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Gérard Castello-Lopes: dos anos 50

aos anos 80 aos anos 2000…

publicado em Ag Prata — Reflexões Periódicas sobre Fotografia, edição Susana


Lourenço Marques, José Carneiro, Vítor Almeida. Porto, 2009. 232 páginas (pp.
71-77.
http://ag.fba.up.pt/index.php
e também em
http://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2011/02/g%C3%A9rard-castello-
lopes.html#more

1. Foram animados os anos 80. Não se trata de saudosismo, mas


de vincar como ao longo dessa década mudaram radicalmente, e
sem retorno, as condições da prática e da circulação da fotografia,
e também o respectivo entendimento. De facto, quando a Ether
apresentou, a partir de 19 de Dezembro de 1982, as fotografias de
Gérard Castello-Lopes que nunca antes se tinham visto e de cuja
existência nada se sabia, a história moderna da fotografia em
Portugal tinha começado a ser explorada nesse mesmo ano.
Esse passado recuperável – o de Fernando Lemos e o da dupla
Costa Martins e Victor Palla - tornava mais credível o destino dos
novos fotógrafos, que, pela primeira vez, construíam a sua obra no
mercado profissional das exposições, como sucedia com os
artistas plásticos, e não sucedera antes com nenhuns fotógrafos: a
passagem da página impressa à galeria era então parte de uma
evolução decisiva do próprio medium. Depois da decadência dos
velhos salões de Arte Fotográfica, surgiam novas condições de
visibilidade artística para a fotografia (os encontros, os “meses”,
as festas), que já não se destinavam apenas aos amadores e a
públicos especializados. Pelo final da década outros artistas
desconhecidos dos anos 50 iam sendo revelados: António Sena da
Silva (Ether 1987, Serralves 1990), Carlos Calvet e Carlos Afonso
Dias (ambos Ether 1989). Tinham constituído um mesmo pequeno
grupo informal e efémero.

O facto de Gérard Castello-Lopes, autor entre 1956 e 1963 de uma


obra confidencial, voltar a fotografar logo em 1984, reatando em
novas direcções uma carreira que não tinha tido, tornava mais
evidente que os tempos eram outros. Muito rapidamente, e por
mais duas décadas, ele ia passar a ser um dos fotógrafos mais
presentes na cena nacional, duplicando esse papel com as suas
conferências e ensaios. Em 1989 comemoraram-se os 150 anos
passados sobre a divulgação da fotografia com a certeza de que o
lugar desta no âmbito da cultura visual estava a mudar
aceleradamente (algumas expectativas optimistas viriam, no
entanto, a gorar-se no final da década seguinte, na área
administrada).
GCL , Lisboa 1957

2. Em Abril de 1982, por uma feliz coincidência, as fotografias de


Fernando Lemos apareceram de surpresa na Sociedade Nacional
de Belas Artes (a exposição “Refotos”), como um prolongamento
oficioso do vasto programa retrospectivo dos anos 40 apresentado
pela Fundação Gulbenkian, com uma dimensão que nunca mais se
repetiu, e as fotografias de Costa Martins e Victor Palla que deram
corpo ao livro Lisboa, Cidade Triste e Alegre inauguravam a
galeria da associação Ether – Vale Tudo Menos Tirar Olhos,
dinamizada por António Sena.
Em “Os Anos 40 na Arte Portuguesa” as fotografias de Fernando
Lemos eram as únicas referenciadas no catálogo (por sinal, era
também “colaborador técnico” da iniciativa). No entanto, não se
lhes reconhecia aí, ainda, qualquer autonomia disciplinar, ficando
aparentemente incluidas na classificação artes gráficas, ao lado da
pintura, escultura e desenho. Tratava-se apenas de mostrar um
artista que usou a fotografia, não um fotógrafo. Tudo o resto ou
não existira ou era apenas ilustração (a Exposição do Mundo
Português fotografada por Mário Novais, por exemplo).
Fernando Lemos tinha exposto fotografias em 1952 por duas
vezes, na exposição da Casa Jalco e numa individual na Galeria de
Março. A sua recuperação, 30 anos depois, nessa exposição da
SNBA e em momentos posteriores (a retrospectiva de 1994, na
Gulbenkian), foi feita sob a égide do surrealismo e de Man Ray,
sem se poder ver correctamente o que nessa produção tão breve
como intensa era também revisitação de vários outros
experimentalismos (Moholy-Nagy em especial) e já era
informação actualizada sobre as muito contemporâneas
orientações do movimento Fotoform e da Fotografia Subjectiva,
das quais José-Augusto França se fazia eco em Portugal num texto
depois “recortado” e nunca lido (1).
Simultaneamente, Costa Martins e Victor Palla eram redescobertos
a pretexto do livro que editaram em 1959 e que tinham promovido
no ano anterior em duas exposições em Lisboa e Porto destinadas
a angariar assinantes para a sua publicação em fascículos – não se
faziam então exposições de um tal género de fotografias, que se
poderia dizer de ilustração ou reportagem, e se destinava apenas à
impressão em magazines e álbuns. A fotografia artística que se
expunha nos salões era outra coisa (sem ser monolítica), e o caso
pioneiro – e muito mal conhecido ainda – da sua inclusão nas
Exposições Gerais de Artes Plásticas de 1950 e 1955 (5ª e 9ª
EGAP), com Keil do Amaral nas duas vezes, com Adelino Lyon
de Castro na primeira, Augusto Cabrita e Victor Palla na segunda,
entre outros expositores, não bastara para alterar a situação.
A exposição da Ether centrou-se na edição e no relançamento
editorial de Lisboa, Cidade Triste e Alegre, que viria a tornar-se,
passados mais vinte anos após a sua redescoberta (outro salto no
tempo…), uma referência internacional da fotografia e do livro
fotográfico da década de 50 - na revista do Centro Georges
Pompidou, em 2002; em The Photobook I de Martin Parr e Gerry
Badger, 2004.
Os seus dois autores, tal como o anterior Fernando Lemos, foram
vistos como fotógrafos isolados e esporádicos, criadores de uma
obra única ou de continuidade falhada, embora de facto eles
tivessem voltado a fotografar e a expor. No caso de Victor Palla,
mais activo como fotógrafo, uma retrospectiva em 1992, na
Gulbenkian, apenas exibiu as fotos furtivas e de rua aparentadas
com as do livro Lisboa,…, deixando escondida toda a produção
anterior e posterior em que ensaiou diferentes caminhos. Só em
2008 vieram à luz, no leilão do seu espólio, as fotografias
experimentais dos primeiros anos 50 (realizadas em diálogo com
Fernando Lemos e também com o movimento de Otto Steinert),
ao mesmo tempo que se recuperavam retratos e outros estudos
foto/gráficos de 1984 e 86, expostos nas Bienais do Avante (2).

Os casos de Lemos e de Palla indicam que, se a partir de 1982 se


recuperou a visibilidade de fotografias entrevistas nos anos 50 e
depois esquecidas, e igualmente de outras que não chegaram
sequer a ser divulgadas, essas aparições mantiveram encoberto o
contexto geral da produção fotográfica de que tais imagens se
destacavam.

3. Gérard Castello-Lopes, que se tornou o porta-voz dos


fotógrafos activos na segunda metade dos anos 50 descobertos nos
anos 80, a quem chamou “geração esquecida”, começou por
sublinhar, no trabalho desse tempo, seu e dos outros, a intenção do
“testemunho documental”. Tratava-se, como disse a propósito de
Carlos Afonso Dias, o seu mais próximo parceiro fotográfico, de
“mostrar a imagem de um real geralmente confrangedor e, por
via dela, imaginar que se contribuia… para que as coisas
mudassem”; e de manifestar “um optimismo, uma esperança
militante na fraternidade entre os homens, uma crença
fundamental na solidariedade e no progresso”. Não seria uma
questão de militância ideológica (como sucedera com o neo-
realismo literário e artístico) mas de identificação com o espírito
fotográfico internacional da época, marcado por “essa tão
vilipendiada visão do mundo a que se chamou humanismo”,
pelo “teor fotográfico da revista Life dos anos 40 e 50, sobretudo
o mais socialmente empenhado” (3).

Europa de Posguerra 1945-1965. Arte Despues del Diluvio, Barcelona, Fundacion "La Caixa",
1995 / Vien, Kunstlerhaus Wien. Castello Lopes é incluído no "ámbito 1. Las ruinas del mundo y el
renascimiento del espíritu", com Boubat, Catalá-Roca, Gabriel Cualladó, Doisneau, Robert Frank,
Stromholm e Sudek. Comisário para a fotografia: Marta Gili

Sem um pós-guerra vivido em clima de vitória, que para lá da


Península associava o optimismo da reconstrução estampado nas
ilustrações do realismo poético com a denúncia de outros conflitos
nos projectos do foto-jornalismo documental, só a partir de
1954-55 terá existido em Portugal, com alguma expressão pública
por entre as malhas da censura, uma dinâmica fotográfica
tendencialmente colectiva de tons humanistas ou neo-realistas.
Tinham existido pelo menos os precedentes de Maria Lamas (As
Mulheres do Meu País, 1948-50), Adelino Lyon de Castro e Keil
do Amaral, ainda pouco lembrados, mas é certamente só por altura
da 9ª EGAP que se acentua uma viragem anti-formalista, em
oposição às tendências dominantes no meio salonista
(picturialistas e modernistas que defendem a “fotografia pura”) e
distinta dos fugazes experimentalismos de Lemos e do primeiro
Palla.
Trata-se da repercussão de uma nova conjuntura internacional.
“Por volta de 1952, um vento de revolta parece varrer o mundo
contra a ’fotografia de arte’ ou ‘de exposição’” (4). “Spanish
Village” de Eugene Smith é de 1951 (Life), Images à la
Sauvette / The Decisive Moment de Cartier-Bresson, de 1952, e
Les Européens de 55. O veterano Daniel Masclet, que então
“encontra na reportagem como uma das razões de ser da
fotografia”, é apresentado por Ernesto de Sousa no nº 3 de Plano
Focal, de Abril de 1953, o que é mais relevante e menos notado do
que a entrevista com Man Ray no número seguinte.
“The Family of Man” terá constituido um impulso decisivo, em
especial devido à origem norte-americana. A exposição de Edward
Steichen, que o MoMA apresenta em 1955 e põe em itinerância
mundial por vários anos, fora anunciada em Lisboa em duas
páginas do número de Março de 1954 da revista Fotografia, orgão
de um salonismo que era então menos claustrofóbico do que se diz
(em França, a notícia no Photo-Monde é de Abril). Pelo final da
década, o “Índice” de Lisboa, Cidade Triste e Alegre é um muito
rico repertório de referências internacionais disponíveis em
Portugal por esses anos.
Será preciso conhecer esse contexto fotográfico nacional – já com
Augusto Cabrita e Eduardo Gageiro, e já por ocasião do inquérito
da Arquitectura Popular (1955-61) - para situar o primeiro período
fotográfico de G.C.L., de 1956 a 1963, data da “missão”
antropológica a Monsaraz, partilhada com João Cutileiro. E
importa verificar que idênticas movimentações ocorrem em
simultâneo em Espanha, para tentar perceber, entre outras coisas,
porque é que por cá a aventura é efémera e quase privada (com a
grande excepção da edição de Lisboa,…) enquanto ao lado se
inicia uma renovação que terá sucessivas mutações geracionais
mas nunca mais se interrompe. A chamada Escola de Madrid, de
Leonardo Cantero, Francisco Gómez, Gabriel Qualladó e outros, e
os novos fotógrafos de Barcelona, Ramón Masats, Xavier
Miserachs e Ricard Terré, nascem nas agremiações amadoras,
exploram a logística do salonismo ao mesmo tempo que o
combatem, e criam condições para passarem à prática profissional
da fotografia. A publicação (entre 1956 e 63, também) da revista
Afal, em Almería, a partir de uma pequena associação salonista
num improvável fim do mundo andaluz, assegurou a divulgação e
articulação internacional. Mas os novos fotógrafos do eixo Lisboa-
Cascais, que por algum tempo ensaiaram um aristocrático
salonismo privado (5), não prestavam atenção à revista espanhola,
que, aliás, começou por ter como correspondente em Lisboa um
ignorado Carlos Santos e Silva, muito premiado à época.

Afal, Publicación de la Agrupación Fotográfica Almeriense, Nº 4, Julho Agosto 1956


António Sena introduziu a ideia de uma “revolta silenciosa da
intimidade” logo no título do capítulo relativo ao período 1946-59
com que divide a sua História (Porto Editora, 1998). Essa
“revolução silenciosa” pode referir o destino doméstico das
imagens, o isolamento dos fotógrafos e a posterior desistência,
mas tal como a alegada intimidade, que poderá sugerir
correspondências com posteriores orientações fotográficas, não se
ajusta à vocação testemunhal, universalista e comprometida das
fotografias desse tempo neo-realista.

NOTAS
1 - J.-A. França, "Nota sobre 'Fotografia Subjectiva'", O Comércio
do Porto, 10 de Março de 1953. O artigo foi parcialmente
transcrito sem título no catálogo da retrospectiva de 1994 (F.
Gulbenkian) e foi inventariado também sem título na bibliografia
de Surrealismo em Portugal, Museu do Chiado, 2001 – a
referência ao movimento de Otto Steinert tornava-se inacessível.
2 - Victor Palla, Auction may 29th 2008, catálogo de leilão
monográfico, P4 Photography, Lisboa, com fotografias de 1951 a
1963, em provas vintage ou em reimpressões originais dos anos 80
e posteriores. No artigo “O olho quadrado”, publicado na revista
A Arquitectura Portuguesa - e Cerâmica e Habitação, nº 6, Maio-
Junho 1953, pp. 33-38, V. Palla escreveu sobre as fotografias de F.
Lemos e aponta-lhes o destino do foto-mural e da integração na
arquitectura.
3 - Texto sem título no catálogo Carlos Afonso Dias, Fotografias
(1954/69), Ether, 1989. Reeditado e ampliado em 2000, ver “O
trampolim do passado”, em Gérard Castello Lopes, Reflexões
sobre Fotografia, Assírio & Alvim, 2004. Sobre o sentido do
“empenhamento” ou “engagement” de G.C.L. cf. o texto de
Danielle Castelo Lopes em Gérard Castello Lopes. –
Homenagem a Henri Cartier-Bresson, Galeria Fernando Santos,
2005.
4 – Marie de Thézy, La Photographie humaniste, Contrejour,
Paris, pág. 50.
5 – Gérard Castello Lopes fala das reuniões e dos concursos
organizados com os seus amigos fotógrafos na entrevista de Luísa
Costa Dias publicada em Oui/Non, CCB, 2004. Sobre a situação
em Espanha, ver Laura Terré Alonso, Historia del Grupo
Fotográfico Afal, ed. Photovision, Sevilla, 2006

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