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Primeira Jornada de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas da UFMG, sobre o tema “O Pensamento de Max Weber e suas


Interlocuções”, Belo Horizonte, 3 de dezembro de 2003; publicado em Teoria
e Sociedade, n. 12.2, julho-dezembro de 2004.

WEBER E A POLÍTICA

Fábio Wanderley Reis

Gostaria de começar destacando que não sou um especialista em Max


Weber e não tenho qualquer reclamo de especial erudição weberiana. Assim,
afora algumas breves referências a passagens específicas, em vez do
comentário “talmúdico” e apegado aos textos de Weber em sua riqueza, vou
me voltar para problemas de interesse atual (ou para problemas que me
interessam pessoalmente) e com respeito aos quais a referência a Weber
pode ser proveitosa. Cabe talvez advertir de partida que o caráter proveitoso
da retomada de Weber me parece ocorrer tanto pelos méritos de suas idéias
quanto, ocasionalmente, também pela necessidade de superar confusões
que essas idéias têm ajudado a sustentar e facilitado que prosperem.

O texto a seguir consiste na retomada e revisão de comunicação que


apresentei, anos atrás, ao simpósio “A Atualidade de Max Weber”,
organizado por Jessé Souza e realizado na Universidade de Brasília (Reis,
2000a). Mas, além de aprofundar e reformular mais ou menos extensamente
alguns dos temas então tratados, parte substancial da discussão abaixo se
dirige a temas que não cheguei a tratar naquela ocasião. Pretendo dividir a
discussão que se segue em três subtítulos, o de “burocracia e democracia”, o
de “legitimidade, institucionalização política e utopia” e o de “racionalidade e
ética”.

I – Burocracia e democracia

Comecemos pela questão da burocracia. Essa questão se tornou


recentemente o objeto de revisões mais ou menos ambiciosas em certas
áreas, incluindo a literatura técnica internacional de administração pública e,
entre nós, o esforço de reflexão desenvolvido especialmente pelo ex-ministro
Bresser Pereira em conexão com o objetivo de reforma do estado (Osborne e
Gaebler, 1994; Bresser Pereira, 1996). As concepções weberianas
relacionadas com o fenômeno da burocracia tendem a aparecer aí como
resultando numa máquina ritualista, emperrada e estúpida; em
consequência, seria necessário “reinventar” o governo ou a administração
pública, substituir a estupidez do modelo burocrático pela flexibilidade,
agilidade e eficiência de um modelo “gerencial”.

É sem dúvida legítimo plantear a questão de até que ponto diferentes


tipos de organização serão afins ao modelo weberiano de burocracia. A
literatura sociológica há tempos contrapõe o modelo weberiano ao modelo
de “relações humanas”, por exemplo, que se ajustaria melhor a organizações

1
cujo funcionamento envolve, em determinados aspectos importantes, formas
de interação menos passíveis de padronização, como escolas, hospitais etc.

As revisões recentes, no entanto, dirigem-se a estruturas – em


particular o próprio estado – inequivocamente pertencentes à área
“weberiana” tradicional. O que temos nessas revisões envolve uma
perspectiva peculiar, com os críticos tomando como definidores da idéia de
burocracia de Weber os conteúdos negativos do sentido que a expressão veio
a adquirir coloquialmente, em particular a tendência, que caracterizaria os
agentes administrativos, ao apego ritualístico aos meios, enquanto se
perdem de vista os fins da administração como atividade.

Ora, isso equivale a confundir a exacerbação e o distúrbio de um traço


com o próprio traço. Pois a inspiração da administração burocrática, tal como
surge depurada e estilizada nas análises de Weber, é inequivocamente a
eficiência – e é nesse sentido, naturalmente, que administração burocrática é
sinônimo de administração racional. A padronização de procedimentos não
pretende ser senão um instrumento para a maior eficiência, especialmente
tratando-se de situações que vão envolver decisões rotineiras e em grande
número de casos e instâncias. Afinal, supostamente se trata, com a
administração pública, de uma estrutura auxiliar e instrumental, cuja tarefa é
a de colocar em prática, no ramerrão do dia-a-dia da atividade
administrativa, as decisões adotadas no âmbito político do estado, que, estas
sim, dizem respeito aos fins da ação estatal e assim exigem necessariamente
condições de maior flexibilidade.

Mas há ainda um desdobramento de grande importância, que se refere


à vinculação entre burocracia e democracia. Como instrumento que é, a
administração burocrática pode naturalmente associar-se com despotismo ou
autoritarismo, caso em que ela estará a serviço dos objetivos dos titulares do
poder autoritário. Se se quer ter democracia, porém, em qualquer sociedade
minimamente complexa, a burocracia é indispensável. Pois traços como
procedimentos meticulosos, aplicação de regras universalistas e impessoais
e observância da definição apropriada de competências são condição de que
se possa ter um estado responsável e sensível à autonomia e à igualdade
dos cidadãos, e de que a flexibilidade na definição política dos fins da ação
estatal não redunde em arbítrio. Daí que o adjetivo “legal” se acople a
“racional” na designação dada por Weber à forma de dominação que talvez
mais caracteristicamente recorre ao instrumental burocrático.

Não cabe, por certo, pretender desqualificar, com base nisso, a luta
contra a distorção correspondente ao ritualismo burocrático. Mas é preciso
reconhecer o que há de trivial, ao cabo, nas recomendações em favor de
agilidade e eficiência gerencial que povoam a literatura antes mencionada. O
desafio consiste em como combinar, em nome tanto do desiderato de
eficiência quanto do desiderato de democracia, as formas clássicas de
administração burocrática com o empenho de agilidade onde quer que ele
seja possível. Cabe notar que a eficiência supõe fins dados para que se possa
indagar a respeito da mobilização mais adequada dos meios disponíveis para
alcançá-los, enquanto a democracia envolve antes de tudo justamente a

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problematização dos fins – o reconhecimento de que há fins múltiplos e por
vezes antagônicos, de conciliação e colocação em prática necessariamente
problemáticas (e em consequência inevitavelmente morosas, em alguma
medida) para um estado democrático sensível à diversidade dos interesses,
comprometido com o processamento responsável de suas decisões e capaz
de prestar contas delas.

Mas as conexões entre burocracia e democracia representam, na


verdade, uma questão de alcance muito mais geral em Weber, em que se
expressa algo que perpassa sua obra. Refiro-me a certa tensão básica, e ao
correspondente esforço de conciliação e síntese, entre o realismo analítico e,
ao mesmo tempo, a atenção para o papel dos valores e até o claro apego
doutrinário ou filosófico a determinados valores.

Assim, pode-se ressaltar a ligação profunda entre burocracia e


democracia tal como é tomada em muitos trabalhos interpretativos,
incluindo, por exemplo, o texto de Paulo Kramer sobre Weber e Tocqueville
apresentado ao mesmo simpósio mencionado acima (Kramer, 2000). Em
Tocqueville, vê-se a denúncia do perigo de despotismo associado com o
nivelamento democrático – o “despotismo tutelar”, dizem alguns, que se
articula com a idéia da “sociedade de massas” de análises posteriores
(Kornhauser, 1959). Em Weber, a “prisão de ferro” do utilitarismo e da
burocracia é vista como ligada também com o nivelamento democrático e a
igualdade de condições, envolvendo a neutralização da ascendência
aristocrática e ao menos a atenuação dos efeitos do arbítrio dos
governantes. Mas a posição de Weber a respeito é peculiar, pois ela resulta
na defesa de uma democracia plebiscitária em que lideranças carismáticas e
cesaristas capazes de se dirigirem com êxito às massas possam justamente
prevalecer sobre o espírito burocrático, embora devam ser controladas
institucionalmente pelos poderes parlamentar e judicário e manter-se em
equilíbrio com eles (devendo mesmo emergir e amadurecer através da
carreira parlamentar).

Um tema específico que cabe considerar quanto a isso diz respeito aos
partidos políticos e a seu papel nesse quadro. A discussão weberiana dos
partidos é marcadamente “realista”. Weber contrapõe os “partidos de
notáveis”, centrados em famílias nobres ou em quadros intelectuais de
origem burguesa e cuja coesão depende da atuação de delegados
parlamentares, e as “máquinas” políticas. Ora, é notável que esta última
expressão, referindo-se à liderança exercida por políticos profissionais fora
dos parlamentos, seja aplicada por ele tanto à experiência norte-americana
do political boss pragmático e pouco escrupuloso que garante cargos e
prebendas à sua clientela (experiência com respeito à qual a expressão se
consagrou) quanto ao que resulta, na Europa, da eleitoralização dos partidos
socialdemocratas em que Maurice Duverger viu o modelo dos partidos
ideológicos de massas, contrastados por Duverger com os “partidos de
quadros” cujo melhor exemplo seriam os partidos americanos. Nos partidos
socialdemocratas europeus tanto quanto nas máquinas políticas
estadunidenses, o aspecto destacado por Weber consiste igualmente no
advento da democracia plebiscitária e no papel cumprido por lideranças

3
pessoais de natureza carismática e demagógica (Weber, 1958) – não
obstante o que possa haver de tenso entre os traços de sabor realista que a
caracterização sugere e a valorização que faz Weber do carisma, por um
lado, e da socialização parlamentar dos líderes, por outro. De toda maneira,
o realismo weberiano a respeito dos partidos políticos permite que sua
perspectiva seja posta em nítido contraste com o modelo idealizado de
“política ideológica” há muito prevalecente entre nós: apegados a esse
modelo, cientistas políticos não menos do que jornalistas e o público em
geral concebem a política “autêntica” como aquela que se realizaria de
acordo com “valores” supostamente superiores, sentindo-se justificados para
avaliar o jogo político real do dia-a-dia como uma espécie de manifestação
degenerada e para tomá-lo como objeto de denúncia moral.

II – Legitimidade, institucionalização política


e utopia

Meu segundo tópico pode ter como ponto de partida a questão da


legitimidade. O tema da legitimidade apresenta interesse especial se
considerado do ponto de vista dos esforços atuais com respeito ao que pode
ser visto como uma face mais ampla do mesmo problema que se acaba de
esboçar: como lidar em termos realistas e analiticamente rigorosos com a
espinhosa questão das instituições e da institucionalização, em conexão com
a democracia e a consolidação democrática. A indagação decisiva é aquela
em torno da qual se confrontam presentemente os adeptos da abordagem da
escolha racional e os sociólogos “convencionais”: a consolidação da
democracia exigiria o processo de institucionalização entendido nos termos
em que usualmente surge numa perspectiva sociológica, em que se destaca
o apego às normas, ou seria possível obter democracia estável, e
eventualmente a própria produção das instituições necessárias, como
resultado do mero jogo de interesses por si mesmo? Por um lado, são bem
claras as dificuldades com que pode deparar o culturalismo e eventualmente
mesmo o moralismo da primeira opção. Contudo, os esforços dos adeptos da
escolha racional para edificar uma alternativa realista àquelas dificuldades se
envolvem eles próprios em embaraços e contradições aparentemente
insanáveis.

Na perspectiva da literatura convencional sobre o tema, consolidar a


democracia exige que normas democráticas se difundam e sejam
efetivamente interiorizadas pelos agentes políticos, criando-se assim a
"cultura política" apropriada, e o processo correspondente pode ser descrito
como o processo de institucionalização democrática. A abordagem
alternativa, inspirada na "escolha racional", tem um exemplo destacado em
trabalho de Adam Przeworski de há alguns anos (Przeworski, 1995).1 A
indagação planteada é a de se a resposta à questão de como a democracia
dura (ou de como obter a consolidação democrática) pode ser dada
meramente em termos de um equilíbrio a resultar automaticamente da livre

1Algumas das formulações dos parágrafos que se seguem, quanto à crítica a


Przeworski e às relações entre interesses e normas, são também utilizadas em Reis
e Castro, 2001.

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busca do interesse próprio por parte dos agentes. Naturalmente, também a
noção de institucionalização implica "equilíbrio" em certo sentido; mas
Przeworski está em princípio interessado num sentido técnico e "realista" da
expressão. Nesse sentido, a idéia de equilíbrio é contrastada tanto com a
condição que resulta da operação de normas quanto com a intencionalidade
envolvida nas barganhas explícitas, destacando-se nela o papel de
mecanismos típicos do mercado e caracterizados pelo ajustamento mútuo de
natureza espontânea, automática e "auto-impositiva" (self-enforcing) em que
"cada um faz o que é melhor para si dado o que os outros fazem". Podem
tais mecanismos, por si mesmos, engendrar a democracia estável?

A análise de Przeworski o inclina a dar resposta positiva à pergunta.


Mas não lhe permite escapar de importantes dificuldades. Em primeiro lugar,
Przeworski acaba resvalando para um sentido diferente – e normativo – de
equilíbrio, que é introduzido ao lado do sentido recém-indicado e se mostra
com clareza na admissão de que "certos equilíbrios podem ser sustentados
por compromissos normativos mesmo quando não se sustentem pelo
interesse próprio" (idem, p. 20). Em segundo lugar, Przeworski não tem como
deixar de explorar ele mesmo a idéia de institucionalização em termos que
envolvem a correspondência entre normas e equilíbrio auto-impositivo e que
remetem à questão da efetividade das normas: assim, o problema da
democracia seria o de "fazer constituição que seja auto-impositiva", isto é,
cujas normas correspondam à situação que se obtém espontaneamente na
dinâmica dos mecanismos auto-impositivos (idem, p. 17).

É clara a disjuntiva que se abre, apesar de que o próprio autor não


indique percebê-la com clareza no texto em exame. Em primeiro lugar,
Prezworski pode manter-se fiel à definição de equilíbrio em que este se
produz estritamente no jogo de naked self-interests. Neste caso, ele
permanecerá no terreno de sua indagação inicial e sua perspectiva manterá
a peculiaridade perante a literatura convencional; mas a correspondência
que eventualmente ocorra entre normas e equilíbrio surgirá então como
fortuita, sem indicar autêntica efetividade das normas, pois o equilíbrio e a
capacidade que a democracia revele de durar não se deverão a elas.
Alternativamente, Przeworski pode incorporar de maneira consequente o
sentido de "equilíbrio" em que se inclui o papel das normas, caso em que
estaremos em terreno afim à perspectiva convencional sobre
institucionalização e em que o problema de como implantar normas efetivas
se colocará de maneira plena. Ora, o que as hesitações de Przeworski
revelam, naturalmente, é a necessidade de reconhecer que o equilíbrio auto-
impositivo por si só não basta, pois podem ocorrer equilíbrios "bons" ou
"ruins", que correspondam ou não a situações normativamente desejáveis ou
se ajustem ou não a disposições normativas relevantes. Em suas conclusões,
o próprio Przeworski ressalta explicitamente que "uma democracia cujas
práticas reais [isto é, resultantes dos mecanismos que produzem
"equilíbrios" auto-impositivos] divergem da lei pode ser inteiramente
detestável” (idem, p. 20) – o que significa que, independentemente da
capacidade de durar que tal democracia apresente, o problema da
apropriada institucionalização (entendida em termos do ajustamento das
“práticas reais” a um desiderato normativo, ou de seu condicionamento por

5
normas que dêem expressão a esse desiderato) continua a colocar-se. Na
verdade, bem ponderadas as coisas, o desafio por excelência da
institucionalização democrática consiste justamente na necessidade de
romper um equilíbrio indesejável ou negativo e substituí-lo por um "bom"
equilíbrio (institucional e democrático). Isso transparece com especial clareza
em análises de Huntington de muitos anos atrás (Huntington, 1968), onde a
condição correspondente às sociedades "cívicas" ou institucionalizadas é
contraposta à condição "pretoriana", que se distinguiria justamente por
representar um círculo vicioso – um equilíbrio perverso e estável que se auto-
reforça e do qual não cabe esperar que venha a dar lugar naturalmente e por
si mesmo à dinâmica de "círculo virtuoso" do processo de institucionalização
democrática.

Vê-se, assim, como permanece vivo e desafiador o problema básico


subjacente ao tema da legitimidade tal como o encontramos tratado em
Weber. O traço característico do tratamento weberiano do tema é o empenho
de conceber em termos empíricos e realistas a legitimidade como atributo de
uma relação de dominação: trata-se da questão de até que ponto uma
relação desse tipo é caracterizada pela crença em sua legitimidade por parte
daqueles que se acham submetidos à dominação. O que está envolvido é,
portanto, um traço psicológico – as disposições ou motivações dos
dominados – que independe de qualquer pretensão de avaliação "objetiva"
da legitimidade da relação ou da ordem que nela se funda. Assim, uma
relação de dominação ou ordem sociopolítica pode ser "legítima" de maneira
que nada tem a ver não apenas com a avaliação que dela faria o observador
equipado deste ou daquele arsenal de instrumentos cognitivos ou categorias
éticas, mas tampouco com a maior ou menor reflexividade ou racionalidade
que porventura revista as disposições dos próprios dominados ou sirva de
fundamento a elas.

Surge aqui a pergunta que Habermas tem apontado (Habermas,


1975b): como se articulam analiticamente o fato em si de que se produzam
motivações apropriadas à estabilidade de uma ordem ou relação de
autoridade dada e a questão da racionalidade da própria motivação e da
capacidade de uma justificação para motivar racionalmente?

Estamos em terreno pantanoso e escorregadio. As dificuldades


deparadas pela abordagem da escolha racional em seu empenho de
realismo, que pretende basear-se na racionalidade supostamente própria dos
interesses e prescindir das normas, levam a realçar o papel destas no
processo de institucionalização. A perspectiva trazida pela questão de
Habermas permite ver, porém, que há um importante ponto de contato e
semelhança entre Weber e os adeptos da escolha racional, o qual se
relaciona com a postulação da ocorrência de certo automatismo: num caso
(escolha racional) esse automatismo, tratado como "equilíbrio", é dado pela
dinâmica do jogo dos interesses múltiplos; noutro caso (a legitimidade
"empírica" de Weber) ele ocorre nas motivações dos atores políticos,
tomadas como "dadas", isto é, como independentes da operação de uma
racionalidade reflexiva, a qual é precisamente o que se introduz com a
indagação de Habermas sobre a racionalidade da própria motivação.

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Exame mais atento revela que estamos lidando, na verdade, com duas
concepções diferentes de normas, em que o fator cognitivo ou intelectual faz
a diferença decisiva. Em primeiro lugar, as normas podem ser vistas como o
resultado de deliberação consciente e portanto como envolvendo a
capacidade de reflexividade por parte dos agentes. Esta maneira de
concebê-las corresponde, naturalmente, ao sentido em que a idéia de
normas se acha contida na idéia de "autonomia", em que se supõe que as
normas seguidas pelo agente são de sua própria escolha e responsabilidade.
As discussões do processo de desenvolvimento moral que se encontram em
autores como Lawrence Kohlberg e o próprio Habermas, inspiradas nos
trabalhos de Jean Piaget, destacam como ponto mais alto a fase da
moralidade "pós-convencional", na qual se dariam precisamente a
reflexividade e a autonomia do sujeito, por contraste com a inserção acrítica
na moralidade convencional do grupo.2

Mas as normas podem também ser concebidas de maneira afim


justamente à idéia da moralidade convencional, caso em que
corresponderiam a regras assimiladas e interiorizadas irrefletidamente e sem
questionamentos por parte dos agentes. Neste sentido, ao invés de serem
objeto ou elemento de um processo de deliberação intencional, as normas
surgem antes como fatores a operar causalmente no condicionamento das
ações das pessoas, como tem sido apontado pelos adeptos da abordagem da
escolha racional, propensos a destacar o papel da intencionalidade e da
racionalidade no comportamento, em vez de tal causação normativa. Vistas
nessa óptica causal, as normas podem igualmente descrever-se, conforme
sugestões de Piaget, como fenômeno marcado por um aspecto estocástico,
caracterizando-se em ampla medida como resultante cega a emergir, no
plano agregado, do jogo das múltiplas interações entre os agentes sociais
(Piaget, 1973a).

Temos aí os elementos do paradoxo mais geral envolvido na idéia de


institucionalização da democracia. Se, por um lado, a autonomia no sentido
mais nobre e ambicioso (envolvendo a reflexividade e a capacidade de fixar
os próprios objetivos e as próprias normas) é parte crucial do ideal
democrático, por outro lado é o segundo tipo de normas – as normas
irrefletidas, ou interiorizadas de forma rotineira e banal – que se mostra
relevante para se pretender falar de um sentido de "equilíbrio" em que o
fator normativo tenha atuação importante. Pois é na medida em que as
normas operem de maneira irrefletida e automática que se tem a
institucionalização, se esta é entendida como envolvendo a criação de uma
"tradição" ou "cultura", ou de uma disposição sociopsicológica compartilhada
estavelmente pelos membros da coletividade, que são levados a agir
naturalmente e sem esforço (sem a necessidade de reflexão) dentro dos
moldes prescritos pela tradição. A ocorrência de uma tradição de civismo, ou
de uma "cultura cívica", com o apego difundido aos mecanismos e valores

2 Ver Habermas, 1979, onde se faz extenso uso de Kohlberg. Também de grande
interesse é Schluchter, 1981a, onde Kohlberg e Habermas são lidos com referência
diretamente a Weber.

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democráticos, corresponderia à democracia consolidada – na qual se daria
um "equilíbrio" que seria também normativo, com parâmetros normativos
eficazes para o jogo dos interesses mesmo em sua feição “auto-impositiva”
(e cabe registrar, naturalmente, que esse aspecto normativo e cultural é
essencial para a eventual operação adequada e eficiente do próprio aparato
político-institucional do estado, em que a “imposição” estatal venha a suprir
as deficiências brotadas da dinâmica auto-impositiva e regular e azeitar os
intercâmbios e transações). Nessa condição, cada indivíduo, mesmo movido
pelo interesse próprio, ao procurar "fazer o que é melhor para si dado o que
os outros fazem", nos termos da definição de equilíbrio formulada por
Przeworski, teria latentemente em conta a operação surda mas efetiva (ou
efetiva, em boa medida, porque surda) das normas no sentido de mitigar os
efeitos do interesse no condicionamento das ações de todos. O problema
envolvido na consolidação e institucionalização da democracia consistiria
justamente, nessa óptica, em implantar com eficácia os parâmetros
normativos do jogo auto-impositivo dos interesses, implantação esta que
seria bem-sucedida precisamente na medida em que lograsse tornar
"automática" a própria operação dos parâmetros normativos.

Em termos de moralidade e ética, o jogo entre a necessidade da


absorção de normas socialmente dadas ou impostas e o desiderato de
autonomia “pós-convencional” redunda no paradoxo elaborado por Wolfgang
Schluchter com base na contraposição entre moralidade, entendida como
algo que diz respeito ao indivíduo, e ética, entendida como de natureza
coletiva. A condição a que se almeja corresponderia à vigência de uma
moralidade (individual) reflexiva sustentada por uma ética (coletiva) de
características afins àquela moralidade; em outras palavras, um
convencionalismo (uma ética, que como tal é necessariamente convencional)
que estimule a autonomia moral, capaz precisamente de contrapor-se ao
convencionalismo e superá-lo numa out-group morality de caráter
universalista (Schluchter, 1981b). O desdobramento decisivo é o de que, em
vez da imersão na coletividade e da identificação ingênua com ela,
frequentemente acompanhadas de um ânimo fanático e beligerante, a
virtude cívica passa a significar antes de mais nada a tolerância, e somos
levados à indagação, que retomaremos adiante, sobre as condições
cognitivas, psicossociológicas e éticas da sociedade individualista e
pluralista, no sentido do que há de mais rico na tradição liberal.

Essas questões (mercado e automatismos, interesses e normas dadas


ou reflexivas, autonomia moral do indivíduo e “boa” imersão coletiva)
permitem retomar aqui e ressaltar algo que há muito eu mesmo fui buscar
em Weber e que dá talvez o fulcro de minha própria reflexão sobre a política
e de uma perspectiva analítica e doutrinária que redunda numa espécie de
“utopia realista” (Reis, 2000c e 2000d). Refiro-me à concepção weberiana do
mercado como síntese de “comunidade” e “sociedade”, ou como ação
societária (orientada pelo cálculo “racional” de interesses) fundada num
substrato comunitário que envolve o sentimento de co-participação ou de
constituir um todo junto com os demais, e consequentemente a confiança e a
vigência de normas (Weber, 1964, pp. 33-35 e 493-497). Em minha própria
utilização dessas idéias de Weber, a conciliação entre comunidade e

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sociedade é expandida em termos de uma dialética geral entre solidariedade
e interesses que acaba sendo decisiva para caracterizar a política como tal.
Torna-se possível, além disso, fundar na idéia de mercado a “utopia realista”
que serve como idéia orientadora a uma concepção de desenvolvimento
político capaz de ir além dos simplismos e do etnocentrismo da literatura que
floresceu nos Estados Unidos em torno do tema nos anos 60 e 70 do século
passado. Em vez da satanização usual do mercado, 3 a intuição da dialética
geral entre solidariedade e interesses permite tomar a idéia de mercado
como relevante num plano que vai muito além da esfera econômica
convencional, sustentando em termos sociológicos, na verdade, o próprio
modelo da sociedade individualista e pluralista. Trata-se aí de destacar, nos
intercâmbios de tipo “mercantil” a que forçosamente deverá recorrer
qualquer sociedade cujas dimensões e complexidade ultrapassem certos
limites mínimos, a forma de sociabilidade possível “entre estranhos”, na
fórmula utilizada por Bruno Reis como uma espécie de correção e
generalização do enunciado em que Weber sustenta que as relações de
mercado, apesar da síntese que representam entre os elementos de
comunidade e sociedade, se dão “entre indivíduos que não são
companheiros, vale dizer, entre inimigos” (Weber, 1964, p. 496; Reis, 2003). 4
A solidariedade que aí se pode pretender, sendo certamente “rala” no plano
geral (em contraste com a fusão e a efusão coletivas de certo ideal
comunitário mais exigente e de consequências problemáticas), é também
compatível com a convivência pacífica e continuada em condições em que
cada qual será livre para a busca de objetivos ou interesses próprios em
qualquer terreno, ou para a “afirmação de si” (como é definida a idéia de
interesse em Habermas, 1975a) inevitavelmente presente no empenho de
autonomia e de auto-realização pessoal.

Isso não significa, naturalmente, que não haja espaço, no modelo de


sociedade assim contemplado, para o estabelecimento de laços cálidos e
duradouros, quer no nível estritamente pessoal e íntimo, quer no nível de
grupos e associações de natureza e objetivos variados. Mas tais laços se
deverão à livre escolha pessoal, resultando, no caso dos grupos ou
associações (como destaca e valoriza a longa linha de reflexão “pluralista”

3 Um exemplo recentíssimo da velha satanização do mercado se encontra em


Souza, 2003. Nesse pequeno livro, aliás, também o estado é satanizado juntamente
com o mercado, e a posição do autor acaba reduzida à aposta numa espécie de
conversão moral. A perspectiva geral resulta claramente inconsistente diante, por
exemplo, do recurso a Norbert Elias para conectar cidadania a burguesia e trabalho
e para apontar a ligação desses aspectos com a criação de um “habitus primário” (a
“economia emocional e valorativa comum”) de que supostamente o Brasil se veria
privado, em decorrência de nossa “modernização seletiva”.
4 Vale talvez a pena assinalar a afinidade que essa concepção do mercado
apresenta com idéias expressas por Jürgen Habermas sobre alguns traços cruciais
da “esfera pública” em Between Facts and Norms. Depois de salientar os elementos
comunicativos necessários para o controle dos conflitos e os requisitos igualitários
desses elementos, Habermas aponta para um desiderato de “solidariedade entre
estranhos – estranhos que renunciam à violência e, além disso, na regulação
cooperativa de sua vida em comum, concedem-se uns aos outros o direito de
permanecer estranhos” (Habermas, 1996, p. 308; grifo de Habermas).

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sobre a política que vai de um Tocqueville a nomes como Kornhauser, Dahl e
Gellner,5 e de maneira consistente com a escolha, no limite, da própria
identidade pessoal que se associa com a idéia de uma moralidade pós-
convencional), em formas de participação voluntária e inevitavelmente
parcial ou segmentar, em vez de decorrer de adscrições socialmente
impostas e envolventes (os “vínculos primordiais” de que fala Clifford Geertz
e que são normalmente ressaltados na perspectiva comunitarista), com as
quais se acham ligadas relações de domínio e subordinação e,
correspondentemente, o ânimo beligerante de identificação e antagonismo.

Cabe talvez ainda ressaltar aqui dois aspectos. O primeiro diz respeito
ao componente de “realismo” doutrinário envolvido em referir à idéia de
mercado a condição a ser buscada. Em termos das discussões atuais, a
alternativa mais óbvia corresponde talvez à idéia da “democracia
deliberativa” e à corrente que procura valer-se dela. Jürgen Habermas é sem
dúvida o nome que maior influência exerce sobre essa corrente, e o modelo
da democracia deliberativa tem como referência central o ideal
habermasiano da livre comunicação e do debate de desfecho unânime.
Nesse ideal, não conta senão “a força do melhor argumento”, e a autonomia
de cada participante, na condição de sujeito num processo de comunicação
entre iguais (no qual estariam vedadas sua manipulação instrumental ou
estratégica e sua consequente transformação em objeto), é assegurada pelo
direito individual de veto que a exigência de unanimidade implica. 6 Ora, a
ênfase nos mecanismos de natureza “mercantil” permite assinalar que a
autonomia se acha também assegurada na condição em que cada qual
simplesmente age como lhe apraz ou faz o que quer, preservados apenas os
limites dados pelo enquadramento psicossociológico, ético e legal da
“sociabilidade entre estranhos”. É indispensável reconhecer, naturalmente,
que esse “enquadramento” encerra um fatal componente “deliberativo”: a
deliberação estará presente em esferas diversas da aparelhagem político-
institucional do estado e da sociedade pluralistas, ou nos esforços
organizacionais por meio dos quais se tratará, na linguagem dos
economistas, de “internalizar” as “externalidades” ou as consequências
negativas (incluídas as que se dão em termos de poder, com monopólios e
oligopólios) que tendem a resultar, no nível agregado, da livre operação do
mercado e das decisões dispersas de cada qual (ao contrário das suposições
benignas e inconsistentes que exemplificamos acima com Przeworski). Mas,
mesmo se colocamos à parte o problema dos custos envolvidos, não há
razão para presumir que, para garantir a autonomia e a democracia, seja
necessário ou mesmo desejável “internalizar” tudo, organizar tudo, aumentar
indefinidamente o espaço das decisões coletivas, deliberar coletivamente
sobre tudo... Afinal, também o desejo liberal e privatista de ir para casa em
paz é parte importante do ideal contemporâneo de cidadania democrática,
com seu componente de direitos civis, em contraste com o anseio
republicano pela participação cívica, ou ao menos como complemento a ele.

5Vejam-se Kornhauser, 1959; Dahl, 1982; Gellner, 1996.


6A apresentação e a discussão das idéias de Habermas podem ser encontradas em
Reis, 2000b.

10
O segundo aspecto que quero ressaltar é o de que a articulação
analítica e doutrinária entre política e mercado encontra forte substrato
empírico em estudos como o de Giovanni Arrighi em O Longo Século XX,
onde, com apoio no trabalho de autores como Marx e Fernand Braudel, se
aponta de maneira persuasiva, no desenrolar do capitalismo moderno, a
articulação entre a dinâmica econômica dos mercados e a dinâmica político-
territorial dos estados (Arrighi, 1996). A análise de Arrighi deságua no que é
certamente a questão decisiva da atualidade, a de como equilibrar
solidariedade e interesses no plano global ou planetário. Em outras palavras,
o desafio é o de como enfrentar, em circunstâncias em que a globalização
atual leva os mecanismos de mercado a operar na escala do próprio planeta,
a tarefa de transformar os enfraquecidos estados nacionais e a contraface
imperial da globalização, dada pelo peso desproporcional do poder dos
Estados Unidos, no equivalente funcional do estado capaz de operar
adequadamente na mesma escala dos mercados e de regulá-los em suas
consequências tanto econômicas ou “sistêmicas” quanto sociais. Trata-se,
em última análise, de como criar governo mundial efetivo e democrático – e
a principal dificuldade consiste talvez em como trazer consistência, na escala
mundial, aos precários fatores de comunidade que supostamente aí se
associam com a operação dos mercados e que deveriam servir de suporte à
construção institucional.

III – Racionalidade e ética

Alguns talvez observem que a discussão feita acima sobre normas e


institucionalização democrática envolve não somente uma concepção dual
de normas, mas também de racionalidade, com a contraposição entre a
racionalidade "míope" do jogo dos interesses que chama a atenção da
abordagem da escolha racional, bem como das motivações ou crenças dadas
que levam à aceitação subjetiva e à legitimidade weberiana de uma relação
de autoridade, e a racionalidade reflexiva e autônoma que se introduz com a
indagação de Habermas. Isso nos permite transitar para o terceiro tópico que
pretendo considerar, o da racionalidade e de suas conexões com questões de
moralidade e ética. Na perspectiva dada pela questão de até que ponto
Weber permanece atual, um aspecto a merecer destaque é o fato de que
muito do que se encontra nas discussões correntes do tema da
racionalidade, em particular no que se refere ao recurso ao instrumental
analítico da ciência econômica por parte da abordagem da escolha racional,
envolve uma concepção de racionalidade em que se pode apontar, por certo
aspecto, claro retrocesso relativamente a Weber.

Com efeito, vimos antes que os proponentes da escolha racional se


empenham em separar de maneira nítida a esfera da racionalidade do
terreno próprio das normas. Este é certamente o caso da perspectiva mais
ortodoxa entre os adeptos dessa abordagem, em que o comportamento
racional, tomado como categoria decisiva para a explicação dos fenômenos
sociais de todo tipo, é assimilado ao comportamento orientado pela busca
dos interesses, que, por sua vez, são entendidos como correspondendo, na
forma exemplar, a objetivos estritamente egoístas e em relação aos quais,
portanto, não há lugar para a moderação dos apetites egoístas (ou, com mais

11
razão, para o comportamento propriamente altruísta) que as normas
visariam a assegurar. Mas mesmo entre autores menos ortodoxos aquela
separação entre normas e racionalidade se mantém. É o caso de Jon Elster,
por exemplo, que, apesar de negar explicitamente a possibilidade de se
explicar tudo com recurso à categoria da racionalidade, concebe o mundo
como dividido entre fenômenos que sim se explicam pela racionalidade, de
um lado, e, de outro, fenômenos que se explicam pela operação das normas
– sem colocar apropriadamente o problema de como racionalidade e normas
podem vir eventualmente a articular-se (Elster, 1989).

Bem diferente é o caso de Weber. Pois no próprio cerne de sua


principal empreitada, a explicação do racionalismo ocidental, encontramos
toda a laboriosa e complexa sociologia weberiana das religiões. E as religiões
não desempenham, nessa empreitada, o papel de elemento de contraste: ao
contrário, Weber atribui ao desenvolvimento religioso importância crucial
como parte intrínseca de um processo secular visto como de racionalização.
Um aspecto central dessa concepção é o da estruturação de um projeto de
vida na busca de objetivos transcendentais que as grandes religiões
induzem, trazendo como consequência a disciplina e a conduta metódica.

Essa perspectiva pode ser desdobrada na explicitação das conexões


entre racionalidade e identidade, que redundam em colocar em termos mais
adequados a própria idéia de racionalidade ao destacar seu substrato
sociopsicológico. Na abordagem da escolha racional, a racionalidade é
entendida em termos que a tornam compatível com uma espécie de estado
de natureza em que não há normas ou valores, vínculos intergeneracionais,
lealdades ou solidariedades, mas apenas indivíduos que calculam em função
de seus interesses próprios. Ora, se se reconhece que a idéia de
racionalidade, mesmo no contexto sociologicamente pobre visualizado pela
perspectiva da escolha racional, envolve sempre a idéia da capacidade de
perseguir com método e eficácia objetivos que se acham no futuro, vê-se que
teremos tanto mais racionalidade quanto mais longínquos ou remotos forem
os objetivos, com a maior complexidade das mediações com que o agente
terá de lidar. Isso resulta em reconhecer que o sentido de identidade do
agente é requisito indispensável da operação da própria racionalidade; e,
como a identidade é fatalmente condicionada socialmente, é ilusório
pretender “recuar” a um estado pré-social em busca da operação da “pura”
racionalidade (eventualmente com a ilusão adicional de deduzir a partir dela
a sociedade em sua complexidade, como corresponde à aposta da escolha
racional em sua vertente mais ortodoxa). Estamos às voltas com a grande
intuição de Rousseau: na fórmula com que Leo Strauss a sintetiza (Strauss,
1953), a sociedade coage e corrompe os homens, mas tudo o que é
especificamente humano é social, de sorte que a coerção aparece como
condição da própria liberdade humana como tal. Nessa perspectiva, a
racionalidade surge como atributo do homem social – e o caráter social do
agente humano, se por um lado é a condição de que ele possa operar
racional e reflexivamente, por outro fornece o principal objeto a ser
processado reflexiva e seletivamente pela operação da racionalidade.

12
Mas o fato de que Weber esteja além de certas limitações da
perspectiva da escolha racional, nesse sentido, não significa que o
tratamento dado por ele ao tema da racionalidade seja adequado. Assim,
acha-se em Weber, com a distinção entre a “racionalidade com respeito a
fins” e a “racionalidade com respeito a valores”, a origem do que me parece
uma confusão de efeitos nefastos nas discussões sobre o tema. Essa
confusão resulta, em particular, na tentativa de contrapor uma racionalidade
“instrumental” (“meramente” instrumental...), tomada de maneira negativa,
como de alguma forma “vil” e como objeto de denúncias, a uma
racionalidade “substantiva”, vista como superior àquela em função da
natureza dos fins (“valores”) envolvidos ou do fato de que nela se trataria da
comunicação entre agentes humanos e não da relação entre agentes
humanos, de um lado, e objetos, de outro. Os nomes ligados à chamada
Escola de Frankfurt, especialmente, fizeram grande cavalo de batalha da
denúncia da racionalidade instrumental, enquanto Habermas, um integrante
especial do grupo, destacou em sua obra, como vimos, a importância da
distinção entre instrumentalidade e comunicação, embora com matizes
peculiares.

Examinemos brevemente certas passagens importantes que Weber


dedica não apenas à distinção entre as duas supostas formas de
racionalidade, mas também a diferentes éticas. Tais passagens, de maneira
curiosa diante da permanência e vitalidade das posições que Weber parece
ter inspirado na literatura mais recente, deixam perceber que o que temos,
na verdade, não passa de autêntica mixórdia do ponto de vista conceitual,
não obstante o indiscutível interesse de numerosas intuições e sugestões
específicas que seus escritos sobre o assunto contêm.

Tomemos, por exemplo, a passagem de Economia e Sociedade em que


Weber procura estabelecer o significado da ação racional com respeito a
valores (Weber, 1964, p. 21). 7 Diz ele: “Exemplos de orientação puramente
racional com respeito a valores seriam as ações de pessoas que, sem cogitar
dos possíveis custos para si mesmas, agem para colocar em prática suas
convicções quanto ao que lhes parece ser exigido pelo dever, a honra, a
busca da beleza, a vocação religiosa, a lealdade pessoal ou a importância de
alguma ‘causa’, não importa em que consista. Em nossa terminologia, a ação
racional com respeito a valores sempre envolve ‘comandos’ ou ‘exigências’
que, na opinião do ator, o vinculam ou obrigam. Somente nos casos em que
a ação humana seja motivada pela observância desses comandos
incondicionais é que ela será chamada de racional com respeito a valores.”

Essa passagem permite várias observações. Em primeiro lugar, note-


se o claro sabor de irracionalidade que se associa com a idéia de uma ação
orientada por “comandos incondicionais”, que, apesar da nobreza das
“causas” citadas por Weber, nos põe também no terreno do comportamento
do fanático. É fácil perceber o sentido em que, assim caracterizada, a ação
racional com respeito a valores representaria um tipo de ação, mas é difícil

7 Tal como apresentada em seguida, a passagem é traduzida de sua reprodução em


inglês em Schluchter, 1996, pp. 289-290, nota 73.

13
perceber o sentido em que teríamos nela um tipo de ação racional. Note-se
ainda que a ação racional com respeito a valores, que muitos tenderiam a
ver como “superior” porque nela supostamente se negaria o caráter
“instrumental” da ação, opõe-se nitidamente à ética que Weber designa
como “ética da responsabilidade”, a qual tende a surgir, em Weber, como
superior à “ética de fins últimos” (esta, sim, mais afim à afirmação de
“comandos incondicionais”), apesar de formulações equívocas e da idéia de
que as duas devem combinar-se no político de estatura. Naturalmente, a
força ou o vigor das convicções tem importância para a questão da
motivação da ação, mencionada acima, que introduz matizes relevantes
quanto à racionalidade da ação e que se tomará de novo adiante. Mas a
caracterização feita por Weber deixa, precisamente, de apreender
adequadamente esses matizes.

Em segundo lugar, o próprio Weber, no parágrafo imediatamente


seguinte, assinala que, “na perspectiva da ação racional com respeito a fins,
a ação racional com respeito a valores é sempre irracional, acentuando-se tal
caráter à medida que o valor que a move se eleva à significação de absoluto,
porque a reflexão sobre as consequências da ação [alusão à ética da
responsabilidade – FWR] é tanto menor quanto maior seja a atenção
concedida ao valor próprio do ato em seu caráter absoluto” (Weber, 1964, p.
21; grifos de Weber). Naturalmente, a cláusula segundo a qual a
irracionalidade da ação referida a valores surgiria “na perspectiva da ação
racional com respeito a fins” insiste no equívoco geral em que se assenta a
tentativa de distinguir as duas racionalidades. Mas é bem evidente que a
qualificação relativa à absolutização da adesão aos valores torna impossível
pretender fazer dessa mesma adesão um critério que permita distinguir um
tipo de ação racional como tal. A adesão aos valores definiria a ação racional
com respeito a valores, mas a intensificação da adesão torna o agente
menos capaz de refletir: como pretender que ele, neste caso, continue sendo
igualmente “racional” em qualquer sentido legítimo da expressão, e não
apenas “na perspectiva da ação racional com respeito a fins” como suposto
caso particular? Em outras palavras, quanto mais se afirma o atributo que
supostamente distingue a ação como um tipo de ação racional, menos
racional ela se torna, o que redunda num ilogismo patente. A qualificação
implica com clareza que a ação será racional só se permitir reflexão, com
destaque para a reflexão sobre suas consequências, ou seja, se for
equilibrada do ponto de vista (instrumental) da relação entre meios e fins.

Mas, apesar do mérito apontado de evitar a separação cortante entre


normas e racionalidade, as confusões de Weber vão além da distinção entre
dois tipos de racionalidade e se estendem, como sugerido, sobre a questão
das relações entre racionalidade e ética. E a razão principal de tais
confusões, pode-se perceber, consiste num fato bem claro: se, por um lado,
Weber procura distinguir os dois tipos de ação racional com base, em última
análise, em seu caráter ético (maior ou menor apego a considerações
relativas a convicções éticas ou morais), por outro lado procura,
simetricamente, distinguir dois tipos de ética com base, em última análise,
na sua racionalidade... Pois a “ética de fins últimos” envolve, em nome da
santidade e intocabilidade das convicções morais, a rigidez e a indisposição

14
quanto a refletir e tratar de pesar e medir as consequências das decisões e
ações (fiat iustitia et pereat mundus), enquanto a “ética da
responsabilidade” tem na disposição reflexiva e na atenção para as
consequências sua característica crucial. E o que há de confuso nas posições
de Weber sobre as duas éticas se mostra de forma aguda em certa
passagem do conhecido ensaio “A Política como Vocação”. Falando do
homem “consciente da responsabilidade pelas consequências” e que, nessa
condição, “age de acordo com a ética da responsabilidade”, Weber o
apresenta, imediatamente a seguir, a declarar: “Esta é a minha posição; não
posso agir de outra forma” (Weber, 1958, p. 127). Ora, tal declaração
expressa simples e inequivocamente uma tomada de posição moral, não
envolve senão a manifestação de uma convicção moral. Na verdade, ela
pode ser vista como correspondendo à idéia do “soco na mesa” que às vezes
cobramos de nossas lideranças políticas e que estabeleceria o limite moral
diante do qual se tornaria irrelevante ou mesmo imprópria a disposição de,
supostamente em nome da responsabilidade e da atenção para as
consequências, agir de maneira “pragmática” ou “realista”. Ajuda pouco que
Weber feche a passagem em questão com a advertência de que o contraste
entre a ética de fins últimos e a da responsabilidade não é “absoluto”...

A questão geral das relações entre racionalidade e ética é sem dúvida


complicada. De toda forma, há certamente um ganho de entendimento se
partimos de reconhecer que toda racionalidade é instrumental: a noção
mesma de racionalidade inescapavelmente envolve a idéia da articulação
entre meios e fins, e a natureza dos fins é irrelevante para a caracterização
da racionalidade como tal. Naturalmente, isso não resulta em dizer que os
fins se equivalham. Eles podem ser os mais variados e surgir como mais ou
menos desejáveis aos nossos olhos por razões igualmente diversas, incluindo
as de ordem moral, filosófica, estética etc. Mas não há como pretender que
certos fins sejam intrinsecamente mais racionais do que outros (posição a
que leva com frequência a idéia de uma racionalidade substantiva), pois a
defesa de seu caráter de maior ou menor racionalidade não se poderá fazer
senão por referência à sua condição de meios mais ou menos eficazes para a
realização de outros fins que eventualmente prezamos como “valores” mais
altos. A própria crítica do tecnocratismo e da sociedade tecnocrática,
empreendida com ardor nas denúncias da racionalidade instrumental, não
pode prescindir da indicação clara da condição alternativa a ser alcançada
(do fim a ser buscado), bem como, se pretender ser consequente, da
especificação dos caminhos (ou meios) pelos quais transitar para alcançá-la.
A racionalidade, nessa ótica, é concebida como tendo a ver sobretudo com
aquilo que se pode designar como a economia da ação, por contraste com a
sua energética, ou seja, aquilo que lhe provê a motivação. Por certo, sem a
energética ou motivação não há ação, e podemos ter motivação mais ou
menos vil ou nobre, intensa ou débil; mas a racionalidade diz respeito à
maneira pela qual o agente processa “economicamente” os recursos de que
dispõe, incluindo os que são fornecidos pela energética mais ou menos pobre
ou poderosa da ação,8 para atingir os fins buscados. Ressalte-se ainda que,

8Uma evidente confusão a respeito se tem em Elster, 1979 (especialmente cap. 2),
onde o autor trata como “racionalidade imperfeita” o caso do agente que, como

15
assim entendido, o caráter instrumental da ação racional nada tem a ver
com o fato de que se persigam, de maneira míope, objetivos de natureza
abjetamente “interesseira”, “material” ou “econômica” em sentido
convencional. A qualificação de instrumental se aplica muito bem, ao
contrário, ao caso do agente com que nos familiarizamos na própria
sociologia religiosa weberiana: aquele que estabelece complexas hierarquias
ou cadeias de fins e meios ao perseguir um ideal moral de vida e talvez um
ideal de morte, ou objetivos transcendentais – ao ser fiel a uma identidade
reflexivamente assumida e realizar uma vocação.

Estas breves indicações sobre racionalidade e ética poderiam fechar-se


com a evocação do trabalho de Jean Piaget, que, contrariamente à tentativa
habermasiana de contrapor de maneira cortante um contexto de
instrumentalidade e outro de comunicação, concebe o processo de
desenvolvimento intelectual (e moral), com base nos cuidadosos estudos
empíricos de toda uma vida, como envolvendo peculiar equilíbro entre o
aspecto instrumental ou “operatório” da relação bem sucedida com os
objetos, por um lado, e, por outro, o aspecto interacional ou comunicacional
da socialização, em que o indivíduo emerge gradativamente do egocentrismo
(e eventualmente do sociocentrismo ou etnocentrismo) e se torna capaz de
assumir o ponto de vista do outro, de “descentrar-se” – e de refletir (Piaget,
1973b; Reis, 2000b).

Mas há um aspecto das formulações de Weber que comporta ainda


alguma elaboração, com desdobramentos que talvez tragam certo
esclarecimento adicional quanto a outros aspectos das idéias aqui
esboçadas. Assim, se se pretende que a ética da responsabilidade seja de
fato uma ética (ou algo que envolva, de qualquer modo, considerações
morais, pondo de lado a distinção de Schluchter entre ética e moralidade), o
aspecto crucial para caracterizá-la como tal não pode ser o aspecto
cognitivo, em si mesmo, da atenção para as consequências. A eventual
tomada de posição guiada por ela e supostamente resultante daquele traço
cognitivo só merecerá a caracterização de “ética” ou “moral” se as
consequências forem, elas próprias, apreciadas do ponto de vista das
convicções morais, mostrando-se adequadas ou inaceitáveis desse ponto de
vista. Nesse sentido, a chamada ética da responsabilidade não é, naquilo que
a define como ética, distinta da ética de fins últimos ou das convicções.

Contudo, as convicções relevantes no plano da vida social e política


dizem respeito crucialmente às relações entre interesses e solidariedade,
entre autonomia (individual) e convergência ou harmonia social. E a atenção
para a dialética e o eventual equilíbrio entre os dois “lados” permite,

Ulisses, por “ser fraco e sabê-lo”, se faz amarrar ao mastro, restringindo suas
possibilidades de ação no presente como forma de garantir a perseguição mais
eficaz de um objetivo futuro. Ora, não me parece haver razão (a não ser com base
numa concepção imprópria de racionalidade) para que se deixe de ver como
racionalidade perfeita a de um agente extremamente fraco que, para atingir os seus
fins, trate de mobilizar toda a informação possível quanto às condições da ação,
incluindo a informação a respeito de sua pópria fraqueza.

16
acredito, que se tome posição mais matizada e seletiva sobre o assunto, na
qual nem todas as convicções se equivalem.

Muitos anos atrás, ao explorar a idéia de autonomia em The Nerves of


Government, Karl Deutsch sugeria que o modelo adequado de
comportamento autônomo não é nem o autômato (talvez o fanático ou o
passional), que busca rigidamente um fim predeterminado e é pura
compulsão, nem o artefato ou animal que, como o libertino, se encontra à
deriva em seu comportamento por ser pura impulsividade e se achar
totalmente aberto aos estímulos cambiantes que lhe chegam de seus
próprios impulsos e do ambiente que o cerca. Comportamento autônomo é
antes o comportamento (a ação) do ator que, plasmado pela memória e o
sentido da identidade (o “caráter”) e guiado pelos objetivos mais ou menos
remotos que daí provêm (o ideal de vida de que se falou acima), é capaz de
ser flexível e seletivo diante dos estímulos e impulsos particulares ou tópicos
de toda ordem – ou seja, é o comportamento racional (Deutsch, 1966,
especialmente pp. 107-108 e 206-207).

A contraposição weberiana entre as duas éticas sugere (não obstante


a idéia de uma racionalidade com respeito a valores e sua afinidade com a
maior rigidez da ética de fins últimos) que certo relaxamento da adesão a
convicções seria condição para a efetiva associação entre ética e
racionalidade, ou para a possibilidade de um comportamento a um tempo
ético e racional, a ser encontrado na ética da responsabilidade. Contudo, na
ótica das sugestões de Deutsch, é claro que a determinação moral, como
parte da “energética” da ação, da identidade e da fidelidade a objetivos
remotos (evitando a dispersão do libertino, ou impelindo a tornar “metódico”
o recurso aos elementos cognitivos da ação e sua aplicação à conduta
efetiva), pode ser crucialmente instrumental na busca daqueles objetivos, e
portanto propícia à racionalidade da ação orientada por fins remotos, que é
justamente a ação racional por excelência. Mas cabe notar duas coisas.
Primeiro, que essa idéia de determinação moral nada implica quanto ao
conteúdo intrínseco das convicções ou sua natureza: a adesão a princípios de
tolerância e sobriedade, por exemplo, pode ser convicta e firme. Segundo,
que a combinação entre moralidade e racionalidade acaba redundando na
idéia de autonomia como autocontrole, em que a identidade ou o caráter, a
busca de fins remotos e a observância de normas correspondentes (elas
próprias autônomas e “pós-convencionais”, o que não as impede de ser
objeto de convicções firmes) possibilitam o equilíbrio entre impulsividade e
compulsão e favorecem justamente a sobriedade e a tolerância. E isso
permite ver sob luz inequivocamente negativa o caso, naturalmente também
possível, em que a determinação moral degenera na rigidez fanática e na
paixão que “cega”, aproximando-nos do plano do comportamento do
autômato e eventualmente comprometendo a operação apropriada do
componente cognitivo da ação e a apreensão das conexões (instrumentais)
entre seus diversos elementos ou etapas – vale dizer, comprometendo a
“economia” da ação.

Dadas as ambiguidades das formulações de Weber, creio ser possível


conceber uma “ética de fins últimos” de maneira a compatibilizá-la com essa

17
idéia de autocontrole num contexto “pós-convencional”: certamente,
“causas” relacionadas com o senso do dever ou da honra, o sentimento de
lealdade, a busca da beleza ou a vocação religiosa, que Weber menciona em
conexão com a racionalidade com respeito a valores, não envolvem
necessariamente o fanatismo estúpido. Mas a avaliação negativa se impõe
quando o tipo de ética que responde pela determinação moral se liga com
condições sociais em que temos a imersão em determinada coletividade ou
subcoletividade (ou “comunidade” no sentido forte e exigente antes
apontado) e a submissão à demanda de lealdade incondicional a seus valores
(à sua “fé”). Essa ética, como quer que se queira chamá-la, sem dúvida
compromete, por um lado, a autonomia individual, ao comprometer seu
componente de interesse e de “afirmação de si”. Observe-se que esse
componente de auto-afirmação, envolvendo a liberdade de seguir impulsos
ou perseguir objetivos próprios de natureza variada, acha-se fatalmente
presente na idéia de autonomia mesmo no sentido nobre do autocontrole e
da moralidade pós-convencional, que requer a capacidade de “descentração”
(Piaget) e de afastamento individual com respeito à coletividade. Daí a
necessidade de que, como desfecho da dialética geral que se destacou
acima, a própria idéia de “autocontrole” seja tomada como permitindo
equilibrar a compulsão com a impulsividade, a autocontenção e o
autocerceamento com a busca de auto-expressão e auto-realização, a
disposição solidária com o interesse no sentido genérico da auto-afirmação.
Mas, se a ética em questão (assentada na exigência de lealdade
incondicional à “fé” coletiva) compromete a possibilidade da autonomia
individual assim entendida, ela tende também, por outro lado, a
comprometer a tolerância e a suscitar a disposição negativa perante o out-
group ou as demais coletividades, que assumem, no limite, a feição de
“infiéis” a serem confrontados em termos belicosos. Tudo podendo talvez
resumir-se simplesmente em que individualismo e universalismo se tocam e
articulam, articulação esta que não há como pretender dissociar da
racionalidade.

Assim, não cabe negar o conteúdo ético da política, bem como sua
conexão com uma perspectiva racionalista. As discussões acima certamente
terão permitido ver com nitidez como esse conteúdo impregna a utopia
(mesmo “realista”) da sociedade pluralista e igualitária de indivíduos
autônomos, mas sóbrios e tolerantes, na qual a dialética interesses-
solidariedade terá sido levada justamente ao ponto em que o ideal de
autonomia se traduza naquele autocontrole lúcido e equilibrado quanto aos
valores que busca realizar. Na verdade, esse conteúdo ético, como tenho
proposto (Reis, 2000d), acha-se necessariamente implícito na própria
definição de política, com respeito à qual o privilégio “realista” que os
manuais concedem à idéia de poder só terá validade na medida em que
remeta ao problema do poder, vale dizer, ao poder como problema por
excelência a ser enfrentado e resolvido no plano prático, o que supõe,
justamente, os valores da autonomia e da igualdade. Mas a perspectiva
esboçada me parece chocar-se com a pretensão, por parte de Weber, de
atribuir uma espécie de status ou natureza peculiar à ética política, natureza
esta que é vista como decorrendo do fato de que na política se trata de
poder e violência e de que, em consequência, quem quer que se envolva

18
com ela se vê forçado a “contratos com poderes diabólicos” (Weber, 1958, p.
123). Julgo possível sustentar que a necessidade do estado e do monopólio
estatal da violência legítima de que fala o próprio Weber se deve
precisamente ao fato de que (como sabiam os cristãos primitivos, lembrados
por ele na mesma passagem) “o mundo”, e não apenas a política, “é
governado por demônios” – e que o entrechoque dos interesses, o conflito e
a busca da auto-afirmação e do poder perpassam, de maneira geral, a
multiplicidade de esferas, nichos e desvãos da vida social. Há, contudo, a
alternativa de ver “política” no entrechoque de interesses em qualquer
dessas esferas e desvãos, em conformidade com uma concepção analítica de
política que eu mesmo tenho defendido e que se contrapõe à tendência
frequente a assimilar “política” exclusivamente com aquilo que se passa, de
alguma forma, no âmbito do estado. Deixo ao leitor a questão de até que
ponto essa concepção analítica pode compatibilizar-se com as intenções de
Weber, cuja definição de política, apesar da referência explícita ao estado,
pode talvez ser lida como remetendo justamente aos desafios práticos
resultantes do poder e de sua distribuição no plano social geral, com o
monopólio estatal do uso legítimo da força física surgindo como o
instrumento crucial para enfrentá-los.9

9 Na formulação sucinta que se encontra em Weber, 1958, p. 78: “...política para nós
significa a luta pelo compartilhamento do poder ou para influenciar a distribuição do
poder, seja entre estados, seja entre grupos dentro de um estado”.

19
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