You are on page 1of 11

Marcus Vinicius da Cunha

Ciência e educação na década de 1950:


uma reflexão com a metáfora percurso*

Marcus Vinicius da Cunha


Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Introdução no âmbito da política e da administração pública,1 o


presente trabalho visa a situar a relevância de tais ini-
A década de 1950 representou grande avanço na ciativas governamentais para o surgimento de um
pesquisa científica relacionada à área de educação no debate quanto ao sentido da pesquisa científica no
Brasil, fato que se deve, em grande parte, à institui- campo da educação. Trata-se de mostrar que a cria-
ção do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais ção do CBPE permitiu aflorar significativa discussão
(CBPE) e de seus congêneres Centros Regionais, ins- quanto ao conceito de pesquisa educacional e à defi-
talados em São Paulo, Recife, Salvador, Belo Hori- nição do papel da ciência – especialmente no caso
zonte e Porto Alegre. Criado em 1955, o CBPE era das ciências sociais – na investigação dos problemas
subordinado ao Instituto Nacional de Estudos Peda- da escola brasileira e na busca de suas soluções.
gógicos (INEP), órgão do Ministério da Educação e O tema é inspirado em Libânia Xavier (1999)
Cultura. Desde 1952, o INEP foi dirigido por Anísio que, ao analisar o CBPE, destaca dois posicionamentos
Teixeira, que foi também o primeiro diretor do CBPE. relativos aos vínculos possíveis entre ciência e edu-
Sem desconsiderar os projetos e as atividades de cação, representados pelas figuras de Anísio Teixeira
pesquisa efetivamente desenvolvidas pelo CBPE e e Florestan Fernandes. As elaborações teóricas de
pelos Centros Regionais, bem como a sua inserção Teixeira sobre o tema datam dos primórdios do mo-
vimento escolanovista, uma vez que no ideário da
Escola Nova sempre constou marcada ênfase na ne-
* Este trabalho resulta de pesquisa subsidiada pelo CNPq. cessidade de modernizar as práticas pedagógicas me-
Trata-se de uma versão ampliada, e com outro subtítulo, da comu-
nicação apresentada pelo autor no 25o International Standing
1
Conference for History of Education (ISCHE), realizado em São Ver Cunha (1991), Brandão e Mendonça (1997), Xavier
Paulo, em julho de 2003. (1999) e Ferreira (2001).

116 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25


Ciência e educação na década de 1950

diante a incorporação de conhecimentos e métodos educação nova” e “a sua superação pela nova gera-
oriundos da esfera científica. Dada a urgência assu- ção de cientistas sociais representada por Darcy Ri-
mida pelos problemas da educação no pós-guerra, e beiro, no Rio de Janeiro, e por Florestan Fernandes,
considerando a noção de planejamento elaborada e em São Paulo” (idem, p. 262).
difundida internacionalmente pela Organização das Seguindo essas indicações, tomaremos Anísio
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cul- Teixeira e Florestan Fernandes como representantes
tura (UNESCO), são emblemáticas as palavras de de duas concepções quanto aos vínculos da pesquisa
Teixeira (1952, p. 79) ao assumir a direção do Insti- científica com a educação, as quais, se não eram pro-
tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais priamente opostas, pelo menos revelam a existência
(INEP): sua intenção era incentivar investigações cien- de duas vertentes de pensamento. Para analisá-las,
tíficas sobre a realidade educacional brasileira, lan- tomaremos a sugestão de Tarso Mazzotti (2002): a
çando assim as “bases de nossa ciência da educa- análise retórica, especialmente a metáfora percurso.
ção”. Os centros de pesquisas significavam um passo
decisivo no processo de renovação educacional de- A metáfora percurso
sencadeado nos anos de 1930. Para renovar a educa-
ção, era preciso, antes de tudo, olhar os fatos escola- Metáfora é o recurso da língua que consiste em
res por intermédio da ciência, o que possibilitaria atribuir predicados a algo que não se conhece, com
planejar racionalmente as ações político-administra- base em algo já conhecido. Trata-se de uma conden-
tivas voltadas à superação dos entraves nessa área. sação de qualidades atribuídas a algum objeto, produ-
A intervenção de Florestan Fernandes deu-se por zida por meio de analogia ou mediante o processo de
ocasião do Simpósio sobre Problemas Educacionais “acomodar algo novo em esquemas ou estruturas
Brasileiros, promovido em 1959 pelo Centro Regio- cognitivas anteriores” (Mazzotti & Oliveira, 2000,
nal de Pesquisas Educacionais de São Paulo. No even- p. 14). Na expressão “jardim-de-infância” cunhada
to, Fernandes apresentou o texto A ciência aplicada e por Froebel, por exemplo, podemos ver a metáfora
a educação como fatores de mudança cultural provo- da semeadura, pela qual a criança, o ser humano e a
cada,2 o qual, segundo Xavier (1999, p. 188), eviden- educação assumem representações que se identificam
ciou “a visão de um sociólogo da USP sobre os riscos com a atividade de cultivo. A utilidade dessa metáfo-
de desvirtuação do projeto de associar educadores e ra, bem como de outras no campo da educação, é
cientistas sociais”, indicando “os limites e possibili- que ela serve à definição de objetivos e ao desenca-
dades da ação integrada” entre esses profissionais “no deamento de ações pedagógicas (idem, p. 33).
planejamento racional das políticas educacionais” Analisar as metáforas contidas nos discursos edu-
(idem, p. 192). cacionais é uma maneira de desvendar os valores e os
A autora considera o Centro Brasileiro e os Cen- meios pelos quais são formalizadas as proposições
tros Regionais – e, por extensão, o simpósio paulista – que se destinam a preservar ou alterar práticas peda-
iniciativas que possibilitaram o desenho de um “campo gógicas vigentes, o que, conseqüentemente, permite
de consensos e de contradições” que possibilita deli- a crítica de suas intenções. Na análise das metáforas,
mitar a “contribuição da geração dos pioneiros da o que está em causa não é propriamente o quanto de
verdade cada uma delas carrega, mas sim a sua
efetividade perante o auditório em que são pronun-
2
Publicado primeiramente em Ensaios de sociologia geral ciadas. Sendo um instrumento do discurso retórico,
e aplicada (Fernandes, 1966). Analisarei aqui a publicação de uma metáfora será efetiva na medida em que os ou-
Estudos e Documentos, da Faculdade de Educação da USP, que vintes possuírem disposições favoráveis a ela. É as-
dedicou duas edições ao referido simpósio. sim porque, como diz Aristóteles (2000, p. 3), já que

Revista Brasileira de Educação 117


Marcus Vinicius da Cunha

os argumentos retóricos destinam-se a julgamentos, Procuraremos mostrar a seguir que os posicio-


impõe-se que o orador coloque a si mesmo em deter- namentos de Anísio Teixeira, juntamente com outros
minada disposição perante seus juízes, ao mesmo tem- educadores brasileiros vinculados ao CBPE e inspi-
po em que deve colocá-los em disposições que lhe rados nas idéias de John Dewey, podem ser descritos
sejam favoráveis. pela metáfora percurso indeterminado, ao passo que
A metáfora percurso é uma noção-chave das teo- as idéias apresentadas por Florestan Fernandes, ao lado
rias pedagógicas, uma vez que todas as proposições de outros participantes do Simpósio de 1959, podem
dessa área referem-se a maneiras de levar o educando ser posicionadas em torno da metáfora percurso deter-
de um estado de menor educação para outro, conside- minado. A distinção entre eles está no modo como en-
rado superior ao primeiro por ser provido de mais xergam as relações entre a ciência e a educação.
educação (Mazzotti, 2002, p. 128). Daí o universo
vocabular dos educadores incorporar palavras que Anísio Teixeira e a educação como arte
designam alterações de estado, como currículo, cur-
so, desenvolvimento e processo, entre outras. Cada Em seu discurso de posse no INEP, Teixeira
uma dessas palavras tem conotações particulares nas (1952, p. 79) é bastante cauteloso ao expressar suas
teorias que as originam, mas podem ser igualmente convicções quanto ao estabelecimento das “bases de
subsumidas à metáfora percurso. nossa ciência da educação”. Aplicaremos, diz ele,
Percurso, por sua vez, possui dois sentidos “con- “métodos objetivos e, quando possível, experimen-
correntes e antagônicos” (idem, p. 127): o percurso tais, mas tudo conduziremos com o sentimento pro-
“determinado e determinável”, passível de ser previa- fundo do caráter provisório do conhecimento”, pois a
mente estabelecido e submetido a controles à medida ciência não fornece “receitas para as soluções dos
que se realiza, e o percurso que não se submete a plane- nossos problemas, mas o itinerário de um caminho
jamento, justamente por ser imprevisível, incerto, que penoso e difícil, com idas e voltas, ensaios e revisões,
só se dá a conhecer no momento mesmo em que acon- em constante reconstrução”.
tece. Nessa última acepção, “A contingência rege o A palavra itinerário explicita a filiação do dis-
percurso que se faz em seu desenrolar” (idem, p. 128). curso de Teixeira à metáfora percurso; mais precisa-
A metáfora percurso pode vir associada à metá- mente à metáfora percurso indeterminado, pois não
fora organismo ou à metáfora piquenique (idem, descreve o caminho oferecido pela ciência como ple-
p. 129), sendo que a primeira se identifica com a me- no de certezas e estratégias infalíveis, linear e previa-
táfora percurso determinado, pela qual os predicados mente determinável. Ao contrário, vê as alternativas
atribuídos à educação conduzem à idéia de estrutura da ciência dentro de um universo instável, no qual o
organizada, organismo vivo em que as partes se coor- conhecimento é provisório. No pensamento de Aní-
denam sob o comando de determinados condicionan- sio Teixeira, predomina uma sensível consideração
tes – no caso da educação, instituições ou saberes es- pelo elemento humano, o que o leva a atribuir um
pecializados. A metáfora piquenique, por sua vez, caráter de imprevisibilidade à educação e, conseqüen-
integra a metáfora percurso indeterminado, represen- temente, a ver como limitadas as possibilidades de a
tando uma dinâmica guiada pela liberdade dos agen- ciência atuar como tutora dos assuntos pedagógicos.
tes pedagógicos, submetidos apenas às contingências Em carta de 1940 a Fernando de Azevedo,
do processo.3 Teixeira admite que, “Se houver uma ciência da educa-
ção”, isto aumentará nosso “poder de modificar a edu-
3
Mazzotti associa a metáfora organismo a Platão e a metá- cação”, uma vez que a descoberta das “leis fundamen-
fora piquenique (tradução de Bárbara Cassin para homonóia – tais” do mundo capacita o homem a transformar o
consenso social) a Aristóteles. próprio mundo. Adiciona, porém: “Mas a transforma-

118 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25


Ciência e educação na década de 1950

ção, o sentido da transformação obedeceu ao arbítrio deve-se ao preceito de que só à filosofia cabe deter-
humano. Ora, a educação é sobretudo um sentido. E minar os fins das atividades humanas, ao passo que à
este sentido é arbitrário ou imposto pelas institui- ciência resta cuidar dos aspectos práticos dessas mes-
ções?” (apud Vidal, 2000, p. 42-43, grifos do original). mas atividades. Essa visão dicotomizada gera a idéia
A palavra sentido integra Teixeira mais uma vez de uma ciência da educação desprovida de filosofia,
à metáfora percurso. E, igualmente, à metáfora per- em que os conhecimentos filosóficos são tidos como
curso indeterminado, o que se conclui pela menção supremos, verdades imutáveis, transcendentais. Na
às contingências impostas pelo arbítrio humano. Na visão de Anísio Teixeira, porém, a proximidade entre
mesma carta, ele diz ainda: “a educação é, sobretudo, filosofia e ciência torna-se viável porque a primeira é
uma arte que progride como progride a música”. Esse vista como um campo de saberes estreitamente vin-
posicionamento o impede de compartilhar o ponto de culados à realidade do mundo, e o mundo, por sua
vista de Azevedo quanto à sociologia educacional,4 vez, é percebido em estado de permanente mudança.
pois embora concorde que “o filósofo da educação Essas idéias inviabilizam a elaboração de verdades
precisa de trabalhar cada vez mais sobre os dados da distanciadas da experiência humana concreta.
ciência”, não crê que exista uma ciência da educa- Quanto às finalidades educacionais, estas não
ção, mas apenas “uma ciência do fenômeno social e podem ser definidas nem por uma filosofia, nem por
uma ciência do fenômeno psíquico e uma, talvez, do uma ciência, mas devem resultar do íntimo intercâm-
psicossocial” (idem, p. 43). bio entre ambas: uma filosofia que seja científica, uma
Se aderisse à idéia de uma ciência da educação – ciência que alimente a filosofia – e tal cooperação só
uma sociologia da educação, como preconizava pode ser frutífera no terreno mesmo da prática peda-
Azevedo –, Anísio Teixeira assumiria a metáfora per- gógica. Anísio Teixeira diz, então, que a pesquisa edu-
curso determinado, uma vez que admitiria ser a educa- cacional, como a projetada para os centros de pesqui-
ção passível de norteamento. Ao contrário disso, prefe- sa do INEP, deve realizar justamente essa meta:
re a metáfora arte para descrever a educação. Arte,
para ele, não se opõe radicalmente a ciência, desde que O sociólogo, o antropólogo e o psicólogo social não
esta não seja vista como conjunto de conhecimentos são sociólogos-educacionais, ou antropólogos-educacionais,
capazes de definir as finalidades educacionais. ou psicólogos-educacionais, mas sociólogos, antropólogos
O problema das ciências da educação, vistas e psicólogos estudando problemas de sua especialidade,
como ciências capazes de tutelar a prática pedagógi- embora originários das “práticas educacionais”.
ca, está no afastamento entre filosofia e ciência. Aní- Os educadores [...] não são, repitamos, cientistas, mas,
sio Teixeira esclarece esse tema no texto Ciência e artistas, profissionais, práticos [...] exercendo, em métodos
arte de educar, quando diz que “pode parecer e pare- e técnicas tão científicas quanto possível, a sua grande arte,
ce que ciência e filosofia se opõem e os conhecimen- o seu grande ministério. (Teixeira, 1957, p. 17)
tos serão tanto mais científicos quanto menos filosó-
ficos”, porém, a realidade é que “filosofia e ciência John Dewey e a teoria quântica5
são dois pólos do conhecimento humano”, sendo que
entre ambos deve existir um “comércio permanente”, Na década de 1950, os periódicos do INEP e do
no qual “a filosofia nutre permanentemente a ciência CBPE – Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos
e a ciência nutre a filosofia” (Teixeira, 1957, p. 15).
A concepção que separa a filosofia da ciência 5
Especialidade da física que se ocupa de fenômenos e obje-
tos em escala atômica ou subatômica. A palavra quântica vem de
4
O comentário vem a propósito do livro Sociologia educa- Planck, para quem a luz não se propaga em fluxo contínuo, mas
cional, de Fernando de Azevedo (São Paulo: Melhoramentos, s/d.). na forma de “pacotes” – quanta.

Revista Brasileira de Educação 119


Marcus Vinicius da Cunha

e Educação e Ciências Sociais, respectivamente – pu- põe a existência de uma armadura imutável, dentro
blicaram artigos com posicionamentos semelhantes da qual todos os fenômenos ocorrem. Como repre-
ao de Anísio Teixeira, particularmente quanto à colo- sentação terrena do ser último das coisas, transmite a
cação da idéia de “mundo em movimento” como eixo idéia de um tempo e um espaço vazios, nos quais as
de suas reflexões. Conforme já analisamos anterior- substâncias particulares são invariáveis, tornando-se
mente (Cunha, 2001), autores como Jayme Abreu, passíveis de rigoroso e preciso cálculo. Na física de
João Roberto Moreira e Newton Sucupira, além do Newton, todos os fenômenos são matematicamente
próprio Teixeira, repercutiram a idéia de que não há previsíveis, posto que o universo é formado por pon-
valores a priori capazes de indicar os princípios da tos geométricos perfeitamente delineados.
educação, o que se explica pelo estado de permanen- A concepção de uma esfera espaço-tempo
te alteração a que estão submetidos todos os compo- preexistente gerou o problema central da filosofia
nentes materiais e imateriais da existência humana. moderna, a relação sujeito–objeto (idem, p. 105-106).
Tais discussões trazem a marca das influências do As qualidades sensíveis dos objetos são vistas como
pragmatismo de John Dewey no ideário educacional independentes do observador, o que desencadeia a
brasileiro e posicionam os conceitos e as práticas do necessidade de determinar as possibilidades e os meios
campo pedagógico na esfera da metáfora percurso in- do conhecimento. No livro Reconstrução em filoso-
determinado. De fato, Dewey talvez seja o filósofo da fia, de 1920, Dewey diz que a discussão filosófica, ao
educação que melhor incorpora essa metáfora. Em sua se sustentar “na suposição de um espírito meramente
obra A busca da certeza, de 1929, ele esclarece que contemplativo, por um lado, e, por outro lado, na hi-
seus pressupostos encontram respaldo nos recentes pótese de um objeto estranho e remoto que deve ser
desenvolvimentos da física, particularmente da mecâ- contemplado e observado”, transforma o ato de co-
nica quântica, especialidade que introduziu no pensa- nhecer em uma maneira de nos apropriarmos de ob-
mento científico, por meio de Heisenberg e outros, o jetos já existentes, o que aprisiona a filosofia nos
“princípio da indeterminação” (Dewey, 1952, p. 176). “enigmas epistemológicos que atualmente a compli-
A relevância desse princípio consiste na supera- cam” (Dewey, 1959, p. 130).
ção de certos postulados da teoria newtoniana, segun- Ao supor a existência de objetos cuja existência
do a qual é possível determinar precisamente a loca- antecede o ato mesmo de conhecer, o preceito epis-
lização e a velocidade de um corpo e, assim, predizer temológico falseia o objetivo da pesquisa científica.
a direção de seu deslocamento posterior. A suposição Para Dewey, a investigação não deve estar “antecipa-
de Newton baseia-se na existência de partículas imu- damente empenhada em chegar a algum resultado es-
táveis, eternas, substâncias últimas que interagem pecial”, pois se é correto dizer que “todo conheci-
entre si sem alterações de qualquer espécie. Para mento tem um fim além de si mesmo”, isto não
Dewey, essa teoria veio satisfazer a busca de garan- significa afirmar que “um ato de conhecer tem um
tias para a existência humana e o conhecimento das fim peculiar, ao qual de antemão se obriga a chegar”
coisas naturais pelo homem, traduzindo a crença em (idem, p. 147). Dewey explicita, então, uma de suas
um Deus criador de elementos sólidos, indivisíveis e teses fundamentais sobre a ciência e os construtos
duráveis, inatingíveis pela mudança; enfim, substân- teóricos que a compõem: “noções, teorias, sistemas,
cias ou essências – seguindo a tradição da filosofia por elaborados e autoconscientes que sejam, devem
grega e sua versão medieval – sobre as quais é possí- ser encarados apenas como hipóteses, aceitas sim-
vel afirmar certezas também fixas e imutáveis (idem, plesmente como bases de ação que os comprove, e
p. 103-104). nunca como algo de último e final” (idem, p. 146).
O principal equívoco apontado por Dewey (idem, Em A busca da certeza, Dewey incorpora um sig-
p. 124-125) na formulação newtoniana é que ela su- nificativo avanço às suas reflexões, pois no decorrer

120 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25


Ciência e educação na década de 1950

dos anos de 1920, incrementa-se o debate no campo mesmos”. A teoria quântica postula que “aquilo que
da física sobre os conceitos científicos advindos de observamos não é a Natureza em si mas, sim, a Natu-
Newton. Na verdade, o desmoronamento do universo reza exposta ao nosso método de questionar” (idem,
newtoniano já vinha ocorrendo desde o início do sé- p. 85). O que é descrito pelo observador não é um
culo XX com as teorias sobre a relatividade restrita evento, simplesmente, mas uma situação complexa
de Einstein, de 1905-1906, e a da relatividade geral, que envolve o evento, o observador e o instrumento
de 1916. Dewey (1952, p. 127) concorda que as pro- pelo qual se faz a observação.
posições einsteinianas eliminam a idéia de espaço e Dewey (idem, p. 179) concorda com essa tese, di-
tempo como entidades absolutas e independentes e zendo que os avanços da física trazem à filosofia a opor-
mostram que os enunciados da física designam rela- tunidade de superar a velha teoria especular do conhe-
ções entre eventos e não propriedades intrínsecas de cimento, uma vez que o conhecer passa a ser entendido
objetos – o que contraria a metafísica newtoniana.6 como um gênero de interação que ocorre no mundo. A
A agitação conceitual na área da física culminou filosofia tem a oportunidade de abandonar a tradicio-
em 1927, com a chamada “interpretação de Copenha- nal ilusão de tentar encontrar certezas baseadas em ver-
gue” sobre os postulados da teoria quântica: o que se dades eternas e, em troca disso, pode dispor-se a bus-
deduz da observação de um evento atômico só pode car o aprimoramento dos meios de controle ativo das
ser enunciado em termos probabilísticos, fato que se transformações sofridas pelos fenômenos. Ao invés da
deve, em parte, ao largo componente de incerteza ine- aplicação de leis supostamente imutáveis, Dewey (idem,
rente ao nosso conhecimento sobre os eventos obser- p. 181) preconiza a elaboração de fórmulas descritivas
vados – “nosso conhecimento incompleto do mun- de relações entre eventos – fórmulas que, em sentido
do” (Heisenberg, 1999, p. 80). Segundo Werner preditivo, devem ser consideradas como meramente
Heisenberg (idem, p. 75), “não podemos objetivar probabilísticas, evidentemente.
completamente o resultado de uma observação expe- Tais reflexões de Dewey, repercutidas por Anísio
rimental, e não temos como descrever o que ‘aconte- Teixeira, indicam que as propostas de renovação edu-
ce’ entre essa observação e a seguinte”. Todos os enun- cacional descrevem uma trajetória incerta. Se vale afir-
ciados da física, portanto, contêm uma demarcação mar que a incorporação das ciências ao campo peda-
estritamente probabilística. gógico auxilia na superação dos problemas da educação,
Ao comentar tais princípios, Dewey (1952, tornando-a mais adequada aos tempos modernos, é pre-
p. 176-177) destaca que a filosofia mecanicista da na- ciso admitir também que não há nenhuma perspectiva
tureza supõe um esquema fixo integrando passado e de as formulações científicas determinarem um itine-
futuro, de maneira que, se pudermos determinar pre- rário previamente planejado. O máximo que se pode
cisamente, no tempo e no espaço, as características conceber, como diz Teixeira, é que a associação de
de um evento já ocorrido, poderemos predizer o seu várias áreas científicas auxilie na definição de um per-
desdobramento posterior. Os novos desenvolvimen- curso em constante reconstrução, nos limites indefini-
tos da física lançam por terra essa pretensão, junta- dos de um mundo em permanente mutação.
mente com a crença – ou ilusão, como sugere O universo da educação assemelha-se, sim, ao
Heisenberg (idem, p. 81) – na possibilidade de des- espaço aberto em que Deus joga dados.7 Parafraseando
crever o mundo sem fazer “referência alguma a nós Heisenberg (1999, p. 130) em sua crítica das filo-

6 7
Heisenberg (1999, p. 164-166) explica o clássico experi- Refiro-me à expressão de Einstein: “Deus não joga dados”,
mento de Einstein sobre o conceito de simultaneidade. Dewey em sua polêmica com a interpretação de Copenhague (Heisenberg,
(1952, p. 126-127) menciona o assunto em A busca da certeza. 1999, p. 116-117).

Revista Brasileira de Educação 121


Marcus Vinicius da Cunha

sofias cartesiana e kantiana, é possível dizer que nun- definições morais se tornem cristalizadas, como se
ca saberemos precisamente “quão longe palavras e fossem eternas, motivadas por posições absolutistas.
conceitos nos ajudarão a achar nosso caminho no
entendimento do mundo”. Mas isto não significa que Florestan Fernandes
a racionalidade presumida pelas ciências não possa e o discurso da racionalidade
auxiliar nesse caminho, desde que aceitemos “que o
significado de um conceito jamais será definido com No trabalho apresentado durante o simpósio do
precisão absoluta” e que certos princípios são “ins- Centro Regional de Pesquisas de São Paulo, Florestan
trumentos indispensáveis na execução do trabalho Fernandes defende a necessidade de fazer convergir
científico em nosso tempo” (idem, p. 131, grifos os conhecimentos científicos para o terreno da edu-
meus) – provisórios, portanto, passíveis de supera- cação, no intuito de tornar a escola um agente de
ção por futuras descobertas, as quais ocorrerão ao mudança cultural. Contrapondo-se à viabilidade de
longo do próprio caminhar. “mudanças culturais espontâneas”, Fernandes (1967,
É nessa mesma direção que Dewey (1958, p. 13) p. 17) enfatiza a transformação pautada no “modelo
faz a defesa de sua concepção pragmatista no livro da ação planificada”, no planejamento, este “símbolo
Philosophy of education, publicado anos mais tarde:8 organizatório da civilização produzida pela ciência”.
a relatividade característica desse movimento filosófi- Para ele, o único conhecimento aplicável a situações
co é a mesma que distingue toda investigação científi- práticas é aquele que se desenvolve no âmbito da ra-
ca, pois esta também considera que seus padrões de cionalidade científica, fora da esfera do senso comum,
trabalho são fornecidos pelas “conexões atuais entre em que imperam valores extracientíficos.
as coisas”. Quando tais conexões precisam ser genera- Diferentemente de Anísio Teixeira, as idéias de
lizadas, impõe-se o respeito à noção de “espaço–tem- Fernandes integram-se à metáfora percurso determi-
po”, o reconhecimento de que as conclusões científi- nado, pois concebem a “mudança cultural provoca-
cas são dependentes de determinado tempo e lugar. da” como a transformação que utiliza a ciência não
Assim, fica assegurada a aplicabilidade, “em nosso só para o equacionamento de soluções práticas para
tempo”, dos achados da ciência, desde que reconheci- desafios emergentes, mas também – e principalmen-
dos como válidos pela comunidade científica atual. Ao te – para a realização de previsões e regulações a cada
mesmo tempo, fica garantido que os dados de agora só passo do processo de intervenção na realidade. Em-
têm validade se conectados a outras verificações, fei- bora a “mudança cultural espontânea” também pos-
tas em diferentes espaços e em outros tempos. sua caráter intencional, não assegura “a possibilidade
Essa é a visão do pragmatismo em todos os cam- de escolher fins alternativos ou exclusivos e de pô-
pos da atividade humana a que se dedica. Não se pode los em prática por meios que assegurem, no mínimo,
acusá-lo de não aceitar direcionamentos éticos para controle racional do desencadeamento e das princi-
os problemas atuais da humanidade, pois a concep- pais fases do processo”. Só a mudança planejada é
ção pragmatista contempla a existência de princípios capaz de atingir efeitos que podem ser postos em evi-
válidos, desde que definidos por meio do debate livre dência “antes de eles serem produzidos e cuja produ-
e aberto a todos os membros da coletividade. O que ção pode ser prevista, regulada e dirigida pelos agen-
não cabe no âmbito da filosofia deweyana é que as tes humanos” (idem, p. 21).
O problema da educação e da ciência aplicada é
caracterizado por Fernandes como submetido a “duas
8
Coletânea de artigos escritos entre 1935 e 1945. O trecho ordens contraditórias de condições e de fatores”. A
aqui comentado pertence à Introdução, elaborada em 1946 para a primeira diz respeito “à consciência racional dos fins,
primeira edição do livro. dos meios e das condições ideais para pô-los em prá-

122 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25


Ciência e educação na década de 1950

tica” (idem, p. 30). Essa consciência existe, usual- Florestan Fernandes justifica, assim, uma idéia
mente, mesmo nos processos de mudança cultural diferente das concepções de Anísio Teixeira: uma
espontânea. A segunda ordem de fatores refere-se ao ciência da educação que não se restringe a manter
“controle racional das diretrizes ultradidáticas e das com os educadores uma relação de intercâmbio – ou
condições exteriores do processo educacional”. Na “comércio permanente”, nas palavras do diretor do
ausência desse controle, fica impedida a efetivação INEP –, mas que se dispõe a exercer verdadeira tute-
de qualquer ideal educacional, pois os educadores são la sobre os assuntos escolares. A proposta de
privados de intervir eficazmente nas diversas situa- Fernandes vai muito além daquela visualizada por
ções que regulam a vida escolar (idem, p. 33). Teixeira, em que o sociólogo, o antropólogo e outros
É por isso que falham as mudanças desencadea- cientistas permaneceriam estudando os problemas
das espontaneamente. O elemento racional contido próprios de sua especialidade, mesmo que vincula-
na projeção dos fins acaba desviado de seu curso dos às práticas pedagógicas, enquanto os educadores,
(idem, p. 34). Diante disso, a proposição de Florestan não sendo cientistas, exerceriam sua “grande arte” de
Fernandes visa garantir que esse curso, estabelecido modo tão científico “quanto possível”.
no planejamento das finalidades almejadas, não seja A diferença mais marcante entre a exposição do
desvirtuado. Em suma, o autor pretende garantir que sociólogo da USP e as teses do diretor do INEP, en-
haja, na educação, um percurso determinado, seguro tretanto, é quanto às relações entre a ciência e a filo-
e previamente definido. É por intermédio do planeja- sofia na esfera da educação. No discurso de Fernandes,
mento que “as experiências do presente são associa- não há nenhuma menção à presença da filosofia na
das às do passado para prevenir o futuro” (idem, p. 38- definição do percurso da mudança cultural e educa-
39). Controle, racionalidade e planificação são palavras cional. Esse mesmo traço aparece também em outros
decisivas no itinerário imaginado por Fernandes para escritos veiculados no Simpósio sobre Problemas Edu-
alterar os rumos da escola brasileira, a qual só contri- cacionais Brasileiros, nos quais se observa a presen-
buirá para “o equilíbrio e o progresso da vida social” ça de muitos dos conceitos que identificam o raciocí-
quando for abordada segundo “modalidades práticas nio de Florestan Fernandes com a metáfora percurso
racionais de tratamento dos problemas educacionais” determinado.
(idem, p. 44). Nesse enquadramento, destaca-se o trabalho de
A participação da ciência – particularmente das Raja Nassar, que expressa contundente crítica ao
ciências sociais – nesse processo é fundamental. Dada movimento educacional renovador surgido na déca-
a gravidade da situação brasileira, “é impossível res- da de 1920. Embora reconhecendo o mérito dos diag-
tringir aos ‘homens de ação’ e aos educadores a res- nósticos elaborados pelos escolanovistas pioneiros,
ponsabilidade pela solução dos problemas educacio- Nassar (1968, p. 25-26) assinala que eles não propi-
nais”. Por isso, “a cooperação regular dos cientistas ciaram o surgimento de “planos e esquemas sólidos e
sociais se impõe tanto na escolha racional dos fins, criteriosos através dos quais pudessem ser encontra-
quanto na seleção e na exploração racionais dos das as verdadeiras soluções” para os problemas da
meios”. Por mais que tenham familiaridade com os educação brasileira. Com base nas concepções daquela
métodos da pesquisa social, os educadores “depen- época, surgiram manifestos de educadores, reformas
dem dos cientistas sociais” para a tomada de deci- do ensino e projetos administrativos grandiosos,
sões, uma vez que estas exigem avaliações de viabili- “grandes planos de reconstrução educacional”, mas
dade diante das circunstâncias histórico-sociais e, mais todo o empenho foi incapaz de transformar a realida-
do que isso, requerem “a previsão e a verificação do de existente em sintonia com os princípios proclama-
rendimento obtido durante a realização dos planos dos. A causa do fracasso, segundo esse autor, é que o
educacionais” (idem, p. 67). movimento de renovação carecia de “um plano de

Revista Brasileira de Educação 123


Marcus Vinicius da Cunha

sedimentação calcado, realmente, num planejamento abordando temáticas específicas, suas falas são com-
racional e lógico”. Sem “esquema teórico” e “crité- postas por expressões que traduzem idéias de racio-
rios objetivos” de julgamento, as iniciativas de mu- nalidade, racionalização administrativa, planejamen-
dança tornavam-se fragmentárias, dissolvendo-se em to lógico, precisão diagnóstica, estabilidade e
finalidades obscuras e pouco efetivas. continuidade, sempre buscando apoio na ciência. Ge-
Nassar faz menção ao Manifesto dos Pioneiros, ralmente, repercutem críticas, mais ou menos explí-
de 1932, que tentou propor um “plano sistemático” citas, a uma série de iniciativas do passado que não
para a educação, em que as finalidades ditassem os conseguiram solucionar os problemas educacionais
meios e, conseqüentemente, todo o conjunto de fato- do país, por falta de planejamento – ou, como diria
res atuantes no âmbito escolar. Segundo ele (idem, Fernandes, por falta de controle racional dos fatores
p. 51-52), “se há algo que se pode negar ao Manifes- envolvidos no processo de mudança.
to, apesar dos seus grandes méritos, é justamente a Vistas em conjunto, tais vozes denunciam a fa-
sistematização de um plano para a educação”. Sem lência da metáfora percurso indeterminado e suge-
uma formulação de conjunto, as idéias ali pleiteadas rem a adoção da metáfora percurso determinado. Tal
se tornaram incapazes de subsistir “senão como opi- abordagem se identifica com a metáfora organismo,
niões pessoais, às vezes procedentes e ditadas pelo pois descreve a sociedade e a educação como estru-
bom senso”, ou seja, sem nenhuma efetividade con- turas organizadas, organismos vivos cujas partes pre-
creta, pois a “ação administrativa racional” não se cisam ser articuladas por determinados condicionan-
sustenta em meras inclinações pessoais. tes, instituições racionalmente equipadas com saberes
Nem mesmo os centros de pesquisas são poupa- especializados capazes de dirigir o curso de seu de-
dos por Nassar (idem, p. 52). Segundo ele, “pouco ou senvolvimento. O oposto da metáfora piquenique,
nada contribuíram e nem contribuirão para o levanta- portanto.
mento das deficiências e do rendimento do ensino ou
para a proposição de um esquema administrativo que Considerações finais
possibilite uma ação efetiva do Estado”. A razão desse
prognóstico é que os centros viviam “sob o signo da No início do presente trabalho, vimos que o cam-
improvisação e do empirismo”, sendo os seus “crité- po de debates formado em torno dos centros de pes-
rios de seleção de problemas e investigação [...] arbi- quisa do INEP possibilitou a “superação” – termo de
trários e de caráter meramente pessoal”. Ali, onde a Libânia Xavier – das contribuições dos pioneiros da
“característica principal deveria ser a da racionalida- renovação educacional pela nova geração de cientistas
de”, Nassar vê a ausência de qualquer “representação sociais, grupos em que se incluem, respectivamente,
teórica da realidade educacional” (idem, p. 57). Anísio Teixeira e Florestan Fernandes. Refletindo so-
Autores como Fernandes e Nassar – que não re- bre esse tema mediante a análise retórica, entendemos
presentam a totalidade do simpósio, certamente – ex- que a palavra superação, naquele contexto, significa a
pressam um discurso que pleiteia a adoção de estraté- vitória da metáfora percurso determinado sobre a me-
gias capazes de determinar previamente o itinerário táfora percurso indeterminado. Em suma, uma signifi-
da educação brasileira.9 Cada qual a sua maneira e cativa comunidade de ouvintes – educadores e pesqui-
sadores da educação – aderiu à idéia de que o futuro da
educação pode e deve ser planejado e controlado para
9
O conteúdo desta seção foi desenvolvido mais amplamen- que determinados fins sejam atingidos.
te no capítulo X de Cunha (1998), em que, além dos trabalhos O que se discute na análise do discurso retórico
aqui comentados, são analisados também os estudos de Cardoso e é a sua efetividade perante os ouvintes, o que implica
Ianni (1968), Mascaro (1967) e Ribeiro (1967). verificar as disposições do auditório que recebe as

124 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25


Ciência e educação na década de 1950

formulações em causa. No caso em estudo, então, uma reflexão, em maior profundidade, do con-
cabe buscar as razões pelas quais se tornou plausível ceito de arte no pensamento deweyano, bem
ao campo educacional acatar as teses de planejamen- como das demais metáforas a que eventual-
to, que expressam uma determinada concepção de mente se vincula. A segunda acepção requer
racionalidade, e rejeitar a noção de incerteza e arte, a análise ainda mais aprimorada, uma vez que o
qual expressa outro tipo de racionalidade. Essa dis- presente estudo apontou apenas uma parcela
cussão será desenvolvida, com mais vagar, em outro de sua manifestação, detectada no pensamen-
momento, mas é possível deixar aqui alguns indicati- to de Florestan Fernandes, em um momento
vos do que julgamos importante analisar. específico de suas formulações.

a) Entendemos que o debate travado em torno dos Acreditamos ser este o itinerário para compreen-
centros de pesquisas não diz respeito à con- der os fatores envolvidos na “superação” da metáfora
traposição entre ciência e arte, uma vez que, percurso indeterminado: tomar a história da idéia de
na concepção deweyana, esses dois elementos ciência no Brasil, a qual, em sintonia com certa tradi-
não se opõem. Dewey vê o caráter de incerte- ção de pensamento, dispôs os ouvintes da década de
za, que é marcante na atividade artística, pre- 1950 a aceitarem uma determinada metáfora, e não
sente também na teoria científica mais avan- outra, para predicar a educação escolar.
çada de sua época, a física quântica. Anísio
Teixeira assimila essa concepção ao abordar a MARCUS VINICIUS DA CUNHA, doutor em educação
educação como arte. pela Universidade de São Paulo, é professor associado da Faculda-
b) No Brasil dos anos de 1950, o que parece estar de de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da mesma Uni-
em jogo são duas concepções de ciência. No versidade, no Departamento de Psicologia e Educação. Com bolsa
vocabulário da análise retórica, podemos di- do CNPq, pesquisa o movimento educacional renovador brasileiro
zer que estão em conflito dois discursos que dos anos de 1930-1960, especialmente a influência de John Dewey.
predicam diferentemente a educação por meio Publicações recentes: John Dewey, a utopia democrática (DP&A,
da mesma metáfora – ciência –, a qual assume 2001) e John Dewey e o pensamento educacional brasileiro (Revis-
duas conotações diferentes. No primeiro dis- ta Brasileira de Educação, 2001). E-mail : mvcunha@yahoo.com
curso, a referida metáfora traduz noções de in-
certeza e probabilidade, aproximando-se do Referências bibliográficas
conceito de arte. No outro, ciência significa
certeza e previsibilidade, identificando-se com ARISTÓTELES, (2000). Retórica das paixões. São Paulo: Martins
tecnologia – melhor dizendo, com uma certa Fontes.
noção de tecnologia, na qual os resultados apli- BRANDÃO, Zaia, MENDONÇA, Ana W. P. C. (orgs.), (1997).
cáveis da ciência, vistos como independentes Uma tradição esquecida: por que não lemos Anísio Teixeira?
do processo que os gera, assumem feições Rio de Janeiro: Ravil.
deterministas. CARDOSO, Fernando H., IANNI, Octávio, (1968). As exigên-
c) Essas duas acepções merecem ser mais bem cias educacionais do processo de industrialização. Estudos e
investigadas, no intuito de localizar sua origem Documentos, São Paulo: Faculdade de Educação da USP, v. 6,
e compreender o seu desenvolvimento na his- p. 197-235.
tória do pensamento ocidental e, particularmen- CUNHA, Marcus V., (1991). A educação no período Kubitschek:
te, no Brasil. A primeira acepção da palavra os centros de pesquisas do INEP. Revista Brasileira de Estu-
ciência, que se encontra razoavelmente deli- dos Pedagógicos, v. 72, no 171, p. 175-195.
neada no presente estudo, abre margem para , (1998). O discurso educacional renovador no Bra-

Revista Brasileira de Educação 125


Marcus Vinicius da Cunha

sil (1930-1960): um estudo sobre as relações entre escola e MAZZOTTI, Tarso B., (2002). A metáfora percurso no debate
família. Tese de livre-docência. Faculdade de Ciências e Le- sobre políticas educacionais no Brasil contemporâneo. In:
tras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista. VALE, José M. F. et al., (orgs.) Escola pública e sociedade.
, (2001). John Dewey e o pensamento educacional São Paulo: Saraiva.
brasileiro: a centralidade da noção de movimento. Revista Bra- MAZZOTTI, Tarso B., OLIVEIRA, Renato J., (2000). Ciência(s)
sileira de Educação, nº 17, p. 86-99. da educação. Rio de Janeiro: DP&A.
DEWEY, John, (1952). La busca de la certeza: un estudio de la NASSAR, Raja, (1968). Rendimento e deficiências do ensino se-
relación entre el conocimiento y la acción. México: Fondo de cundário brasileiro. Estudos e Documentos, v. 6, p. 25-78.
Cultura Económica. RIBEIRO, J. Querino, (1967). O problema da administração na
, (1958). Philosophy of education: problems of men. formação e no desenvolvimento do sistema escolar brasileiro.
Ames: Littlefield, Adams & Co. Estudos e Documentos, São Paulo: Faculdade de Educação
a
, (1959). Reconstrução em filosofia. 2 ed. São Paulo: da USP, v. 5, p. 137-170.
Nacional. TEIXEIRA, Anísio, (1952). Discurso de posse do professor
FERNANDES, Florestan, (1966). Ensaios de Sociologia Geral e Anísio Teixeira no Instituto Nacional de Estudos Pedagógi-
Aplicada. São Paulo: Pioneira. cos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 17, n. 46,
FERNANDES, Florestan, (1967). A ciência aplicada e a educação p. 69-79.
como fatores de mudança cultural provocada. Estudos e Docu- , (1957). Ciência e arte de educar. Educação e Ciên-
mentos, São Paulo: Faculdade de Educação da USP, v. 5, p. 9-74. cias Sociais, v. 2, nº 5, p. 5-22.
FERREIRA, M. S., (2001). O Centro Regional de Pesquisas Edu- VIDAL, Diana G., (org.). (2000). Na batalha da educação: cor-
cacionais de São Paulo (1956/1961). Dissertação de mestra- respondência entre Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo
do. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF.
a
HEISENBERG , Werner, (1999). Física e filosofia. 4 ed. Brasília: XAVIER, Libânia N., (1999). O Brasil como laboratório: educa-
Editora Universidade de Brasília. ção e ciências sociais no projeto do Centro Brasileiro de Pes-
MASCARO, Carlos C., (1967). O custeio da educação e a utili- quisas Educacionais. Bragança Paulista: EDUSF.
zação de recursos para as reformas educacionais. Estudos e
Documentos, São Paulo: Faculdade de Educação da USP, v. 5, Recebido em abril de 2003
p. 171-193. Aprovado em outubro de 2003

126 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25

You might also like