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WEBER E A POLÍTICA
I – Burocracia e democracia
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cujo funcionamento envolve, em determinados aspectos importantes, formas
de interação menos passíveis de padronização, como escolas, hospitais etc.
Não cabe, por certo, pretender desqualificar, com base nisso, a luta
contra a distorção correspondente ao ritualismo burocrático. Mas é preciso
reconhecer o que há de trivial, ao cabo, nas recomendações em favor de
agilidade e eficiência gerencial que povoam a literatura antes mencionada. O
desafio consiste em como combinar, em nome tanto do desiderato de
eficiência quanto do desiderato de democracia, as formas clássicas de
administração burocrática com o empenho de agilidade onde quer que ele
seja possível. Cabe notar que a eficiência supõe fins dados para que se possa
indagar a respeito da mobilização mais adequada dos meios disponíveis para
alcançá-los, enquanto a democracia envolve antes de tudo justamente a
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problematização dos fins – o reconhecimento de que há fins múltiplos e por
vezes antagônicos, de conciliação e colocação em prática necessariamente
problemáticas (e em consequência inevitavelmente morosas, em alguma
medida) para um estado democrático sensível à diversidade dos interesses,
comprometido com o processamento responsável de suas decisões e capaz
de prestar contas delas.
Um tema específico que cabe considerar quanto a isso diz respeito aos
partidos políticos e a seu papel nesse quadro. A discussão weberiana dos
partidos é marcadamente “realista”. Weber contrapõe os “partidos de
notáveis”, centrados em famílias nobres ou em quadros intelectuais de
origem burguesa e cuja coesão depende da atuação de delegados
parlamentares, e as “máquinas” políticas. Ora, é notável que esta última
expressão, referindo-se à liderança exercida por políticos profissionais fora
dos parlamentos, seja aplicada por ele tanto à experiência norte-americana
do political boss pragmático e pouco escrupuloso que garante cargos e
prebendas à sua clientela (experiência com respeito à qual a expressão se
consagrou) quanto ao que resulta, na Europa, da eleitoralização dos partidos
socialdemocratas em que Maurice Duverger viu o modelo dos partidos
ideológicos de massas, contrastados por Duverger com os “partidos de
quadros” cujo melhor exemplo seriam os partidos americanos. Nos partidos
socialdemocratas europeus tanto quanto nas máquinas políticas
estadunidenses, o aspecto destacado por Weber consiste igualmente no
advento da democracia plebiscitária e no papel cumprido por lideranças
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pessoais de natureza carismática e demagógica (Weber, 1958) – não
obstante o que possa haver de tenso entre os traços de sabor realista que a
caracterização sugere e a valorização que faz Weber do carisma, por um
lado, e da socialização parlamentar dos líderes, por outro. De toda maneira,
o realismo weberiano a respeito dos partidos políticos permite que sua
perspectiva seja posta em nítido contraste com o modelo idealizado de
“política ideológica” há muito prevalecente entre nós: apegados a esse
modelo, cientistas políticos não menos do que jornalistas e o público em
geral concebem a política “autêntica” como aquela que se realizaria de
acordo com “valores” supostamente superiores, sentindo-se justificados para
avaliar o jogo político real do dia-a-dia como uma espécie de manifestação
degenerada e para tomá-lo como objeto de denúncia moral.
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busca do interesse próprio por parte dos agentes. Naturalmente, também a
noção de institucionalização implica "equilíbrio" em certo sentido; mas
Przeworski está em princípio interessado num sentido técnico e "realista" da
expressão. Nesse sentido, a idéia de equilíbrio é contrastada tanto com a
condição que resulta da operação de normas quanto com a intencionalidade
envolvida nas barganhas explícitas, destacando-se nela o papel de
mecanismos típicos do mercado e caracterizados pelo ajustamento mútuo de
natureza espontânea, automática e "auto-impositiva" (self-enforcing) em que
"cada um faz o que é melhor para si dado o que os outros fazem". Podem
tais mecanismos, por si mesmos, engendrar a democracia estável?
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normas que dêem expressão a esse desiderato) continua a colocar-se. Na
verdade, bem ponderadas as coisas, o desafio por excelência da
institucionalização democrática consiste justamente na necessidade de
romper um equilíbrio indesejável ou negativo e substituí-lo por um "bom"
equilíbrio (institucional e democrático). Isso transparece com especial clareza
em análises de Huntington de muitos anos atrás (Huntington, 1968), onde a
condição correspondente às sociedades "cívicas" ou institucionalizadas é
contraposta à condição "pretoriana", que se distinguiria justamente por
representar um círculo vicioso – um equilíbrio perverso e estável que se auto-
reforça e do qual não cabe esperar que venha a dar lugar naturalmente e por
si mesmo à dinâmica de "círculo virtuoso" do processo de institucionalização
democrática.
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Exame mais atento revela que estamos lidando, na verdade, com duas
concepções diferentes de normas, em que o fator cognitivo ou intelectual faz
a diferença decisiva. Em primeiro lugar, as normas podem ser vistas como o
resultado de deliberação consciente e portanto como envolvendo a
capacidade de reflexividade por parte dos agentes. Esta maneira de
concebê-las corresponde, naturalmente, ao sentido em que a idéia de
normas se acha contida na idéia de "autonomia", em que se supõe que as
normas seguidas pelo agente são de sua própria escolha e responsabilidade.
As discussões do processo de desenvolvimento moral que se encontram em
autores como Lawrence Kohlberg e o próprio Habermas, inspiradas nos
trabalhos de Jean Piaget, destacam como ponto mais alto a fase da
moralidade "pós-convencional", na qual se dariam precisamente a
reflexividade e a autonomia do sujeito, por contraste com a inserção acrítica
na moralidade convencional do grupo.2
2 Ver Habermas, 1979, onde se faz extenso uso de Kohlberg. Também de grande
interesse é Schluchter, 1981a, onde Kohlberg e Habermas são lidos com referência
diretamente a Weber.
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democráticos, corresponderia à democracia consolidada – na qual se daria
um "equilíbrio" que seria também normativo, com parâmetros normativos
eficazes para o jogo dos interesses mesmo em sua feição “auto-impositiva”
(e cabe registrar, naturalmente, que esse aspecto normativo e cultural é
essencial para a eventual operação adequada e eficiente do próprio aparato
político-institucional do estado, em que a “imposição” estatal venha a suprir
as deficiências brotadas da dinâmica auto-impositiva e regular e azeitar os
intercâmbios e transações). Nessa condição, cada indivíduo, mesmo movido
pelo interesse próprio, ao procurar "fazer o que é melhor para si dado o que
os outros fazem", nos termos da definição de equilíbrio formulada por
Przeworski, teria latentemente em conta a operação surda mas efetiva (ou
efetiva, em boa medida, porque surda) das normas no sentido de mitigar os
efeitos do interesse no condicionamento das ações de todos. O problema
envolvido na consolidação e institucionalização da democracia consistiria
justamente, nessa óptica, em implantar com eficácia os parâmetros
normativos do jogo auto-impositivo dos interesses, implantação esta que
seria bem-sucedida precisamente na medida em que lograsse tornar
"automática" a própria operação dos parâmetros normativos.
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sociedade é expandida em termos de uma dialética geral entre solidariedade
e interesses que acaba sendo decisiva para caracterizar a política como tal.
Torna-se possível, além disso, fundar na idéia de mercado a “utopia realista”
que serve como idéia orientadora a uma concepção de desenvolvimento
político capaz de ir além dos simplismos e do etnocentrismo da literatura que
floresceu nos Estados Unidos em torno do tema nos anos 60 e 70 do século
passado. Em vez da satanização usual do mercado, 3 a intuição da dialética
geral entre solidariedade e interesses permite tomar a idéia de mercado
como relevante num plano que vai muito além da esfera econômica
convencional, sustentando em termos sociológicos, na verdade, o próprio
modelo da sociedade individualista e pluralista. Trata-se aí de destacar, nos
intercâmbios de tipo “mercantil” a que forçosamente deverá recorrer
qualquer sociedade cujas dimensões e complexidade ultrapassem certos
limites mínimos, a forma de sociabilidade possível “entre estranhos”, na
fórmula utilizada por Bruno Reis como uma espécie de correção e
generalização do enunciado em que Weber sustenta que as relações de
mercado, apesar da síntese que representam entre os elementos de
comunidade e sociedade, se dão “entre indivíduos que não são
companheiros, vale dizer, entre inimigos” (Weber, 1964, p. 496; Reis, 2003). 4
A solidariedade que aí se pode pretender, sendo certamente “rala” no plano
geral (em contraste com a fusão e a efusão coletivas de certo ideal
comunitário mais exigente e de consequências problemáticas), é também
compatível com a convivência pacífica e continuada em condições em que
cada qual será livre para a busca de objetivos ou interesses próprios em
qualquer terreno, ou para a “afirmação de si” (como é definida a idéia de
interesse em Habermas, 1975a) inevitavelmente presente no empenho de
autonomia e de auto-realização pessoal.
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sobre a política que vai de um Tocqueville a nomes como Kornhauser, Dahl e
Gellner,5 e de maneira consistente com a escolha, no limite, da própria
identidade pessoal que se associa com a idéia de uma moralidade pós-
convencional), em formas de participação voluntária e inevitavelmente
parcial ou segmentar, em vez de decorrer de adscrições socialmente
impostas e envolventes (os “vínculos primordiais” de que fala Clifford Geertz
e que são normalmente ressaltados na perspectiva comunitarista), com as
quais se acham ligadas relações de domínio e subordinação e,
correspondentemente, o ânimo beligerante de identificação e antagonismo.
Cabe talvez ainda ressaltar aqui dois aspectos. O primeiro diz respeito
ao componente de “realismo” doutrinário envolvido em referir à idéia de
mercado a condição a ser buscada. Em termos das discussões atuais, a
alternativa mais óbvia corresponde talvez à idéia da “democracia
deliberativa” e à corrente que procura valer-se dela. Jürgen Habermas é sem
dúvida o nome que maior influência exerce sobre essa corrente, e o modelo
da democracia deliberativa tem como referência central o ideal
habermasiano da livre comunicação e do debate de desfecho unânime.
Nesse ideal, não conta senão “a força do melhor argumento”, e a autonomia
de cada participante, na condição de sujeito num processo de comunicação
entre iguais (no qual estariam vedadas sua manipulação instrumental ou
estratégica e sua consequente transformação em objeto), é assegurada pelo
direito individual de veto que a exigência de unanimidade implica. 6 Ora, a
ênfase nos mecanismos de natureza “mercantil” permite assinalar que a
autonomia se acha também assegurada na condição em que cada qual
simplesmente age como lhe apraz ou faz o que quer, preservados apenas os
limites dados pelo enquadramento psicossociológico, ético e legal da
“sociabilidade entre estranhos”. É indispensável reconhecer, naturalmente,
que esse “enquadramento” encerra um fatal componente “deliberativo”: a
deliberação estará presente em esferas diversas da aparelhagem político-
institucional do estado e da sociedade pluralistas, ou nos esforços
organizacionais por meio dos quais se tratará, na linguagem dos
economistas, de “internalizar” as “externalidades” ou as consequências
negativas (incluídas as que se dão em termos de poder, com monopólios e
oligopólios) que tendem a resultar, no nível agregado, da livre operação do
mercado e das decisões dispersas de cada qual (ao contrário das suposições
benignas e inconsistentes que exemplificamos acima com Przeworski). Mas,
mesmo se colocamos à parte o problema dos custos envolvidos, não há
razão para presumir que, para garantir a autonomia e a democracia, seja
necessário ou mesmo desejável “internalizar” tudo, organizar tudo, aumentar
indefinidamente o espaço das decisões coletivas, deliberar coletivamente
sobre tudo... Afinal, também o desejo liberal e privatista de ir para casa em
paz é parte importante do ideal contemporâneo de cidadania democrática,
com seu componente de direitos civis, em contraste com o anseio
republicano pela participação cívica, ou ao menos como complemento a ele.
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O segundo aspecto que quero ressaltar é o de que a articulação
analítica e doutrinária entre política e mercado encontra forte substrato
empírico em estudos como o de Giovanni Arrighi em O Longo Século XX,
onde, com apoio no trabalho de autores como Marx e Fernand Braudel, se
aponta de maneira persuasiva, no desenrolar do capitalismo moderno, a
articulação entre a dinâmica econômica dos mercados e a dinâmica político-
territorial dos estados (Arrighi, 1996). A análise de Arrighi deságua no que é
certamente a questão decisiva da atualidade, a de como equilibrar
solidariedade e interesses no plano global ou planetário. Em outras palavras,
o desafio é o de como enfrentar, em circunstâncias em que a globalização
atual leva os mecanismos de mercado a operar na escala do próprio planeta,
a tarefa de transformar os enfraquecidos estados nacionais e a contraface
imperial da globalização, dada pelo peso desproporcional do poder dos
Estados Unidos, no equivalente funcional do estado capaz de operar
adequadamente na mesma escala dos mercados e de regulá-los em suas
consequências tanto econômicas ou “sistêmicas” quanto sociais. Trata-se,
em última análise, de como criar governo mundial efetivo e democrático – e
a principal dificuldade consiste talvez em como trazer consistência, na escala
mundial, aos precários fatores de comunidade que supostamente aí se
associam com a operação dos mercados e que deveriam servir de suporte à
construção institucional.
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razão, para o comportamento propriamente altruísta) que as normas
visariam a assegurar. Mas mesmo entre autores menos ortodoxos aquela
separação entre normas e racionalidade se mantém. É o caso de Jon Elster,
por exemplo, que, apesar de negar explicitamente a possibilidade de se
explicar tudo com recurso à categoria da racionalidade, concebe o mundo
como dividido entre fenômenos que sim se explicam pela racionalidade, de
um lado, e, de outro, fenômenos que se explicam pela operação das normas
– sem colocar apropriadamente o problema de como racionalidade e normas
podem vir eventualmente a articular-se (Elster, 1989).
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Mas o fato de que Weber esteja além de certas limitações da
perspectiva da escolha racional, nesse sentido, não significa que o
tratamento dado por ele ao tema da racionalidade seja adequado. Assim,
acha-se em Weber, com a distinção entre a “racionalidade com respeito a
fins” e a “racionalidade com respeito a valores”, a origem do que me parece
uma confusão de efeitos nefastos nas discussões sobre o tema. Essa
confusão resulta, em particular, na tentativa de contrapor uma racionalidade
“instrumental” (“meramente” instrumental...), tomada de maneira negativa,
como de alguma forma “vil” e como objeto de denúncias, a uma
racionalidade “substantiva”, vista como superior àquela em função da
natureza dos fins (“valores”) envolvidos ou do fato de que nela se trataria da
comunicação entre agentes humanos e não da relação entre agentes
humanos, de um lado, e objetos, de outro. Os nomes ligados à chamada
Escola de Frankfurt, especialmente, fizeram grande cavalo de batalha da
denúncia da racionalidade instrumental, enquanto Habermas, um integrante
especial do grupo, destacou em sua obra, como vimos, a importância da
distinção entre instrumentalidade e comunicação, embora com matizes
peculiares.
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perceber o sentido em que teríamos nela um tipo de ação racional. Note-se
ainda que a ação racional com respeito a valores, que muitos tenderiam a
ver como “superior” porque nela supostamente se negaria o caráter
“instrumental” da ação, opõe-se nitidamente à ética que Weber designa
como “ética da responsabilidade”, a qual tende a surgir, em Weber, como
superior à “ética de fins últimos” (esta, sim, mais afim à afirmação de
“comandos incondicionais”), apesar de formulações equívocas e da idéia de
que as duas devem combinar-se no político de estatura. Naturalmente, a
força ou o vigor das convicções tem importância para a questão da
motivação da ação, mencionada acima, que introduz matizes relevantes
quanto à racionalidade da ação e que se tomará de novo adiante. Mas a
caracterização feita por Weber deixa, precisamente, de apreender
adequadamente esses matizes.
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quanto a refletir e tratar de pesar e medir as consequências das decisões e
ações (fiat iustitia et pereat mundus), enquanto a “ética da
responsabilidade” tem na disposição reflexiva e na atenção para as
consequências sua característica crucial. E o que há de confuso nas posições
de Weber sobre as duas éticas se mostra de forma aguda em certa
passagem do conhecido ensaio “A Política como Vocação”. Falando do
homem “consciente da responsabilidade pelas consequências” e que, nessa
condição, “age de acordo com a ética da responsabilidade”, Weber o
apresenta, imediatamente a seguir, a declarar: “Esta é a minha posição; não
posso agir de outra forma” (Weber, 1958, p. 127). Ora, tal declaração
expressa simples e inequivocamente uma tomada de posição moral, não
envolve senão a manifestação de uma convicção moral. Na verdade, ela
pode ser vista como correspondendo à idéia do “soco na mesa” que às vezes
cobramos de nossas lideranças políticas e que estabeleceria o limite moral
diante do qual se tornaria irrelevante ou mesmo imprópria a disposição de,
supostamente em nome da responsabilidade e da atenção para as
consequências, agir de maneira “pragmática” ou “realista”. Ajuda pouco que
Weber feche a passagem em questão com a advertência de que o contraste
entre a ética de fins últimos e a da responsabilidade não é “absoluto”...
8Uma evidente confusão a respeito se tem em Elster, 1979 (especialmente cap. 2),
onde o autor trata como “racionalidade imperfeita” o caso do agente que, como
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assim entendido, o caráter instrumental da ação racional nada tem a ver
com o fato de que se persigam, de maneira míope, objetivos de natureza
abjetamente “interesseira”, “material” ou “econômica” em sentido
convencional. A qualificação de instrumental se aplica muito bem, ao
contrário, ao caso do agente com que nos familiarizamos na própria
sociologia religiosa weberiana: aquele que estabelece complexas hierarquias
ou cadeias de fins e meios ao perseguir um ideal moral de vida e talvez um
ideal de morte, ou objetivos transcendentais – ao ser fiel a uma identidade
reflexivamente assumida e realizar uma vocação.
Ulisses, por “ser fraco e sabê-lo”, se faz amarrar ao mastro, restringindo suas
possibilidades de ação no presente como forma de garantir a perseguição mais
eficaz de um objetivo futuro. Ora, não me parece haver razão (a não ser com base
numa concepção imprópria de racionalidade) para que se deixe de ver como
racionalidade perfeita a de um agente extremamente fraco que, para atingir os seus
fins, trate de mobilizar toda a informação possível quanto às condições da ação,
incluindo a informação a respeito de sua pópria fraqueza.
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acredito, que se tome posição mais matizada e seletiva sobre o assunto, na
qual nem todas as convicções se equivalem.
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idéia de autocontrole num contexto “pós-convencional”: certamente,
“causas” relacionadas com o senso do dever ou da honra, o sentimento de
lealdade, a busca da beleza ou a vocação religiosa, que Weber menciona em
conexão com a racionalidade com respeito a valores, não envolvem
necessariamente o fanatismo estúpido. Mas a avaliação negativa se impõe
quando o tipo de ética que responde pela determinação moral se liga com
condições sociais em que temos a imersão em determinada coletividade ou
subcoletividade (ou “comunidade” no sentido forte e exigente antes
apontado) e a submissão à demanda de lealdade incondicional a seus valores
(à sua “fé”). Essa ética, como quer que se queira chamá-la, sem dúvida
compromete, por um lado, a autonomia individual, ao comprometer seu
componente de interesse e de “afirmação de si”. Observe-se que esse
componente de auto-afirmação, envolvendo a liberdade de seguir impulsos
ou perseguir objetivos próprios de natureza variada, acha-se fatalmente
presente na idéia de autonomia mesmo no sentido nobre do autocontrole e
da moralidade pós-convencional, que requer a capacidade de “descentração”
(Piaget) e de afastamento individual com respeito à coletividade. Daí a
necessidade de que, como desfecho da dialética geral que se destacou
acima, a própria idéia de “autocontrole” seja tomada como permitindo
equilibrar a compulsão com a impulsividade, a autocontenção e o
autocerceamento com a busca de auto-expressão e auto-realização, a
disposição solidária com o interesse no sentido genérico da auto-afirmação.
Mas, se a ética em questão (assentada na exigência de lealdade
incondicional à “fé” coletiva) compromete a possibilidade da autonomia
individual assim entendida, ela tende também, por outro lado, a
comprometer a tolerância e a suscitar a disposição negativa perante o out-
group ou as demais coletividades, que assumem, no limite, a feição de
“infiéis” a serem confrontados em termos belicosos. Tudo podendo talvez
resumir-se simplesmente em que individualismo e universalismo se tocam e
articulam, articulação esta que não há como pretender dissociar da
racionalidade.
Assim, não cabe negar o conteúdo ético da política, bem como sua
conexão com uma perspectiva racionalista. As discussões acima certamente
terão permitido ver com nitidez como esse conteúdo impregna a utopia
(mesmo “realista”) da sociedade pluralista e igualitária de indivíduos
autônomos, mas sóbrios e tolerantes, na qual a dialética interesses-
solidariedade terá sido levada justamente ao ponto em que o ideal de
autonomia se traduza naquele autocontrole lúcido e equilibrado quanto aos
valores que busca realizar. Na verdade, esse conteúdo ético, como tenho
proposto (Reis, 2000d), acha-se necessariamente implícito na própria
definição de política, com respeito à qual o privilégio “realista” que os
manuais concedem à idéia de poder só terá validade na medida em que
remeta ao problema do poder, vale dizer, ao poder como problema por
excelência a ser enfrentado e resolvido no plano prático, o que supõe,
justamente, os valores da autonomia e da igualdade. Mas a perspectiva
esboçada me parece chocar-se com a pretensão, por parte de Weber, de
atribuir uma espécie de status ou natureza peculiar à ética política, natureza
esta que é vista como decorrendo do fato de que na política se trata de
poder e violência e de que, em consequência, quem quer que se envolva
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com ela se vê forçado a “contratos com poderes diabólicos” (Weber, 1958, p.
123). Julgo possível sustentar que a necessidade do estado e do monopólio
estatal da violência legítima de que fala o próprio Weber se deve
precisamente ao fato de que (como sabiam os cristãos primitivos, lembrados
por ele na mesma passagem) “o mundo”, e não apenas a política, “é
governado por demônios” – e que o entrechoque dos interesses, o conflito e
a busca da auto-afirmação e do poder perpassam, de maneira geral, a
multiplicidade de esferas, nichos e desvãos da vida social. Há, contudo, a
alternativa de ver “política” no entrechoque de interesses em qualquer
dessas esferas e desvãos, em conformidade com uma concepção analítica de
política que eu mesmo tenho defendido e que se contrapõe à tendência
frequente a assimilar “política” exclusivamente com aquilo que se passa, de
alguma forma, no âmbito do estado. Deixo ao leitor a questão de até que
ponto essa concepção analítica pode compatibilizar-se com as intenções de
Weber, cuja definição de política, apesar da referência explícita ao estado,
pode talvez ser lida como remetendo justamente aos desafios práticos
resultantes do poder e de sua distribuição no plano social geral, com o
monopólio estatal do uso legítimo da força física surgindo como o
instrumento crucial para enfrentá-los.9
9 Na formulação sucinta que se encontra em Weber, 1958, p. 78: “...política para nós
significa a luta pelo compartilhamento do poder ou para influenciar a distribuição do
poder, seja entre estados, seja entre grupos dentro de um estado”.
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