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Marco Alexandre de Souza Serra

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I ECONOMIA POLÍTICA DA PENA


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Editora Revan

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Copyright @ 2009 by Marco Alexandre de Souza Serrn

Todos 0$ direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte desta
publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou via cópia
xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

Revisão
Shirley Bm2
I•
Roberto Teixeira

Capa
Sense Design & Comunicação

Impressão
(Em papel off-set 75gr5. após paginação eletrônica, em tipo Gatineau, c. 11'/13)
Divisão Gráfica da Editora Revan

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte •
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Rj.
5496e

Serra, Marco Alexandre de Souza


Economia política da pena / Marco Alexandre de Souza
Serra .. Rio de Janeiro: Revan, 2009.

Inclui bibliograHa
ISBN 978-85-7106-393-8

1. Pena (Direito). 2. Direito - Aspectos econômicos. 3. Direito e polí-


tica. I. TItulo.

09-2666.
CDU, 343.8

04.06.09 10.06.09 013074


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.. .- •

A percepção de insegurança, que se descola da realidade porque


muitas vezes cidades com índices de homicídios muito próximos tra- Capítulo VI
duzem. um desconforto existencial e sentimentos tão díspares, é agra-
vada pela violência perpetrada pelos aparelhos do Estado, sobretudo
as polícias. Para isso as políticas de segurança pública adotadas, mais
ou menos impregnadas pelo discurso beligerante, a nível local (com-
Modelos de estado e teorias da pena
petência dos Estados), têm repercutido sensivelmente. Além dessas
mortes, a adoção da violência fatal como modo de resolução de confli- APESAR DOS JUizos E INTERPRETAçõES diluídos por toda a descrição histórica
tos interpessoais por certo contribui para o incremento da tragédia, \'~ realizada neste livro, antes de concluí-lo parece ainda neoessãrio acres-
além de continuar a nutrir suas preferências.4.P J~.
centar outras considerações acerca das conexões que as variáveis aborda-
O atual aumento da violência, conquanto mais percebido do que das projetam sobre o exercício do poder punitivo do Estado, principal-
empiricamente observado, é um fato inegãvel. Grosso modo ele não é mente sobre os modelos estatais concebidos em cada estágio evolutivo
muito mais que a expressão de um tipo de organização social e eco- das forças produtivas e dos rearranjos institucionais que elas condicionam.
nômica que, por não prescindir da violência para continuar a existir, Isso se traduz em atribuir o devido relevo à correlação entre os desenvol-
tem produzido indivíduos que, entre outras coisas, não nutrem qual-. vimentos político-institucionais da organização estatal e aqueles referidos
quer deferência pelo semelhante.' às teorias jurídicas formuladas acerca da pena.4.38Essa conclusão, con-
quanto aparentemente óbvia, é frequentemente ignorada pelos manuais
de direito penal. De fato ela compreende uma qualidade positiva de pou-
", cas obras jurídicas, sobretudo brasileiras. Tudo estaria perfeito. se esse
trabalho não se prendesse a uma abordagem radicalmente diversa aoerca
das estruturas do Estado, segundo a qual as instituições erigidas pelo Es-
tado burguês compreendem apenas urna pequena parte de suas fundas
estruturas, por conta das quais sua funcionalidade concreta não encontra
real seria necessário dispor de todos estes dados em todos os anos, ou 'pelo menos completa ressonância nos discursos jurídicos, políticos e até filosóficosa
contemplar, juntamente com os números relativos aos regimes fechado, semi-aberto e seu respeito. O aparente paradoxo, todavia, serã apenas superficial,pois a
de presos provisórios, os submetidos a internação decorrente de medida de segurança. discussão pretendiç]a nesse capítulo derradeiro não se distanciarã do eixo
A soma destes daria o montante de todos os efetivamente reclusos. Assim os sujeitos metodológico da investigação - de alguma maneira todo impregnado dos
ao regime aberto e às medidas de segurança ambulatoriais, ficariam de fora. Mesmo
fundamentos científicos e metodológicos da criminologia crítica - ~mbora
assim é possível observar que os dados dão conta de uma permanência, até 2002. A
partir daí, a falta de clareza quanto à situação dos presos fora do sistema penitenciário, pretenda abordar, sem qualquer pretensão de profundidade, as' teorias
ou seja, em cadeias ou delegacias de polícia, impede que se arrisque este cálculo. penais tradicionais, algumas mais outras menos liberais.
4J7 Cf. o 3D Relatório sobro Direitas Humanos no Brasil (2002-2005), p. 13, "Nas áreas Sinteticamente, poder-se-ia dizer que o objeto desse capítulo é
urbanas, a violência fatal continua a atingir de forma intensa e desproporcional os jovens procurar explicitar alguns vínculos que conectam a forma jurídica à
do sexo masculino, moradores das áreas carentes das grandes cidades e regiões metro- estrutura social para a qual ela se destina. Esta perspectiva evidente-
politanas. De 2000 para 2004, as mortes por homicídio por 100 mil habitantes entre mente contrasta com aquela que se satisfaz em tornar compatívei~ os
jovens de 15 a 24 anos aumentaram 1,10%, de 26,71 para 27,01. Apesar de uma redução
de 12,2oq.nna Região sudeste, a taxas de homicídio por 100 mil habitantes entre jovens
t38 A -respeito, ver MAURACH,Rdnhartj ZIPF, 'Heinz (atualizador). Derecho penal: pane
de 15 a 24 anoo aumentaram nas regiões Sul (33,6%), Nordeste (19,9%), Norte (21,8%) e
general. v I. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1994, pp. 92 e
Centro-Oeste 0,4%). Rondônia (38,01100 mil), Pernambuco (50,7/100 mil), Mato Grosso
(31,6/100 mil), Espírito Santo (49,11100 mil) e Rio de Janeiro (49,1/100 mil), e Paraná ss, Também RODRIGUES, Anabela. A determinação da pena privativa de liberdade.
(28,0/100 mil) são os estados com as taxas mais altas em cada região."
Coimbra: Coimbra editora, 1995, p. 180; MlR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoria
de/deJitoene/E'itadodemocrdticodederecho. 2i 00. Barcelona: Bosch, 1982, p.15.

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objetivos cometidos ao Estado e as prescrições do ordenamento jurídi- Convém ainda registrar, no entanto, que nem só de pressupostos
co. Não obstante, não incorrerá no equívoco de deixar de fazer a de- marxistas se' construiu a criminologia crítica. A criminologia crítica,
vida referência às principais teorias jurídicas da pena. Agir dessa ma- além de representar a antítese da criminologia etiológica, se refere a
neira poderia se traduzir numa alienação: essas construções discursi- ~'" um vasto e não-homogêneo campo de discursos. Seu mínimo denomi-
vas, particularmente aquelas de feição preventiva, constituem, sem nador comum é constituído, por um lado, pela assunção do 'critério
sombra de dúvidas, o substrato comum do discurso hegemõnico cons" científico que insere a análise do processo de definição e atribuição do
truído em torno do fenõmeno da criminalização, quer para reforçar crime e da criminalidade numa perspectiva macrossociológica, orienta-
quer mesmo para reduzir o poder punitivo. da pela estratificação e pelo antagonismo de classes que determina a
Assim o perfil que define esse capítulo implica uma crítica da pe- ~. (desigual) distribuição de poder de definição, e de vulnerabilidade
na jurídica e de seus discursos legitimadores, em primeiro lugar, a par- social frente a essas definições, em relação às estruturas institucionais
tir de um ponto de vista diacrônico. Tal perspectiva, porque visa lançar encarregadas de exercê-lo. A isso deve ser agregado, por outro lado, o
luz sobre os fenômenos e fatos abordados a partir de sua evolução avanço proporcionado por uma importante corrente sociológica de
histórica, além de não se afastar das delimitações metodológicas já origem fenomenológica, que é.o interacionismo simbólico. Destaca-se,
assumidas, atende ao pressuposto dialético da transitoriedade dos pro- nesse panorama, a teoria do etiquetamento C1abellingapproach) se-
cessos históricos e da cOlTelativamutabilidade da definição de crimes e gundo a qual o crime depende menos da natureza do fato do que das
práticas punitivas que lhe são próprias. De fato, a discussão ou mesmo definições e reações que esse fato merece em determinada realidade
a oposição entre as teorias concernentes aos fins da pena ou mesmo .< histórica. Quer isso dizer que o objeto da criminologia não pode ser
do direito penal é improdutiva se estas manifestações não forem vistas uma entidade ontológicaj antes constitui uma realidade social constru-
dentro de suas relações históricas. Isso não traduz que sua análise de- ída por uma infinidade de interações concretas, através das quais se
va seguir por um retilíneo fio cronológico, antes deve considerar o qualifica, social e institucionalmente, um comportamento como sujeito
contexto sócio-histórico, mas sobretudo político-econômico, envolvido. a uma punição formal e imposta pelo Estado."'''.
Tampouco quer dizer que o propósito desse capítulo é discuti-las com
toda a amplitude, o que obrigaria a buscar suas longínquas raízes, leis de desenvolvimento histórico da fonnação econômica capitalista, constitui avanço
quase todas precedentes ao iluminismo, que melhor as lapidou'39 científico importante da Crinúnologia Crítica."
Em segundo lugar ela necessariamente terá de ser de natureza crimi- 441 No sentido do texto ver BARATIA, Alessandto. Criminologta cn'tica e critica do
nológica, o que exclui as críticas juridicas ou internas endereçams às teo- direito penal. 21 00. Rio de Janeiro: Revan, 1999, pp. 85 e ss; do mesmo autor, Cbe
rias da pena. Não será toda criminologia, porém, que comporá o instru- cosa e la criminologia critica. Dei delliti e delle pene. v 1, 1991, pp. 53-81. Com ex-
cepcional capacidade sintética, observa ClRlNO OOS SANToS, Juarez. A criminologia
mental teórico necessário. Dada a verdadeira ruptura paradigmática que
e a reJonna da legislação penaL Revista da Ordem dos Advogados do Bfasu - v, 1,
designa o seu surgimento, mas sobretudo em função da coincidência 2006, pp. 809-815, que "A Criminologia crítica se desenvolve por oposição à Crimino-
metodológica com a abordagem materialista a respeito do funcionamento logia tradicional, a ciência etiológica da criminalidade, estudada como realidade onto-
do Estado, o exame das teorias jurídicas da pena deve se dar segundo os lógica e explicada pelo método positivista de causas biológicas, psicológicas e ambien-
pressupostos científicoslegados pela criminologia crítica."" tais. Ao contrário, a Criminologia crítica é construída pela mudança do objeto de estu-
do e do método de estudo do objeto: o objeto é deslocado da crirninalidade, como
dado ontológico, para a criminalização, como realidade construída, mostrando o crime
. como qualidade atribuída a comportamentos ou pessoas pelo sistema de justiça crimi-
439Ne$:e sentido, CIRlNO DOS SAN1DS', Teoria da peM, p. 7, nota 25; tambémFER-
nal, que constitui a criminalidade por processos seletivos fundados em estereótipos,
RAlOU, Luigi. Direito e razão: teoria do g~rantlsmopenal. 2a ed., p. 245 e ROXIN, preconceitos e outras idiossincrasias pessoais, desencadeados por indicadores sociais
Ctaus. Derecbo pena[ pane general. tomo I. Madri& Civitas, 1999, p. 85: RODRIGUES, negativos de marginalização, desemprego, pobreza, moradia em favelas etc; o estudo
A determinação da medida da pena privativa de liberdade, p. 219. do objeto não emprega o método etiológico das determinaçôes causais de objetos
440 Cf. CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, p. 36: "explicar a desigualdade do Direi- naturais empregado pela Criminologia tradicional, mas wn duplo método adaptado à
to Penal pela relação dos mecanismos seletivos do processo de criminalização com as natureza de objetos sociais: o método interacionista de construção social do crime e da

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Desse ponto de vista desponta um importante avanço epistemo-
movimento do psiquismo dos indivíduos.'" Afinal "a sociedade produz
lógico adotado pela criminologia crítiCa,rarasvezes presente nas análi- ~. o homem assimcómo é também produzida por ele. ".•••Em oposição
ses marxistas tradicionais. Sua maior qualidade, como visto, parece
ao que postula a ortodoxia da determinação da superestrutura pela
estar na capacidade de integrar considerações da esfera subjetiva do
base, determinações e condicionamentos não se confundem com de-
processo de construção social da realidade com o plano estrutural-
terminismo, com qualquer relação causal e imediata entre estrutura
objetivo da esfera das relações de produção'" Essa combinação é
~: econômica e estruturas mentais. A relação não deve ser linear, de cau-
fundamental na medida em que procura vencer um debate aparente-
sa e efeito, mas relação dialética em que ambas as esferas (objetiva e
mente mal resolvido no interior das ciências sociais, mais precisamente ~. subjetiva) se influenciam reciprocamente,'" conduzindo à noção de
da sociologia, normalmente realizado a partir das noções de estrutura t".,

r;; circularidade. É sobretudo sob essa condição que a criminologia crítica


e ação social. Para a criminologia crítica as ações dos indivíduos não
pode se manter numa posição de superioridade científica frente à cri-
traduzem meros epifenõmenos de constrangimentos sociais impostos
minologia tradicional enquanto ciência etiológica da criminalidade.
pela realidade objetiva. 1sso seria impossível a um saber ou conjunto
Sem embargo, assim como toda a discussão realizada neste livro
de saberes que assume alguns aportes do interacionismo simbólico
foi historicamente delimitada pelo surgimento do Estado moderno,
como importantes. Por ser informada também pelas injunções que .
notadamente em sua forma propriamente burguesa, também esse tópi-
tomam as atividades cognitivas de indivíduos e grupos como relevan-
co terá por recorte o processo evol.utivo que se desencadeia a partir
tes, sobretudo ante sua importância política, a criminologia crítica pre-
daquilo que a crítica da economia política denominou acumulação
tende compatibilizar os planos subjetivo e objetivo, com tendência a
primitiva. Não por acaso, segundo BARAlTA,o crimen lesae majestatis
acentuar a importância do último, de forma que, em última análise, a
tem, na história da construção social da criminalidade, a mesma Impor-
subjetividade seja concebida como um momento do processo objetivo,
tância constitutiva que a acumulação primitiva teve na história ~a soci-
continuamente superado, de imeriorização do que é exterior.443 Essa
edade capitalista.'" Ambas ocorrem de forma mais ou menos simultâ-
seria uma direção a ser seguida a por quem toma a realidade social
nea com a consolidação do poder numa instância central da socieda-
como prevalentemente definida peias condições materiais da vida so-
de, que procura se legitimar através da própria capacidade de assegu-
cial, segundo o momento histórico e o estágio evolutivo das forças
rar a ordem e a conservação dessa forma de poder. Seu significado é
produtivas, na clássica formulação de MARX.••• Ao contrário de uma
duplamente importante para esse trabalho, uma vez que a etapa em
leitura bastante Corrente de marcado viés mecanicista, com i::;sonão se
questão traduz tanto a acumulação primitiva de capitais quanto de
quer dizer que as determinações sociais atuam mecanicamente sobre o
poder sob a égide de um ente anônimo e aparentemente separado das
relações de produção e das demais relações sociais que compõem a
vida em comum. Por último, as teorias abordadas, que praticamente
criminalidade, responsável pela mudança de foco do iridivíduo para o sistema de
esgotam as justificativas usuais dadas ao "direito" de punir do Estado,
justiça criminal, e o método dialético que insere a construção social do crime e da são igualmente contemporâneas ao surgimento da prisão col}lo pena
criminalidade no contexto da contradição capital/trabalho assalariado, que define as essencial e pntticamente exaustiva do sistema social ainda em vigor..
instituições básicas das sociedades capital~as."
BARAITA" Cbe cosa e la criminologia crilica?, p. 59; no mesmo sentido, ClRINO
442
.., Fazendo. mesma distinção, ver ZAFFARONI,Eugenio Raúl; PlERANGEIJ,José Henrique.
DOS SANTOS, A criminologia e a reforma da legislação penal, pp. 809-815. Manual di direito penal brasfle{ro. 5' ed São P.uh Revi.>tados TlibWlllis, 2004, p. 247.
40 Assim, mais wna vez, BARATfA, Che cosa e la criminologia criltca? p. 62, e CIRI-
«6 MARX, Karl, "Manuscritos econômicos-fJ1osóficas: trabalho alienado e superação
NO DOS SANrOS, A criminologia e a reforma da legislação penal, pp. 809-815. positiva da auto-alienação humana". In: FERNANDES, Florestan Corg). Marx/Engels-
444 Ver a respeito a clássica passagem de MARX, Karl. "Prefácio à contribuição à crítica História. 2i ed, São Paulo: ÁHca, 1989, p. 170.
da economia política". In: FERNANDES,Aorestan Carg). MarxlEngels _ História. 2i ed. «7 BARATIA, Cbe cosa e la criminologia critica?, p. 61.
São Paulo: Ática, 1989, p. 233.
«8 BARATIA, Vecchie e nuove strategle ne/Ia /egtttimaxion.e deI diritto penale, p. 250.

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Na verdade, assim como o trajeto percorrido pela organização De um modo geral, tais teorias podem dividir-se em duas grandes
produtiva, da feudal à capitalista, tenha se estendido por cerca de três tradições, geralmente identificáveis mediante o recurso a clássica formu-
séculos, também as ideologias de justificação do poder de punir estatal lação de SÊNECA:de um lado alinham-se as concepções que pretendem
vão experimentando os mesmos dissabores e sucessos evolutivos, até justificar a péna através do quia peccatum est (pune-se porque pecou) e
culminar na figura arquetípica do Estado moderno e mais propriamen- consideram o mal já cometido, por isso mesmo referido ao passado; de
te burguês. Portanto, após uma breve digressão acerca da noção de outro se unem aquelas que têm em vista o futuro na base do ne pecce-
pena, será momento de discutir as funções que a ela se foram atribu- tur (pune-se para que não peque). A partir dessa bipartição as teorias
indo, mas sobretudo aquelas que efetivamente ela desempenha na acerca da pena se desdobram nas teorias absolutas, afinadas com a ideia
modernidade. Em razão da importância e da atualidade do novo dis- de puniçâo em função do crime já praticado, portanto como retribuição,
curso de corte sistêmico incorporado à prevençâo geral positiva, sua e nas teorias relativas ou da prevenção; segundo essa última concepção,
abordagem exigiu um tópico próprio, razâo pela qual a prevenção a justificativa da pena só pode se realizar com base nos fins utilitários,
geral negativa também será analisada à parte. voltados ao futuro, que lhe é possível atribuir.
Em termos gerais, segundo o discurso jurídico que as reveste, as
teorias absolutas, porque nâo concebem que a pena deva se justificar
em função dos fins que atinge ou afirma visar, nada tem a ver com
1. Pena: uma confusão conceitual
suas finalidades. Nessa perspectiva, a pena basta por si mesma. De
outro lado, mesmo quando apelam às finalidades que a pena deve
Via de regra a reflexâo jurídica sobre a pena criminal comunga de concretizar, .as teorias relativas se ocupam menos dos fins efetivos que
uma imprecisão semântico-conceitual digna de registro. EsSa incongru- ela produz do que de sua justificaçâo. Nâo raro, a justificação nâo con-
ência constitui um defeito grave porque a precisão de conceitos deve sidera minimamente os efeitos cono'etos provocados pela pena na
sempre ser buscada. Ainda que tal exatidâo seja fadada ao fracasso, realidade socia1.4S1 O acento, portanto, recai sobre a justificaçãoj mes-
mereceOl censura determinadas concepções que se furtam em marcar mo o problema dos fins, e somente para as concepções relativas, cons-
as diferenças daquilo que é distinguível. Tal imprecisâo refere-se à titui uma questão quase que residual ou secundária.
colocaçâo, sob um mesmo rótulo, de funções e finalidades da pena, e Para esse trabalho as distinções apontadas acima, sobretudo as
pior, também de suas justificativas.'" 450 concernentes aos reais efeitos produzidos pelo exercício do poder
punitivo do Estado, são tomadas como importantes. A utilização de um
"9 Nesse sentido, RODRIGUES, Anabe1a Miranda. A determinação da medida da pena instrumental semântico mais preciso e que se inscreve na tradição de
privativa de liberdade. Coimbra, Coimbra Ed. 1995, pp. 152 e ss; também FERRAJOLl, crítica à dissonância perceptível do confronto entre os fins assumidos e
Luigi. Diroi/o e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribwuis, aqueles ocultos que a pena efetivamente realiza, a bem da verdade, é
2002, p. 171.
imprescindível. Tal abordagem convocará à utilização do vocábulo
<60 Segundo FERRAJOLl,Ob. citada, pp. 170 e SS., a questão da justificativa da pena função, é verdade. Mas também exigirá agregar a distinção.-entre fun-
constitui a abordagem externa da legitimação, referida a valores que transcendem o ção manifesta e função latente. Essa distinção, reelaborada pela crimi-
direito positivo. ~ ftiosófica, portanto. De wna perspectiva interna, isto é, que toma em
conta não o problema étic01'Olítico da justiça mas o jurídico da legalidade, a pena
nologia crítica4S2 tem raízes na teoria sociológica453 e acabou por se
deve refletir o que prescreve o direito positivo. A rigor, a pena toma assim um sentido
prescritivo, que designa as fmalidades que deve perseguir. Mas pode ela também
contemplar as fInalidades que de fato a pena persegue. FERRAJOLltoma por função '51Para isso nanualmente se costuma lançar mão da Lei de Hume. não se pode derivar
logicamente conclusões prescritivas ou morais de premissas descritivas ou fáticas, e
este último significado, enquanto ao primeiro chamará fins. A despeito destas distin-
ções. cuja importância não pode ser negligenciada, todas estas noções compõem as vice-versa. Nesse sentido, FER~JOLl, Ob. citada, p. 193. nota 15.
teorias da pena, muitas vezes assimiladas a teorias penais, para as quais, segundo já se 452Cf. CIRlNO OOS SANTOS, Teoria da pena, p. 4: "a análise da pena criminal não
afirmou, correspondem determinadas concepções de Estado. pode se limitar ao estudo das funções atribuídas pelo discurso oficial, defmidas como

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revelar fonte de inesgotável desenvolvimento desse conjunto de sabe- influírem no sistema social, não correspondem à vontade ou ao discur-
res. Por medida de justiça é necessário registrar que a deslegitimação so assumido pelos seus defensores.'"
do discurso jurídico-penal foi menos obra da filosofia ou de qualquer Como visto, nem toda anãlise funcional ou que se utiliza do con-
outra construção teórica normativa do que do saber sociológico.'" Daí ceito de função precisa ser funcionalista. A questão, facilmente suscetí-
a necessidade se trabalhar com pressupostos sociológicos, principal- vel a críticas, está em confundir uma análise funcional com funciona-
mente aqueles absorvidos pela criminologia crítica. lismo, isto é, como teoria social global, como filosofia social. Proceder
. Convém ressalvar, porém, que a utilização do conceito função a uma análise funcional, nesses termos, não significa partilhar dos
não significa adotar uma perspectiva funcionalista. Essa tende a perce- mesmos pressupostos epistemológicos ou políticos do funcionalismo.
ber as funções que determinados instituições exercem na sociedade Afinal, a utilização do conceito de função permite investigar nâo só os
sempre de forma positiva, isto é, descrevendo como a sociedade fun- efeitos positivos que determinada instituição social produz, mas tam-
ciona ou deveria funcionar. Uma análise funcional pode, no entanto, bém eventuais repercussões negativas que ela engendra. Através dele
não ser funcionalista no sentido acima descrito. Afinal, como a distin- é possível também se concentrar na complexidade e nos conflitos
ção entre funções manifesta e latente pretende demarcar, nesse âmbito constitutivos da sociedade. Isso implica admitir, por exemplo, que o
é possível descrever também como a sociedade ou uma de suas insti- discurso jurídico, inclusive o jurídico-penal, nem sempre cumpre fun-
tuições não funciona ou como ela funciona negativamente.455 Na ver- ções que os próprios funcionalistas tomam como positivas, isto é, que
dade, essa distinção conceitual entre funções manifestas e latentes re- colaboram para atingir ou para manter o equilíbrio social. Admite tam-
monta à tradição funcionalista, mas foi apropriada por certa reflexão bém eventuais disfunções. Aliás, exemplo emblemático no qual a utili-
criminológica que não comunga dos pressupostos epistemológicos e zação da distinção entre funções manifestas e ocultas goza de validade
muito menos dos políticos do funcionalísmo'" Por função declarada científica inegável é o da reflexão sobre o controle social efetuado
deve-se entender aquelas desejadas e admitidas pelos discursos que as
pelo sistema penal.
sustentam. Já as latentes ou ocultas são aquelas que, a despeito de
Nessa perspectiva, uma crítica das teorias penais realizada do
ponto de vista da estrutura estatal tipicamente capitalista, além de lan-
funções declaradas ou manifestas da pena criminal; ao contrário, esse estudo deve çar mão das noções de função manifesta e função latente, deve tomar
rasgar o véu da aparéncta das funções declaradas ou manifestas da ideologia jurídica em conta que os fins assumidos por determinado Estado tendem a se
oficial, para identificar as funções reais ou /atentes da pena criminal, que podem ex- identificar às funções manifestas ou declaradas atribuídas à pena. Só
plicar sua existência, aplicação e execução nas sociedades divididas em classes sociais assim a correlação entre um modelo abstrato de Estado pode encontrar
antagônicas, fundadas na relação capitaVtraba/ho 4SSa/arlado, que defme a separação sua interface penalógica. A questão nodal, porém, está fm identificar
força de trabalho/meios de produção das sociedades capitalistas contemporâneas. OI
os nexos que unem determinado perfil jurídico e institucional aos dis-
tS3 A título de exemplo, MERmN, Robert K. Sociologia: teoria e
ver, extensivamente,
cursos que se orientam para legitimã-Io, com o específico momento
estrutura. São Paulo: Mestre Jeu, 1970, pp. 85 e ss.
evolutivo do sistema capitalista. Dessa amarração é também possível
'" Assim, entre tantos outros, ZAFFARONI, En busca de las penas perdidas, p. 50. Já
apontar que os efeitos reais que o poder punitivo produz podem ser
BARATIA, Vecchie e nuove strategie nella leglitlmazlone dei dlrilto penale, p. 248,
alude à necessidade de se utilizar de um conceito sociológico de pena, o que em sua isolados e submetidos a uma análise criminológica de tipo crítico. Isso
opinião não pode implicar reduzi-lo a toda sanção negativa, tampouco podendo des- obrigará a concentrar as atenções sobre as formações capitalistas típi-
cer ao nível microssocioJ6gico. cas dos países centrais, o que não significa dizer que uma precisa for-
'l' ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariiias. Introdução à análise soetol6glca mação histórica deverá servir de paradigma. As condições históricas e
dos sistemas jurfdtcos. Renovar, 2000, p. 142.
Rio de Janeiro:
~ Na perspectiva critica e/ou radical, a distinção entre as funções manifestas e latentes
é velha conhecida. Assim, por todos, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia
'l' ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farü\as. Ob cilada, p. 142; também, SA.
BADEll, Ana Lucia. Manual de sociologia juri'dicQ: introdução a uma leitura externa
radical. 2' ed. Curitiba: ICPCILumen juris, 2006.
do direito. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 151.

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I'

políticas específicas de um Estado devem ceder espaço às linhas mais


crime, portanto, a afirmação do direito. Como KANT,filiado à filosofia
ou menos comuns, Afinal, na perspectiva de uma economia política da
idealista alemã, HEGELtoma o homem como fim, porque ele é racio-
pena estatal capitalista, os países que por ela foram influenciados, o
nal. De modo que não se pode tratá-lo como objeto da ameaça, a fim
foram na condição de uma peça de uma engrenagem que, embora de intimidar os demais, como quisera FEUERBACH.Entusiasta da figu-
muito maior, é única e corresponde ao modo de produção dominante
ra do Estado, que para ele é a mais perfeita expressão da razão, a im-
no sistema mundial.
posição da pena resulta logicamente da lesão ao direito'60 .
Seguindo o pressuposto diacrônico que em alguma medida a-
companha toda essa investigação, convém começar dizendo que essa
2. A pena como retribuição oposição que ambos os filósofos idealistas representam ao utilitarismo
não era ignorada. KANTpretende superar o utilitarismo que já preva-
A pena como retribuição corresponde à justificação absoluta do di- lecia em .sua época (1724-1804). MAURACH& ZIPF observam que,
reito de punir, cuja necessidade adveio com a sua concentração nas pelo fato de encontrar-se entre dois mundos, KANT consegue fazer
mãos do Estado. Segundo essa perspectiva o sentido da pena resulta da comunicar entre si duas épocas: o jusnaturalismo do século XVII e as
necessidade de se compensar a culpabilidade do autor mediante a im- teorias absolutas que prevaleceriam no século XIX. Para esses autores
,I posição de mal equivalente, embora qualitativamente distinto, àquele .foi a literalidade de seu principio, o talião, o que impediu que a teoria.
I,-i produzido pelo crime. Através dela não se depreende qualquer finalida- penal de KANT se impusesse diretamente'" Sua tese seria relançada
de a ser alcançada, mas apenas a realização de uma ideia de justiça. com retumbante sucesso, no século XIX. Assim ele constrói a primeira
Suas raízes na confissão religiosa, da tradição judaico-cristã, são eviden- .versão de retribuição jurídica e laica que, embora atendesse ao despo-
tes,4SSe se expressam sobretudo no talião como medida da pena. ~ tismo ilustrado462 no interior do qual surgiu, se transformou na base do
!

~:""
No entanto, suas formulações mais conhecidas são modernas e :i direito penal do estado liberal tipicamente burguês.
racionalistas. A primeira figura de destaque é KANT:para ele a pena, Com a consolidação do poder político em suas mãos, a burguesia
por sua própria natureza, não pode ser outra coisa, senão retribuição. ,l,. tratou de se utilizar de sua posição para abandonar o direito natural da
Ilustração, que era essencialmente revolucionário. A classe vencedora

I
Com KANT o racionalismo ilustrado adquire um caráter absolUto e o
direito traduz, enquanto dever individual de consciência, um imperati- ".;, já não requer uma ideia, ela necessita da lei. Afinal, tendo nas mãos o
vo categórico.
4S9
A pena, como resposta à negação desse dever, é um
j~~' Estado, tratava-se de tornar eficaz seu princípio de vigência: justamente
I ~'

fim em si mesmo sem referência a nenhum outro como objetivamente (


a lei emanada do Estado. A esse objetivo nenhuma filosofia serviria
necessário. Daí deriva sua advertência moral fundamental: jamais um ,i:;:
'.. ~.
melhor do que a de HEGEL:para ele o Estado é a personificação da
homem pode ser tomado como instrumento dos desígnios de outro, razão, a ideia absoluta. Daí que à mudança de postura em relação ao
pois ele é fim em si mesmo. Se a imposição de pena produz efeitos Estado segue-se uma mudança na fundamentação da 'pena.
preventivos, para KANT isso carece de interesse. A conexão da pena absoluta com o período do liberalismo e do
A conhecida formulação de HEGEL.no nível da justificativa da capit"lismo concorrencial que lhe correspondeu é inevitável. Por isso
pena jurídica significa, por outros caminhos, praticamente o mesmo: não parece arriscado estabelecer um nexo entre essa justificativa penal
para HEGEL, o crime é a negação do direito; a pena a negação do com a conclusão, cara a RUSCHEe KIRCHHEIMER,de que a abun-'
dãncia de força de trabalho experimentada no período, de vertiginoso

458 No sentido do texto, ver CIRlNO OOS SANTOS, Teoria da pena, pp. 4 e 55; também
460 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo:
ROXIN, Claus. Sentido e /imites da pena estatal. In: Problemas fundamentais de Direito Martins Fontes, 1997. pp. 84 e 55.
Penal. 2a ed Lisboa: Vega, 1993, pp. 15-47.
~t>l MAURACHJZIPF,Ob. citada, p. 93.
459KANT, lmmanuel.lametajisicadelascostumbres.Madrid: Tecno5, 1999, pp. ]66-167.
462 ZAFFARONl/PIERANGELI,Manual de direito penal brasileiro, p. 252.
Cf.?
248
:,~- 249
~.-"
-..•...•••.•.
,.".;,.

t
desenvolvimento das técnicas produtivas, conduziu à percepção de
!
o{
l- revela possível num sistema de produção que reduz todas as formas
~-.
sua desnecessidade para a reprodução do capital: a retribuição se a- n de riqueza social à equàção abstrata do trabalho humano medido pelo
~
molda a essa conjuntura porque justifica a destruição de força de tra- tempo.'"
II balho. O grande respeito pela dignidade humana do contratualismo de -r.~_ Ocorre que, para além da forma, o que designa as. relações de
KANT não evitaria, pelo contrãrio, a extrema crueldade da pena no produção capitalistas é o registro dá desigualdade nas quais operam. A
,
período do liberalismo. Afinal, a pena seria um direito do delinquente, "",,'
\ relação de equivalência, entre salãrio e força de trabalho, só não é
enquanto ser racional que precisa reconhecer seu direito à liberdade'" perturbada segundo a forma jurídica, porque a criação de mais-valia
Além disso, na perspectiva que JUAREZCIRlNO intitulou materia- não ocorre no nível da comercialização, onde as partes, livres e iguais,
lista/dialética, e que se insere no seio da criminologia crítica, a pena dispõem de liberdade de negociação. Ela se realiza no processo de
como retribuição equivalente reflete "os fundamentos materiais e ideo- uso produtivo da força de trabalho; na produção, não na circulação."o
lógicos das sociedades fundadas na relação capitaVtrabalho assalaria- Dai que sob a forma mercantil, que impera na esfera da Circulação, 'I
do, porque existe como 'forma de equivalência' jurídica fundada nas troca de equivalentes vigora escondendo a realidade concretamente
relações de produção das sociedades capitalistas contemporâneas. ,,<61 desigual na qual ela repousa seus fundamentos.
Tal forma jurídica é, por sua vez, equivalente à forma mercantil. Essa Assim como a mais-valia implica, por definição, que parte da for-
necessidade da sociedade burguesa, jã mencionada no curso desse ça de trabalho empregada pelo trabalhador não encontre no salãrio
livro,46Ssobretudo no momento histórico de seu nascimento e consoli- sua equivalência, a pena tende a ultrapassar a medida ou o dano pro-
dação, ganha relevo discursivo no interior das ideologias penais: além vocado pelo crime. Afinal, como salienta PACHUKANIS,o direito pe-
de mediar as relações econômicas, faz o mesmo com as relações jurí- nai moderno não parte do prejuízo sofrido pela vítima, mas da viola-
dicas, e tende a impor-se em todos os demais níveís da vida social. "A ção da norma fixada pelo Estado: "Uma vez que a parte lesada, com
sociedade burguesa estã dominada pelo equivalente. Ela torna o hete- .suas pretensões, passa a segundo plano, então podemos nos perguntar
rogêneo comparãvel, reduzindo-o a grandezas abstratas."'" Assim é onde se situa a forma de equivalência.',471A seguinte passagem de
que a pena, enquanto expressão da forma jurídica geral forjada pela LAURINDOMINHOTO, para esse efeito, é lapidar:
mentalidade burguesa, deve ser equivalente à gravidade da conduta A forma jurídica revestida pela moderna pena privativa de liber-
que pretende punir. A proporção entre o delito e a punição a que ela dade enreda-se numa contradição entre os pólos da retribuição (uma
deve conduzir se reduz a uma relação de troca, assim como aquela pena a ser imposta a partir de um exame estritamente lógico-formal
verificada entre o dano e sua reparação.'" Em síntese, segundo a ideo- acerca' da ilicitude da conduta e da culpabilidade do agente) e da re-
logia do contrato, a pena consiste no valor de troca, cujo parâmetro é forma (um cãlculo utilitãrio destinado a prevenir a criminalidade\e a
a porção de liberdade suprimida pelo condenado468_ coisa que só se reabilitar o condenado). A contradição é ideológica no sentido enfãti-
co, na medida em que se assenta numa aparência socialmente neces-
." HEGEL, Ob. citada, p. 89. sãria assumida pelas relações sociais capitalistas, que, por sua vez, é
••• CIRlNO OOS SANTOS, Teoria da pena, p. 19. transposta de modo peculiar para o discurso jurídico penal da moder-
.t6S Ver supra, Capítulo I) item 3, p. 27.
166 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER,Max. ~/ética do esclaroctmento. Rio de Janei- 469 Nesse sentido, ANIYAR DE CAS1RO, Lola. Criminologia da reaçâo social. Rio de
ro, Jorge Zahar, 1994, p. 23.
Janeiro: Forense, 1983, p. 189, se reportando a wn texto de MASSlMO PAVARINI
"67 PACHUKANIS, Teoria geral do direito e marxismo, p. 119; CIRINO DOS SANTOS, intitulado In tema di economia politica della pena: i mpport1 /Ta strunura economica e
".;
Oh. citada, p. 21. lauoro penitenziarlo alie orlgini dei sistema capitalfsttco di produzione. Carcere ed
468 Nestes tennos, inclusive ampliando a analogia da pena criminal com a mercadoria,
emarginazione sociale. (1976)
no sentido de conectar o, valor de uso da pena com as funções utilitárias manifest:as, "?o Mais uma vez, BARATIA, Criminologia critica e critica do direito penal, p. 163.
CIRlNO OOS SANTOS, Ob. citada, p. 23.
.,:~ "71 PACHUKANIS,Ob. citada, p. 126. '

250 251
------------------ ----- -----_._----

nidade. o princípio da recompensa equivalente medeia ao mesmo


tempo relações jurídicas e econômicas: Ambas aparecem como rela-. 3. A pena como prevenção especial
I
ções que se travam num jogo de reciprocidade em que vontades indi-
viduais supostamente autônomas exercem o seu livre-arbítrio. A priva- A prevenção especial exprime a justificativa à existência da pena
ção da liberdade juridicamente concebida como retribuição internaliza como meio para atingir o fim de prevenir novos delitos do seu próprio
esse modo específico de aparecer que informa a esfera da circulação ~ autor..Ela pode pretender neutralizar o criminoso, tornando-o inofen-
da sociabilidade capitalista (o que a forma jurídica revela). Porém, sob sivo mediante a privação de sua liberdade; dessa maneira ela assumiria
o fundo falso da reciprocidade, os institutos .jurídicos e econômicos um sentido negativo (inocuização). Pode também visar corrigi-lo, me-
operam concretamente à base de gritantes desigualdades sociais. O diante sua res.>ocialização,o que lhe daria um sentido positivo. Ainda
outro da penalidade moderna pode ser identificado na instauração de que remontem aos primórdios do pensamento filosófico-penal, essas
um aparato técnico-disciplinar destinado ao controle das ilegalidades doutrinas conheceram um próspero desenvolvimento no final do sécu-

II
da força de trabalho e ao aprendizado, no cárcere, dos reclamos disci- lo XIXe se tornaram hegemônicas por todo o século XX.'" Sua formu-
plinares do capitalismo fabril (o que a forma jurídica esconde).'"
lação moderna efetivamente é tributária do Iluminismo, mas acabou
Essa aparência de igualdade ao nível das trocas mercantis e das por retroceder no decorrer do século XIX ante a teoria da retribuição.
relações sociais em geral, só pode prevalecer mediante a institucionali-
Com base na prevenção especial, várias teorias penais, provindas
zação de pelo menos uma parte da coação física - que o poder puniti- dos mais variados países, surgiramenquanto justificativasda pena como
vo exprime - numa autoridade independente das classes e situada fora meio objetivando transformar o desviante a fim de adequá-lo aos padrões
das leis inerentes ao mercado. Assim a coação pode ser exercida no
e valores dominantes, mediante uma verdadeira ortopedia moral.
interesse de todos os membros que participam das relações jurídicas'73 'i•.
O grande responsável pelo ressurgimento moderno da prevenção
Essa autoridade é o Estado. Esse foi o caminho para o pensamento especial, conforme observa ROXlN, seu discípulo, é FRANZ VON
jurídico burguês tornar possível a naturalização dessa coação, enquan- LISZT'" Seu Programa de Marburgo (1882),m condensa as várias pos-
to imposição fundamentada na violência colocando um indivíduo con- sibilidades fornecidas pela prevenção especial. Aos sujeitos insuscetí-
tra o outro, mesmo em contradição com as premissas fundamentais veis de emenda: prevenção especial negativa ou neutralização; àqueles
das relações entre os proprietários de mercadorias.474 Para que isso
que revelassem possibilidades de reforma: prevenção especial positiva
tenha se {OInado possível não se pôde prescindir de uma ativa postura
ou ressocialização. Ainda para os ocasionais, ou que não precisam de
do Estado - mesmo no liberalismo, como já se assinalou - que reivin- correção, ela poderia servir de meío intimidatório.'" Tudo depende da
dica o monopólio da violência física legítima e substitui à vítima no forma de ser e da prognose que se fizer sobre o autor. O preSSUp\lSto
momento da troca de equivalentes que a pena como retribuição jurídi- disso é a classificação dos delinquentes segundo os objetivos preten-
ca ao delito exprime.
didos pela aplicação da pena, tarefa da qual, aliás, LISZTentende ca-
ber à ciência sociológica.'"

41SNo sentido do texto, CIRLNODOS SANTOS, Ob. citada, p. 6; FERRAJOLl,Ob. cita.


da, p. 246, entre tantos outros.
476 ROXIN, Sentido e /imites da pena estatal, p. 20.

-4n MLNHOTO, Laurindo Dias. As prisões do mercado. Lua Nova. nos 55.56, 2002, pp. m Cujo título original foi Teoria do fim no direito penal (Der Zweckgedanken im Stra-
133-154. Jecht); a tradução aqui consultada foi a italiana La teoria dello scopo nel dtrltto penale.
'" PACHUKANIS, Ob. citada, p. 98. Milano: Giuffre, ] 962. '.
478 VON LlSZT, La teoria dello scopo nel dirltto penale, pp. 53 e 55. '
~74 PACHUKANIS, Ob. cilada, p. 97.
479 MAURACH/ZIPF,Ob. citada, p. 98.
252
253
,
.1'

.,'.

Não se pode deixar de registrar que 'nem só LlSZT representou a primeira de tipo negativo, ante a incapacidade de incorporação da
I
toda essa vasta construção teórica. De seus fundamentos também Co- ordem produtiva de toda a forçà de trabalho disponível; a segunda de
mungaram os adeptos da Escola Positiva (de ENRlCO FERRIe RAFALE tipo positivo, a fim de disciplinar as classes populares para o trabalho
GAROFALO)e a Défense Sociale Nouvelle (MARCANCEL),cuja influ- na fábrica e para o consumo de massas.
ência para a literatura penal brasileira é mais perceptível do que a do Dessa 'forma, em sua formulação mais difundida a prevenção es-
próprio v, L1SZT.480 pecial, diferentemente das teorias contratualistas e jusnaturalistas, que
Antes de abordar os vínculos históricos que a hegemonia da pre- de alguma maneira expressavam' o apelo revolucionário da tutela do
~
'J_
venção especial estabeleceu com a consolidação do poder do capital indivíduo contra o estado absolutista, reflete a vocação autoritária do
nos países centrais48\ é inafastável dizer que, do ponto de vista filosó- estado liberal, mas sobretudo aquela reacionária que emerge de sua
fico, essa justificação do poder punitivo do Estado é nitidamente frágil. crise. FERRAJOLIaté não a considera de origem iluminista: seria muito
Na verdade, e ela não parece esconder isso, é menos condicionada mais ligada às tradições hebraico-cristã, platõnica e medieval do que à
por pressupostos axiológicos do que por sociológicos ou científicos, É cultura iluminista propriamente dita.48' Não por coincidência a preten-
através da porta aberta pela procura de um fim para justificar o meio são de prevenção especial emerge no contexto de questionamento da
da pena que a .ciência, a reboque do positivismo determinista, do COf- concepção de Estado até então' existente: no fim do século XIX, a A-
recionalismo, se assenhoreou do campo da justificação jurídica. lemanha de VON LISZTquestionava se o estado liberal não havia se
As vertentes da prevenção especial se desenvolvem paralelamente "
tornado obsoleto em função dos câmbios que a estrutura social expe-'
à difusão de concepções cientificistas da sociedade e do dispositivo rimentava.483 A percepção era de que industrialização promovera um .
disciplinar. Sobre suas bases desenvolve-se o projeto de uma socieda- sensív~lincremento de crimes, e a pena, puramente retributiva, revela- '.
de orgânica e integrada submetida menos ao controle moral ou ético
da retribuição do que ao controle científico. Daí que o crime seja in-
va-se ineficiente para lhe fazer frente. Começam a surgir súplicas de
substituição do estado liberal por outro de cariz social, com marcadas
'.
terpretado como uma patologia e o criminoso como doente. A pena é "~-~
tarefas de bem-estar e de prevenção. Assim o Estado poderia desfrutar
o tratamento que a ciênci3; prescreve. Dessa forma o delito e a pena de maiores direitos de intervenção na esfera privada dos indivíduos..•••
deveriam ser explicados como pertencentes e atribuíveis a cada indivi- Na verdade, segundo FERRAJOLI - um insuspeito adepto do positi-
duo em particular. O cometimento de um crime exprimia a inadequa- vismo jurídico -o que essa teoria da finalidade penal reflete é o projeto
ção de seu agente à ordem social em que estava inserido. Nessa or-, autoritário de um liberalismo conservador que identifica a defesa penal
dem de ideias, a conotação positiva ou negativa que a prevenção es- da ordem com a estrutura de classes, existente, pouco importam as justi-
pecial assume depende da possibilidade de se alcançar a cura. ficativas dos pontos de vista axiológico, naturalístico ou mesmo apenas
Esse modelo discursivo é próprio de quando a burguesia deixa de teleológico.485 Dai a se tomar o delinquente irrecuperável ou habitual
se ocupar da nobreza e volta suas atenções para as classes pobres em- como manifestação patológica típica de setores da sociedade comumen-
purradas para os centros urbanos. Se em princípio essas últimas não te agrupados sob o rótulo de proletariado,'" não há qualquer distância.
enco~[ravam ocupação, pois a acumulação de capital era ainda incipi-
ente, logo precisariam ser enquadradas no novo lugar que o desenvol-
'" FERRAJOLI,Ob. citada, p. 246.
vimento das forças produtivas havia'lhes reservado: o interior da má-"
.quina 'fabril. Ambas as fases sugerem um discurso preventivo-especial. ." MAURACWZIPF, Ob. cilada, p. 97 .
••• MAURACWZIPF, Ob. citada, p. 97; também MIR PUIG, Func/6n de la pena y teona
deI delito en e.1Estado democrático de derecho, p. 28.
4SO Conforme observa ROXIN, Ob. citada, p. 20, a prevenção especial logo voltaria a
." FERRAJOLI,Ob. citada, p. 250.
retroceder na Alemanha, de maneira que sua ampla difusão se deve mais ao movimen~
to internacional da defesa social. 486Neste exato sentido e com incrível sinceridade, -VON LISZT,La teoria del/o scopo nel
diritto penale, p. 54: "A luta contra a delinquência habitual pressupõe seu exato co-
Assim, ZAFFARONl/PIERANGELl, Manual de direito penal brasileiro, p. 269 ..
481
nhecimento. c...)Se trata realmente de wn elo daquela cadeia, de resto muito significa-

254 255
iR:;,
,

Se a ressocialização serve à reforma moral para que o indivíduo assuma 'No plano das funções, de fato a prevenção especial negativa tal-
o seu destino de submeter-se à disciplina da fábrica e aos valores da vez seja a única a cumprir a função que assume, já que a prisão impe-
sociedade de consumo de massa, a neutralização não pode divorciar-se de o cometimento de crimes, pelo menos fora de seus limites'''' Difi-
da obrigação de trabalhar, inclusive coletivamente. A prisão celular, uma :~ cilmente, porém, a função de prevenção especial negativa se enuncia
vez experimentada a produção em massas a exigir o trabalho coletivo, como exclusiva; ela quase sempre é associada à de tratamento ou re-
deveria ser introduzida apenas como sanção disciplinar.'" 11 forma, segundo a seguinte perspectiva: ante o fracasso da ressocializa-
ção apela-se para a neutralização. Na prática, porém, como as primei-
A pena como retribuição da culpabilidade conheceu seu apogeu
em tempos que mesmo o desviante era considerado livre, e por sê-lo, ras sempre fracassam, "a neutralização é somente uma pena atroz im-
poderia ter escolhido em não praticar o crime. Por isso, sua própria posta por seleção arbitrária."'"
Condiçào de igual e racional, exigiria a imposição de pena. As convul- l~ A crítica criminológica destaca ainda as funções latentes ou ocul-
sões sociais e a percepção da necessidade de maior ingerência estatal
I~ tas que a pena tem desempenhado sob o discurso da prevenção espe-
~i cial. Em geral, ela parte dos efeitos deletérios reconhecidos à institu-
que elas despertam no transcorrer do século XIX, entretanto, conver-
gem para despir o desviante desse status jurídico. As determinações,
11- cionalização em prisões. Assim, ao enfrentar as contradições da pre-
sejam elas de natureza antropológica, biológica ou social, fazem-no venção especial negativa, JUAREZClRINO DOS SANTOSaponta, entre
igualmente detefÍninado ao delito. A sociedade, através do Estado, outros, os seguintes efeitos que resultam da inocuização pela privação
~;,~
deve então defender-se: se puder corrigir o criminoso, incutindo-lhe o de liberdade: em vez de evitar, produz delinquência; determina' uma
respeito às leis e valores consagrados pela ordem política vigente, bem J,'
f~,::.
"desclassificação social objetiva" do sujeito, consolidando a desintegra-
como reduzindo-o à condição de força de trabalho disponível, a pri- ção social do condenado, mediante o esgarçamento, muitas vezes le-
i~"
sào, mediante a incidência do dispositivo disciplinar, se encarregará da vando .ao definitivo rompimento, dos laços sociais e afetivos., inclusive
tarefa; àquele refratário à assimilação dos valores sociais que a socie- no mercado de trabalho'92 Em suma, o que a prevenção especial ne-
dade produtora de mercadorias prescreve - e aqui pelo menos se deve gativa deixa claro, inclusive no nível simbólico, é o seguinte: os que se
reconhecer a sinceridade da pena como neutralização - restará ser recusam ao enquadramento à "forma moral" da sobrevivência através
eiiminado do convívio social. VON LlSZT,por exemplo, propõe que do salário'9l e de sua subsequente disponibilização no mercado (de
após a terceira condenação, o indivíduo seja submetido ao isolamento consumo de bens ou de capit.ais)I ou seja, os que recusam a existência
indeterminado, cujos custos deverão resultar de seu próprio trabalho. econômica que fornece o combustível da máquina compulsiva capita-
Antes disso, lamenta, uma vez não ser mais admissível, pelo estado da li.sta, não merecem existência social.
ciência penal que ele próprio ajudou a atingir, o recurso à decapitação No campo da prevenção genericamente agrupada sob a ideia de
ou enforcamento, nem a utilização de deportação, que "a única possi- ressocialização, o que a crítica criminológica tem mostrado, especial-
bilidade é pelo isolamento perpétuo ou por tempo indeterminado. ,,488 mente através da contribuição das ciências sociais, é o seguintê: os efei-
Ainda segundo VON LlSZT, a categoria de criminosos habituais (irre- tos produzidos pela prevenção especial positiva, além da impossível
cuperáveis, portanto), é seguramente individualizável: trata-se daqueles comprovação empírica daqueles declarados, têm atuado para a reprodu-
que atentam contra a propriedade e o bons costumes.""
.,,, CIRlNO DOS SANTOS, Ob. cilada, p. 25;" segundo ZAFFARONl/BAllSTA, el. alo
Direi/o penal brasileiro -1, p. 127: "Sem dúvida alguma, têm êxito preventivo especial:
a morte e os demais impedimentos IlSicos são eficazes para suprimir condutas posteri.
tivo e perigoso, de manifestação patológica da sociedade que se pode reagrupar sob a
compreensiva denominação de proletariado." ores do mesmo sujeito."

481 VON LlSZT, Ob. citada, p. 57.


49\ ZAFFARONVBATISTA, el. ai., Ob. citada, p. 127.

489 VON LlSZT, Ob. citada, p. 56.


'" CIRlNO DOS SANTOS, Ob. citada, p. 25.
493 FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 204.
". VON L1SZT, Ob. citada, pp. 56-57.

256 257
ção daquilo que ele visa justamente reduzir: a ocorrência de crimes'"
sim como o inimigo produz a guerra, o cnmmoso produz o sistema
Essa, aliás, uma característica constitutiva do modo de produção capita- i penal. A renovação do crime"assim como os atos tomados como terro-
lista, segundo a qual a existência de uma construção social só é admiti- i
'j" ristas é o que justifica a utilização permanente da violência aprisionada
da se provar seu caráter produtivo.
;w . pelos diques da racionalidade de tipo legal. Dessa maneira' o Estado
Como toda prevenção, a prevenção especial só seria aceitável se
prov~ssesua eficácia, ou seja, que a incidência da pena reduziria a via. t
)<
intenta manter sua base de legitimação, que é de natureza legal, sem
abrir mão do frequente uso da força que ele lhe fez privativa.
lência que se atribui à criminalidade; se provasse efetivamenre proteger
bens jurídicos. Ocorre que, como todos os demais discursos utilitários, a
l~.
Descortina-se, assim, o caráter produtivo tanto da guerra quanto do
crime no modo de produção capitalista. Na "digressão" contida nos ma-
I
li
"I
prevenção especial, além de reproduzir aquilo que diz combater, tende
a expandir o controle penal e o poder punitivo do Estado. Justamente
por incrementar as situações que autorizam sua inrervenção.
[ nusa'itos conhecidos como Teorias da Mais-Valia, destinados à análise
histórica do pensamento econômico, MARXjá assinalava esse carãter com
i' o qual, de resto, o capitalismo procura investir toda relação social. '96497

,'.
Sob o capitalismo, a totalidade da vida social é valorizada segundo >j.
,I 'I!'
sua capacidade, senão de estimular as forças econômicas, pelo menos -f.

496 MARX, KarJ. Teorias da mais.valia: história cTitica do pensamento econ6mico. V, L


de converter os elemenros que a compõe a uma unidade suscetível de
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, pp. 382-383: "Filósofo produz ideias, poeta
assumir um valor de troca. Atado às conrradições que lhe conferem poesias, pastor prédicas, professor compêndios e assim por diante. Um criminoso
constante instabilidade, a racionalidade prevalenre no capitalismo tende produz crimes. Se mais de perto observarmos o entrosamento deste último ramo de
a apreciar o que contribui para sua manutenção. Por conta de sua defi- ."11 produção com a sociedade como um todo, libertar-nos-emos de muitos preconceitos.'
ciência em termos de legitimidade material, a sustenração da dominação
'4l>'
°
O criminoso não produz apenas crimes, mas também direito criminal e, com este, o
política reciama motivos que'autorizem acionar a violência que o Estado
,t professor que produz preleções de direito criminal e, além disso, o indefectível com-
~' pêndio em que lança no mercado geral 'mercadorias', as suas conferências. Com isso
moderno represou em seu seio. Daí que o processo de criminalização aumenta a riqueza nacional, para não falarmos no gozo pessoal que, segw\da uma
(tanto primário quanto secundário), tal como concebido pela criminolo- ~
gia crítica, é funcional ao sistema de produção e de dominação capitalis- ¥
i~',
testemunha idônea, Professor Roscher, os originais do compêndio proporcionam ao
próprio Autor. O criminoso produz ainda toda a polícia a justiça criminal, beleguins,
ta: porque produz delinquência, fabrica ocasiões para a demonstração i1 juízes e carrascos, jurados etc.; e todos aqueles diferentes ramos, que constituem ou-
da força punitiva do Estado, reforçando o seu poder.'95
Por isso a existência do crime, assim como do inimigo, constitui
l
~.
. tras tantas categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem capacidades diversas
do espírito humano, criam novas necessidades e novos modos de satisfazê-las. Só a
iii, tortura suscitou as mais engenhosas invenções mecânicas e ocupou na produção de
uma necessidade do Estado moderno. Do contrário ele não teria ra- seus instrumentos muitos honrados artífices. O criminoso produz uma impressão com
zões "legitimas" para acionar a violência que mantém imobilizada. As- l'!li gradações morais e trágicas dependentes das circunstâncias, e assim presta um "'servi.
li} ço" ao despertar os sentimentos morais e estéticos do público. Não só produz com-
ifl!!
,.~~ pêndios sobre direito criminal, códigos penais e portanto legisladores penais, mas
494 BARATI A, Criminologia crítica e critica do direito penal, p. 90, "a intervenção do também arte, literatura, romances e mesmo tragédias, tais como Schuld de Mu11ner,
sistema penal, especialmente as penas detentivas, antes de terem um efeito reeducati- Rauber (Salteadores) de Schiler, J!.dipo de Sófocles e Ricardo lO de Shakespeare. O
vo sobre o delinquente determinam, na maioria dos casos, lU11a consolidação da iden- criminoso quebra a monotonia e a segurança cotidiana da vida burguesa. Por conse-
tidade desviante do condenado e o seu ingresso em L!flla verdadeira e própria carreira guinte preserva-a da estagnação e promove aquela tensão e turbulência inquietantes,
criminosa." sem as quais se embotaria mesmo o aguilhão da concorrência. Estimula assim as forças

I 495Não se discute, aqw, se em o~traorganização produtiva e política, o crime deixaria


de ser funcional, ou mesmo seria abolido. Desde que assumiu as características com
que a modernidade lhe revestiu, o sistema penal não conheceu uma ordem radical.
mente distinta. Os países socialistas do século XX, por exemplo, nunca chegaram a
'Ci-.
produtivas. O crime retira do mercado de trabalho pane da população supérflua e por
isso reduz a concorrência entre trabalhadores, impede, até certo ponto, a queda do
salário abaixo do mínimo, enquanto a luta contra o crime absorve pane dessa popula.
ção. O criminoso aparece como uma daquelas "compensações" naturais, que restabe-
tomar a separação fundamental força e instnunentos de trabalho de uma perspectiva lecem um equilíbrio adequado e abre ampla perspectiva de ocupações 'úteis'. Pode-se
completamente diferente. A respeito, ver KURZ, Robert. O colapso da modernização. comprovar, descendo-se a ponnenores, a influência do criminoso sobre O desenvolvi-

I,
2&ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. mento da produtividade. Teriam as fechaduras atingido a excelente qualidade atual, se
não houvesse ladrões? A fabricação de notas de banco teria chegado à perf~ição pre-
258 4it
'1l': 259
~
I
Por isso, o discurso da prevenção especial encaixa.se, em termos
das funções latentes que desempenha, não só garantia, mas a própria
reprodução das relações sociais à imagem de um sistema produtor de
t Muitos foram os adeptos dessa concepção, tida como a mais libe-
ral e deferente às garantias legadas pelo Iluminismo. Todavia suas de-
'mercadorias.
~; bilidades, mesmo do ponto de vista normativo, não são desconhecidas,
"

com destaque para aquelas que apontam sua tendência em degringolar


para um terrorismo penal, além de não ser capaz de escapar d~ obje-
ção kantiana de que nenhuma pessoa pode ser tratada como meio
4. A pena como prevenção geral negativa para se atingir um fim que lhe é estranho.
Por ser, entre as penas preventivas, a mais idônea a atender aos
Do ponto de vista da prevenção geral a pena tem por destinatário f
..._
princípios que 'delimitam o poder punitivo do Estado, a teoria da pre-
não aquele que cometeu o crime, mas os demais que ainda não o fize- l\;- venção geral negativa de FEUERBACHparece não ter encontrado o
~
ram. Conforme eia se oriente para intimidar, mediante a demonstração a.J. entusia~mo do poder do Estado. Sua principal obra, o Código Penal
bávaro de 1813, fracassa dada sua incompatibilidade prática, baseada
de força, de que o Estado não tolera nenhuma lesão à ordem jurídi- I

ca,498ela será negativa. Se orientar-se a reafirmara validade dos valores na atribuição de um só fim à pena, ante o direito penal do estado libe:
jurídicos que fundamentam a ordem social, ela será positiva. ral, ao qual a teoria absoluta servia muito mais adequadamente.'oo
A simples menção, não importa quão despretensiosa, da preven- A crítica da prevenção geral negativa, normalmente refere a ilegi-
ção geral negativa não pode furtar-se de fazer justiça a FEUERBACH. timidade da utilização do poder punitivo do Estado para infundir o
Talvez seja ele quem fundou o direito penal moderno, com as caracte- lf terror, ou querer, com fundamento na demonstração de força sobre
rísticas mais positivas que conhecemos. Um iluminista convicto e cren- aquele que sofre .a punição, refrear os intentos desviantes da coletivi-
te do inalienável papel de garantia que o princípio da legalidade re- da,de. A criminologia aponta, por sua vez, a inexistência de prova em-
presenta. Para FEUERBACH,ao lado da coação física de que o estado pírica de que essa projeção do castigo representada pela pena surta
de direito dispõe deve se acrescentar outra espécie de coação que se qualquer efeito coletivo, tanto mais naquela criminalidade comum,
antecipe à consumaçãci da lesão jurídica. S6 assim a pena seria eficaz- formada por atitudes que não costumam ser acompanhadas de muita
rjlente 'preventiva. Essa coação, de natureza psicológica, exerce.se a reflexão. Seus efeitos preventivos, se possíveis no âmbito da criminali-
fim de intimidare dissuadir, mediante uma ameaça, a coletividade dade dourada (crimes econômicos, ecológicos, tributários, etc.), são
não-desviante, o mal produzido pela pena será tal que o desgosto absolutamente irrelevantes no campo do direito penal reservado aos
provocado pela insatisfação de um impulso agressivo será preferível'99 setores mais vulneráveis da população, onde a repressão penal seletiva
se exprime em toda sua envergadura.SOl Aliás, esse discurso supõe a.
coincidência entre homo medius e homo economicus, ponderador dos
sente, se não houvesse moedeiros falsos? Teria o microscópio penetrado na esfera
comercial comum (ver Babbage) sem a fraude mercantil? Não deve a química prática à benefícios do crime e dos custos da pena, como queria o próprio
falsificação de mercadorias e ao esforço descobri-la tanto quanto deve ao afã honesto FEUERBACH- algo pouco provável de. ocorrer, pelo menos naquele
de produzir? O crime, com os meios de ataque à propriedade sempre novos, provoca. grupo social de que o sistema. penal mais se ocupa, já que a classe
a geração ininterrupta de novos meios de defeSa, e asSim tem, como as greves, influ- médi~ muitas vezes deixa de delinquir para obter uma "recompensa
encia tão produtiva na invenção de rriáquinas. E se deixamos a esfera do crime priva-
pela obediência", como pondera ELENALARRAURI.502
. do: sem crime nacional, teria jamais surgido o mercado mundial?" "
497No mesmo sentido e remetendo ao irônico texto de MARX,ver'ANlYAR DE CASTRO,'
500 MAURACHlZIPF, oI>. citada, p. 94.
Criminologia da reação socia4 p. 152 e MINHOTO, As pri.<;ôesdo mercado, p. 146.
~98Assim, FEUERBACH,Anselm v. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Hanunura-
'" Cf. CIRINO DOS SANTOS, Te~rlada pena, p. 30.
bi, 2007, p. 51. m LARRAURI,Elena. Criminologia crilicCl; abolicionismo y garantismo. Revista de
." FE\.1ERBACH, Ob. citada, p. 52. Estudos Criminais. v 20, pp. 11-~8;em sentido próXimo, HASSEMER,Introdução aós
jundamenta.<; do Direito Penal, pp. 408 e 55.

260
261
:~-"

Na realidade, lançar mão da pena para desencorajar os que não


',:~ te menos em prevenir a ocorrência de crimes do que na manutenção,
~J;',
cometeram crimes, mais do que constituir discurso de justificação do e mais do que isso, no reforço de uma determinada ordem social, re-
poder punitivo, representa legitimação retórica50Jde seus abusos. Des- presentada pelo vigor da norma.
sa forma pretende produzir (na condição de uma verdadeira ideologia) A influência sociológica dessa teoria, sobretudo a sustentada por

,II
na "generalidade dos cidadãos e no próprio aparato do sistema penal jAKOBS, é evidente e remete ao princípio conservador que fundamen-
um consenso em torno de uma imagem ideal e mistificante de seu ta o funcionalismo sociológico. jAKOBS sequer a recusa como real-
funcionamento:"'" BARATI A trabalha com a crítica à prevenção geral mente conservadora.5°S
negativa denominando-a de teoria ideológica, juntamente com a pre- Essa concepção pode ser considerada a mais recente construção
venção especial positiva (a prevenções especial negativa e geral positi- :i acerca da pena criminal, embora seus fundamentos não sejam muito
va se agrupariam sob a denominação de teorias tecnocráticas).501Nesse ;", originais. Sua antecessora mais certa é a perspectiva macrossociológica
sentido, ela seria uma teoria imprópria para momentos de crise, onde de DURKHEIM,do final do século XiX. Tanto uma quanto outra sur-
a construção de consenso não é tão infactível. Segundo a perspectiva gem num quadro de crise e de insuficiência de argumentos para justi-
aqui adotada, o período mais adequado para sua utilização, em termos ficar determinado c.ontexto social.
de desenvolvimento histórico do sistema capitalista, certamente foi da Para situar historicamente o atual surgimento da moderna preven-
vigência do Welfare State; no qual, de resto, ficou um tanto quanto
obscurecida sob a sombra da hegemonia da prevenção especial positi-
va por todo esse período.
li
~~
~."!'
ção geral positiva, convém compará-la com sua antecessora. A DUR-
KHElM incomodava a concepção preferida ao liberalismo político,
segundo a qual a sociedade era constituída pela interação de interesses
individuais independentes, uma simples somatória de vidas individu-
ais. A interpretação que ele oferece para a questão da integração social
5. A pena como prevenção geral positiva procura ser distinta. Segundo ZAFFARONl& PIERANGELl,sua teoria
social responde a um surto de depressão econômica experimentado
pela primeira metade da década de 1890: "A impressão de que o de-
o discurso jurídico da prevenção geral positiva visa, através da senvolvimento econômico era linear e regulado automaticamente pela
imposição do mal da pena, que a coletividade perceba a autoridade da concorrência, a fé em um progresso indefinido guiado pela 'ciência' e
ordem normativa em vigor. A única coisa comum que existe entre todo à frente do qual se achavam 'naturalmente' os melhores, começa a
tipo de ordem é que a pena é sempre a reação ante a infração de uma desvanecer-se ...""" Percebe-se, nessa perspectiva, que seu surgimento
norma.506Ela é a demonstração de vigência da norma à custa de um é contemporâneo aos primeiros sinais de esgotamento do liberalismo
responsável. Por isso é que para jAKOBS, seu mais moderno e signifi- econômico,_ esgotamento esse que repercute no seu esquema de coe-
cativo artífice, mais importante do que o comportamento do agente é são social. A fim de reduzir esse déficit, é que a teoria da prevenção
assegurar a autoridade da norma. Nessas condições, não é missão da geral positiva surge pretendendo deslocar a ênfase da prevenção espe-
pena evitar lesões a bens jurídicos, mas reafirmar a"vigência da norma, cial, própria do positivismo mecanicista.510
que é o verdadeiro bem jurídico-penal.507Sua função declarada consis- Para DURKHEIM,o crime é um fenômeno social normal para a
produção e perpetuação da solidariedade social. Por isso, à pena, en-
50' CIRINO DOS SANTOS, Ob. citada, p. 30. quanto resposta comum a todos os crimes, cabe uma importante fun-
504 BARATIA, Alessandro. Vecchte e nuove slralegie nella Jegit/imazione dei diritto
pena/e. Dei deliUi e delle pene. Ano 11I, nO 2, 1985, p. 257.
50s BARAlTA, Ob. citada, pp. 256 e ss. 50ll jAKOBS, Ob. citada, p. 21.
,<>6 ]AKOBS, Gunther. Derecho penak parte general. 2' ed. Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 8. '''' ZAFFARONIIPIERANGELI, Manual de dlrello penal braSileiro, p. 296.
507 jAKOBS, Ob. citada, p. 13. 510 ZAFFARONIIPIERANGELI, Manual de direito penal brasileiro, p. 297.

262 263
-~-----,."--_.~~--------------

ção: manter intacta a coesão social através do reforço da vitalidade da


consciência comum.51I "O crime é portanto necessário; está ligado às
condições fundamentais de qualquet vida social e, precisamente por
isso, é útil; porque essas condições a que está ligado são indispensá-
veis para a evolução normal da moral e do direito."S12
I"!:
;,\"

.~
tinuidade.,,5!' Por expectativas normativas (em contraposição às cognitivas)
deve-se entender justamente aquelas que não se abalam apesar de frequen-
temente frustradas pela realidade social. Dessa forma absolve-se a estrutura
social de qualquer contribuição para a realização de atos socialmente dano-
sos, construindo-se uma teoria que, a despeito de sociológica, não se ocu-
Sem embargo, a prevenção geral positiva ficou na penumbra por
um bom tempo, vindo a ressurgir sob o rótulo de prevenção-
} pa minimamente das condições sociais reais. Por outro lado, uma expecta-
~.
tiva normativa, para manter-se nessa condição, precisa ser desapontada.
integração, principalmente na Europa, apenas na passagem dos anos
1970 para os 1980. Nesses termos, ressurge quase como uma necessi-
dade colocada pelo cenário de crise que o sistema produtivo tem pro-
f:t Isso dificilmente seria possível, segundo LUHMANN,se a expectativa desa-
pontada não pudesse expressar_se.S!6A expectativa deve manifestar-se a
A;' fim de que a norma seja salva de ameaças, neutralizando-se simbolicamen-
jetado sobre a classe trabalhadora, a partir da obsolescência do mode- ,J
~ te o desvio. Daí que mais importante que a imposição real da expectativa
lo fordista. Ao contrário daquela de verniz geral negativo, a prevenção
geral positiva é própria de momentos críticos, dos pontos de vista e-
conômico e político. A crise que de agora se fala, consiste na que se
~:
~,
mesma, seja sua manutenção.517Isso constitui uma estratégia de estabiliza-
ção contrafática do sistema social, apesar da realidade.
~,
Para essa construção teórica, o decisivo é que o consenso social
abateu, em suma, sobre toda a pesada estrutura construída pelos esta- ;1 pareça existir apesar dos antagonismos e conflitos existentes. A onipre.
dos de bem-estar, de esvanecimento das legitimações instrumentais \.
;.., sença do poder punitivo do Estado, para esse efeito, em LUHMANNé
dos sistemas punitivos, entendidas como voltadas, pelo menos no nÍ-
fundamental. 518Por isso a função da pena que parte dessa construção é
vel de sua função manifesta, à defesa dos bens jurídicos através da
t: menos preventiva do que simbólica. E essa função simbólica tem por
redução de crimes. ::t- objeto a legitimação do poder políticoS!' e da realidade social existente,
Tomando-se a teoria de JAKOBS,pode-se facilmente perceber a assi- .-::;",
:t: não importa quão caótica ela seja. As expectativas normativas a sel'l'm
milação do funcionalismo sociológico de tipo sistêmico elaborado por -~
mantidas sequer necessitam referir-se a muitas pessoas, deixando entre-
LUHMANN,especialmente ao deslocar, como já se frisou, o objeto de tutela ""'
Lt: ver a consciência, de uma construção teórica dessa natureza, a respeito
penal do bem jurídico para a norm"'!': segundo esta perspectiva o equilí- ~
;.} do contexto estrutural no qual emerge: profundamente excludente e
brio do sistema social está associado à possibilidade de manutenção das '10"
incapaz de trazer, para o gozo dos frutos socialmente produzidos, mais
expectativas de comportamento apesar de suas frequentes frustrações.5!' i
'j't"," que uma franja quantitativamente inexpressiva da população.
Ou seja, para a manutenção do equilíbrio social, o importante é que as
Por isso BARATIA acerta ao afirmar que a teoria de JAKOBS inven-
expectativas normativas não sejam desapontadas, apesar da existência de 'J'
atitudes que empiricamente as confrontem: "A expectativa e o aconteci- i.it ta uma normalidade inexistente. Trata-se de uma maneira de colonizar a
mento têm que ser simbolicamente isolados de tal forma que o aconteci- ,I> percepção da realidade, de forma que, para a manutenção da aparência
mento não possa afetar a expectativa, não colocando em questão sua con-
! de equilíbrio do sistema, o homem deixa de ser sujeito de direitos para

51S LUHMANN, Ob. citada, p. 69.

511 DURKHElM, ~mile.Da dívisãQ do trabQlho social. za ed. São Paulo: Martins Fontes, SI' LUHMANN, Ob. citada, p. 71.
LUHMANN, Ob. citada, p. 73.
1995, p. 83. ~.'
"'1"
;17

512 DURKHElM, Émile. "As regras do método SQciológicd'. ln: Os pensadores, v. XXXIII. 518 LUHMANN, Ob. citada, p. 124, as frustrações devem ser processadas de tal modo

São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 423. que os resultados sejam "tão inequivocos que perntitam o encadeamento direto da
suposição do consenso, ou até do próprio consenso. Isso é produzido pela força físi-
lU ]AKOBS, Ob. cilada, p. 13.
ca. C.) A força física interessa-nos aqui não em seus efeitos físicos C..) mas sim em
514 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito - v I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
seus aspectos sensoriais e simbólicos, que acompanham o evento físico-orgânico. n
1983, p. 56.
'" CIRlNO DOS SANI'OS, Teoria da pena, p. 32.
264
265
",f
"i'

são sempre responsabilizadas. Por isso ela legitima não s6 a seletividade


ser objeto da realização de seu equilíbrio. Além de apropriada para pe- do sistema penal, mas também a sua própria expansão, além de reforçar
525
ríodos de crise, ela pode ser considerada de tipo tecnocrático, já que os processos de imunização inerentes ao seu funcionamento.
contém um duplo código: um destinado a provar a eficácia do controle Finalmente, é necessário ainda explicitar que, não é por ser sim-
social e do aparelho de punição do Estado; outro reservado aos funcio- bólica que a pena criminal deixa de produzir efeitos bastante concre-
nários da máquina do.poder e à classe dominante."o .tos. Primeiro porque a legitimação do poder do Estado supõe a legiti-
Já se mencionou que talvez a mais bem sucedida estratégia de le- mação da ordem por ele estabelecida. Quanto mais violenta essa or-
gitimação empreendida pelo Estado moderno foi aquela levada a efei- dem, piores os efeitos produzidos, que dessa forma terminam todos,
to durante o período fordista, no qual se "empenhou em disponibili- também, legitimadOS,'" Daí o revigoramento da solução violenta para
zar, desde que em doses politicamente controladas, a fruição pelos problemas estruturais cuja resolução real não está contida na pauta
!I indivíduos em geral, dos bens e riquezas por eles próprios produzi-
política dos Estados contemporãneos'"
I dos.,,\2l Essas estratégias foram as responsáveis pelo maior nível de As semelhanças entre as construções teóricas que serviram de apoio
!', estabilidade política experimentado sem o recurso excessivo à coerção à teoria da prevenção geral positiva são evidentes. Ambas surgiram como
estatal. Com o abandono dessas práticas, a solução punitiva teve de sucedâneos das teorias antes dominantes, a fim de preencher a lacuna
recobrar sua importãncia. Por isso o significado da atual teoria da pre- discursiva aberta pelo enfraquecimento de laços sociais mais duradouros,
venção geral positiva, em termos de sua funcionalidade ao atual mo- produzidos pela maior capacidade de incorporação do sistema social com
mento vivenciado pelo sistema capitalista, não é de difícil percepção. que se defrontam. A atualidade, devido ao alto grau de injustiçadistributi-
Sua razão estrutural radica no declínio do estado de bem-estar e va, à seletividade do poder, à constante e exponencial reprodução de
da desconfiança generalizada sobre a função de ressocialização'" Em sujeitos descartáveis pelo atual estágio evolutivo do modo de produção,
suma: a prevenção geral positiva de JAKOBS é quase um sintoma da exige cada vez mais frequentemente uma confirmação da validade da "
inadequação do instrumento penal em face da satisfação de uma exi- nOlma jurídica como modelo de orientação social. Assim sobrecarrega-se
gência política.'" Quer dizer, algo próprio ou exigido por uma ordem Cl papel reselvado à lei, enquanto sintoma da debilidade dos demais insti-
social de reduzida legitimidade, cuja reconquista, aliás, parece não lhe
estar acessível ou sequer lhe interessa.
-•• tutos responsáveis pela integração social. Por ter se desocupado das de-
mais esu-atégiasidõneas para sua legitimação, a ordem em vigor reclama
1'1

!iI
li!1
As críticas suscitadas pela criminologia crítica são inúmeras: a pre-
venção geral positiva de base sistêmica desconhece .todos os efeitos
negativos do sistema penal em termos de integração social; ignora a
I um discurso que privilegie a produção de efeitos meramente simbólicos
para que o sistema continue a funcionar apesar do evidente e crescente

I
1:
desequilíbrio que lhe acomete.
cifra negra da delinquência, na medida em que, desde sua concepção, o
que põe em perigo a confiança no equilíbrio institucional não são as
52:5 BARATfA, Integrací6n..prevencí6n' una nuevafundamentaci6n de la pena dentro
violações desconhecidas ou pouco visíveis, mas aquelas graves e mani-
de la teoría sistémica, p. 23.
festas.'" Só essa última razão já seria suficiente para marcar sua predile- i!l. ,,, Cf. TAVARES, Juarez. A glohallzação e os prohiemas de segurança públtca. p. 126.
ção pela criminalidade comum, da qual as classes menos favorecidas

"" BARATI A, Veeehie e nuoue slrnIegie nella ieglttlmazlone dei dirllto penaIe, pp. 262-264.
I 527Conforme pondera CIRlNO DOS SANTOS, Teoria da pena, p. 33: "a legitimação do
Direito Penal pelo papel ideológico da criação de símbolos no imaginário popular é
simbólica, mas com evidente efeito instrwnental: é slmb6Uca, porque a penalização
521 Ver Capítulo 11I supra, p. 31. das chamadas situações problemáticas não significa solução social do problema, mas
simples solução penal produzida para efeito de satisfação retórica da opinião púbUca -,
'" BARA TIA, Veeehie e nuoue strntegie nella Iegllt/maz/one dei d/Tirtopenaie, p. 257.
ou seja, nenhuma solução; mas possui efeito instrUmental, porque legitima o _Direito
S23BARATIA, Alessandro. Integraci6*prevenci6n: una nueva jundamen/aci6n de la Penal como programa desigual de controle social, agora revigorado para a repressão
pena dentro de la teoria sistémtca. Capítulo Criminológico - nO 15, 1987, pp. 3.26. seletiva contra favelas e bairros pobres das periferias urbanas, especialmente contra a
524 BARATIA, Integractón-prevenci6n: una nueva[undamemacf6n de la pena dentro força de trabalho marginalizada dO mercado, sem função na reprodução do capital."
de la teoria sistémtca, p. 23.
267
266
1
"-f...,
:..." .-.,\
'"'

6. Utilitarismo e razão de Estado Essa ponderação remete à realidade de uma outra configuração
do paradigma político da modernidade. De fato a dominação política
que a modernidade burguesa empreende não se esgota no papel da
Da cori'elação entre 'desenvolvimento político-institucional da or- ~. lei. Por várias vezes esta insuficiência foi apontada no transcorrer dessa
dem estatal e os discursos formulados para legitimar a existência do
investigação."9 Por isso é necessário apreender que nem sempre os
poder de punir resulta, pelo menos em linha de princípio, que a fun-
ção atribuída à pena deve corresponder, em última análise, aos fins
I
~l"
discursos ou construções doutrinárias acerca do poder punitivo reve-
lam muito. Eis o motivo fundamental da necessidade de se debruçar i
que o Estado diz perseguir. Pois se o Estado é quem detém a exclusi-
vidade para o uso legítimo da força, sua exteriorização deve voltar-se a
II não só sobre as funções declaradas ou manifestas atribuídas à pena
esses objetivos. Isso, contudo, não encerra a inquietação sobre a legi- t criminal, mas também sobre suas funções latentes ou ocultas. A razão
timidade desse exercício de poder tão grave. Principalmente depois
que as funções latentes da pena criminal foram cientificamente desnu-
.~
'li' de Estado, segundo a qual a pena simplesmente se volta a realizar a
"vontade do poder" raramente é assumida. Na verdade, ela é muito
dadas. De fato, num Estado cujas estruturas são moldadas segundo os
interesses que nele se projetam por uma sociedade de classes sociais
'1
I •
I."
mais praticada do que teorizada.
As ideologias penais conhecidas, grosso modo divididas entre' ab-

i solutas e relativas, são encontradas muito antes da constituição do

'~:
antagõnicas, a legitimidade por ele conquistada nunca poderá refletir,
Estado que esse trabalho procurou de alguma forma analisar. A insis-
em condições de igualdade, as demandas de todas as classes que con- ~ tência em se atribuir uma utilidad~l um fim à pena, é antigaj muito
vivem sob seu domínio. Justamente para esse efeito. é que a estratégia ~
anterior, até, ao Iluminismo e mesmo' aos seus pilares fundamentais,

I~.
de legitimação por ele assumida não dispõe, em seu conteúdo, de
tal. como o direito naturaL Isso vale mesmo para as teorias relativas ou
justificativas materiais capazes de garantir uma equilibrada distribuiçào
~; preventivas, frequentemente vinculadas à noção de utilidade e discur-
de vantagens e de riquezas entre os participantes. ~ sivamente mais desenvolvidas após o Iluminismo.530 O que a moderni-"
Por isso é que, também em princípio, o paradigma político da
dade parece ter agregado a esses discursos de longa memória foi so-
modernidade pode ser designado, desde WEBER, como responsável
pela dominação de tipo racional-legal. Quer isso dizer que o advento ,;:
;,I!f'
bretudo uma forma específica de racionalidade por detrás das justifica-
tivas comumente endereçadas à legitimação do poder do Estado .de
do Estado moderno fez com que o poder punitivo do qual ele reivin- ~.
.!it. punir, inclusive conceitualizando-o, mais do que como uma proprie-
dicou o monopólio também viesse a fundamentar sua legitimidade
(formaI) na legalidade. II
~.
dade, como um seu direito subjetivo (jus puniendi).
De fato, um patrimônio comum reivindicado por todas as teorias pe-
Ocorre, como jã assinalado anteriormente, que a despeito dessa ,~'
nais consiste na sua racionalidade, desligada de explicações sobrenaturais,
constatação, o poder punitivo em boa parte continua.a desenvolver-se '\~1"
~{i e empenhadas em impor limites ao poder punitivo arbitrário e cruel, pelo
à margem da história do direito penal. Daí que o princípio da legali-
qual o absolutismo havia se distinguido. As ideias iluministas, nessa or-
dade tem se manifestado menos como um princípio real de funciona-
dem de ideias, tomavam a utilidade ou a atribuição de um fim à pena, na
mento do que como uma instância ideológica de legitimação. Pois na
realidade tal princípio não corresponde, senão parcialmente e de ma- ~:
529Ver especialmente item 4 do Capítulo I, pp. 49-50.
neira contingente, ao funcionamento concreto do sistema penal. Isso é
S30Segundo uma compreensão bastante corrente, SENECA, que viveu no início da era
verdade não só quanto ao sistema penal em toda sua extensão - o que cristã, tomou de PROTÁGORAS uma concepção preventiva de pena até hoje tida por
,f exigiria incluir suas manifestações extralegais ou subterrâneas ~ mas moderna: nemo prndens punit qula peccalUm esl sed ne peccetur (nenhum ind,ividuo
.',I também quando se toma apenas a parte regida pela legalidade''" racional pune pelo pecado cometido, mas para que futuramente não mais peque) .
I, Nesse sentido, entre tantos outros, HASSEMER, WÍIÚred. Introdução aos fundamentos
j do Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p 369; também
I',\ CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da P(Jntl; fundamentos polfticos e aplicação Judi-
~1 528 B~TfA, Veçchie e nuove strategie ne/la legtltimaxtone de~diritto penale, p. 249. cial. Curitiba: lCPC/Lumen Juris, 2005, p. 4 .

•~
i.>
268 269
perspectiva de impor limites ao poder do Estado. Seria assim uma espécie var adiante seu projeto de poder. Segundo o que também revelam as
!< I~\:
de contra-poder, fundamentado na limitação que a lei representa. As coi- pesquisas de FOUCAULT,se durante os séculos XVI e XVII a teoria
sas parecem haver se modificado, também nesse ãmbito, quando a ki, jurídico-polítiça da soberania havia sido o grande instrumento da luta
li
em vez de limitar, se converte em autorização de punir. política e teóriéa contra os sistemas absolutistas de poder dos séculos
I ri"':
!>.;
!'~i XVI e XVIl,SJ4a partir do século XVIII, já definitivamente vencida esta
llli il
A partir do momento histórico em que a modernidade se torna
mais propriamente burguesa, a relação crime e pena se modifica, em-
bora a prisão já viesse se institucionalizando desde pelo menos o sécu-
lI,••••I
batalha, ocorre a assunção de uma "nova mecânica do poder" que alia,
à regra do direito, tanto os dispositivos disciplinares quanto uma nova
lo XVI. Até esse momento, a pena não era uma consequência necessá- racionalidade por parte do Estado. Tal tipo específico de racionalidade
,
'I,
'I'
,. ,
1,
ria do delito; segundo PIRES,se antes o crime tomava o culpado apto
a uma pena, no sentido de instituir uma condição, a partir da segunda' 'I'
,~"
• 'i.,.
constitui; no paradigma político da modernidade, o elemento não-,
normativo e de natureza econômica que se ocupa da tarefa de gover~
I! metade do século XVIII ele passa a constituir uma obrigação.53! Não
i~ no dos indivíduos, O desbloqueio desta lógica acompanha0 surgimen-
to de novas formas de relações econômicas, pelas quais se vai assimi-
havia o vínculo necessário, no sentido de que a exis~êncla do crime

j
i~põe a existência de pena.532 . . ,

Simultaneamente a essa 'ffiudànça no binômio crime-pena, pelo


~, lando que o p;'incípio econõmico que está por trás da dominação bur-
guesa, exige a separação do homem de seus instrumentos de trabalho.
i.li menos em termos históricos, assiste-se ao reaparecimento de uma ca- Isso sugere que, é quando fica claro que não é.a terra, mas o trabalho
11 tegoria, que segundo FOUCAULT,mergulha suas raízes na Antiguidade humano, a fonte fundamental de riqueza, se delimitou o objeto privi- ,
J1

II oriental, permaneceu na penumbra por aproximadamente dez séculos, legiado da dominação política da modernidade. Por isso, não foi por
1~ :;1

obra do acaso que o poder punitivo moderno, desde o início de sua


[I para ressurgir juntamente com a economia política no século XVIII,
,I
justamente quando o Estado se defronta com' o problema da popula- constituição, mas sobretudo quando aproxima-se o século XIX, se o-
,I. '1'1
ção, e principalmente a necessidade de sua gestão.'" cupou da disposição do homem sobre o seu tempo e sobre sua força /

O poder punitivo concentrado nas mãos do Estado deixou entre- de trabalho. A prisão, nesse contexto, existe menos como uma unida-
11
'.!
" ver seu caráter ilegítimo quando expressou que a retribuição da pena de produtora de efeitos imediatamente econõmicos do que de uma
,I,
,11' devia ser equivalente ao dano provocado pelo crime. Isso surge CO~ utilidade política fundamentada na submissão do trabalho humano ao
i'l maior nitidez quando o castigo implicado na pena abandona o corpo aparelho de produção capitalista.s"
do criminoso e investe na sua disposição de tempo e de liberdade. Tudo sugere a possibilidade de se associar, portanto, as teorias
1111 Isso parece ter ocorrido simultaneamente à percepção de que o prin- , preventivas com essa nova configuração da dominação política' mo-
~f cípio da soberania, baseado na força cogente do direito, oferece limi- derna, que juntamente com o pilar da soberania e com o da disciplina,
,I tações muito evidentes aos objetivos que a burguesia elegera para le~ inclui a gestão governamental, "que tem na população seu alvo princi-
pal e nos dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais. "sJ6De
il PIRES,' Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os diretlos humano..( forma que, para não se arriscarem demasia, a governamentalização do
I 531

Novos Estudos - CEBRAP.n' 68, mar/2004, pp. 39-60. exercício do poder por parte do Estado e a consolidação do utilitaris-
I
I
532 PIRES.A raciona/idade penal moderna, o público eos direitas humanos, observa que
é' apenas no século XVIU que, "no quadro da racionalidade penal moderna passa-se de
mo no discurso jurídico da pena exprimem coincidências.
No interior da política integr.l do Estado, impregnada da ideia de
fi uma cultura' da autorização para punir ilimitadamente a wna Cultura da obrigação de
punir limitadamente". Já BARArrA, Alessandro. Vecchie e nuove strategie nella legiltima-'.,
gestão. dos indivíduos, o poder' punitivo constitui o local privilegiado

1:1 zione deI dirllto penaJe, p. 249, obsetva que "a história da perta precede a história do

ri delito e continua a desenvolver-se, em boa parte, independentemente desta."


FOUCAULT, A govemamentalidade.ln:
Michel: Microftsica do poder. 1sa ed. RiÇ>de
5~ FOUCAULT," Microftsica do poder, p. 187.

I,,I
533
535 FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 205.
Janeiro: GraaI, 2003, pp. 277-293; também dele, "Omrws et singulalim": por uma critica
da "razão política". Novos Estudos CEBRAP,na 26, março de 1990, pp. 77-99. ", FOUCAULT, A governamentaUdade, p. 291.

I! ,270' 271
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para a manifestação dos elementos estranhos àquele normativo (da lei) }, BOAVENTURADE SOUSA SANTOS aponta que o direito foi cha-
sobre o qual o discurso oficial pretende fundar sua legitimidade. Nesse l mado a atuar como força gestora dos déficits e excessos produzidos
contexto também aparece, como elemento constitutivo da ordem jurí- t pela incapacidade estrutural do capitalismo em cumprir as promessas
dica, a autorizaçào para suspensão da regra da lei - aquilo que A- da modernidade. Se tal gestão reconstrutiva ficou a cargo da ciência,
GAMBEN chamou de estado de exceção - sem implicar sua derroga- ao direito passou a incumbir o papel de integração normativa tendente
ção.'" Essa particularidade, que é eminentemente burguesa porque a evitar eventuais oposições.'u Isso se deu a partir de quando os crité-
criação da tradição democrático-revolucionãria e não da absolutista,'''' rios científicos de eficiência se tornaram hegemõnicos. Daí que as teo-
como parece elementar, fez com que o sistema jurídico ocidental as- ;,..,.
rias jurídicas passam a ser avaliadas segundo sua capacidade de gestão
sumisse uma estrutura dupla, constituída por dois elementos heterogê- científica da sociedade.'"
neos, mas coordenados: um normativo e um anômico.539 lo
. Especit1camente no campo das t1nalidades da pena, todo esse fenô-
No campo das justificativas do poder punitivo, BARATI A aponta 1:. meno desencadeou, para utilizar conhecida terminologia habermasiana, a
que quando se intentou preencher de conteúdo a justificativa do poder colonização da racionalidade jurídica pela radonalidade sodológica, que
punitivo, o utilitarismo floresceu. A partir desse momento, quando se por sua vez emerge, no século XIX, como uma espécie de apêndice das
procurou dar o estatuto de cientificidade, mediante a intenção de atri- ciências naturais. Isso significou, por conta da reconhecida permeabilidade
buir um carãter instrumental é que se desenvolveram as teorias relati- do saber sodológico aos critérios cientít1cos jã aludidos - que com a mo-
vas ou utilitãrias da penas" As teorias utilitãrias justificam a pena pres- dernidade se transformaram em hegemônicos - a subsequente colonização
supondo que pena é prisão. Daí que suas justificativas dirijam-se me- da racionalidade referida a valores, típica do direito (Wertrationalitat) por
nos à pena em si do que à pena privativa de liberdade. Conforme jã se aquela que se ocupa apenas dos fU1S, tipicamente cientítlca (Zweckratio-.
mencionou, as ideologias da prevenção especial sào as que conhece- nalitat) - segundo a paradigmãtica dicotomia legada por WEBER."" A mo-
ram maior difusão e ascendência sobre os discursos jurídicos, desde demidade do capitalismo avançado também foi responsãvelpela conversão
seu surgimenro, quando dos primeiros sinais de crise manifestados í da ciência na principal força produtiva. A fase pós-industrial de desenvol-
pelo estado liberal. A ressocialização e a neutralização sempre se e- .\\
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~.
vimento do modo de produção capitalista veio confirmar definitivamente
nunciaram como justificativas para a prisão, mas pretendem ser acata- ~' essa premissa. Esse fenômeno foi apontado, tomando-se por objeto o du-ei"
das como justificativas da pena. Se a prevenção geral não parte tão ;':$' to em geral., tanto por BOAVENTURADE SOUSA SANTOS quanto por
abertamente desse patamar, tampouco recusa a aplicação da prisão ou i"i:
HABERMAS"';cada um a seu modo. Segundo essa compreensão, opera-se
mesmo lhe nega legitimidade. uma redução - encabeçada pelo mecanismo de mercado, descoberto e
A crise do modelo produtivo do capitalismo concorrencial talvez analisado pela economia política - do direito ao papel complementar dessa
seja o evento que tornou mais clara, pelo menos no campo das teorias força gestora dos déficits e excessos produzidos pela incapacidade estrutu.
da pena, as limitações que o paradigma da soberania oferecia para o lii'.' ral do capitalismo em cumprir suas promessas. Essa redução é correlata a
controle social pretendido. Ou seja, nesse momento a armadura legal .~ uma outra, frequentemente mendonada pela teoria jutídica, que se traduz
na qual o poder essava contido revelou-se insuficiente para atender os na redução sociológica do direito, com perda de importância para os valo-
desígnios do poder. Para isso a ciência foi convocada. Sem a força
coercitiva do direito, porém, sua realização não seria factível.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente; contra o desperd(cto
541

da experiência. 30<1. São Paulo, COltez, ZOOI, p 52.


'" SOUSA SANTOS, Oh. cilada, p. 51.
537 AGAMBEN, Giorgio. Estado de excecão. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, pp. 18-19.
SoU WEBER, Max. Economia e sociedade. vI. 31 ed. Brasília: UnB, 1994, p. 15.
'" AGAMBEN, Oh. citada, p. 16.
5« HABERMAS, Jurgen. Diretro e democracia.. entre [actlcidade e validade. v I. 2a ed.
'" AGAMBEN, Oh. citada, p. 130. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 67 e ss. do mesmo Temia de la acción
S40 BARA'ITA, Veccbfe e nuove straregie nella legittimarione dei dirltto penale, p. 254. comunicativa-I. Madrid: Taucus, 1999, pp. 316 e ss.

272 273
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res propriamente normativos, sejam eles internos ou superiores ao plano


do direito positivo.'''
Segundo essa perspectiva, a racionalidade prática-material ã qual o
direito natural nutria simpatia, por exemplo, se converte numa técnica,
num modelo operatório de engenharia social, na qual o fator determi- .
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cional e obcecado pelo cumprimento de fins, tal como a moderna pre-
venção geral positiva, revela sua tendência incorrigível para maximiza-
ção de seus resultados.'"
. Essas considerações acorrem em reforço ã escolha do título desta
J obra. O que distingue as teorias utilitãrias da pena é a racionalidade
nante não é a validade axiológica do direito, mas a decisão ótima em
dadas condições. Assim, se a prevenção especial visava a transformação t que as anima, que não parece ser outra, senão aquela da qual o poder
do Estado se deu conta necessitar, quando se defrontou com o pro-
do homem numa peça da engrenagem produtiva necessãria ã reprodu- 1 blema de gestão das populações. Essa lógica é a mesma que define os
~
ção do capital, o retomo da prevenção geral positiva responde ã radical
transformação do modelo de acumulação legado pela tecnologia da ..
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objetivos da economia política e é contemporânea à sua ascensão co.
mo fOlma principal de saber e instrumento primordial de resolução de
informação, que pensa poder dispensar a força de trabalho humana.
Para além da produção, a funcionalidade das teorias preventivas
'I problemas sociais e econômicos.548 De modo que a crítica das teorias

da pena também se revela ante a necessidade do reforço da ordem, l- preventivas da pena passa pela crítica da economia política; e sua he-
gemonia, no campo dos discursos jurídicos, corresponde ao momento
para tanto relegitimando e autorizando a utilização da energia represa-
da nas estruturas estatais. Para isso, enquanto a prevenção geral, assim i• em que o Estado, depois de ter se dado conta da necessidade de criar
um mecanismo que frequentemente reforçasse seu poder, se atinou
como os funcionalismos de todos os matizes, servem para reatlrmar a ,t para a importância de se gerir os detentores de sua força de trabalho,
ideologia e os valores que correspondem aos interesses da classe de- ! tànto para a produção quanto para a realização do valor na esfera da
tentora do capital, o sistema penal continua reproduzindo o material
circulação de mercadorias, enquanto grandeza fundamental para a
de que ele próprio se alimenta: o crime. E a prisão persiste como pena
essencial do modo de produção capitalista. Os fins atribuídos são tan-
tos que o objetivo parece ser sempre buscar novos para se manter I' reprodução capitalista.

com os mesmos meios.


Ante a falência do modelo produtivo fordista e a assunção da pri-
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são como depósito do refugo da globalização, parece certo que os r:tI
princípios normativos que de alguma forma limitavam a expansão do
poder punitivo tendam a atrofiar-se.'" Para isso um sistema penal fun-
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545 O rechaço ao reducionismo sociológico, porém, não traduz que o direito possa ser
concebido alheio ao processo social de produção -de sentido que lhe constitui, en. i(
quanto produto de uma prática social discursiva que é mais do que palavras, pois
inclui comportamentos, simbolos, conhecimentos. Assim, CARCaVA, Carlos Maria.
"Los jueces en la encrucijada: entr~el decisionismo y la hermeneutica controlada". ln:
Derecbo, polrtica y magisn'alura. Buenos Aires: Biblos" 1996. 'l1i
~C;A respeito do incremento contemporâneo do processo de crirninalizaçãopela racionali. 547Advertindo quanto a este risco, apesar de se assumir partidária das teorias preventi.
dade econômica, v~ MIRANDACOlJIlNHO, Jacinto Nelson de. O papel do pen.'\amemo vas, inclusive a de corte funcionalista, ver RODRIGUES,Anabela. A derenninaçâo da
economJcista no direito criminal de baje. Revista da Faculdade de Direito da UFPR.v, 31, pena prilJQtiva de Iibe,dade. Coimbra: Coimbra editora, 1995, pp. 306 e ss.
1999, pp. 37-49; enfatizando da emergência de uma nova racionalidade puniliva, partieu- 54S Nesse sentido, ver FOUcÁillT, Agovernamentalidade, p. 291, além de AGAMBEN,
lannente no âmbito da criminologia atuarial- que do ponto de vista aqui sustentado pouco Entrevista a Gianlucca Sacro na Rivisla on/ine, Scuo/a superiore deJ/'fxonomia e del/e .
tem de inovadora, RIVERABEIRAS,lõaki. State Jonn, Iabour matkel and penal SJStem- lhe jinanze, ano I, nO 6n, Giugno-Luglio 2004. Disponível em: http://www.rivi$la.ssef.it
newpunitiva rationalily in conte:x1.Punishrnent & Society. v 7, pp. 167-182. .
Acesso em: 6 mar. 2007.
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274 275

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