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A TEOLOGIA

Vimos já que tanto a investigação racional como a mística apoiada e baseada na graça se
distinguem consoante partam do interior ou do exterior do homem. A demonstração racional
da existência de Deus, como momento necessário da investigação filosófica, divide-se
também consoante parta da consideração do homem ou da consideração das coisas
exteriores. O espírito humano reconhece-se a si próprio como uma realidade existente e com
este reconhecimento distingue-se dos corpos e de tudo o que conhece. Mas enquanto se
percebe existente, reconhece também que nem sempre existiu, que o seu ser teve um
princípio e que não é ele próprio o princípio do seu ser. Por isso é levado a reconhecer uma
causa criadora que seja o fundamento da sua existência. E como não pode pensar que esta
causa criadora tenha sido por sua vez criada sem se integrar num processo ad infinitum deve
admitir que tal causa subsiste em si e que o ser da mesma não tenha princípio, mas seja
eternamente real (De sacram., I, 3, 6-9). À mesma conclusão se chegará pela consideração
das coisas externas. Todas as coisas que têm nascimento e morte devem ter uma origem e
um criador. Tudo o que é mutável nem sempre existiu e por isso deve ter tido um princípio.
Deste modo as coisas externas confirmam o que a alma encontra em si; e a natureza revela
o seu autor tal como o revela a própria alma (Ib., I, 3, 10).

Tal como a existência de Deus, também a Trindade pode ser demonstrada através das duas
vias, interna e externa. No homem de palavra interior revela-se na palavra exterior; assim
em Deus a palavra interior, que é a sua eterna Sapiência, revela-se na palavra externa, que é
o mundo criado. No nosso espírito, a razão, a sabedoria que nasce da razão, e o amor, que
procede de ambas são uma única realidade; assim em Deus espírito, sapiência e amor
constituem uma única substância. Mas, enquanto que no nosso espírito a ; sabedoria e o
amor não têm personalidade porque são puros acidentes ou afeições do espírito, em Deus a
Sapiência, e o Amor são o próprio ser de Deus, são o que o próprio Deus é, por conseguinte,
pessoas. Assim, em Deus há três pessoas numa só natureza, enquanto que no homem há
uma só pessoa, a qual, com as diversas qualidades da sua vida interior, corresponde à
Trindade Divina, sem no entanto a reproduzir adequadamente (Ib., I, 3, 25). As coisas
exteriores reproduzem também a divindade. A grandeza do mundo corresponde ao poder
divino, a sua beleza, à sabedoria, o seu finalismo e a sua conformidade às necessidades do
homem, à bondade (Ib., I, 3, 28).

Deus criou o mundo não apenas secundum se, mas também propter se. Secundum se, ou
seja: em conformidade consigo próprio, porque não tomou do exterior ou que foi obra sua;
propter se, ou seja: por sua própria causa, porque não recebeu de outro a causa da sua ação
criadora (Ib., I, 2, 3). Hugo de S. Victor distingue, a propósito da criação, as coisas que são
apenas causa, das que são apenas efeito, e as que são ao mesmo tempo causa e efeito. O
que é apenas causa e não é efeito é Deus, como causa suprema. No extremo oposto está
aquilo que é apenas efeito e não é causa, a matéria, de que são compostas as coisas criadas.
Entre estes dois extremos estão e movem-se todas as outras coisas, que estão entre si numa
relação de causa e efeito e assim vão desde a causa primordial até à matéria. Deus criou em
primeiro lugar a matéria informe; mas tal matéria não era informe a ponto de ser
absolutamente privada de forma, porque o que é privado de forma é privado de existência;
era informe apenas no sentido de que era confusa e mesclada (forma confusionis), privada
de ordem e de disposição (forma dispositionis) que em seguida teve de Deus (Ib., I, 1, 4).

Em polêmica com Abelardo, que tinha afirmado que Deus não pode fazer coisa diferente
daquilo que faz, nem aquilo que faz pode fazê-lo melhor do que fez, Hugo de S. Victor
sustenta que Deus teria também podido criar um mundo melhor. Com efeito, a razão porque
Deus não pôde criar um mundo melhor pode ser devida ao fato de ao mundo não faltar
qualquer possível perfeição ou ao fato de o mesmo não ser susceptível de uma maior
perfeição. Mas no primeiro caso, o mundo seria semelhante ao Criador e assim o Criador
seria coagido aos limites do finito ou então o mundo elevado para além desses limites; e
tanto uma hipótese como a outra são impossíveis. Se se pode afirmar a incapacidade do
mundo de assumir uma perfeição maior, isto é já uma prova de que o mundo não é o melhor
nem o mais perfeito, porque esta incapacidade é, por si, defeito e imperfeição. Na verdade,
apenas Deus é de tal modo perfeito que não pode ser mais perfeito. O mundo criado não
participa desta perfeição absoluta e por isso Deus teria podido criá-lo ainda melhor do que
realmente o criou. Ele não pode fazer apenas o que é impossível, uma vez que «não poder o
impossível não é não poder» (Ib" I, 2, 22).

A criação não é uma ação necessária de Deus, mas uma livre manifestação da sua bondade.
A decisão e a vontade de criar os homens estão desde a eternidade em Deus, mas a própria
criação não é eterna. Deus quis sempre que o mundo existisse, mas não quis que ele fosse
eterno: o querer criador de Deus é eterno, e o que é criado não é eterno (I, 2, 10). Na criação
participaram não só o poder e a bondade de Deus, como também a sua sabedoria. A
sabedoria divina é ciência, presciência, disposição predestinação, providência: ciência das
coisas existentes, presciência das coisas futuras, disposições das coisas a fazer,
predestinação dos homens para a salvação, providência daqueles que estão sujeitos ao
querer divino. Desde a eternidade que todas as coisas criadas existiam no conhecimento
divino; mas isso não as torna necessárias. As coisas não chegam necessariamente ao ser
porque foram pensadas por Deus. Podem também não se tornarem reais e neste caso as
ideias divinas não são causas das coisas. Só a vontade divina pode transformar as ideias
divinas em realidade criada (Ib., 2, 16-18).

À vontade divina se referem todas as determinações de valor. Deus não quis certa coisa
apenas porque é bom e justo, mas tudo o que é bom e justo é-o porque Deus o quis. Com
efeito, o ser justo é propriedade essencial do querer divino. «Quando se pergunta porque é
que é justo o que é justo é preciso responder: porque é conforme com a vontade divina, que
é justa. E quando se pergunta porque é que a vontade de Deus é justa, é preciso responder:
não há causa da primeira causa e ela é por si o que é» (Ib. I, 4, 1).

Se a vontade de Deus é o próprio bem, a presença do mal no mundo deve ser exigida pela
bondade conjunta do mundo. Deus fez o bem e permitiu que houvesse o mal, apesar de não
ser o seu autor. E apesar de o mal ser e continuar a ser como tal, como tal é e continua a ser
o bem, e é por bem que existe o bem e o mal. Com efeito, o bem deriva não apenas do bem,
mas também do mal; através da oposição entre o bem e o mal resulta mais evidente a
beleza e a ordem conjunta do mundo. Por isso é um bem existir o mal e esse é o motivo pelo
qual Deus permitiu que o mal existisse {Ibid., I, 4, 5-6)

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