interpret the paper of the material interests
losofia e da ética como também da sociolo- in the production of the ideas and to
gia do conhecimento. O texto pretende si- establish a relationship between Sheler’s
tuar seu pensamento na gênese das teo- theory of the values and his conception of
rias relativas sociais que interpretam o pa- the social knowledge production.
pel dos interesses materiais na produção
das idéias e estabelecer uma relação entre Key-words: value; sociology of the
os fundamentos da teoria dos valores de knowledge; ethics; a priori; axiology.
Scheler com sua concepção a respeito da
produção social do conhecimento.
Palavras-chave: valor; sociologia do co- O caráter social da produção de
nhecimento; ética; a priori; axiologia. idéias pode explicar os motivos pelos
quais certos pensadores são esquecidos
para serem descobertos séculos depois.
Abstract
O pensamento responde em parte a
It has not been recognized the exigências do momento, mas só per-
contribution of Max Scheler’s works, in the manece pela profundidade com que

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aborda os temas radicais da condição nhecimento pode até incluí-la entre as


humana. As idéias nascem no terreno idéias que se perdem ao longo do tem-
da história, porém caminham fora do po, caso se afaste de seu verdadeiro
tempo. Para entender certas épocas, é objetivo ou desapareçam as motiva-
preciso conhecer as idéias ali presen- ções dessa abordagem imediatista.
tes, mas para entender o ser humano é Seria mesmo necessário dizer que,
preciso conhecer os pensadores que fi- depois que a sociologia do conheci-
caram acima de seu tempo. Só depois mento passou a ser entendida como
que desaparecem os fatores históricos um mero conflito entre ideologias sus-
em que são produzidas as idéias é que peitas e utopias inviáveis, esgotou-se
se podem diferenciar com clareza as em seu tempo e passou a requerer
idéias que permanecem. nova pesquisa sobre suas origens.
Muito já tem sido estudado e de- É na própria maneira como a socio-
batido sobre essa relação entre as idéias logia do conhecimento vem sendo
e o momento social de sua produção. conduzida que devem ser buscadas as
Percebe-se que certos pensadores aba- causas do esquecimento atual da obra
lam a vida de seus contemporâneos para de um dos pensadores que mais con-
desaparecerem com eles, enquanto ou- tribuíram para o desenvolvimento da
tros pairam acima do tempo, como se reflexão sobre as relações entre o pen-
fossem eternos. Essa reflexão filosófi- samento e a realidade social.
ca sobre as relações entre o pensamen- Trata-se de Max Ferdinand Scheler.
to e seu contexto social tomou o nome Além de ter deixado uma extensa e
de sociologia do conhecimento. Busca-se profunda obra, na qual há importantes
entender essa dupla relação entre as inovações e descobertas para a histó-
idéias e os fatos, entre o pensamento e ria das idéias, exerceu enorme influên-
a realidade ou, ainda, entre a mente cia sobre as gerações seguintes. Seu
humana e o seu modo de se ver no pensamento aborda questões que es-
mundo. tão presentes no debate filosófico atual,
Tendo surgido através de uma in- mas poucos são os que se interessam
dagação filosófica, a sociologia do co- por conhecê-lo. Há um enorme silên-
nhecimento parece ter se afastado de cio sobre seu pensamento. Pouco ou
seus propósitos no momento em que nada se sabe atualmente sobre quem
se assumiu mero papel descritivo das foi Max Scheler, mesmo entre pessoas
relações entre os interesses materiais medianamente informadas sobre a fi-
e o comportamento político. Passou a losofia contemporânea.
se ater ao factual, perdendo seu cará- Vários são os motivos pelos quais
ter reflexivo. Deixou de ser uma in- o pensamento de Scheler e, em parti-
terpretação da origem das idéias para cular, sua contribuição para a sociolo-
ser uma explicação dos interesses ime- gia do conhecimento, mergulharam na
diatos que as produzem. Essa manei- sombra, depois da Segunda Guerra
ra de condução da sociologia do co- Mundial. Um desses motivos poderia

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ser seu estilo desordenado e turbulen- tomava sempre os mesmos temas, bus-
to. Outro, o período histórico em que cando agregar-lhes algo de novo. Não
viveu. Os principais motivos, contudo, tinha a ambição de construir um siste-
parecem residir no próprio conteúdo ma, embora seu pensamento caminhas-
de suas idéias e sobretudo nas detra- se para isso. Escrever foi para ele ape-
ções e incompreensões que cercaram nas uma das maneiras de filosofar. Seu
sua obra. olhar e seu pensamento caminhavam
além das palavras, porque nem sem-
*** pre cabiam nos limites de seus signifi-
Scheler nasceu em Munique, a ci- cados.
dade mais extrovertida da Alemanha. Outro possível motivo do esqueci-
Tinha uma personalidade candente. Sua mento da obra de Scheler pode ser atri-
vida transcorreu entre o mundo aca- buído ao período de transição da épo-
dêmico e a turbulência social e política ca em que viveu. Sua biografia trans-
das primeiras décadas do século XX. corre em uma fase de grandes mudan-
Sua inquietação filosófica transparecia ças no mundo das idéias e dos aconte-
em seus atos, em seus gestos, em suas cimentos políticos. Iniciou seus estudos
aulas. Tudo era ocasião para indaga- e sua reflexão filosófica no final do sé-
ção e reflexão. Pensava, questionava e culo XIX. Ingressou na vida universi-
vivia filosoficamente. Seu temperamen- tária nos tempos em que, sob a futili-
to combativo e ardente o levou a viver dade da belle époque, armavam-se a tra-
com toda intensidade sua procura so- gédia Primeira Guerra Mundial e a ger-
bre o sentido da vida e do lugar do minação dos regimes ditatoriais que
homem no mundo. Nele, vida e razão abalariam o século XX. Sua pátria, já
jamais estiveram separadas. em acelerado processo de expansão
Seus textos refletem essa atitude de industrial, ingressava em uma caótica
interrogação contínua, pela qual esta- situação econômica, que culminaria em
va sempre à procura do lado oculto das uma tremenda crise econômica e na
coisas e das aspirações humanas. Seus nova retórica da propaganda política.
textos transparecem esse seu modo de As tensões sociais e os conflitos no
viver. Seu estilo caudaloso e passional mundo das finanças preparavam o ca-
o levou a escrever longos parágrafos, minho para a demagogia dos manipu-
em que as idéias se dispersam, retor- ladores das massas que viriam substi-
nando e girando como luzes em movi- tuir o discurso dos professores por um
mento. Lembra a circulação de cores militarismo delirante e disposto a si-
na efervescência das formas das pintu- lenciar o trabalho das universidades.
ras de Van Gogh ou as sombras revela- Não teve tempo para se contrapor ao
doras dos quadros de Rouault, ou, ain- nazismo (como certamente o faria) por-
da, a efervescência das sinfonias de que veio a falecer antes de sua ascensão
Mahler. Não evitava contradições e ao poder.
nem buscava uma coerência lógica. Re- Scheler foi contemporâneo da me-

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tamorfose dos movimentos socialistas. lismo no século XX4 e, certamente, te-


Nasceu em 1874, depois que Marx já ria muito a acrescentar à crítica do ca-
perdera as esperanças de unir o opera- pitalismo, que mais tarde viria a ser
riado mundial, e morreu em 1928, pou- formulada pela Escola de Frankfurt, se
co depois da morte de Lenin. Sua preo- não tivesse deixado o mundo antes da
cupação em entender o conteúdo das crise econômica de 1929.
mudanças sociais despertava à medi- Publicou sua obra mais importante
da que acompanhava a evolução do de- — fundada na teoria da percepção
bate em torno da implantação do socia- emocional dos valores — entre 1913 e
lismo, tanto antes como depois da Re- 1916, durante os abalos da Primeira
volução de 1917. Guerra Mundial. Nessa época, escre-
Acompanhou de perto a rendição via no Anuário de Pesquisa Filosófica e
da Alemanha,1 porém não assistiu aos Fenomenológica.5 Nos anos que se segui-
delírios de Hitler e nem aos massacres ram ao rompimento entre Freud e Jung,
de Stalin. Mesmo tendo uma ascendên- na Sociedade Internacional de Psicaná-
cia judaica, não precisou fugir do na- lise, Scheler ainda era amigo e colabo-
zismo, mas já procurava entender, pou- rador de Husserl. O rompimento ocor-
co antes de morrer, as causas e os ris- rido mais tarde entre esses dois inicia-
cos do germanismo ferido2 e o sentido dores do movimento fenomenológico
social do trabalho3 durante o crescen- viria a ter alguma semelhança com o
te processo de industrialização da Ale- rompimento entre os fundadores das
manha. Nesses seus últimos anos de teorias psicanalíticas, na medida em que
vida começou a refletir sobre o cará- resultou de sua busca de um fundamen-
ter social do conhecimento e sobre o to ontológico para as emoções huma-
papel do trabalho na produção do sa- nas e para o caráter universal das rela-
ber, enquanto Max Horkheimer fun- ções afetivas. Entretanto, não teve tem-
dava seu Instituto de Pesquisa Social. po para responder às restrições de
Não chegaram a se conhecer, mas já o Husserl à sua teoria da percepção emo-
preocupava o crescimento do capita- cional e nem mesmo para concluir sua
crítica à teoria da sublimação contida
na obra de Freud.
1. Com o final da Guerra de 1914-18, Scheler foi A filosofia de Scheler constitui um
encarregado pelo Ministério de Relações Exterio- traço de ligação entre a Escola de
res de representar a Alemanha durante as nego-
ciações de paz em Haia e Genebra. Baden e a fenomenologia de Husserl,
2. Scheler deixou vários textos sobre a situação da
Alemanha no pós-guerra, tais como Die Usrsachen
des Deutschenhasses, Leipzig, Kurt Wolff Verlag, 4. V. idem (1966), Die Zukunft des Kapitalismus,
1917, e Die Idee des Ewigen Friedens und der Pazi- Band 3, Gesammelte Werke, Bern, Franke Verlag.
fismus, obra póstuma publicada pela primeira vez 5. Jahrbuch für Philosophie und phänomenolgische
em Berlim, Neue Geist Verlag, 1931. Forschung, publicação dirigida por Edmund
3. V. SCHELER, M. (1926), Erkenntnis und Arbeit, Husserl, que representava o início do Movimento
Leipzig, Der Neue Geist. Fenomenológico.

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entre o historicismo de Dilthey e a nhecimento e do lugar da ciência na vi-


historicidade existencial de Heidegger. da humana começava a ressoar em um
Começava a encaminhar-se da ética mundo turbulento, entre guerras de
para a ontologia, em busca de uma res- canhões e conflitos ideológicos, na
posta à pergunta sobre o “lugar do mesma época em que certos filósofos
homem no universo”, 6 quando de Oxford, Cambridge e Viena se lan-
Heidegger publicava Ser e tempo, mas çavam em busca de uma nova aproxi-
não teve tempo para concluir sua visão mação entre a filosofia e a ciência. Con-
da temporalidade do ser. Teve ampla tudo, Scheler morreu antes que fosse
convivência com Alexandre Koyré nos publicada a famosa “concepção cientí-
anos em que este iniciava sua redesco- fica do mundo” que seria o “Manifes-
berta de Hegel para a filosofia contem- to” do Círculo de Viena. E muito me-
porânea. Foi despertado para o deba- nos teve possibilidade de responder às
te em torno da circularidade das cul- obtusas restrições à sua teoria dos va-
turas gerado pela repercussão da De- lores, que seriam redigidas mais tarde
cadência do Ocidente, de Oswald por Schlick.
Spengler, obra publicada em 1922. Católico por conversão, exigiu in-
Tinha em mente estabelecer uma dependência entre sua concepção dos
relação entre as mudanças históricas e valores e as interpretações dogmáticas
os valores sociais a partir de seu deba- com que a moral eclesiástica pretendia
te com outros autores que conheceu por conduzir a interpretação de seu pensa-
também abordarem esse tema, como mento para um papel catequético. Sua
Werner Sombart, Max Weber e amizade com Paul Tillich tinha por fun-
Ferdinand Tönnies, porém não chegou damento muito mais do que propósi-
a concluir esse seu projeto. Mesmo as- tos confessionais, porque os ligava o
sim, refletiu profundamente sobre a re- mesmo fascínio pelo mistério e a insa-
lação entre os valores sociais e seus fun- ciável busca da presença do sagrado
damentos econômicos, indo além dos na condição humana. Mesmo tendo
limites deixados por Weber e Troeltsch, sido mal interpretado, suas idéias vie-
não se prendendo apenas a uma super- ram a influir decisivamente na ação
ficial relação entre economia e religião, política e eclesiástica de dois homens
mas investigando os fundamentos que tiveram grande influência no sé-
epistemológicos do processo de cons- culo XX: seu amigo Conrad Adenauer
trução social de valores. e seu admirador Karol Voitilla. Ade-
Seu pensamento em torno do co- nauer, 7 teve grande interesse pelas
idéias sociais de Scheler nos tempos em
que começou a conceber sua futura “de-
6. “Der Stellung des Menschen im Kosmos” foi
um pequeno texto publicado um mês antes da
morte de Scheler. Segundo ele, tinha o caráter 7. Scheler, em seus últimos anos de vida, dava
introdutório ao que viria a ser a sua futura on- aulas na Universidade de Bonn, onde veio a fale-
tologia. cer. Naquela época, Adenauer era prefeito de Bonn.

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mocracia crist㔠e a ética de Scheler Há, contudo, uma lamentável redu-


viria a ser tema de tese acadêmica do ção na relação entre a sociologia e o
futuro papa João Paulo II. conhecimento, tal como foi concebida
Deixou uma extensa obra inaca- por Scheler, ao vir a ser elaborada por
bada, constituída de notas e esboços Mannheim. A simples diferenciação
que formam o largo acervo de seus entre capitalismo e socialismo a partir
Schriften aus dem Nachlass. Ainda recen- da distinção entre as teorias políticas
temente, Hans-Georg Gadamer se es- fundadas em pressupostos utópicos e
pantava com a falta de reconhecimen- as teorias políticas de caráter ideológi-
to da importância da obra de Scheler, co constitui uma deformação do senti-
a quem considera “uma presença com- do social atribuído por Scheler ao pro-
parável à de Husserl e à de Heidegger cesso do conhecimento. Com efeito,
na Filosofia Contemporânea”. não seria possível, de acordo com
Contudo, suas idéias iriam rebrotar Scheler, atribuir ao pensamento mar-
mais adiante, como sementes adorme- xista um conteúdo exclusivamente utó-
cidas, tanto na obra de pensadores pos- pico, do mesmo modo que o capitalis-
teriores que reconheceram tal influên- mo seria meramente ideológico. De
cia — como Nicolaï Hartmann, Jean- acordo com Scheler, há também um
Paul Sartre, Karl Jaspers, Gabriel caráter ideológico no pensamento de
Marcel, Emmanuel Mounier, Merleau- Marx, na medida em que expressa os
Ponty, Paul Ricoeur, Emmanuel Levinas interesses das classes oprimidas, e um
—, quanto em outros, cuja obra traria caráter utópico nas ideologias liberais,
igual influência, sem um expresso e efe- na medida em que expressa não ape-
tivo reconhecimento — como é o caso nas os interesses das classes dominan-
de Erich Fromm, Ernst Bloch, Herbert tes como também a irrealidade de uma
Marcuse, Karl Popper, Gaston ilimitada liberdade econômica como
Bachelard, Noam Chomsky, John fundamento para uma impossível igual-
Rawls, Karl Opel e Hans Jonas. dade política entre todos os membros
de cada sociedade, povo ou nação.
*** Segundo sua concepção, a sociolo-
Uma clara influência do pensamento gia do conhecimento deveria reprodu-
de Scheler nas teorias sociais que se zir a capacidade humana de interagir
seguiram à sua morte está presente na socialmente na produção do saber. Afir-
obra de Karl Mannheim. Este, inclusi- ma que as ideologias, tanto quanto as
ve, admite ter extraído suas idéias so- utopias, são meros produtos finais de
bre as relações econômicas e a produ- um processo interno da evolução so-
ção das idéias dos textos deixados por
Scheler, entre 1923 e 1928, durante seus grar a sociologia do conhecimento a uma visão
filosófica do mundo [...] resultando em um esbo-
últimos cinco anos de vida8. ço sistemático e grandioso, cheio de profundas
intuições.” MANNHEIM, K. (1967), Ideologia e
8. “Constitui mérito de Scheler a tentativa de inte- utopia. Rio de Janeiro, Zahar Editores, p. 330.

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cial. O conhecimento gerado pela socie- da em uma causalidade racional, como


dade interfere na distribuição das clas- as que foram produzidas entre os sé-
ses. Na medida em que as classes cons- culos XVIII e XIX, desde Condorcet e
tituem um subconjunto de todo grupo Herder até Kant e Hegel, passando pela
social, a classe à qual cada indivíduo “lei dos três estados” de Auguste
pertence também interfere no seu pro- Comte e pela lei da luta de classes de
cesso de conhecimento. Em outras pa- Karl Marx. Rejeita igualmente o puro
lavras, a apreensão de valores não se mecanicismo social de Émile Durkheim
dá apenas em termos universais, como e a sociologia dos “conteúdos signifi-
parte integrante da natureza humana, cativos” de Max Weber, não por recu-
mas também através dos subgrupos sar a visão de uma sociedade dividida
aos quais cada indivíduo pertence. em classes segundo seu poder aquisiti-
Como decorrência, as ideologias, bem vo e nem por rejeitar a influência dos
como as utopias, são construídas tan- fatores religiosos na condução das
to pela humanidade em geral como questões econômicas, e sim por enten-
por nações, cidades e classes sociais der que a história se faz tanto por par-
em suas mais diversas manifestações. te das classes oprimidas quanto em
Em outras palavras, o ser humano é nome das classes privilegiadas, já que
interpretado por Scheler não só como os fatores materiais condicionam não
um produtor de utopias mas também só os fatos sociais mas também os pró-
como um construtor de ideologias. As prios fatores espirituais.
utopias expressam valores objetivos A sociologia do conhecimento de
percebidos tanto quanto as ideologias Scheler não parte de uma simples in-
demonstram as várias tentativas de vestigação das relações econômicas, co-
realização desses valores. O ideal e o mo no pensamento de Karl Marx, e
real se apresentam na atividade social nem apenas de uma pesquisa de natu-
como manifestações complementares reza histórica, como no caso de Max
entre si. Estão igualmente contidos no Weber. Constitui a continuidade de sua
caráter simultaneamente apriorístico reflexão em torno do caráter ético ine-
e material que Scheler apontava na rente à natureza humana. O eixo cen-
estrutura do valor. tral do seu pensamento se encontra em
Em sua obra publicada em 1926, sob sua mais importante obra, O formalismo
o título de Problemas de Sociologia do Co- em ética e a ética material dos valores,10 na
nhecimento,9 Scheler rompe com a no- qual estabelece não apenas a distinção
ção de uma filosofia da história funda- mas também a interdependência entre
o caráter a priori dos valores e sua rea-
lização material.
9. “Probleme einer Soziologie des Wissens” in “Die
Wissenformen und die Gesellschaft”, Leipzig, Der
Neue Geist Verlag, 1926, reeditada como Band 10. “Der Formalismus in der Ethik und die
VIII das “Gesammelten Werke”, Bern, Franke materielle Wertethik” 1913-1916 - Band II das
Verlag, 1980. Gesammelten Werke, Bern, Franke Verlag, 1980.

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O ponto de partida da ética de percepção emocional antecede e condi-


Scheler reside na revisão do processo ciona todas as formas e os conteúdos
do conhecimento deixado por Kant. do conhecimento. Seria algo semelhan-
Para este, só há duas vias para o conhe- te à noção de intuição no pensamento
cimento da verdade: pelos sentidos ou de Bergson.
pela razão. Através dos sentidos, é Aderindo ao mesmo propósito kan-
possível atingir os objetos externos ao tiano de construir uma ética sobre al-
sujeito na medida em que estejam pre- gum princípio de validade universal,
sentes na extensão do mundo e que pos- encontra na noção de valor o funda-
sam ser representados pela mente. mento que buscava. Segundo sua in-
Através da razão, Kant admite que seja terpretação, os valores são objetos tão
possível conhecer determinados prin- reais quanto os objetos da percepção
cípios lógicos e determinadas catego- sensorial e os objetos inteligíveis da
rias mentais, mas amplia essa possibi- razão pura. Aplica ao valor o mesmo
lidade quando atribui à razão o papel caráter apriorístico que Kant atribui aos
de orientar a ação, enquanto razão prá- princípios e às categorias. Segundo
tica. A esta cabe alcançar o princípio Kant, só é material aquilo que é capta-
do dever, sobre o qual se funda não do pelos sentidos e só é formal aquilo
apenas sua regra de conduta para a que é elaborado pela razão. Scheler
moralidade como também o fundamen- afirma que, no mundo dos valores, essa
to para uma ética aplicável a todo e oposição entre formal e material não
qualquer ser humano, em qualquer tem- ocorre, de vez que os valores são igual-
po ou lugar. mente objetos a priori da intuição emo-
Excluídas essas duas vias, nenhu- cional, que também podem ser perce-
ma outra há, para Kant, como caminho bidos através de sua realização material.
de acesso à verdade, tanto no que se Mais ainda, os valores não pertencem
refere ao conhecimento como no que ao formalismo da razão, como também
diz respeito ao papel da vontade na não perdem seu conteúdo apriorístico
produção do conhecimento. Viu Scheler pelo fato de se realizarem materialmen-
que não há, na teoria do conhecimento te. Ao contrário, necessitam de sua rea-
e na teoria da ação elaboradas por lização material para serem conheci-
Kant, lugar para os valores e muito me- dos, embora sempre permaneçam como
nos para uma terceira via para o co- objetos ideais. Nenhuma realização ma-
nhecimento, de caráter intuitivo ou terial de valor esgota ou suprime seu
emocional. Antes dos sentidos e da ra- caráter ideal, na medida em que, a
zão, o ser humano sente. Trata-se de cada valor, corresponde uma infinita
um sentir independente dos sentidos e série de realizações materiais. Os va-
não condicionado pela razão. Essa per- lores, na concepção objetivista de
cepção emocional alcança o que os sen- Scheler, podem ser, portanto, simulta-
tidos não tocam e entende o que a ra- neamente, materiais e a priori.
zão não explica. Scheler entende que a Scheler extrai, assim, de sua teoria

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do conhecimento dos valores a sua vi- Assim como há uma universalida-


são ética, que se refere tanto ao indiví- de dos valores para todos os indiví-
duo isoladamente quanto a toda e qual- duos, na medida em que todo ser hu-
quer coletividade humana, aplicável a mano dotado de percepção emocional
qualquer época histórica ou evolução pode conhecê-los, também há uma
cultural. Deduz de sua teoria da reali- objetividade social que permite às vá-
zação material dos valores a noção de rias coletividades a captação e a reali-
que toda formação social depende de zação de determinados valores. De sua
suas realizações concretas de valores. teoria do conhecimento dos valores ex-
Para ele, a história é o produto de uma trai, portanto, uma teoria ética da pes-
série de valores realizados, em decor- soa humana e uma teoria ética das co-
rência de suas oportunidades reais. letividades humanas. Os valores se
Conseqüentemente, os valores diferem articulam entre o humano e o social.
de uma sociedade para outra, tanto Adquirem assim o papel de constru-
quanto de uma época para outra, sem ção do ethos, que é definido por Scheler
que devam ser interpretados como como um conjunto específico de valo-
meramente subjetivos. Afirma ele que res vigentes em determinada época ou
há uma relatividade histórica na reali- cultura. A cada época ou coletividade
zação dos valores que não suprime nem corresponde a captação de um deter-
exclui a noção de objetividade e de uni- minado conjunto de valores, que passa
versalidade dos valores em si mesmos. a dar sustentação à sua produção cul-
Ingressa aqui a noção de a priori so- tural. Toda coletividade teria, portan-
cial. Para Scheler, todo conhecimento to, uma personalidade própria, na medi-
produzido por toda e qualquer so- da em que se apresente capaz de apre-
ciedade humana se prende a valores ender e de realizar determinados va-
fixos inseridos tanto no processo de lores. Não são, assim, os valores que
percepção como na própria evolução mudam e sim o ethos, enquanto visão
biológica. O conhecimento que toda específica dos valores por parte de um
pessoa tem, pelo fato de pertencer a determinado grupo social. A história
um determinado grupo social, decor- aparece então como uma sucessiva cir-
re dos próprios conteúdos a priori para cularidade em busca dessas eternas es-
os quais toda sociedade se move. Por- sências que são os valores.
tanto, antes de ser empírico, todo co- Há, portanto, em Scheler, uma teo-
nhecimento social é a priori, uma vez ria do conhecimento pessoal dos valo-
que é apreendido através da sua in- res que se desdobra em uma teoria do
corporação em cada individualidade. conhecimento social dos valores. A par-
Até mesmo os processos hereditários te relativa à pessoa humana já havia
fazem parte desse a priori social pelo sido amplamente desenvolvida na se-
qual é possível dizer que há sempre gunda parte de sua obra de 1916, O
algo de social em cada membro de formalismo em ética e a ética material dos
qualquer coletividade.

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valores.11 Tratava-se, a partir desse pon- humana, que produz uma enorme su-
to, de buscar o desdobramento social cessão de realizações de valores. A
de sua teoria do conhecimento dos va- cada grupo social — desde um bem
lores. Partindo da ética para a sociolo- menor, como a família, até um outro
gia, Scheler, na última fase de sua obra bem maior, como uma nação — cor-
(1922-1927), saiu em busca de um fun- responde uma estrutura própria de
damento ontológico para a atividade valores que são captados e realizados
social do ser humano, passando neces- ao longo de sua temporalidade. Sendo
sariamente pela transformação de sua fixos, assumem as mais diversas reali-
visão universalista dos valores em zações “materiais” sem perder sua es-
“uma lei sociológica de validade uni- sência, mas produzindo a riqueza da
versal” que pudesse servir de funda- diversidade histórica e da pluralidade
mento à relação das pessoas entre si e cultural de que é feita a natureza hu-
destas com os valores que realizam tan- mana.
to em sua vida privada quanto em seu Para Scheler, o conhecimento não
relacionamento social. constitui apenas um ato estritamente
A lei sobre a qual funda sua teoria individual. Todo processo de forma-
do conhecimento social — ou seja, sua ção da individualidade inclui neces-
“sociologia do conhecimento” — se ba- sariamente uma referência ao outro.
seia na noção de interdependência en- Esse outro pode ser tanto o conjunto
tre o real (instintivo) e o ideal (espiri- das gerações passadas como a suces-
tual) na produção dos fatos sociais. En- são futura. Toda explicação produzi-
tende que a natureza humana, tanto da pelo conhecimento é gerada so-
como pessoa quanto como sociedade, cialmente, de modo a relacionar algo
seria o resultado de uma conjugação novo àquilo que já era conhecido. A
entre impulsos instintivos e fatores es- noção de intersubjetividade, presente
pirituais. Tanto para a pessoa como no pensamento fenomenológico,
para a sociedade, os valores são fixos, adquire em Scheler um significado
imutáveis e eternos. Tão imutáveis co- supratemporal porque está relaciona-
mo as constelações de idéias presen- da com a autopercepção do próprio in-
tes no pensamento de Platão. A mu- divíduo a partir daquilo que o grupo
dança cabe à dinâmica material da vida social possibilita conhecer.
A noção de pessoa, em Scheler, tem
um profundo caráter de interação en-
11. A relação entre valor e pessoa, investigada por
Scheler na parte VI de sua obra já citada, permitiu
tre o eu e o outro. Chega mesmo a dizer
distinguir pessoa de indivíduo e criar uma nova que não há o eu sem o outro, no mes-
visão do caráter ético da pessoa humana, como mo sentido em que nega o puro cogito
um ser concreto que se define por ser único e ir- cartesiano em nome do caráter de rea-
repetível. Sua teoria axiológica da pessoa humana
veio a exercer influência sobre a noção de
lidade presente na autopercepção do
“personalismo” em autores como Paul Landsberg, sujeito. Nisso, a teoria da intenciona-
Emmanuel Mounier e Paul Ricoeur e outros. lidade assume um papel determinante

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para permitir que Scheler nela inclua a Individual e coletivamente, o ser


própria relação interpessoal. Portanto, humano produz para si e para seu gru-
a pessoa humana é constituída pela po um conjunto de idéias fundadas em
materialidade da relação com o outro, valores percebidos. Essas idéias cons-
por ser essa relação integrante de sua tituem modalidades complexas que se
própria realidade. fundem aos interesses materiais e às
Estabelece ele uma distinção entre expectativas ideais. Os ideais sociais
a investigação em torno do dasein — tanto espelham valores percebidos
enquanto explicação do real em si mes- como necessidades concretas oriundas
mo — e sua indagação a respeito do das limitações vigentes. Os valores,
sosein — enquanto modo pelo qual o portanto, representam a confluência
ser age e se apresenta como vontade entre aspirações e necessidades. Seu
através do movimento de sua existên- conhecimento decorre, apenas em par-
cia. Enquanto há no dasein um oculta- te, de sua realização. Valores não rea-
mento enigmático, o sosein se mostra lizados persistem dentro do corpo so-
como expressão evolutiva pela qual cial gerando novas aspirações, tanto
cada modo de ser encontra no outro um quanto as necessidades materiais ope-
reflexo de sua identidade. O conheci- ram o papel limitador de suprimir va-
mento de si através do outro se mostra lores ou esgotá-los logo após sua reali-
em atos em que as expressões de ódio zação em determinado momento de sua
e amor são formas antagônicas das for- captação.
mas de expressão das relações interpes- Tanto as épocas históricas quanto
soais. Ódio e amor são formas ativas os ciclos culturais são caracterizados
de percepção de valores pelos quais se pelos traços diferenciadores desses
movem as relações entre pessoas. A conjuntos de valores percebidos. Uma
coesão dos grupos sociais se dá pela vez captados, os valores se inserem no
convergência ou pela divergência com processo de produção cultural e esta-
relação à percepção e à realização de belecem a tipicidade daquele período.
valores. Para Scheler, não há história e nem se-
Se não há, para Scheler, o eu sem o quer qualquer coesão social sem per-
outro, disso decorre que há algo do ou- cepção de valores. Os valores unificam
tro no eu, ou seja, há algo de social em ou afastam os indivíduos tanto quanto
cada membro de qualquer grupo social. estabelecem as diferenças entre um
O grupo integra o indivíduo de tal período histórico e os que o antecedem
modo que este não poderia sobreviver ou sucedem.
sem os outros que fazem ou fizeram Resta saber de que modo Scheler
parte de sua trajetória, tanto do ponto insere as relações econômicas, a pro-
de vista genético quanto pela convivên- dução cultural e as transformações so-
cia. O outro — isto é, o social — se inte- ciais dentro do sistema de apreensão
gra ao humano como parte integrante de valores. Assumindo que toda socie-
de sua realidade material. dade é constituída por diversas clas-

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ses em decorrência de seu nível de po- tornam-se eticamente negativos quan-


der (político, econômico ou cultural), do colocados acima de valores supe-
Scheler atribui a cada classe um com- riores, como, por exemplo, os valores
portamento adequado aos valores per- vitais ou os valores espirituais.
cebidos. Há em cada membro de cada A hierarquia de valores é a base da
classe algo que ultrapassa sua indivi- tese de Scheler sobre a objetividade dos
dualidade. Seria a presença de um ele- valores. Afirma que a hierarquia de
mento introduzido pela classe nos va- valores é universal e necessária no senti-
lores pessoais. É o que Scheler denomi- do mesmo em que Kant atribui univer-
na o a priori social. Segundo ele, não há salidade e necessidade aos conteúdos
o eu sem o nós porque os valores apre- a priori da razão pura. Os valores espi-
endidos pela classe passam a fazer par- rituais são, para Scheler, necessária e
te de toda escala individual de valores. universalmente superiores aos valores
Não significa isso que a noção de materiais, do mesmo modo que os va-
indivíduo, para Scheler, esgote-se na lores materiais são necessária e univer-
sua adesão aos valores de sua classe. salmente mais fortes e mais prementes
Estes interferem, mas não são os úni- do que os valores espirituais. Scheler
cos aos quais o indivíduo se atém. Os estabelece assim uma dualidade implí-
valores materiais são dependentes das cita entre valores superiores e valores
classes sociais na medida mesma em inferiores, tanto na ação individual e
que eles assumem um papel prioritário coletiva, quanto na produção do conhe-
na conduta ética. Os valores materiais cimento individual e social. Há nessa
estão relacionados aos laços de sangue dualidade uma oposição implícita entre
e à necessidade de sobrevivência indi- superioridade e força: o poder do que é supe-
vidual. A esses valores, diz Scheler, rior é inferior à força do que é inferior.
toda pessoa tende a atribuir uma prio- Nisso reside o fundamento de sua
ridade em seus atos. sociologia do conhecimento: trata-se de
Contudo, Scheler diverge de Marx demonstrar que o processo do conhe-
quando este atribui aos valores mate- cimento individual e social se dá a par-
riais total exclusividade na determina- tir da busca de realização de valores
ção dos atos humanos. Com efeito, para materiais. Até aqui, acompanha a in-
Marx, somente os valores materiais — terpretação da produção de valor ela-
relacionados com as necessidades de borada por Marx, passando a divergir
produção econômica — determinam a quando este atribui aos valores espiri-
conduta. Scheler não nega a importân- tuais um caráter de “superestrutura”
cia dos valores materiais. São efetiva- totalmente condicionada pelos valores
mente mais fortes, mais prementes e inferiores. Para Scheler, não é por sua
mais imperativos. Exatamente por isso, força que os valores materiais condi-
são também objetivamente inferiores cionam os valores espirituais, uma vez
dentro da escala hierárquica dos valo- que estes, mesmo mais frágeis, preva-
res. Sendo positivos, em si mesmos, lecem no tempo e no espaço, têm maior

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poder, porque condicionam a escolha mentos espirituais e instintivos, sendo


dos valores inferiores. A simples ade- tais ideologias tanto mais valiosas e
são aos valores materiais é ética e so- duradouras quanto mais conseguem se
cialmente insuficiente para a produção apoiar em bases materiais sólidas. São
do conhecimento. Todo conhecimento tanto mais densas de poder quanto
necessita tanto dos valores inferiores quan- mais portadoras de conteúdos ideais.
to dos valores superiores para subsistir. Não há, portanto, ideologia sem algum
Conseqüentemente, a produção do vínculo material e nem tampouco sem
saber, em qualquer época ou grupo algum conteúdo ideal. Em outras pala-
social, decorre sempre da conjugação vras, há sempre algo de “utópico” em
entre valores inferiores e superiores. qualquer ideologia, assim como tam-
Se a produção científica necessita de bém carregam algo de material, instin-
recursos materiais para ser atingida, tivo, interessado ou empírico.
também necessita ter por meta a busca O caráter instintivo presente na
da verdade, sem o que seria totalmente natureza, em geral, e na natureza hu-
inócua ou sem valor social. Nesse sen- mana, em particular, nunca poderia ser
tido, toda produção humana de valo- excluído do processo de produção de
res, além de seu conteúdo necessaria- idéias e nem do processo de produ-
mente social, também contém uma con- ção do conhecimento. Scheler vê a na-
jugação entre algo inferior ou materi- tureza humana fortemente movida por
al, ao qual Scheler dá o nome de “im- impulsos instintivos, sem que isso o
pulso” (Drang) ou de “orgânico”, ou aproxime de uma visão puramente
“instintivo”, ou ainda “natural”. Acima empirista ou meramente materialista;
dos impulsos instintivos, o ser huma- mas a vê também como carente de
no, universal e necessariamente, colo- ideais mentais ou espirituais, sem que
ca sempre algo superior, seja relativo isso o vincule a uma posição racio-
ao poder, à vida, à beleza, à verdade nalista ou mística.
ou ao próprio mistério da existência. É O pensamento de Scheler foi fre-
o que Scheler designa genericamente qüentemente associado a posturas con-
como “ideal” e “utópico”, na medida em fessionais por leitores superficiais de
que procede do nível superior que seus textos, do mesmo modo que sua
corresponde ao que denomina “espíri- teoria sobre os impulsos instintivos da
to” (Geist). Toda ação humana contém natureza humana foi interpretada de
algo de ambos os elementos. O espiri- modo isolado, gerando uma compre-
tual ingressa não como complemento ensão limitada e unilateral de sua teo-
determinado pelo impulsivo e sim co- ria do caráter social do conhecimento.
mo integrante de uma totalidade que Para ele, efetivamente, o ser humano é
se mostra única na ação. movido por um desejo inato de conhe-
O processo de formação das ideolo- cer que passa por várias etapas mera-
gias tem, portanto, para Scheler, o sig- mente impulsivas e até mesmo instin-
nificado de uma conjugação de ele- tivas. A primeira etapa desse desejo de

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conhecer transparece no impulso de te sua necessidade de uma renovação


posse ou de apropriação, pelo qual toca de valores, no campo do conhecimen-
as coisas e as torna suas pelo uso ou to. Eis por que o ser humano se atira
pelo manejo. Segue-se um instinto de sobre o mistério e sobre aquilo que ul-
transformação, pelo qual o impulso trapassa os limites fornecidos pelo mun-
criador busca alterar a natureza das do físico. Do natural, o conhecimento
coisas, de modo a lhes acrescentar ou se volta para o sobrenatural. Mesmo que
a impor algo de seu naquelas de que não consiga resultados consistentes,
se apropria. Por fim, aponta Scheler o todo ser humano é movido pelo impul-
terceiro estágio do processo do conhe- so metafísico, o qual Scheler traduz como
cimento do mundo, que consiste em busca da “causa prima” que o leve ao
buscar as causas e estabelecer noções conhecimento da causa última de todas
racionais que lhe permitam explicar, as coisas. Nesse sentido, todo conheci-
interferir e prever. Todas essas ope- mento humano tem uma direção
rações do processo do conhecimento metafísica, mesmo que esta se revele
humano se desenvolvem de modo evo- limitada e impotente diante do caráter
lutivo e hierárquico: o conhecimento, opaco das coisas. Trata-se de uma exi-
pela sua simples apropriação material, gência inerente até mesmo na mais ra-
tem um valor inferior ao conhecimento dical das demonstrações de ceticismo.
gerado pela transformação do objeto, Além disso, Scheler entende que
do mesmo modo que o conhecimento todo conhecimento tem um caráter su-
pelas causas tem um valor superior, por pra-individual e social, no sentido de
representar o conhecimento abstrato, que ninguém busca conhecer apenas
intelectual ou científico do mundo real. para si próprio mas também para co-
Eis por que os conhecimentos científi- municar-se e revelar-se diante do ou-
cos são sempre mais valiosos do que tro. Há no processo do conhecimento
as descobertas tecnológicas. um fazer implícito, pelo qual o que se
Todas essas etapas geram formas conhece gera a ação transformadora.
essenciais de investigação que passam Isso explicaria a continuidade natural
a residir na linguagem, isto é, no co- entre o científico e o tecnológico. Há
nhecimento das coisas através da sua algo de metafísico e também de ideo-
transformação em palavras, formas sim- lógico no conhecimento científico, tan-
bólicas, gestos, sons e outros meios de to quanto há algo de utópico no em-
transformação do conhecimento que pirismo do desenvolvimento tecnoló-
adquirem o caráter de novos instru- gico. O ser humano aparece assim, para
mentos de comunicação. Scheler, como o elemento mais avan-
O conhecimento evolui. Tem sua çado da síntese entre os impulsos ins-
origem na mera relação com as coisas. tintivos e os ideais utópicos presentes
É inicialmente físico ou natural. Este, na evolução do universo.
contudo, esgota-se na medida em que O conhecimento das causas facil-
não satisfaz ou não preenche totalmen- mente se converte em um conhecimen-

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to ativo, pelo qual se torna possível res condicionam o conhecimento que


transformar e criar a natureza das coi- todo grupo social constrói para instau-
sas. Seria mesmo possível dizer que há, rar sua visão da realidade que o cerca
sob todo processo tecnológico, uma e do projeto que o condiciona. Todas
utopia de reconstrução do mundo e que as formas de conhecimento são igual-
há também, sob todo o processo de de- mente fundadas em valores, do mes-
senvolvimento do conhecimento huma- mo modo que os valores só podem ser
no, uma utópica aspiração ao conheci- conhecidos através das relações so-
mento da causa universal de todas as ciais. Em síntese, a sociologia do conhe-
causas. Não se trata aqui de justificar cimento representou para Scheler uma
alguma forma de crença e muito me- via de abertura para o caráter axioló-
nos de ocultar uma convicção dogmá- gico do ser social, a partir do qual seria
tica, mas apenas de reconhecer um vín- possível encontrar aquilo que sempre
culo inevitável entre a aspiração ao co- buscou: entender o “lugar do homem
nhecimento científico e a religiosidade no mundo”.12 Esse “lugar” seria sem
inerente à natureza humana. dúvida a soma de algo que se produ-
O processo do conhecimento evo- zisse na interseção entre o biológico e
lui, portanto, do real para o ideal, tanto o metafísico, entre o social e o univer-
quanto do impulsivo para o utópico, sal. Vislumbrou no mundo dos valores
através de uma seqüência da qual a opi- o sinal da universalidade humana tan-
nião constitui sua fase inicial, passando to quanto vislumbrou na realidade so-
depois pelas crenças e até pelas supers- cial o sentido oculto do dinamismo vi-
tições para, finalmente, chegar à depu- tal. Sua morte, como a de Sócrates, ocor-
ração dos erros e à simples produção re em um momento culminante de sua
de verdades demonstráveis. O impul- penetração filosófica no interior fecun-
sivo corresponde à necessidade mate- do das coisas. O mundo começava a
rial pela qual os valores se apresentam ganhar sentido quando seus olhos se
e se tornam realizados. O ideal corres- fecharam para o mundo, reunindo-se
ponde à impossibilidade de qualquer por fim, para ele, o ideal e o real.
valor se esgotar em qualquer das oca- Recebido em 27/8/2002
siões de sua realização. Mostra lon- Aprovado em 30/10/2002
gamente Scheler que nenhum valor se
esgota quando efetivamente realizado 12. Die Stellung des Menschen im Kosmos foi pu-
por preservar sempre sua objetividade blicada, em sua versão preliminar, um mês de-
pois de sua morte. Scheler apenas esboçou, a par-
latente e sua universalidade intrínseca. tir da sociologia do conhecimento, sua nascente
Os valores constituem não apenas mas grandiosa concepção de uma ontologia so-
um a priori para os indivíduos. Consti- cial fundada em uma visão a um só tempo antro-
tuem também um a priori social. Todo pológica e universalista da existência humana.
grupo social apreende valores para Carlos Matheus, professor titular do Departa-
constituir sua coesão interna e seu pro- mento de Filosofia da PUC-SP.
jeto de organização coletiva. Os valo- E-mail: cemmatheus@attglobal.net

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