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UMA VISÃO DE EDUCAÇÃO SÓCIO-COMUNITÁRIA

Regis de Morais1

Apesar de todos os esforços registrados pela filosofia social e pelas ciências sociais, os conceitos
de sociedade e de comunidade permanecem imprecisos, por uma polissemia que acaba por caracterizá-
los. Penso que, por isto mesmo, não devemos abandonar tais conceitos em certa quietude nebulosa.
Provavelmente não lograremos torná-los inteiramente nítidos, mas cada empenho teórico pode lançar luz
de algum ângulo.
Dissemos que os vocábulos aqui postos em destaque (sociedade e comunidade) mostram-se
polissêmicos. Lembremo-nos, porém, que um conceito, quando desponta no âmbito da inteligência, é
unívoco. Surge, inicialmente, muito igual a si mesmo; e como pondera Lewis Mumford, nesse instante de
nascimento ele tem “a clareza de uma forma platônica, a propriedade de um espírito iluminado; é um todo
metafísico e lógico” (1958: p. 83). Mas, ainda lembra Mumford, nascida em nós e entre nós a idéia, não
habitará as vitrinas assépticas do mundo dos conceitos platônicos; ao contrário, precisará mover-se em um
meio “impuro” que é o meio da vida, sob pena de ser condenada à esterilidade (Ibid., p. 83).
Ora, os vocábulos pobres seguirão evocando restritamente coisas quase únicas; na língua
portuguesa se alguém fala de prego, só se pensará em pequena peça de perfuração e de prendimento,
descontando-se eventuais metáforas (“Fulano nada como um prego”). Mas há termos que nascem para
uma rica trajetória, porque acolhem com facilidade as influências múltiplas da sociocultura – o tal meio
“impuro” de Mumford. São palavras que, ao despontar, mostram de início apenas uma pequena haste
desnuda, mas, posteriormente vão-se desdobrando em galhos, ramos, folhas e até flores e frutos,
transformando-se em árvore frondosa. Quem sabe esta possa ser uma boa imagem para a trajetória dos
termos polissêmicos? Palavras conceituais e ricas em articulações como educação, cultura, sociedade e
comunidade, por exemplos, só assustam a investigadores de pouca disposição, pois, na verdade, são
apaixonantes convites à reflexão.
As páginas sobre educação para a comunidade e sobre especificamente o sentido sócio-político
de comunidade, de filósofos como Martin Buber e Francesco Fistetti; os ensaios de sociólogos como
Ferdinand Tönnies, Émile Durkheim, M. Weber, Charles Cooley, e, mais atualmente, Zygmunt Bauman e
Ely Chinoy – todos esses são estudos de tal modo brilhantes que transformariam em audácia uma única
tentativa a mais. Mas sabemos da generosidade desses teóricos que buscaram avançar nos mencionados
assuntos exatamente para que, oferecendo seus esforços à posteridade, nesta suscitassem inquietações e
pensamentos que já pudessem contar com uma parte do caminho trilhada.
Hoje, mais do que em qualquer outro tempo, volto meus poucos recursos de análise para as
relações entre educação, sociedade e comunidade, de vez que enxergo, em tais relações, de um lado um
estandarte de promessas reais e boas para os tempos atuais, e de outro, um provável equívoco reducionista

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Doutor e Livre Docente em Educação. Professor Titular aposentado da Unicamp. Professor Titular da
UNISAL/Americana e professor convidado da PUC de Campinas/SP.
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na idéia de sócio-comunitarismo. Desde a primeira metade do século XX, Buber pregava a educação
sócio-comunitária e, de minha parte, nunca vi esse luminoso filósofo ir no encalço de coisas de menos
valor ou de realidades equivocadas. Todavia, algumas linhas da sociologia política têm-se deixado levar
por reducionismos que não favorecem a mais rica compreensão da dialética que dinamiza o sócio-
comunitário.
O que esperamos é que este ensaio, na agilidade simples de suas poucas páginas, alcance uma
visão o mais aproximadamente justa daquilo que se denomina educação sócio-comunitária. Se de um
lado nos deparamos com teorizações excessivamente universalistas que, com olhares altos, fazem sumir
do campo de visão o comunitário mais próximo e cotidiano, de outro temos focalizações de um
pragmatismo demasiado simplificador e localista que, particularizando o olhar no proximamente palpável,
deixam de lembrar-se das interdependências que há na mundanidade e que fazem, com freqüência, das
comunidades localizadas, caixas de ressonância das venturas e desventuras do macrossocial.
Na maior parte das vezes, tais posições de teoria e prática são inintencionais e até inconscientes,
ainda então tornando mais interessantes algumas páginas que busquem, jamais de modo professoral e
arrogante, um real despertamento dos que se querem dedicar à bela proposta de uma educação sócio-
comunitária.
Vocações diferentes conduzirão os especialistas a distintos âmbitos de pesquisa e de ação. E
como é maniqueísta falar-se em vocação melhor ou pior, boa ou menos boa, nenhum educador que atenda
com verdade à sua real vocação será pior que os demais. Nada é mais benvindo do que honestas escolhas
existenciais e profissionais; ao mesmo tempo, nada mais perigoso do que exigir-se alguma uniformidade
de pensamento e ação. É sempre útil lembrarmos a expressão latina “Uno versus alia” (a unidade através
da diversidade) que deu origem a vocábulos como universal e universalismo.
Introduzido o tema, tomemo-lo agora em suas peculiaridades.

1. Complexificação social e transformações conceituais.


As evoluções de significado dos conceitos têm diretamente a ver com fases vividas e
ultrapassadas pela sociocultura, bem como com características do momento atual. Com relação a pensar-
se acerca das idéias de sociedade e comunidade, deparamo-nos com dois modos possíveis: um,
seqüencial-histórico, que com certa freqüência se apresenta dicotômico (Tönnies, Cooley, Giddings e
Durkheim, por exemplo); outro, investigador, nos tempos atuais, das sutilezas de concentricidade e de
interdependências de tais conceitos (Weber, Buber, Fistetti e Z. Bauman).
No século XIX, precisamente no ano de 1887, Ferdinand Tönnies publicou célebre texto
intitulado Comunidade e sociedade, no qual era indicado um trânsito histórico que levava da vida muito
mais em comunidade (Gemenschaft) a outro modo de viver de forma propriamente societária
(Gesellschaft). Isto é, na linha do processo histórico, ia-se de formas de convivência fundamentadas em
laços naturais, familiares e não impregnados pelo racionalismo anônimo de mercado, formas estas
marcadas por vontade espontânea e diferentes dos modos societários constituídos por artifício, convenção
e arbítrio, típicos agora das sociedades industriais de mercado (Fistetti, 2004: p. 137). Na concepção de
Tönnies a comunidade é uma organização de elementos humanos que vivem juntos, privativa e
exclusivamente; mas o cientista em questão pensa a vida em comunidade como caracterizadora de uma
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fase histórica em extinção e muito mais própria de estruturas familiares, dos grupos de amigos e de
pequenos e afetivos agrupamentos formados em zonas rurais. No entanto, sociedade difere de
comunidade em razão agora de decisões racionais de amplo consenso que levam a estruturas relacionais,
em razão de “um acordo racional de interesses” que dá espaço a burocratizações (Candelgolden, s/d: p.
50).
Cooley, Giddings e Durkheim fazem caminho teórico semelhante, Cooley falando em grupos
primários e secundários, Giddings preferindo denominá-los compostos e constituídos, indo Durkheim
para a conceituação de sociedades tradicionais e sociedades urbano-industriais, as quais partiriam de
simples hordas, passariam pelos clãs e linhagens, chegando à organização dos clãs em tribos, à
organização das tribos em confederações tribais, vindo estas a constituírem as cidades: primeiro simples e
semi-rurais e, após as revoluções tecnológica e industrial, propriamente urbano-industriais (Ibid., pp: 50-
51). De todo modo, o que nestes autores se vê é uma visão histórico-evolutiva, na qual as comunidades
cedem o passo às sociedades.
Já Martin Buber (1987), Francesco Fistetti (2004) e Zygmunt Bauman (2003), investigam a
realidade comunitária no mundo atual, entendendo a relação entre sociedade e comunidade em refinados
termos de simultaneidade, concentricidade, dialética e interdependência. A isto voltaremos páginas
adiante, não sem registrarmos que o precursor desta concepção que não foge à complexidade foi o
sociólogo Max Weber.
O filósofo Jacques Maritain, em sua obra Os direitos do homem escrita durante a IIª Grande
Guerra e editada no Brasil nos anos 1960 (3ª ed., 1967), escreve:
“A sociedade é um todo cujas partes são em si mesmas outros todos, e é um
organismo feito de liberdades, não de simples células vegetativas” (Maritain,
1967: p. 19).

Isto porque, para Maritain, pessoas humanas não são meios, mas fins em si mesmas. O
indivíduo, sendo apenas unidade biológica fundamental, segue sendo uma espécie de débito para com o
meio humano; mas a pessoa, que para além de uma unidade biológica é ser de conteúdos espirituais e de
intrínseca dignidade, estabelece como que um constante débito do meio humano para com ela, pessoa.
Ainda anota Maritain:
“A pessoa é um todo, mas não um todo fechado. É um todo aberto e não um
pequeno deus sem portas nem janelas como a mônada de Leibniz, ou um ídolo
que não vê, não ouve, nem fala. Por sua própria natureza ela tende para a vida
social e para a comunhão” (Ibid., p. 18).

Com base em tais ponderações, tendemos a concordar com Martin Buber que indivíduos formam
massas, enquanto pessoas formam comunidades e mesmo estruturas sociais não esterilizadas pelos efeitos
despersonalizantes da pura ética de lucros da sociedade de consumo, (Buber, 1987: pp. 103-116). Eis por
que o individualismo crescente, primeiro durante a Revolução Industrial em sua fase do século XIX e na
chamada IIª Revolução Industrial, a da automação, hoje preocupa tão profundamente grandes autores
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como Gilles Lipovetsky (A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo, 2005), Alain
Renaut (O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito, 1998), e outros.
Neste passo, entendo que poderia ser de boa utilidade lançarmos um olhar analítico, ainda que
panorâmico, sobre o que estamos chamando de complexificação social, de vez que um tal olhar talvez nos
faculte entender melhor a sutil ressignificação dos liames comunitários. E o pensamento marxiano nos
será aqui de grande valia, quando Marx se debruça sobre realidades como as formas de produção, as
relações de produção e a conseqüente geração das demais relações humanas superestruturais.
Tom Bottomore, citando o próprio Marx, traz-nos uma vez mais o seu arquifamoso “Prefácio” à
Contribuição à Crítica da Economia Política.
“Na produção social de sua vida, os homens estabelecem relações definidas
indispensáveis e independentes de sua vontade, relações de produção que
correspondem a um estágio definido do desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. A soma total dessas relações de produção constitui a
estrutura econômica, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura
jurídica e política (...)” (Bottomore, 1988: p. 157).

O próprio Bottomore adverte que a idéia de forças produtivas desenvolvida por Marx engloba os
meios de produção e a força de trabalho (Ibid., p. 157). Ora, ao atentarmos para os meios e relações de
produção podemos compreender melhor as fases vividas pelas sociedades humanas; de modo que tais
conceitos marxianos instrumentalizam-nos para melhor entendermos os passos da complexificação social,
especialmente a vivida primeiro pelo mundo ocidental, mas que hoje subverte também milenares culturas
asiáticas.
De modo um tanto esquemático, para não remontarmos a realidades históricas demasiado
distantes, podemos seqüenciar a evolução das sociedades da seguinte maneira:
1º) sociedades agro-pastoris, que vêm do Mundo Antigo, praticamente caracterizam o período
medieval sob forma feudalista, começam em parte a decrescer na modernidade, mas subsistem mesmo no
Mundo Contemporâneo – agora não mais como predominantes em todos os países. Mesmo no período
feudal, encontramos um feudalismo fantasioso e um verdadeiro, segundo Giuseppe Sergi (2001: p. 19),
pois anota este historiador:
“A mente humana tem uma tendência natural à perspectiva. Ao olhar para o
passado vê em primeiro lugar o mais próximo, em seguida o passado mais
recente, e imagina espontaneamente todos os séculos mais anteriores como
semelhantes a esse passado recente, mas não é seguro que seja assim: com
freqüência, o passado mais distante foi melhor do que o passado próximo”.

Sergi assim observa para informar-nos de que a Alta Idade Média (isto é: a mais inicial) adotava
um feudalismo protetor e beneficente, sendo, no entanto, que o iluminista denegriu a Idade Média toda
julgando-a mediante a fantasia perspectivista segundo a qual os feudos medievais eram tão ou mais
exploradores e impiedosos do que os feudos ainda existentes no princípio do século XVIII.
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De qualquer modo, nas sociedades agro-pastoris, as formas e as relações de produção foram, de


fato, a base de vida das demais relações humanas. Naturalmente, a figura central de todas as sociedades
agrícolas (mesmo as que existem até hoje) é o camponês, capaz de perceber a totalidade do sentido do seu
trabalho porque ele estava no início, no meio e no fim do seu processo de produção. Escolhia as
sementes, fazia o plantio, cuidava da lavoura, colhia os resultados, usava o necessário e tendia a trocar
seus excessos com outros grupos lavoureiros. O camponês, por estar em contato com os ritmos da
natureza (noite e dia, estações do ano, etc.), é um tipo paciente e, de hábito, conservador. Suas relações
humanas são sinceras, afetivas, duradouras e culminam em festas e celebrações às quais gosta de se
dedicar.
2º) As sociedades agro-pastoris evoluíram para sociedades artesanais. As atividades se
deslocam para esculturas, trançamentos de couro, “fabrico” de bens domésticos – de uso e de
ornamentação. Mudadas as formas de produção e as relações destas, ainda assim os artesãos também
logravam perceber plenamente o sentido do seu trabalho, de vez que também estavam no início
(concepção), no meio (execução) e no fim (uso próprio ou de venda) do seu processo produtivo.
3º) Das sociedades artesanais caminha-se para as manufatureiras, que, por assim dizer, são um
primeiro esboço das futuras fábricas. Eram promovidos, por quem tinha recursos, ajuntamentos, em
grandes salas e galpões, de pessoas de diversa origem familiar, para a produção de mercadorias que a mão
humana podia produzir. Mas aqui já havia o primeiro investidor, oficiais e aprendizes, e uma incipiente
divisão do trabalho em fases. Como é perceptível, aqui começa-se a entrar no preâmbulo daquilo que
Karl Marx, no período de industrialização, denominou “O trabalho alienado” (Manuscritos econômicos e
filosóficos de 1844, 1º manuscrito. Frömm, 6ª ed., pp. 89-102).
As relações humanas, de modo geral, modificavam-se com base nas alterações de formas e
relações de produção; e agora principiava o processo crescente até aos nossos dias de o trabalhador –
considerado em suas formas empregatícias mais complexas – conseguir perceber o sentido antropológico
de sua vida laboral, com extensão sobre a não-laboral.
4º) Chega-se às sociedades maquinofatureiras, propriamente com a primeira Revolução
Industrial e suas fábricas. Estas sociedades têm, na relação capital – trabalho, como figura de toda
importância o operário. Diferentemente do camponês, vivendo as tensões geradas pela exploração de sua
força de trabalho, o operário é impaciente, mais tenso e revolucionário. São muitos os movimentos
operários, vezes sem conta dotados de certa intensidade dramática. Consabidamente, a propriedade
privada dos meios de produção – pelo capital – submete os operários a trabalhos pesados feitos a troco de
salários insuficientes.
Até aqui vimos o que Émile Durkheim considerava, grosso modo, a básica transição das
“sociedades tradicionais” às “urbano-industriais”.
5º) Hoje se fala em sociedades pós-industriais, não no sentido de que não existam mais
indústrias. Tal nome se refere mais às sociedades do funcionariado e das transações simbólicas (com
DOCs, TEDs, moedas abstratas, carimbos, adesivos icônicos, etc.). O filósofo tcheco Vilém Flusser faz
interessante descrição:
“Está sentado atrás da escrivaninha, e recebe papéis cobertos de símbolos
(letras e algarismos), que lhe são fornecidos por outros funcionários. Arquiva
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tais papéis, e cobre outros com símbolos semelhantes, para fornecê-los a outros
funcionários ainda. O funcionário recebe símbolos, armazena símbolos,
produz símbolos e emite símbolos” (1983: p. 35).

Flusser considera o funcionário, no sentido pleno do termo, um alienado indiferente que só cuida
de dois objetivos melancólicos: trabalhar corretamente para se aposentar bem (Ibid., p. 36). Considera,
ainda, que o tecnocrata é o topo das chamadas sociedades pós-industriais.
Na trajetória evolutiva que vimos de rapidamente desenhar com traços básicos, todo um processo
de complexificação social evidentemente se deu e se vem dando, ao ponto de hoje ficar inviabilizada – ao
menos na linha de interesses hodiernos – a visão histórico-seqüêncial que distingue em segmentos as
noções de comunidade e sociedade. O referido desenho objetivou apenas uma compreensão
eventualmente mais efetiva e cômoda da próxima parte deste ensaio, na qual vamos, nuclearmente,
focalizar nossa visão de educação sócio-comunitária, exatamente buscando entender a dinâmica em
nosso tempo possível entre as três noções de educação, sociedade e comunidade, levando a um peculiar e
mais complexo conceito de sócio-comunitarismo.

2. Mecanicismo e organicismo nas noções de sociedade e de comunidade: a educação sócio-


comunitária.
Talvez se perceba com facilidade que o autor deste texto não é marxista. Mas este autor sabe
homenagear importantes conceitos trazidos aos pensamentos moderno e contemporâneo pelos amigos K.
Marx e F. Engels. Nosso tempo deve muito a estes inovadores da filosofia social, da sociologia e da
economia política.
Marx, ao longo de sua obra, algumas vezes deixou-nos esclarecido que o caminho para o
conhecimento obedece, fundamentalmente, a três momentos (que são campos de operações mentais): a
sínclise, momento de espanto, admiração e caos, entendendo-se caos em seu sentido grego que aponta
para “princípio de ininteligibilidade”; a análise, momento classificatório e ordenador por diferenciações e
distinções; e a síntese, momento mais iluminador de integração compreensiva capaz mesmo de unificação
superadora. Tais conceitos serão bem úteis para este momento da nossa presente investigação.
Ocorre que, nas concepções de vida e mundo, precisamos distinguir toda visão mecânica, que
caminha apenas da sínclise à análise, da visão orgânica e de interdependência, a qual faz todo o percurso
(sínclise, análise e síntese). Já dizia Hegel que a tese e a antítese são dois momentos abstratos que
preparam o momento concreto de síntese.
Se voltarmos, para sociedade e comunidade, uma visão mecânica, aceitaremos essas realidades
como dicotômicas e seqüenciais, equivocando-nos quanto ao momento atual. Nosso tempo exige que
olhemos para comunidade e sociedade com um modo de avaliação orgânico. Talvez mesmo a física
contemporânea (Niels Bohr) aqui nos auxilie ao, com claras diferenças em relação a Hegel, expor-nos sua
importante noção de complementaridade (Foulquié, 1974: pp. 96-100). Ora, dizemos que duas realidades
são complementares exatamente porque são distintas, pois, do contrário, constituiriam desde o início uma
única realidade. No entanto, a ação recíproca de complementaridade conduz a uma terceira realidade,
sem eliminação das duas primeiras e sim apoiando-se nelas (Ibid., p. 97).
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Como muitas vezes lembrou o físico Bohr, a complementaridade não tem necessidade de
implicar contradição ou contrariedade. E vamos percebendo a importância desta noção de
complementaridade quando nos debruçamos sobre os temas de comunidade e sociedade. Estas são
realidades complementares exato em razão de suas diferenças, mas, quando feita com ambas a
complementação, essas realidades produzem uma terceira: o sócio-comunitário, que, não eliminando as
duas primeiras tomadas separadamente, afirma-se, ao contrário, apoiando-se nelas. É, porém, uma
terceira realidade em si mesma.
Como se vê, fomos buscar na física contemporânea a luz de que precisávamos para entender a
atual simultaneidade bipolar de sociedade e comunidade, como importante aspecto da teia da vida. Mais
até do que a apenas simultaneidade; a integração comungante dessas realidades, a nos oferecerem algo
além com que nos vamos ocupar, chamando-o o sócio-comunitário e fazendo-o envolvido com forças de
uma educação verdadeira, merecedora deste nome.
Escreveu Martin Buber, nas páginas finais de sua obra Qué es el hombre (1983, 12ª ed.: p. 146):
“O fato fundamental da existência humana não é nem o indivíduo enquanto tal
nem a coletividade enquanto tal. Ambas estas coisas, consideradas em si
mesmas, não passam de ser formidáveis abstrações. O indivíduo é um fato da
existência na medida em que entra em relações vivas com outros indivíduos; a
coletividade é um fato da existência na medida em que se edifica com vivas
unidades de relação. O fato fundamental da existência humana é o homem com
o homem”.
Adiante prossegue:
“Esta esfera, que já está plantada na existência do homem como homem mas
que ainda não foi conceitualmente desenhada, a denomino a esfera do ‘entre’.
Constitui esta uma protocategoria da realidade humana, ainda que de fato se
realize em graus muito diferentes” (Ibid., p. 147).

Em tais passagens Buber deixa claro que a tendência coletivista de pensamento e avaliação da
realidade humana é uma tendência abstrativa, da mesma forma que o é o vezo individualista de
pensamento. “O fato fundamental da existência humana é o homem com o homem”. Vejo estas idéias
buberianas muito úteis para que, cuidadosamente, avancemos na compreensão do que seja o que estamos
denominando “educação sócio-comunitária”. Afinal, na concepção de Buber com a qual concordo, o ser
humano é um ser de relações.
Vejamos que a vida humana, do orgânico ao psico-espiritual, é um sistema de trocas com o
entorno. Já se tem dito que o denominado estado de sanidade (a saúde) se dá quando o nosso organismo
faz perfeitamente todas as trocas necessárias com o ambiente físico; que a situação doentia (doença)
ocorre quando nosso sistema de trocas se encontra comprometido; que o envelhecimento se dá quando
tais câmbios vão ficando crescentemente deficitários e difíceis e que, a morte é a situação na qual o corpo
se torna incapaz de trocas. Ora, na medida em que o homem é um ser-com-o-mundo (comunhão) e um
ser-pelo-outro (convivência identitária), temos claro que o nosso sistema de interatividade e trocas vai
muito além do puramente organísmico.
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A macrossociedade, com suas sociopatias como com suas sociossanidades, exerce pressões sobre
cada pessoa desde o nível internacional ao mais pessoal. E, para usarmos a nomenclatura de Charles
Cooley, nos grupos primários do cotidiano (grupos de convivência próxima) dá-se um complexo jogo de
influências e, mesmo, pressões, que mostram claramente o ser humano como um ser de relações que
implicam ações e reações de múltiplas ordens. De tal modo que a evolução da coexistência à convivência
configura um processo educacional permanente, podendo ter essa educação sinal positivo ou negativo.
Vê-se, assim, que “o homem com o homem” constitui, já de si, um conjunto efetivo de ações educacionais
com suas devidas reações.
Não precisamos voltar ao conceito de pessoa, há muito trabalhado por J. Maritain e que tem sido
ricamente desdobrado e aperfeiçoado por pensadores que vieram depois. É assim que, inspirado em
excelentes considerações do educador e filósofo Charles Hadji (2001), exporemos alguns aspectos que
importam a este estudo.
1) Entendamos que o ser humano é ser inacabado, estando sempre em
desenvolvimento.
2) Que este ser humano, deixado à sua própria sorte, pode fazer do seu
desenvolvimento algo caótico.
3) O desenvolvimento deste ser é o que o leva de indivíduo a pessoa, sendo que o
educador deve responsabilizar-se por auxiliar o desenvolvimento da pessoa/cidadã.
O respeito à pessoa, por parte do educador, não deve levar este último a omissões,
devendo – isto sim! – contribuir ativamente para a emergência da pessoa.
4) Pessoa é exigência de não-estagnação, de desenvolvimento e, acima de tudo, de
ética.

Por todas estas razões se repete sempre e com razão que educar é tarefa de toda a sociedade;
tarefa que se inicia no lar e as famílias não podem delegar, em sua condição de “grupo primário” de laços
existenciais afetivos, mas que se estende como compromisso de todas as frentes sociais, em sua
consciência humana pública e personalizante. Educar (do latim educere), num primeiro plano significa
levar de um lugar para outro; todavia, não quer dizer levar-se de um lugar qualquer para outro qualquer,
significando a condução de uma personalidade da alvorada de suas primeiras experiências vitais à sua
consciência de cidadania, a qual implica visão lúcida do seu mundo relacional e de si mesma.
O adestramento é puro treinamento comportamental que interessa aos adestradores; já a
instrução é treinamento comportamental e intelectual, de vez que já trabalha com conteúdos mais dignos.
O ensino constitui patamar bem mais elevado, porque objetiva auxiliar o ensinando a ter um encontro
mais sensível e inteligente com o seu mundo; e a educação dizemos ser o mais elevado ponto, em razão
de usar contributos (poucos) do adestramento, da instrução (em maior volume), do ensino (em alto grau)
para levar o educando a escolher uma certa forma de humanidade que lhe garanta a consciência cidadã
(de partilha de vida e mundo, com clara noção de direitos e deveres).
Sem complicarmos demasiadamente este texto com o exame comparativo de diversíssimos
conceitos de educação, o que agora nos interessa é voltarmos o foco dessa relação entre os conceitos de
pessoa e de educação para as idéias de sociedade e comunidade, que no presente estudo nos preocupam
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centralmente. Então reiteramos o intento de que alcancemos uma visão não mecanicista, mas
propriamente, orgânico-sintética das referidas relações. Lembramo-nos, nesta altura, de Paul Foulquié ao
considerar, em sua obra A dialética (s/d: p. 101), que:
“... o nosso saber constitui um todo solidário onde as partes só têm significado
quando integradas no todo; mas as partes modificam o significado desse todo
pelo fato de nele estarem inseridas”.

Reconheçamos, pois, que chegamos à fronteira de um segmento deste texto que deverá constituir
o núcleo mais irradiante das páginas que até aqui temos desenvolvido.

3. Sociedade, comunidade e sócio-comunitarismo: aspectos educacionais.


Já o sociólogo Max Weber julgava inteiramente necessário fazermos a devida distinção entre
comunidade e associação; a primeira devendo ser vista como algo que existe em presença de uma ação
social fundamentada em um pertencimento comum, o qual, embora sendo vivenciado de modo grupal, é
experimentado subjetivamente pelas pessoas que dele participam (Fistetti, 2004: p. 139). Já a associação
surge quando só exprime certa identidade de interesses, com um laço de intenções racional ou
ideologicamente motivado e explicado (Ibid., p. 139). A associação pressupõe um compromisso firmado
reciprocamente, contratado ainda que oralmente.
Para Weber, conquanto fosse mais ou menos comum confundir-se associações com
comunidades, estas últimas constituem algo que deve ter um sentido social mais amplo e também mais
profundo do que as primeiras. Comentando a arguta distinção weberiana, escreve o politólogo Francesco
Fistetti (Ibid., pp. 139-140):
“O que a análise weberiana permite compreender é que o Estado moderno, com
suas instituições racionais (direito, burocracia, divisão de poderes, etc.), e a
sociedade capitalista de mercado, com a separação entre ‘casa’ e empresa, entre
negócios privados e negócios públicos, a organização do trabalho nas fábricas,
o predomínio do princípio do cálculo, todos estes fenômenos, típicos do
‘racionalismo ocidental’, não comportam o cancelamento da comunidade do
seio da sociedade moderna, senão que a sua refuncionalização histórica, que
pode assumir modalidades diversas”.

Noutras palavras, o que Weber admite é que, na realidade concreta do Estado moderno e,
portanto, da sociedade capitalista sempre permeada pela lógica do cálculo, muitas formas de vida
comunitária convivem – de modo interinfluente. Comunidades religiosas, empresariais, militares,
profissionais, desportivas, culturais e até mesmo criminais, como as máfias em que se haveriam de
multiplicar a máfia originária. Nos mundos moderno e contemporâneo, o que realmente temos assistido é
a uma refuncionalização das comunidades, configurando autêntica teia de convivências e ações que, na
verdade, dá substância às sociedades moderna e contemporânea – ainda mais a esta última.
Pode-se constatar que Max Weber avança já para além das separações históricas entre
comunidades e sociedades, tais como um dia concebidas por F. Tönnies. No entanto, o filósofo austríaco-
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judeu Martin Buber, especialmente em obras como Sobre comunidade (1987) e Do diálogo e do dialógico
(1982), avança mais em relação a Weber sugerindo diferenciação entre comunidade e aliança, bem como
introduzindo um especial conceito de “comunitariedade”. Ao comentar o sociólogo Schmalembach,
Buber anota (1987: p. 84):
“Ele (Schmalembach) disse: comunidade é aquilo que se tornou comum, é
onde o homem nasce, aquilo que, por assim dizer, se relaciona com seu
subconsciente. Não é resultado de sua escolha e decisão conscientes.
Schmalembach denomina, a meu ver adequadamente, de ‘aliança’ aquilo que
em vez de conduzir à formação de sociedade, conduz à autêntica união
orgânica (de homens), à formação de um verdadeiro círculo de homens”.

As alianças se realizam naquilo que a vida tem de coisas humanas separadas, não podendo
realizarem-se na plenitude do vivido aqui e agora. Anota Buber ainda (Ibid., p. 85):
“Esta resignação ou este conhecimento, esta renúncia, este elemento negativo
se encontra no fundamento da ‘aliança’. Esta constrói um plano sobre o qual
será realizado aquilo que não pode ser realizado no plano da vida”.
Ora, a visão de comunidade desenvolvida por Martin Buber é algo de tal amplitude e riqueza
para os tempos atuais que, este filósofo, chega a escrever, em seu ensaio “Educação para a comunidade”,
(1987: p. 85):
“Agora, quando falo de comunidade, entendo algo que abrange toda a vida,
toda a existência natural do homem, não excluindo nada dela. Ou a
comunidade é isso, ou, então, deve-se renunciar à idéia da existência de uma
comunidade autêntica. (...) Entendo que comunidade que se erige ao lado da
vida não é comunidade”.

Se, na concepção buberiana, entre as abstrações de indivíduo em si e de coletividade em si, o que


há de concreto é o homem COM o homem, deixemos de parte simples partilhas territoriais ou de costumes
para entendermos o que, hodiernamente, deve ser visto como comunidade. No mundo das
telecomunicações e dos rápidos meios de transporte, ficam relativizadas as distâncias quando o homem
estiver COM o homem. Eis por que, hoje em dia, é errôneo reduzirmos nossa concepção de comunidade
a instituições e movimentos peculiares, a alianças e obras restritas. O que mais costuma “doer” nas
sociedades contemporâneas são as lacunas não preenchidas por vida comunitária. Torna-se, assim, cada
vez mais imprescindível – apesar das hostilidades da sociedade de consumo – uma educação para a vida
comunitária, uma vez mais sem confundirmos o comunitário com o subcomunal.
Em Do diálogo e do dialógico (1982) Buber mostra o cerne do seu pensar a comunidade no
seguinte trecho (p. 66); no qual diferencia comunidades massificadas daquelas “em evolução”:
“A coletividade não é uma ligação, é um enfeixamento: atados, um indivíduo
junto ao outro, armados em comum, equipados em comum, de homem para
homem só tanta vida quanto a necessária para inflamar o passo da marcha. A
comunidade entretanto, a comunidade em evolução (que é a única que
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conhecemos até agora) é o estar não-mais-um-ao-lado-do-outro, mas estar um-


com-o-outro, de uma multidão de pessoas que, embora movimentem-se juntas
em direção a um objetivo, experienciam em todo lugar um dirigir-se-um-ao-
outro, um face a face dinâmico, um fluir do Eu para o Tu: a comunidade existe
onde a comunidade acontece”.
Não é o enfeixamento, não é a ligação e nem é o comum armamento que configuram
comunidade em sentido dinâmico, mas a comunhão mutual de ideais, interesses, colaborações e até
compaixões – excelentes disposições humanas das quais o mundo atual se encontra carente. Será que a
educação sócio-comunitária pode, fazendo o jogo pragmático do consumismo, abrir mão de reflexões
como as de Martin Buber? Não nos permitamos esquecer do que, na física, Niels Bohr ensinou quanto à
complementaridade. Sociedade e comunidade, nem no nível do senso comum e nem no de concepções
filosóficas, epistemológicas ou científico-sociais são realidades iguais; como lembra Bohr, são
complementares exatamente por serem diferentes e, no recíproco efeito de complementação, originam
uma terceira instância do real: a do sócio-comunitário. A partir do fato social e do fato comunitário,
ambos tomados em si mesmos, uma sinergia interativa tudo mobiliza no sentido de uma dinâmica
comungante geradora do sócio-comunitário.
Ora, se fomos encontrar na física teórica um modo de ajuda, talvez também possamos ser
auxiliados pelo princípio geométrico da concentricidade. Aponta, a geometria, para composição de
figuras que têm o mesmo centro (homocêntricas); essas figuras, que simbolizam algo, estão unidas por
seu centro comum e feitas interdependentes e interativas. Sua convergência para o centro é o fundamento
de sua união. E aí nos detemos em uma concentricidade dotada das seguintes esferas:
a) na camada mais externa teríamos os fenômenos da cultura e do intercultural;
b) na segunda camada circular, de fora para dentro, teríamos a realidade macrossocial, com
suas numerosas e amplas peculiaridades;
c) no terceiro nível, sempre convergindo para o centro, encontraríamos o propriamente
comunitário que, nas opiniões de Max Weber e Martin Buber, não deve ser confundido com
“associação” ou com “alianças” de circunstância ou conveniência;
d) em tal concentricidade, na quarta camada junto quase ao centro teríamos o sócio-
comunitário;
e) finalmente, o centro dinamizante e acelerador de interdependências: a pessoa, em busca do
ideal buberiano “o homem COM o homem”.
Um exemplo interessante de concentricidade nos é oferecido por Carl Gustav Jung quando este
cientista, em seus Fundamentos de psicologia analítica, faz um gráfico explicativo do psiquismo humano
utilizando-se de vários círculos concêntricos que, num primeiro intento, dividem (lançando mão de
colorações) nosso psiquismo em esfera ectopsíquica e esfera endopsíquica, unindo, no entanto, tais
esferas com a seguinte seqüência de figuras circulares (de fora para dentro do desenho) (1972: p. 66):
1. sensação; 2. pensamento; 3. sentimento; 4. intuição (estes quatro níveis compondo a esfera
ectopsíquica). Mas a concentricidade prossegue na esfera endopsíquica: 5. memória; 6. componentes
subjetivos das funções; 7. afetos; 8. invasões; 9. inconsciente pessoal; 10. inconsciente coletivo.
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Ora, a principal preocupação de Jung está em demonstrar que todos esses níveis estão em plena
interação e, portanto, são interdependentes. Vem-nos também, nestas páginas, esse recurso geométrico da
concentricidade como um expediente explicativo das ativas relações existentes entre cultura, sociedade,
comunidade e pessoa, sendo que – e aí se encontra algo de grande importância – um traço vertical cortará
todas as esferas ou níveis: a onipresença do educacional. A cultura educa, a sociedade educa e mais ainda
a comunidade; mas educam a quem? À pessoa que, como já se disse, é mãe e filha da cultura, da
sociedade e da comunidade.
Obviamente, o termo sócio-comunitário é composto, como presentificação não de uma
somatória, mas de uma síntese. Sendo vocábulo composto por sintetização, não pode ser tratado como
termo simples, pois, o superaquecimento do planeta com o conhecido “efeito estufa” e a ameaça de
término de água potável na Terra, estas e outras coisas tão cosmoplanetárias interessam diretamente às
sociedades, às comunidades e a cada ser humano. Tanto quanto atitudes e decisões de pequenos grupos
humanos podem levar importantes prejuízos a, praticamente, todo o planeta (atente-se para os
administradores do chamado crime organizado, por exemplo).
Eis por que não entendo o sócio-comunitário como o apenas pôr-se, lado a lado e de forma
contígua, sociedade e comunidade. Quando sociedade e comunidade se complementam, essa dinâmica
recíproca dá origem à terceira realidade do sócio-comunitário. Então, a escolha por uma educação sócio-
comunitária é bem mais complexa do que às vezes se pensa, pois, ela implica trabalhar-se da forma mais
completa, uma realidade sutilmente composta. Para tanto, variadas escolhas e predileções de investigação
são benvindas; o que não se pode é esquecer-se das práxis comunitárias em nome de paixões pelas
elucubrações macrossociais, e nem dar-se as costas a estas últimas por um equivocado entendimento de
que o comunitário mais visível começa e termina em si mesmo. Daí reiterarmos que quanto mais
múltiplos os interesses investigatórios, melhor para uma educação sócio-comunitária mais integrada.
Creio que possamos falar em uma tensão relacional entre pólos diferentes, a qual sintetiza o
propriamente sócio-comunitário. Essas tensões de diferenças e de contradições imprimem, bem o
sabemos, dinamismo ao mundo material tanto quanto fazem evoluir o pensamento. Trata-se de tensões
que processualmente unificam, deixando sem razão certas disjuntividades do tipo “ou importam ações e
realizações localizadas e menores, ou importam questões macroestruturais”.
Haverá algum desvalor em dedicarmos, como educadores, cuidados a obras, instituições ou
associações? Certamente que não. Esses agrupamentos são carentes de cuidados educacionais. O que
talvez não possamos é entender as atenções educativas dadas a esses fragmentos vivos da sociedade como
educação sócio-comunitária em sentido pleno. Uma vez mais sublinhamos que sendo, o sócio-
comunitário, uma ampla síntese que resulta das interações fecundantes entre sociedade e comunidade,
descobrimo-nos perante grandezas que não aceitam reducionismos – o que nos permite assimilar melhor
algumas concepções buberianas já aventadas.
Segundo Buber, os vetores despersonalizantes dos mundos moderno e contemporâneo puseram o
ser humano atual ávido por recuperar formas comunitárias de vida. O homem contemporâneo anseia por
– levando a vida inteiramente a sério – deixar de ter o comunitário como remoto ideal e reconstruir o
sócio-comunitário. Observa M. Buber:
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“Esta (o homem com o homem) é a única realidade que, na verdade,


possuímos. Somente aqui podemos construir algo. Esta vida vivida,
quotidiana, esta profissão, este contexto onde cada um de nós está inserido pelo
destino; esta realidade totalmente pessoal, é este o elemento para a construção
da comunidade.
E, então, quando me refiro à Educação para a comunidade, entendo
comunidade neste sentido. Assim, educação é a preparação para o sentido de
comunidade, na vida pessoal e com a vida pessoal, introduzindo a partir desta
vida naquilo que existe hoje, na sociedade, neste mecanismo ou como se queira
chamar” (1987: p. 89).

Se a sociedade voltar a ser constituída por células comunitárias, competiremos menos e nos
solidarizaremos mais. Haverá finalidade mais elevada para a educação? Para tanto nós, educadores,
devemos ocupar-nos: a) das ações particulares de agrupamentos, instituições específicas ou associações;
b) bem como da contextualização econômica, política e social, que só o estudo da problemática
macrossocial pode oferecer-nos. Razão pela qual sublinhávamos, páginas atrás, que a dedicação ao
educar sócio-comunitário é das escolhas mais complexas, mas, também das mais completas. Seja a práxis
sócio-comunitária, sejam a pesquisa e o preparo para uma educação sócio-comunitária – tudo isto é muito
exigente, mas profundamente compensador.

Conclusão.
Em termos de Brasil, este é um tema relativamente novo. Por conseguinte, um breve ensaio
como este não comporta conclusões imediatistas ao estilo “how to do” dos norteamericanos. O que, neste
ponto, oferecemos são palavras conclusivas ao presente escrito. Escrito certamente simples, mas que
objetiva instigar uma discussão. A mais do que instigar uma discussão teórica, alertar para as
dificuldades e desafios que o nosso tempo nos põe. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra
Comunidade: a busca por segurança no mundo atual (2003: pp. 56-57), escreve, após comentar os
problemas que as elites financeiras bem sucedidas apresentam ao mundo atual:
“Há pouco que possam ganhar com a bem-tecida rede de obrigações
comunitárias, e muito que perder se forem capturados por ela. Em seu
subestimado estudo feito bem antes que a idéia da hibridez global dos
cosmopolitas livres fosse inventada e transformada no folclore das ‘classes
tagarelas’, Geoff Dench apontou para o traço da comunidade que leva todos os
que podem a fugirem dela: uma parte integrante de idéia de comunidade é a
‘obrigação fraterna’ ‘de partilhar as vantagens entre seus membros,
independente do talento ou importância deles’. Esse traço por si só faz do
‘comunitarismo’ uma filosofia dos fracos”.

Essas elites de bem-sucedidos prendem-se a uma visão meritocrática que necessariamente


discrimina os que não lhes parecem merecedores de partilhas solidárias. Eis, segundo depreendemos de
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Bauman, uma das maiores dificuldades para projetarmos uma educação para a comunidade, sendo,
porém, que resta discutir até quando os educadores se curvarão aos valores barbaramente individualistas e
corporativistas dessas elites financeiras bem sucedidas.
Ao longo destas páginas estivemos preocupados principalmente em denunciar a possibilidade de
idéias estanques e estáticas a respeito da configuração das realidades educacional, societária e
comunitária, exatamente para defendermos a força relacional que agita as três realidades focalizadas.
Ocorre que, quando um programa de estudos e de ações se volta para a educação sócio-
comunitária, uma pergunta prática começa a inquietar: “Com que comunidades nos ocuparemos?” É,
sim, uma questão para se considerar. Mas, antes dela, urge compreender devidamente os processos de
interdependência entre elementos como: cultura, sociedade, comunidade, pessoa, educação e sócio-
comunitarismo. Razão pela qual, em um tal programa de estudos, são igualmente benvindas pesquisas
objetivas sobre ações comunitárias localizadas e investigações até de ordem planetária que estabeleçam
mais amplas estruturas de compreensão do pessoal e do comunitário. Se um tal grupo diferenciado de
estudiosos mantiver os mais fecundos intercâmbios, seus caminhos estarão abertos para as melhores
consecuções.
Oxalá estas páginas tenham alcançado, ao menos razoavelmente, o que pretenderam.
Que eu possa concluí-las com Ferdinand Tönnies:
“E desde que a cultura toda transformou-se em civilização societária e estatal, a
própria cultura, nesta sua forma transformada, chega ao fim; a não ser que suas
sementes esparsas permaneçam vivas e a essência e as idéias de comunidade
sejam realimentadas e se desenvolvam, secretamente, no seio da cultura” (In
Buber, 1987: p. 49).

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BIBLIOGRAFIA
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Edit., 2003.
BOTTOMORE, Tom et alii. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edit.,
1988.
BUBER, Martin. Qué es el hombre? 16ª ed. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1983.
_____________. Do diálogo e do dialógico. S. Paulo: Edit. Perspectiva, 1982.
_____________. Sobre comunidade. S. Paulo: Edit. Perspectiva, 1987.
CANDELGOLDEN, Manual de Sociologia. S. Paulo: Ed. Filojuris, s/d.
FISTETTI, Francesco. Comunidad: léxico de política. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 2004.
FLUSSER, Vilém. Pós-história. S. Paulo: Duas Cidades, 1983.
FOULQUIÉ, Paul. A dialética. 2ª ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1974.
FRÖMM, Erich. Conceito marxista de homem. 6ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Eds., 1975.
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inteligência. Porto Alegre: Artmed Edit., 2001.
15

JUNG, Carl Gustav. Fundamentos de psicologia analítica. Petrópolis: Edit. Vozes, 1972.
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Barueri/SP: Ed.
Manole, 2005.
MARITAIN, Jacques. Os direitos do homem. 3ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967.
MUMFORD, Lewis. A condição de homem. Porto Alegre: Ed. Globo, 1958.
RENAUT, Alain. O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.
SERGI, Giuseppe. La Idea de Edad Media. Barcelona: Editorial Crítica, 2001.
TÖNNIES, Ferdinand. Comunitá e societá. Milano: Edizioni di Comunitá, 1962.

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