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Filosofia 2006/2

I - Introdução: colocação do problema

A toda hora, os meios de comunicação anunciam que é preciso “mais ética”


nas relações humanas, na política, na ciência, nas empresas e em todos os âmbitos da
vida. Mas o que significa “ética”? É difícil responder a essa pergunta com exatidão.
Para respondê-la, deve-se lembrar a etimologia da palavra e ressaltar que a ética só
existe após o surgimento da filosofia, primeira forma racional de se explicar a
realidade. Após essa introdução, será feito um percurso pela história da filosofia
para que se possa acompanhar as principais transformações éticas do ocidente: a
Grécia antiga, o helenismo, a idade média, a modernidade e o século XX.
Esse percurso oferece a base histórica e filosófica para o segundo momento do
curso, que trata especificamente da ética profissional. Neste segundo momento, serão
apresentadas algumas noções sobre ética nas empresas e realizados debates e análises de
casos onde alguns dos conceitos oferecidos ao longo do curso serão aplicados. A finalidade
dessa divisão é revelar que teoria e prática não são distantes, mas complementares e
indissociáveis, embora algumas vezes não coincidentes. Comecemos, então, com a
definição de ética.

I.1- Ética – pequenas considerações:

Antes de qualquer coisa, é preciso distinguir ética e moral. Embora se


confundam, há um acordo entre os estudiosos de que essas palavras têm significados
distintos. A moral é constituída pelos juízos de valor, costumes e crenças de um
povo, enquanto a ética é o estudo da ação humana e de suas conseqüências. A moral
é orientada pela tradição; a ética pela razão, pela reflexão. A moral é “praticada”,
“vivida”, e varia de acordo com os povos (coisas que são moralmente condenáveis
em determinadas culturas, não o são em outras); a ética é uma ciência que estuda,
entre outras coisas, a moral. Nesse sentido, pode-se afirmar que a ética é a “ciência
da moral”. Para esclarecer essa questão, vale observar a etimologia das palavras
moral e ética.
A palavra moral deriva do latim “mores”, que siginfica “costumes”. Isso
indica que a moral é formada pelos hábitos, pela forma de encarar a vida e pelos
costumes de um povo. Por isso, como já foi dito, a moral pode variar: o que é
moralmente correto para um povo, pode não ser para outro.
A palavra “ética”, por sua vez, é oriunda da palavra grega ethos, que possui
duas acepções: 1- como significado de morada do homem e 2- como indicação de
um comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos.
O primeiro significado, “morada do homem”, indica que é justamente por
meio do ethos que o mundo se torna habitável para o homem ou, mais ainda, que o
mundo se constitui. A necessidade da natureza (physis) é rompida pela abertura do
espaço humano do ethos, no qual se inscrevem os costumes, os hábitos, os valores e
as ações, ou seja, no qual a moral de um povo se constitui. O espaço humano do
ethos não é dado ao homem (como o é o espaço da natureza), mas é incessantemente
construído. A morada do homem nunca está pronta: sempre é possível melhorá-la e
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aproximá-la da perfeição. Isso revela a existência de um ideal ético ou do Bem,


capaz de mostrar quais partes de nossa “morada” ainda podem ser reformadas,
melhoradas. O eterno construir da vida moral revela que há princípios éticos ideais
perseguidos pelo homem e que podem se aprimorar ao longo da história. Usando a
metáfora da casa, pode-se afirmar que a nossa vontade de aperfeiçoá-la mostra que
temos, em nossa mente, uma idéia do que seja uma casa ideal. E mostra também que,
se os tempos trazem novidades, elas são incorporadas a esse modelo ideal de casa na
medida em que surgem. Para um homem das cavernas, por exemplo, uma ampla
gruta de frente para o mar e bem protegida era o exemplo de casa ideal; já para o
homem moderno, uma casa de vidro, concreto e madeira, com varanda, piscina,
churrasqueira e sauna, constitui o modelo ideal de casa. Mas, para ambos, a casa é
um lugar de refúgio, de proteção e conforto.
O mesmo ocorre com a ética: ela evolui, é aperfeiçoada ao longo do tempo.
Com as transformações históricas, surge a necessidade de transformações éticas.
Sabemos que uma ação é injusta porque temos uma idéia de justiça construída e
aperfeiçoada ao longo da história que nos habilita a julgá-la como tal. A escravidão
foi considerada normal entre os gregos e entre os nossos colonizadores. Foram
precisos séculos para que a escravidão fosse definitivamente abolida do planeta (ou,
pelo menos, universalmente considerada como repugnante). Hoje em dia, não há país
que defenda pública e oficialmente a escravidão: todos os povos sabem que a
liberdade alheia deve ser respeitada. Isso mostra que o nosso ideal ético evolui ao
longo da história.
O mesmo ocorre com a moral, que também se modifica com o tempo. Muitos
valores morais do início do século mudaram radicalmente: a virgindade, por exemplo, já
não é um valor como foi outrora. É interessante perceber que, geralmente, as mudanças nas
leis ocorrem após as mudanças morais. A virgindade, mesmo que não mais praticada e
valorizada como outrora, continuou presente no código civil por muitos anos como motivo
para dissolução do matrimônio: se o marido descobrisse que a noiva não era mais virgem,
poderia, amparado pela lei, dissolver o casamento. Há, no entanto, valores que devem
permanecer, pois são fundamentais para a sobrevivência da sociedade. A liberdade, o
respeito à diferença e a preservação ambiental são exemplos de valores fundamentais para o
nosso tempo, sem os quais colocamos o mundo em risco.
Já o segundo significado da palavra ethos diz respeito ao comportamento
que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos. Aqui ethos se relaciona
com os costumes, com o hábito de agir de acordo com as exigências de realização
do bem. Há mais de 2.500 anos, os gregos afirmavam que a repetição de bons
hábitos era capaz de tornar um homem virtuoso. A educação grega, a Paidéia, era
um longo processo educativo que visava formar um cidadão que fizesse da vida
pública um exercício das virtudes humanas capaz de conduzir a cidade rumo ao bem.
Dessa maneira, antes de existir a ética enquanto ciência, já existia o ethos
enquanto morada do homem e enquanto hábito. Era, pois, por meio da sabedoria, e
não da ciência do ethos (a ética), que os primeiros homens adquiriam critérios para
orientar o seu agir. Somente com o surgimento da filosofia, a ética enquanto ciência,
enquanto reflexão racional sobre o agir humano, aparece. Se compararmos a ética
com a engenharia, percebemos que a morada do homem surgiu antes da ciência que
lhe é relativa. A casa veio antes do engenheiro. Em outras palavras: o ethos é
anterior à ciência do ethos. Sendo assim, será que podemos dispensar o engenheiro,
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uma vez que as casas são construídas antes de seu aparecimento? Ou seja: podemos
dispensar a ética enquanto ciência e nos guiar apenas pela sabedoria, pelos costumes
e pelos hábitos, que já orientavam os homens desde sua origem? É claro que não.
As casas construídas pelos primeiros seres humanos eram simples e podiam
dispensar os engenheiros. Hoje as moradas são mais elaboradas e é o engenheiro que
pode evitar o desmoronamento dessas construções. É por essa razão que há uma
crescente necessidade da ética enquanto ciência: nossa morada se tornou tão
complexa que, se dispensarmos a engenharia (a ética) ao construí-la, ela pode cair. A
ciência e a tecnologia transformaram o mundo e trouxeram novos e graves
problemas éticos. A miséria da maioria dos seres humanos, o lixo atômico, a
poluição das águas, a escassez dos recursos naturais e várias ameaças atuais provam
que o planeta não é imperecível. Nossa casa precisa de bons engenheiros ou poderá
ruir. Sem a elaboração de uma nova ética, pós-convencional e universal, a vida no
planeta pode acabar. A ética tradicional, que versa sobre a regulação sexual e que
prescreve valores e regras morais convencionais, já não é mais capaz de preservar o
equilíbrio mundial. Hoje, mais do que nunca, não faz sentido admirar uma pessoa de
bons modos, boa família, que segue os valores tradicionais da nobreza, mas que tem
uma fábrica que polui uma cidade inteira. Considerando ainda a instabilidade
política do mundo, a miséria de dois terços do planeta, a conduta irresponsável das
grandes potências, a atual crise ecológica, e vários outros fatores preocupantes,
pode-se perceber que a ética, mais do que nunca, é essencial. 1 Mais ainda: é possível
notar que uma ética universal, capaz de garantir uma existência digna às futuras
gerações, é uma exigência de nosso tempo.
O mesmo se dá com as profissões. Ser um profissional ético é um dever e uma
necessidade do mercado. Empresas, jornais, escolas e governos valorizam, cada vez mais,
o profissional que sabe lidar com os conflitos de maneira ética. Muitas vezes um código de
ética bem formulado garante uma conduta adequada na empresa, mas há situações que
podem transcender o âmbito da prática profissional e exigir um grau maior de reflexão
ética. Para ilustrar essas duas dimensões da ética profissional, uma “imediata” e a outra
mais “complexa”, vale citar um exemplo: um profissional da genética tem seu código de
ética, que pode, entre outras coisas, exigir o bom trato com os pacientes, a divulgação dos
resultados de suas pesquisas e outros comportamentos que ele segue sem maiores
problemas. Mas, ao se deparar com a possibilidade de enriquecer com a escolha de
fenótipos de bebês por parte de pais obcecados pela perfeição, este cientista lida com um
problema ético bem maior do que os problemas freqüentemente gerados pelo exercício de
sua profissão. O grau de reflexão, de conhecimentos históricos e de consciência que lhe é
exigido nessa situação certamente extrapola o código de ética de sua profissão. Todos esses
são assuntos e problemas tratados pela ciência do ethos: a ética.
A ética é, portanto, um ramo do saber que reflete sobre a ação humana e que
tenta identificar os princípios práticos que regulam essa ação. É, no entanto, somente

1
Por um tempo, o ser humano acreditou que a ciência era a chave para todos os enigmas, o bálsamo para
todos os males. Sem dúvida, ela melhorou e transformou radicalmente o mundo em seu curto tempo de
existência, mas trouxe problemas muito graves. Pela primeira vez na história, o homem tem o poder de
destruir o globo terrestre. Por isso, muitos filósofos, pensadores e cientistas atuais estão procurando
estabelecer normas, princípios e diálogos universais. A declaração dos direitos humanos é um exemplo de
busca por universalidade ética. Mas há outros exemplos: o tratado de Kyoto, recusado pelos EUA, foi uma
outra tentativa (também fracassada) de aplicação de uma legislação universal de preservação do planeta.
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com o surgimento da filosofia que se pode falar de ética enquanto uma reflexão
racional sobre o agir humano. Mas, como foi visto, isso não significa que o homem
não refletia sobre sua ação ou que ele não seguia princípios éticos. Ao contrário, o
homem se distinguiu dos animais por meio de um radical afastamento da natureza
(da physis) e de um ingresso no mundo humano (no ethos). Com o desenvolvimento
dos costumes, da sabedoria e da moral, foram erguidas as primeiras grandes
civilizações. Uma dessas civilizações, a grega, criou a filosofia, forma de saber que
deu origem a todas as ciências existentes, inclusive a ética.

II – Grécia antiga: a invenção da ética

II.1 - O nascimento da filosofia - do mito ao logos: há milhares de anos,


admirado pelo poder e pelos mistérios da natureza, o homem tentou compreender
porque ocorriam fenômenos naturais tão devastadores e procurou saber de onde
vieram todas as coisas que existem. Como surgiam as tempestades, a seca, as
erupções vulcânicas, os terremotos, os raios, as enchentes e tantas outras mudanças
da natureza? Como surgiram as montanhas, as plantas, a água, os seres vivos, o
homem? Por quê o sol desaparecia todos os dias? O que hoje parece simples era
surpreendente; o mundo era um grande enigma a ser decifrado.
Para responder a tantos mistérios, o ser humano formula a sua primeira
explicação da realidade: quem governa todas as coisas são entidades ocultas, forças
sobrenaturais, deuses diversos. As primeiras explicações sobre a origem e o
funcionamento do universo foram dadas por meio de histórias fantásticas ou mitos.
O mito é a primeira manifestação da consciência humana, que tentava
desvencilhar-se das tarefas imediatas e instintivas da vida para “colocar ordem no
mundo”, explicá-lo, entendê-lo. Ele faz com que o homem se sinta mais confortável
no espantoso universo que o cerca.
Embora o mito seja uma explicação fantástica da origem do universo, ele não
é uma mentira, ou uma história falsa. Em sua acepção original, a palavra mito não
significa fábula, lenda, invenção, mas sim o relato verdadeiro de uma história
ocorrida no tempo dos princípios, quando, com interferência do sobrenatural, algo
passou a existir. Esse relato confere ao homem uma sensação de conforto, de poder
sobre a natureza. Afinal, quando sabemos como algo funciona, perdemos o medo
dessa coisa.
Quanto mais sofisticada se torna a explicação mitológica da realidade, maior
é a sensação de poder e domínio sobre a natureza que o homem experimenta. Por
isso, com os mitos, surgem os ritos, que são uma tentativa de interferir no curso da
vida e da natureza. O ritual é a atualização do mito: ele torna presente o tempo
mágico das origens de alguma coisa e, com isso, interfere no curso da realidade. Por
meio dele, o homem se incorpora ao mito e se beneficia com as energias das origens.
Sacrifícios, oferendas, danças, alucinações, preces, enigmas, etc., fizeram parte de
rituais que foram celebrados nos quatro cantos do mundo, seja para pedir chuva, sol,
poder na guerra ou para agradecer as bênçãos recebidas. Um exemplo de rito era o
das Bacantes 2 , que saíam em procissão, possuídas por Dionísio, deus do vinho e da
2
Todos os povos tinham seus mitos, seus ritos e, é claro, seus Deuses. Geralmente esses Deuses
eram identificados com o poder, os fenômenos e os elementos da natureza (como no Egito, onde o
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loucura, e que não podiam ser observadas ou interrompidas por nenhum mortal.
Quem tentasse chegar perto delas durante a procissão era devorado. Baseando-se
nesse ritual, Eurípedes escreveu As Bacantes, onde narra a história de uma mãe que,
possuída pelo deus, rasgou as carnes de seu próprio filho.
Mas o mito não é apenas uma tentativa de domínio da natureza. Ele também
transmite os valores, a cultura, a sabedoria e a psyché de um povo. Junito Brandão afirma:
“O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma
representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. E, na medida em que
pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser
lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-
se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois decifrar-se”.3
Ao expressar a consciência coletiva, o mito é um rico e indispensável material para
aquele que se propõe a compreender um povo, uma época ou a sua própria alma. Os mitos
gregos expressam essa importância: tão grande é a sabedoria coletiva contida na mitologia
grega, que vários autores se serviram dela para formular as suas teorias. O primeiro a se
servir do mito de forma mais sistemática foi Platão, mas há autores modernos que beberam
das águas da mitologia grega para formular as suas teorias. Freud é um deles: o mito de
Édipo, de Electra, de Narciso e vários outros dão corpo à psicanálise. Jung é outro autor
que tinha os mitos como matéria prima de seu trabalho, na medida em que os considerava
como elos entre o consciente e o inconsciente coletivo.
Para ilustrar a riqueza dos mitos, narramos um, o do Minotauro4 : Minos, filho de
Zeus e Europa (que Zeus raptou na forma de Touro), disputava o poder de Creta com seus
irmãos, Sarpédon e Radamanto. Para vencer a disputa, pediu ajuda a Posídon, que logo
atendeu as suas súplicas: um touro, belíssimo e enorme, saiu do mar e foi entregue a Minos
para deixar claro a sua privilegiada posição perante os deuses. Após esse episódio, Minos
passou a governar Creta. Minos, no entanto, prometera ao Deus que sacrificaria o touro e
não cumpriu sua promessa. Para castigá-lo, Posídon fez Pasífae (esposa de Minos e filha de
Hélio, o Deus do sol) se apaixonar pelo animal. Desesperada, Pasífae pediu a Dédalo5 , o
grande arquiteto e escultor, que a ajudasse. O artista fabricou uma novilha de bronze tão
perfeita que enganou o touro: entrando nela, Pasífae conseguiu ser possuída pelo animal.
Foi dessa união que nasceu o Minotauro, um ser monstruoso, metade homem,
metade touro, que foi confinado por Minos em um grande labirinto construído por
Dédalo. Esse monstro causava pânico e indignação entre os atenienses, pois Minos,

poderoso Deus Rá coincidia com o sol). A mitologia que aqui interessa, no entanto, é a grega, que é
peculiar justamente porque não identifica seus deuses com as forças da natureza. O Deus grego do
sol, Hélio, não é o sol, mas re-presenta essa força da natureza, assim como Eros re-presenta o amor,
etc. Essa peculiaridade faz da mitologia grega um processo de abstração que a difere da maioria das
mitologias antigas. Esse caráter “abstrativo” será ainda mais desenvolvido por causa de uma grande
dádiva grega: a escrita alfabética.
3
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, v. 1.
4
Trata-se de um mito de origem cretense, narrado aqui porque Creta exerceu grande influência na cultura e na
religião grega.
5
Dédalo era ateniense, da família real de Cécrops, e é considerado como o maior arquiteto, escultor, inventor
e artista de todos os tempos. As estátuas animadas que Platão cita no Mênon são foram feitas por Dédalo.
Dédalo era mestre de seu sobrinho, Talos, e começou a invejar-lhe o talento, quando ele, inspirado na
queixada de uma serpente, inventou a serra. Sentindo-se ofuscado, Dédalo empurrou o sobrinho da Acrópole.
Foi esse assassinato que levou Dédalo ao exílio em Creta, onde foi acolhido por Minos, que o nomeou seu
arquiteto oficial. Foi Dédalo que construiu o famoso labirinto onde o Minotauro, como veremos logo a
seguir, habitava.
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após derrotar Atenas numa longa guerra, exigia, de nove em nove anos, que sete
moças e sete rapazes partissem de Atenas para alimentar o monstro de Creta. Para
acabar com os sacrifícios, o herói ateniense Teseu parte para a ilha de Creta entre os
jovens que seriam sacrificados. Ao chegar lá, Teseu exerce fascínio sobre Ariadne,
filha de Minos que, apaixonada, resolve ajudá-lo em sua empreitada. Mais difícil do
que matar o Minotauro, no entanto, era sair do labirinto onde esse monstro vivia.
Ciente disso, Ariadne, a conselho de Dédalo, dá a Teseu um novelo de lã (um “fio
condutor”). Após matar a besta, Teseu segue o fio e retorna são e salvo do labirinto.
Foge, então, com seus companheiros e com Ariadne para logo depois abandoná-la na
ilha de Naxos e partir para novas aventuras.
Furioso com Dédalo por ter ajudado Pasífae e Ariadne, Minos prende o
arquiteto com seu filho, Ícaro, no labirinto. Dédalo, que era o construtor do
labirinto, acha facilmente a saída e, com dois pares de asas que havia fabricado, foge
com seu filho recomendando que ele não subisse muito em direção ao sol. Ícaro não
resiste à tentação e sobe em direção ao céu. A cera de suas asas derrete e ele cai no
mar de Egeu, que passa a se chamar mar de Ícaro. Dédalo, então, é acolhido por
Cócalo, rei de Cumas, mas Minos não desiste de persegui-lo. Acuado em sua própria
cidade, Cócalo pede para suas filhas resolverem a situação. Durante o banho, Minos
é escaldado com água fervente.
Várias interpretações foram dadas a esse mito e a seus personagens: alguns
afirmam que o labirinto representa o útero, Teseu o feto e o fio de Ariadne o cordão
umbilical, que permite a saída para a luz. Outros vêem na união de Teseu com
Ariadne um hieròs gámos, isto é, um casamento sagrado com vistas à fecundidade da
terra. Dédalo pode ser visto como o símbolo da engenhosidade, do talento, da
sutileza, mas também como o intelecto que, ao perder sua direção, se torna
prisioneiro de sua própria construção, o inconsciente. Ícaro, por sua vez, é o símbolo
da hýbris, da desmedida, pois ultrapassa o meio termo entre o mar e o céu, isto é,
ultrapassa o métron, a medida. Ao tentar ir além de seus limites, ele se torna o
símbolo da temeridade, a personificação da megalomania. Além disso, Ícaro revela
que as asas, símbolos da liberdade, não podem ser colocadas em nossos ombros, mas
devem ser conquistadas por meio de um grande esforço ou de uma iniciação. Ícaro
erra porque usa as asas sem observar o necessário preceito “conhece-te a ti mesmo”. 6
Finalmente, uma outra interpretação possível para esse mito, especialmente à
tríade Minotauro-Teseu-Ariadne, é já impregnada pela razão filosófica: nessa ótica
pode-se considerar o labirinto como a mente humana, o Minotauro como nosso lado
bestial e o fio de lã como a nossa razão, nossa inteligência. A moral da história seria
a seguinte: abandonado à própria sorte, sem o uso da inteligência, da razão (do
logos, que aparece junto com a filosofia), o homem é dominado (devorado) por seu
lado bestial, instintivo, irracional, desmedido.
Outro fragmento interessante da mitologia grega é o episódio do bandido
Procusto, mais um personagem derrotado por Teseu 7 . Este malfeitor tinha em seu
esconderijo um leito de ferro onde colocava todos os viajantes que raptava. Quando
eram menores que o leito, ele lhes esticava as pernas; quando eram maiores, cortava
a parte que sobrava. Teseu o venceu e o fez provar de seu próprio remédio,
colocando-o na cama e repetindo sua fúnebre tortura. Moral da história (adaptada
6
Cf. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 15º ed. Petrópolis: Vozes, 2000. vol. I, p. 61-65
7
Fato que “ocorreu” quando Teseu partia de Trezena para assumir o seu posto de hereiro do rei de Atenas.
7

aos tempos modernos): não procure pessoas que caibam em seus sonhos, não tente
colocar as pessoas em uma cama de ferro, pois todos são diferentes e o castigo pode
vir sob a forma do delito cometido. Lição sobre o ciúme e o amor. Todos os mitos
trazem lições valiosas sobre a vida. Os relatos de Pandora e de Cupido e Psique, por
exemplo, são boas lições sobre a curiosidade, a falta de confiança e a arrogância
humana.
Como se vê, o mito é um discurso que admite contradições e incoerências
lógicas, mas isso não significa que ele é desprovido de sentido e significado. Ao
contrário, os mitos eram vividos como verdades e, por isso, eram distintos das
fábulas. Para ouvir o mito e para viver o rito, a pessoa deveria ser iniciada; já as
fábulas poderiam ser contadas a qualquer um, até mesmo a crianças, uma vez que
não eram verdades sagradas. Na Grécia Antiga quem narrava o mito era o poeta,
considerado como uma ponte entre o divino e o humano, como o detentor das
verdades mais profundas. Dois poetas gregos merecem destaque: Homero e Hesíodo,
que foram os primeiros a sistematizar toda essa sabedoria mitológica em obras como
a Ilíada, a Odisséia e Os Trabalhos e os Dias. A partir daí os mitos gregos estavam
registrados para sempre. A escrita eterniza o mito e abre o horizonte da história.
Mas se a escrita eterniza o mito, ela também o racionaliza e extrai um pouco
de seu dinamismo. Depois de escrito, o mito gradualmente perde a sua força e passa
a ser considerado como uma fábula ou como um manancial de alegorias e sabedoria
popular, e não mais como uma verdade que deveria ser vivida com a prática dos
ritos. A partir de Homero e Hesíodo, a explicação mitológica da realidade começa a
ser questionada e o poeta deixa de ser uma ponte entre o divino e o humano, um
portador da verdade e passa a ser visto como um defensor da tradição e da sabedoria
ou simplesmente como um poeta. É nesse momento de desconfiança em relação à
explicação mitológica da realidade que ocorre o fenômeno mais importante da
cultura ocidental, o nascimento da filosofia, episódio também conhecido como
“passagem do mito ao logos” 8 . A partir desse momento, quem ocupa a cena não é
mais o poeta ou o sábio, mas o filósofo que, ao contrário das duas figuras anteriores,
não se afirma como o portador da verdade, mas como aquele que a persegue mesmo
sem ter a certeza de encontrá-la.
Os primeiros filósofos eram chamados de pré-socráticos, filósofos cosmológicos ou
filósofos da natureza (físicos): pré-socráticos porque antecedem a Sócrates, um marco na
filosofia; cosmológicos porque a filosofia nasceu da admiração do homem diante do
cosmos, que o leva a indagar sobre o movimento dos astros, o funcionamento do universo e
a origem de todas as coisas; e filósofos da physis (físicos) porque buscavam a resposta
sobre a origem das coisas na natureza (na physis).
Como pretendiam entender a ordem de toda a realidade, esses primeiros filósofos
concentravam suas investigações na busca pelas causas do universo. Se na explicação
mítica a origem das coisas era determinada pelas ações dos deuses, com o surgimento da
filosofia esse tipo de resposta não é mais convincente. É preciso, então, encontrar a
verdadeira causa de todas as coisas. É por isso que a maioria dos pré-socráticos se
8
Como dissemos, os deuses gregos re-presentavam as forças da natureza, ou seja, favoreciam mais a
abstração, o pensamento. Com a escrita, esses mitos, de certa maneira, se “cristalizam” e, com isso, abrem
espaço para sua “racionalização” e, posteriormente, para o nascimento da filosofia. Além desses, no entanto,
outros fatores também contribuiram para que a filosofia surgisse na Grécia, a saber: a liberdade religiosa e
política, o uso da moeda, as navegações, que desmitificavam o mundo, etc.
8

concentra na busca do “primeiro princípio”, da arché. A arché (o primeiro princípio)


significa: 1- a fonte de todas as coisas, 2- a foz ou termo último de todas as coisas e 3- o
sustentáculo permanente que mantém as coisas existindo. Trata-se de algo semelhante à
nossa concepção de deus, mas impessoal e natural.
Na busca da arché muitas respostas foram encontradas: para Tales de Mileto, o
“pai” da filosofia, o “primeiro princípio” era a água. Tales afirmou que a “Terra flutua na
água” porque acreditava que todas as coisas têm uma natureza úmida e dependem da água
para existir. As sementes, as plantas, os animais, os homens; tudo precisa de água para
viver. E a vida, quando se extingue, perde a água. Já para Anaxímenes, outro “pré-
socrático”, a arché era o ar, que é infinito, dá combustível ao fogo, forma à água e a todas
as coisas.
A despeito do aparente exotismo de seu conhecimento, os pré-socráticos fizeram
muitas descobertas e tiveram grandes intuições. Anaximandro, que afirmava o infinito
como “primeiro princípio”, disse que “os primeiros animais nasceram no elemento líqüido,
cobertos por uma capa espinhosa; tendo crescido de idade deixaram a água e vieram para o seco e,
tendo-se rompido a capa que os cobria, pouco depois mudaram seu modo de viver. ”9 É curioso
perceber que duas idéias da ciência moderna estão presentes nessa afirmação de
Anaximandro: que a vida surgiu na água e que a vida evoluiu.
Três outros filósofos pré-socráticos merecem atenção: Empédocles, Heráclito e
Parmênides. O primeiro porque era um “físico pluralista” que disse que o mundo não era
constituído por um único princípio, mas por quatro: água, terra, fogo e ar. Esses elementos,
combinados, separados ou unidos, deram origem à vida. E aquilo que os une ou os separa é
o amor ou o ódio, que se tornam forças cósmicas causadoras da união e a separação dos
elementos. Empédocles, à sua maneira, percebeu que os físicos não davam uma explicação
suficiente para a origem das coisas. Os dois outros filósofos, Heráclito e Parmênides,
merecem destaque porque são representantes de duas visões que se opõem e que
influenciaram toda a filosofia.
Heráclito afirmava que “não se pode entrar no mesmo rio duas vezes”. Tudo
está em permanente mutação; nós mesmos já não somos o que éramos a dez minutos atrás.
Com essa máxima, o primeiro princípio de Heráclito só poderia ser o fogo, o elemento mais
mutável da natureza. Heráclito é também o primeiro a falar do “logos” como “aquilo que
governa todas as coisas”.
Parmênides, por sua vez, é portador de uma visão de mundo diametralmente oposta
a de Heráclito. Para ele as coisas permanecem sempre as mesmas. De acordo com ele, “o
ser é e não pode não ser; o não ser não é e não pode ser de modo algum”. Para Parmênides
o ser era uno, ingênito, imóvel, incorruptível e imperecível. Segundo essa visão, as coisas
seguem os seus cursos sem alteração, o ciclo da vida é sempre o mesmo, tudo permanece
sempre como está. A mudança é uma ilusão.
Heráclito e Parmênides representam duas visões que orientaram grandes filósofos
ao longo dos séculos. Sempre existiram e existirão os que acreditam no eterno devir de
todas as coisas e os que crêem na permanência absoluta da ordem das coisas. Na filosofia
moderna e contemporânea há os que afirmam que a história segue um curso definido, uma
evolução inevitável, e os que afirmam que a história não é constituída por uma linha
racional, por uma evolução natural, mas que ela é, ao contrário, inusitada, surpreendente,

9
REALE, G. História da filosofia antiga. 9º ed. São Paulo: Loyola1993 , p.57
9

constituída por eventos imprevisíveis. Platão, como será visto mais tarde, tenta unificar
essas visões, dando privilégio a Parmênides.
Sobre os pré-socráticos, não é necessário dizer muita coisa. Basta perceber que eles
forneceram as primeiras explicações racionais sobre a origem e o funcionamento do
universo. E que chegaram a descobertas surpreendentes usando apenas a razão (o logos),
ou seja, sem nenhum instrumento, tecnologia ou método científico. Eles representam, é
bom sublinhar, aquilo que os estudiosos chamam de “passagem do mito ao logos”: a partir
deles é inaugurada uma nova maneira de explicar a realidade, que logo será definida como
filosofia (das palavras gregas philo=amizade e sophia=sabedoria). O filósofo, então, é o
amigo da sabedoria, e não o sábio. Ele sabe que a sabedoria é, como o manto de Penélope 10,
interminável. Diferencia-se, pois, do poeta, que se apresentava como o portador definitivo
da verdade.
Os pré-socráticos foram os primeiros a substituir a explicação mítica da realidade
pela explicação filosófica. Mas as discussões sobre a arché são insolúveis. Talvez
Empédocles soubesse disso quando tentou resolver definitivamente as querelas entre os
físicos afirmando não um, mas quatro princípios da vida. O certo é que a “filosofia da
physis” logo se esgota. É com o surgimento de novos personagens que a filosofia se
estabelece definitivamente como a “ciência primeira”. Dentre esses personagens, serão
vistos os mais importantes da Grécia antiga: os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles.

Curiosidades & Dicas de Consulta e Reflexão:

=> O mito de Prometeu e Pandora narram episódios sobre o início da história humana.
Pesquise sobre Prometeu e Pandora e veja se encontra alguma semelhança com crenças
cristãs. Reflita sobre o significado dessas semelhanças.

=> Muitos acham que a doutrina da reencarnação foi desenvolvida por A. Kardec. Na
verdade, o orfismo e o pitagorismo já falavam de reencarnação como um caminho para a
libertação da alma, embora de forma distinta. Procure saber sobre Pitágoras e sua teoria da
reencarnação (dica de consulta: REALE, Giovanni, História da Filosofia Antiga. São
Paulo: Loyola).

=> Parmênides acreditava que a mudança é uma ilusão, que tudo permanece sempre o
mesmo. Seu discípulo Zenão é ainda mais radical. Procure na internet os famosos
“paradoxos de Zenão”.

=> Um clássico para ser lido: A Odisséia, de Homero.

=> Dois excelentes manuais sobre a Grécia antiga: JAEGGER, W. Paidéia, a formação do
homem grego. São Paulo: Martins Fontes e REALE, Giovanni, História da Filosofia
Antiga. São Paulo: Loyola.

10
Penélope era a esposa de Ulisses que ficou vinte anos fora de casa, perdido em inúmeras aventuras.
Belíssima, Penélope foi cada vez mais pressionada para se casar novamente. Para continuar fiel a seu marido,
Penélope disse que se casaria depois de tecer um manto. Todas as noites, no entanto, ela desfazia seu trabalho,
para recomeçá-lo infinitamente.
10

II.2 – O impasse sofista: o relativismo - ao procurar uma explicação para a origem


do universo, os pré-socráticos não reflete sobre a vida humana. A filosofia da physis não
trata do homem e de suas relações. Foram os sofistas os primeiros a abandonar a filosofia
cosmológica e a refletir sobre o ser humano; foram eles que deslocaram o eixo da reflexão
filosófica da physis (natureza) e do cosmos (universo) para o antropo (homem) e aquilo que
lhe diz respeito enquanto membro de uma comunidade. Os temas da sofística são a ética, a
política, a religião, a retórica, a arte, a educação e tudo aquilo que hoje se chama “cultura”.
Originalmente o “sofista” era o “sábio” ou o “especialista do saber”. Com o passar
do tempo, especialmente depois das críticas de Sócrates e Platão, a palavra “sofista”
adquire um significado pejorativo e passa a designar aquelas pessoas que usam raciocínios
maldosos para a pura e simples persuasão, sem preocupação com a verdade. De acordo com
Xenofonte, “se alguém vende sua beleza por dinheiro a qualquer um que o deseje, chamam-no
prostituto..., analogamente, os que vendem a sabedoria a qualquer um, são chamados sofistas, que é
o mesmo que dizer prostitutos.”11 Essa má fama dos sofistas se perpetuou ao longo da história
por alguns motivos: 1 - pelo desprezo que lhes relegou Platão e Aristóteles, os dois maiores
filósofos da antiguidade; 2- pela venda de conhecimentos e sabedoria a qualquer um que
pagasse, fato que era condenado por muitos gregos, que possuíam uma concepção
aristocrática da educação (só os nobres e bem nascidos podiam ser educados). Essa
“democratização do saber” ameaçava a nobreza, que era a detentora do poder e do
conhecimento12. 3- Um terceiro motivo da má fama do sofista foi a sua peregrinação pela
Grécia, que não era bem vista pelos gregos, que tinham em mais alta conta a sua cidade. 4-
Finalmente, a principal razão pela qual os sofistas não eram bem quistos é o relativismo
moral que eles trouxeram para a Grécia de seu tempo. Questionando valores estabelecidos,
oferecendo a todos a possibilidade de bem argumentar e de, com isso, se destacar na
sociedade, os sofistas incomodaram a Grécia antiga.
Por que viviam num tempo de crise, quando a democracia substituiu a aristocracia,
os sofistas foram adorados e odiados ao mesmo tempo: adorados porque na democracia
quem melhor argumenta se destaca na pólis. E eles ensinavam justamente a arte da retórica,
da persuasão, que era fundamental para as pessoas que desejavam se destacar na política.
Odiados por que, como será visto, eles questionaram valores estabelecidos e representaram
um tempo de profundas transformações. Para compreender melhor o impacto causado pelos
sofistas, é preciso observar a sua filosofia mais de perto. Para isso, destacamos os dois mais
conhecidos: Protágoras e Górgias.
Protágoras (Abdera, 491-481 a.c ao final do século): talvez o mais famoso dos
sofistas, Protágoras, viajou por toda a Grécia e foi para Atenas várias vezes, onde fez muito
sucesso. As Antilogias constituem a sua principal obra.
O princípio que constitui a base da filosofia de Protágoras é o axioma “o homem é a
medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são, e das que não são por
aquilo que não são”. Esse princípio nega a existência de um critério absoluto ou de uma
base segura que distinga o ser do não ser, o verdadeiro do falso. O único critério que
temos para dizer se uma coisa é falsa ou verdadeira é o homem individual. No Teeteto,
151e-152a, Platão explica a filosofia de Protágoras:
“E não quer dizer com isso que, tal como as coisas individuais me aparecem, tais são para
mim, e tais a ti, tais para ti, porque és, como eu sou, homem? [...] mas não acontece às
11
Ibidem, p.190
12
Atualmente todos sabem que uma das melhores maneiras de se preservar um sistema político excludente é
privar o povo de educação.
11

vezes que, soprando o mesmo vento, um de nós sente frio e o outro não? E um sente
pouquíssimo, e o outro muito? [...] E então, como chamaremos este vento: frio ou não-frio?
Ou devemos acreditar em Protágoras, que para quem sente frio, é frio, para quem não sente,
não é?”13
A ausência de um critério universal que distinga o que é ou não uma coisa
verdadeira, revela que não há uma verdade absoluta e que todos estão com a verdade, com a
sua verdade. Se não existe “o verdadeiro”, também não existem valores morais absolutos.
O verdadeiro e os valores não são universais, mas apenas aquilo que é mais útil, mais
conveniente. O sábio deixa de ser o portador da verdade e passa a ser aquele que percebe
esse “relativo mais útil” e que consegue convencer as pessoas a reconhecê-lo e colocá-lo
em prática. O verdadeiro e o falso, o bem e o mal perdem a sua universalidade e passam a
indicar o útil e o prejudicial, o melhor e o pior. Diante disso, pode-se dizer que o agricultor
é sábio enquanto conhece o bem e o útil nas plantas; os médicos enquanto sabem o que são
o bem e o útil para os corpos; e o sofista é sábio enquanto conhece o bem e o útil para a
cidade e convence, com argumentos, os cidadãos desse “mais útil”.
O problema dessa posição é o seguinte: o útil nas plantas é definido pelo agricultor
com relação aos critérios de sua saúde, de seu correto crescimento e de sua maturação; o
útil do corpo humano é concebido pelo médico em cima do critério da saúde. Mas e o útil
para o homem? Ou, mais ainda, o útil para a cidade? Quem o determina? Em relação a quê?
Protágoras afirma que quem deve determinar isso é o sofista, mas não diz quais critérios o
sofista deve utilizar para fazer essas determinações. 14 Isso gera alguns problemas: de onde
vem a autoridade do sofista para determinar o que é “mais útil” para a cidade? Como ele
sabe o que é “mais útil” para a cidade? Como garantir que aquilo que o sofista pensa ser
mais útil para a cidade não seja, na verdade, mais útil apenas para ele mesmo?
Dessa maneira, ao afirmar que não existem valores absolutos, que a verdade é
“aquilo que é mais útil” e que o sábio é aquele que convence as pessoas a reconhecer a sua
verdade, Protágoras instaura o relativismo moral e/ou o utilitarismo15, que podem ser
perigosos à sociedade se radicalizados. Afinal, se cada um tem a sua verdade, se não há
critérios absolutos que julguem se uma coisa ou ação é verdadeira, os valores se tornam
relativos e a noção de justiça é ameaçada. O convencimento da correção ou da incorreção
da ação ou a utilidade da ação substituem a justiça e/ou a tradição como critério para o
agir. Moralmente correto não é mais aquilo que era determinado pela tradição, mas aquilo
que é decidido com base no convencimento, no argumento.
É por isso que Protágoras abalou seu tempo: ao afirmar a inexistência de uma
verdade absoluta, ele fulmina a tradição. Nesse processo, o poeta, os sábios e os primeiros
filósofos perdem a autoridade e a função de portadores da verdade. O sólido terreno da
tradição vira um pântano no qual os principais pilares da sociedade grega perdem a sua
força de sustentação. E, quando uma sociedade tem seus pilares questionados, ocorre um
momento de crise, de transformação16. São compreensíveis, portanto, as críticas que foram

13
Ibidem, p.201
14
Ibidem, p. 208
15
O relativismo e o utilitarismo, embora se pareçam muito, são concepções distintas. O relativismo afirma
que os valores são relativos, variam de acordo com a época, a cultura, a situação, etc.; já o utilitarismo afirma
que a verdade é “aquilo que é mais útil”. É bom dizer que o utilitarismo, cujas sementes foram lançadas pelos
sofistas, se desenvolve na modernidade com Jeremiah Bentham, que enuncia a seguinte regra: “a máxima
felicidade possível para o maior número possível de pessoas”. A maioria políticos se guia por este princípio
utilitarista.
12

direcionadas aos sofistas eles são os principais agentes de uma avassaladora crise moral e
espiritual na Grécia antiga.17
Além disso, o relativismo pode gerar sérios problemas: se não há um conceito
absoluto de justiça, como é possível saber se uma ação é ou não legítima? Se cada um tem a
sua verdade, isso significa que cada um pode agir da maneira que lhe convém? Se na
democracia a verdade é aquilo que é mais útil e o bom político é aquele que consegue
convencer as pessoas desse “relativo mais útil”, isso não significa dizer que o regime
democrático é puramente retórico, afastado do compromisso com a verdade? A democracia
deve se orientar pelo critério daquilo que é mais útil para o seu povo? Quem decide o que é
mais útil num país democrático deve ser aquele que tem maior persuasão? Se assim for, o
que parece ser mais útil para um povo, mesmo que prejudicando o resto do mundo, deve
ser sempre perseguido? Como, afinal, uma democracia deve decidir aquilo que é mais útil?
Apenas pelo critério da persuasão? Um regime político baseado na pura retórica não corre
riscos demais? O Tirano não pode começar o seu governo convencendo as massas, por
exemplo, de que é preciso perseguir algum extrato da sociedade ou vizinho? Se cada país
do mundo atual adotar a máxima de Protágoras e tiver a sua própria verdade, a sua própria
justiça, não será tão razoável adotar a máxima nazista do extermínio da diferença quanto a
máxima cristã do amor ao próximo? Como se vê, vários problemas éticos e políticos se
colocam a partir dos sofistas.
Até então, mostramos os lados “negativos” desse grupo de filósofos. É preciso
ressaltar os pontos “positivos”: sendo precursora da democracia, a sofística contribuiu para
a inclusão de todas as pessoas nas mais altas discussões18. Para os sofistas, todos poderiam
participar com sucesso da vida política, desde que fossem bem preparados na arte do
diálogo. A democratização do saber foi outra lição dessa escola: os sofistas acreditavam
que qualquer um, desde que bem conduzido, poderia aprender coisas sobre todos os
assuntos e áreas. Para mostrar a importância disso, vale lembrar que muitos modernos
acreditavam que os índios e os negros não poderiam se tornar “civilizados”, isto é,
detentores de direitos iguais (e de voz) na sociedade.
Quanto ao relativismo instaurado por Protágoras, apesar de perigoso, também é
saudável para a filosofia, na medida em que desmascara falsos absolutos, idéias antiquadas
e dogmatismos colocados pela tradição. Submeter os seus valores à crítica e à discussão é
um ato necessário em todas as sociedades saudáveis (embora isso não deva corresponder à
negação absoluta e não-crítica da tradição). Enfim, a filosofia de Protágoras colocou
problemas e questões que até hoje persistem. Outro sofista famoso é Górgias, o primeiro
representante do niilismo ocidental.
Górgias (Leontinos, 485/480 a.c até 380-370 a.c): Sua principal obra intitula-se
Sobre a natureza ou sobre o não ser e representa o niilismo ocidental. Esta obra apresenta
16
A crise instaurada pelos sofistas será um estímulo para o posterior desenvolvimento da filosofia. O
pensamento de Sócrates e Platão, por exemplo, é uma espécie de “resposta” aos sofistas. Por isso, seria mais
interessante considerar a palavra “crise” como fazem os chineses: a palavra que eles usam para designar
“crise” é wei-ji, que é composta pelos caracteres “perigo” e “oportunidade”. Uma crise é perigosa, mas traz
sempre a “oportunidade” de uma mudança, que pode ser para melhor.
17
Uma das mudanças da época é a instauração da democracia, muito criticada por Platão e pelas classes
dominantes. Ao substituir a aristocracia (ou a oligarquia), a democracia inaugura um período de
transformações e questionamentos, característicos de uma época de crise.
18
Essa é uma das principais razões da difamação histórica dos sofistas: em geral os gregos (como Platão, o
maior filósofo da Grécia) tinham uma visão aristocrática da vida política, e não viam com bons olhos a
participação de qualquer cidadão na educação e nos destinos da polis.
13

três teses principais, a saber: 1- O ser não existe, ou seja, existe apenas o nada, 2- se o ser
existisse, ele não poderia ser conhecido, e 3- mesmo que pudéssemos pensá-lo, o ser
permaneceria inexprimível.
Assim como Protágoras, Górgias afirma que o homem não pode alcançar a verdade
absoluta (aletheia). De nada adianta o esforço da fé ou da razão para encontrar verdades
absolutas. Diante dessa impossibilidade será que o homem deve renunciar à sua razão?
Não é o que pensa o filósofo de Leontinos: para ele, o homem deve usar a sua capacidade
racional, mas de outra forma, sem que isso implique na busca por uma verdade absoluta. A
razão que ele segue é a que ilumina as circunstâncias da vida dos homens e da cidade.
Somente pela análise de cada situação, diz Górgias, é que se pode decidir o que fazer ou
deixar de fazer. Não há uma fórmula pronta para guiar o agir humano; cada situação exige a
sua solução específica. E, se cada situação demanda uma solução específica, isso também
significa que os direitos e deveres variam de acordo com o momento, a idade, a posição
social, o sexo, etc. Ao questionar a verdade, Górgias se torna o primeiro representante do
que hoje se chama “ética da situação”.
Com pensamentos como esses, os sofistas tocam em problemas fundamentais da
filosofia e da ética: o que é e como é a verdade? Eterna ou produto dos homens? Se a
verdade é um produto dos homens, ela pode variar? Se a verdade varia, isso não significa
que ela simplesmente não existe? E, se as verdades podem variar, os valores também
podem? Isso significa que não há valores ou princípios éticos absolutos e universais? E a
justiça? Deve ser única ou varia de acordo com as situações? Se a justiça varia de acordo
com as situações, não se pode ter dois pesos e duas medidas em casos similares? Se isso
ocorre, um mesmo crime pode gerar uma condenação para um indivíduo e a absolvição
para outro? Isso não é injusto? Se isso é injusto, não significa que deve existir, sim, uma
noção única de justiça, válida para todos os homens? Como chegar a essa noção universal
de justiça? Uma noção única de justiça, no entanto, não seria uma agressão à diversidade
cultural? Cada povo deve ter a sua própria noção de justiça? Cada povo pode distribuir
direitos e deveres da forma que desejar? A variação dos direitos conforme o sexo, a posição
social ou o momento é justa? Se for, tudo é válido e os sofistas estão corretos quando dizem
que o mais importante é o poder de persuasão? Como, afinal, podemos saber se um
determinado valor moral deve ou não ser superado ou adotado? Apenas por meio da
retórica? Como se vê, inúmeras questões e problemas foram colocados pelos sofistas, que
deram o definitivo impulso para que a filosofia mudasse a face da civilização ocidental.
Sócrates, um dos pilares da filosofia, fez de seu pensamento uma resposta aos sofistas.

II.3 – Sócrates e a resposta aos sofistas: Sócrates nasceu aproximadamente em


470/469 a.c e morreu em 390 a.c., condenado à morte por corromper a cidade e os
costumes. Seu pai, Sofronisco, era escultor; sua mãe, Fenarete, lavadeira e parteira. Casou-
se com Xantipa, descrita por Antístenes, o cínico, como a mais insuportável das mulheres
que existem, existiram e existirão. A não ser pelas campanhas militares em Potidéia,
Anfipoli e Delio, Sócrates nunca saiu de Atenas. Porque não deixou nada escrito, as
principais fontes que temos dele são Aristófanes, Aristóteles, Xenofonte e seu discípulo
Platão, que é seu principal “porta-voz”.
Assim como os sofistas, Sócrates viveu num momento de crise, quando a antiga
aristocracia perdeu o poder e a democracia passou a vigorar. Mesmo que alguns já o
tenham chamado de “o maior dos sofistas”, Sócrates é um adversário histórico da sofística,
que combateu o relativismo moral e as indefinições por ela colocadas.
14

Para responder aos impasses gerados pelo relativismo dos sofistas, Sócrates começa
a sua reflexão com uma célebre pergunta, “o que é o homem?” A resposta a essa pergunta
é direta: o homem é a sua alma. A alma, no entanto, não deveria ser considerada como um
“fantasma” que abandonava o corpo na morte para vagar no Hades, mas sim como a nossa
razão, como a sede da nossa atividade pensante e eticamente operante. A alma
socrática é o eu consciente, a personalidade intelectual e moral. Para provar a existência da
alma, ele oferece o seguinte argumento: a alma se serve do corpo. Uma coisa é o que se
serve e outra o que é servido. O homem, portanto, é aquilo que se serve do corpo: a alma.
Com isso, é fácil compreender as duas máximas mais famosas de Sócrates: “conhecer a si
mesmo” e “cuidar de si mesmo”. Para conhecer a si mesmo, o homem deve examinar-se
interiormente e conhecer a própria alma e, para cuidar de si mesmo, ele deve cuidar em
primeiro lugar da alma. Dessa maneira, o critério para julgar se uma ação é ou não justa
não deve ser a sua utilidade ou a retórica daquele que a defende, mas a sua
conformidade com a essência humana: a alma, a consciência, que é o local onde se
encontram as idéias do belo, do bom, do justo, etc.19 A resposta aos sofistas está dada: o
homem não deve agir conforme aquilo que é mais útil, mas conforme a sua essência: a
alma. O homem não deve se guiar pela retórica de um pretenso “sábio”, mas pela voz de
sua própria consciência.
Esses pensamentos invertem o quadro de valores da Grécia. Antes de Sócrates, a
virtude (areté) era relacionada aos valores corporais e materiais, como a saúde, o vigor
físico, a beleza, a fama, a nobreza, o poder, a habilidade de guerrear, etc. Depois dele, a
virtude passa a ter relação com os valores ligados à alma, como o conhecimento ou a
ciência. É por isso que Sócrates considera o autodomínio (enkráteia) como a maior virtude
que o homem pode almejar: o homem virtuoso não é o guerreiro, o belo ou o rico, mas
aquele que é capaz de dominar as suas paixões, a sua dor, a sua fadiga ou o seu prazer, ou
seja, aquele que domina a sua própria animalidade e exerce a sua natureza racional. A
liberdade, que para os gregos tinha um sentido político (livre era o cidadão, que
participava dos destinos da polis, isto é, que fazia política), passa a ter também um
sentido moral (livre é quem consegue dominar a si próprio). Com isso, todos os valores
mudam: o verdadeiro amigo não é mais o que traz honra ou poder, mas o que tem domínio
sobre si mesmo; a felicidade se interioriza, deixa de corresponder a uma vida rica e cheia de
honrarias, e passa a ser ligada ao autodomínio e à correção moral. Não é a sorte que faz um
homem feliz, mas o autocontrole, a razão. Platão, como será visto a seguir, transfere esse
raciocínio para a política: justo e feliz é o Estado governado pelo filósofo, isto é, pela razão.
Além disso, as pessoa não devem escutar os políticos ou os poderosos para saber o que é
certo ou errado. Para isso, diz sócrates, fomos dotados de alma, de consciência.
Essa completa inversão de valores foi a responsável pela condenação de Sócrates à
morte: o novo quadro de valores por ele instaurado ameaçou a velha ordem e o levou a ser
condenado como “corruptor dos costumes”. Outro fator que o indispôs com a sua cidade foi
seu método, constituído pela ironia e pela maiêutica: Sócrates partia da afirmação de nada
saber, colocando-se diante do interlocutor como quem deseja aprender. Esse “fingimento”
provocava um choque sobre o ouvinte e o levava ao diálogo. Daí sua ironia: ele se mostra
19
Muitos filósofos acreditaram que algumas idéias estavam, de alguma forma, impressas em nossa alma. Isso
explicaria, por exemplo, o fato de que todos os povos têm a idéia de Deus ou de que todos os homens sabem
o que é mau e o que é bom (mesmo que pratiquem o mal). Sócrates acreditava que as idéias do belo, do bom,
do justo, etc., estavam impressas em nossa alma, e que bastaria consultá-la para sabermos como agir diante de
um impasse ético.
15

como amigo e admirador do interlocutor para, por meio do diálogo, levá-lo à consciência de
sua própria ignorância. Quanto ao termo “maiêutica”, indica que Sócrates inspirava-se na
profissão de sua mãe e fazia o trabalho de “parteiro espiritual”. Com sucessivas perguntas,
ele trazia à tona a verdade escondida na alma de seus interlocutores20.
Sócrates acreditou tanto em suas idéias, que morreu por elas sem pestanejar. Poderia
ter fugido ou escolhido o exílio, mas preferiu aceitar sua condenação para não violentar a
lei de Atenas, que tanto prezava. Morreu pela pólis. Na Apologia de Sócrates, Platão narra
a defesa filósofo de Atenas:

“Mas a vós que haveis me condenado, quero fazer uma predição e dizer aquilo que
acontecerá depois. Eu já estou naquele limite no qual mais facilmente os homens fazem
predições, quando estão para morrer. Eu digo, ó cidadãos que me matais, uma vingança
recairá sobre vós logo depois da minha morte, muito mais grave do que aquela que cometeis
ao matar-me. Hoje fazeis isso na esperança de vos libertardes do dever de dar conta da
própria vida e, ao invés, passar-vos-á todo o contrário: eu vo-lo digo antecipadamente. Não
mais apenas eu, mas muitos vos pedirão contas: todos aqueles que até hoje eu moderava, e
vós não percebestes. E serão tanto mais obstinados quanto mais jovens; e a vossa irritação
será tanto maior. Pois se pensais que, matando homens, impedis que alguém vos repreenda
pela vossa vida não reta, estais enganados. Não, não é este o modo de se libertar deles; e
nem é possível nem belo; mas há outro modo belíssimo e muito fácil, em vez de caçar ao
outro a palavra, esforçar-se por ser sempre mais virtuosos e melhores. Este é o meu
vaticínio para vós que haveis me condenado; e aqui termino.”21

A predição de Sócrates vingou e outros questionadores surgiram na Grécia. Entre


eles estava um jovem discípulo seu, que se tornaria o maior vulto da civilização ocidental:
Platão.

PARA PENSAR

1- Na administração de uma empresa é melhor ser relativista ou se guiar por princípios


éticos bem definidos? Por quê? O que você faria na seguinte situação: é dono de uma
empresa e coíbe qualquer desonestidade, inclusive em relação aos concorrentes. Um
empregado seu obtém, por meios ilícitos, uma informação privilegiada da concorrência e
consegue, com isso, fechar um grande negócio. Depois de fechar o negócio, ele volta para a
sua empresa e te conta tudo o que fez. Como você agiria?

2- Existem princípios éticos universais, ou são todos contingentes?

3- Muitos afirmam que não existem princípios éticos universais, e que a diferença entre as
culturas prova isso. Diante desse quadro, devemos abandonar as tentativas de impor um
20
Como foi dito na nota anterior, Sócrates acreditava que a verdade estava presente na alma das pessoas,
mesmo que encoberta pela vida sensível, pelo mundo da doxa (opinião). Muitos autores verão o mundo
sensível como a causa dos desvios humanos; verão o afastamento do homem da vida mundana como a
solução para a “cegueira da verdade”. Seja na vida do filósofo contemplativo, do santo ou do cínico, o
afastamento dos prazeres carnais será perseguido por muitos pensadores ao longo da história. Diversos
filósofos, mas especial e primeiramente Pitágoras e Platão, ajudaram a construir essa visão. Por outro lado, há
os que enxergam nessa concepção uma das principais causas da alienação humana e a combatem
veementemente.
21
Ibidem, p.329
16

ethos universal e respeitar a diferença cultural e ética dos povos. É tão legítima a vida
moral americana como a dos esquimós ou a dos índios. Qualquer tentativa de elaboração de
uma ética universal significa autoritarismo ou tentativa de domínio cultural. Se isso é
verdade, como a diversidade cultural pode ser garantida? Um povo, por exemplo, pode ter a
ambição de subjugar o outro e falar que isso faz parte de sua constituição moral? Não
parece, então, que a diversidade só pode ser garantida através do princípio ético universal
do respeito à diferença ou da não agressão entre os povos? Se assim é, existem ou não
princípios éticos universais? Se existem, pense em pelo menos três princípios éticos
universais.

5- Se você encontrou três princípios éticos universais, como fez para identificá-los?

6- Os valores morais mudam ao longo do tempo. Como, por quê e a partir de que eles
mudam?

II.4 – Platão (Atenas, 427 a.c a 347 a.c): a justiça do todo e a das partes
Quando nasceu, Platão ganhou o nome do avô: Aristocles. Não se sabe se o seu o
apelido (Platão = ombros largos) veio de seu mestre de ginástica, o lutador Aristo, ou dele
mesmo, querendo indicar a dimensão do seu estilo. Seu pai orgulhava-se do parentesco com
o rei Crodo e do de sua esposa com Sólon, e é por isso que Platão talvez tivesse, desde a
juventude, a vida política como o seu ideal de vida.
O jovem Aristocles encontrou-se com Sócrates quando tinha aproximadamente 20
anos. Num primeiro momento, conviveu com Sócrates para preparar-se para a vida política,
mas o destino e a grande vocação o levaram a uma dedicação exclusiva para com a
filosofia. Teve, no entanto, algumas experiências políticas, todas decepcionantes: em 404-
403 a aristocracia tomou o poder e dois parentes de Platão (Cármides e Crítias), que foram
destaques no governo, usaram métodos violentos e facciosos para governar. Em 399,
presenciou a morte de Sócrates pelos democratas e decidiu se afastar da vida política.
Ainda assim, em Siracusa, na Sicília, ele tentou, em vão, transformar o tirano Dionísio I em
um rei filósofo. Essa interferência indireta na política, por meio da paidéia (formação,
educação), também não deu certo: desentendeu-se com o tirano e foi vendido como escravo
em Egina, tendo sido resgatado por Anicérides de Cirene, que lá se encontrava. Ao retornar,
fundou a “Academia”, que se tornou um marco na história do pensamento humano, num
ginásio situado no parque dedicado ao herói Academo. Depois disso tudo, tentou educar
mais um governante, Dionísio II, a pedido de seu amigo Díon, e novamente correu risco de
vida. Finalmente, em 360 a.c, retorna para Atenas e dirige a Academia até sua morte, em
347 a.c. Talvez sejam por esses dados biográficos que Platão, como será mostrado, não
gostava da democracia e achava que a corrupção do Estado só poderia ser sanada quando a
filosofia chegasse ao poder. Trinta e seis escritos platônicos ficaram intactos, o suficiente
para influenciar toda a filosofia. A seguir, tem-se uma apresentação superficial de alguns
conceitos platônicos.
Ao perceber a insuficiência da filosofia dos pré-socráticos e querer dar uma reposta
aos impasses sofistas, Platão afirma que a filosofia deveria realizar uma “segunda
navegação”, capaz de superar a “primeira grande navegação” realizada pelos físicos (pré-
scocráticos). Essa segunda navegação ocorre quando há a descoberta do supra-sensível,
do ser inteligível, ou seja, quando há o reconhecimento da existência de dois planos do ser
ou da realidade: um fenomênico, visível e sensível, ou seja, passível de ser conhecido
17

pelos sentidos; e outro invisível, metafenomênico e inteligível, ou seja, captado apenas por
meio da mente. A afirmação desses dois planos era quase uma exigência lógica para Platão,
que não aceitava que as causas de todas as coisas sensíveis e contingentes, sempre sujeitas a
variações e transformações, também fossem passíveis de mudanças, caso contrário elas não
seriam as causas verdadeiras. Ao afirmar a existência de dois níveis da realidade, Platão
une Heráclito e Parmênides: o sensível, que muda o tempo todo, é representado por
Heráclito; o inteligível, que é sempre o mesmo, é representado por Parmênides. Quando
reconhece a existência desses dois planos e afirma a superioridade do plano inteligível
sobre o sensível (portanto, de Parmênides sobre Heráclito), Platão elabora a sua famosa
teoria do “mundo das idéias”.
Para compreender o “mundo da idéias” de Platão, é necessário saber o que ele
entendia por “idéia”. Para ele, as idéias não são apenas pensamentos, mas sim aquilo que o
pensamento pensa enquanto está liberto do sensível. Uma idéia platônica corresponde à
essência de algo, ou seja, é aquilo que faz com que uma coisa seja o que é. As idéias
existem em si e por si, isto é, elas não variam de pessoa para pessoa, mas são impostas aos
sujeitos de modo absoluto. Uma idéia é sempre e universalmente a mesma. Para Platão, por
exemplo, se falássemos a palavra “árvore”, a idéia que teríamos de uma árvore seria a
árvore real e todas as árvores existentes seriam “cópias” dessa idéia. Outra analogia seria a
idéia do verdadeiro, igual para todos os homens.22 Entre as idéias platônicas, destacam-se a
do justo, a do belo e a maior de todas, que deve orientar as outras, a idéia do Bem.
O mundo, diz Platão, é uma cópia dessas idéias, mas que se corrompe por uma
espécie de esquecimento humano desse mundo ideal. Relembrar-se do mundo ideal e tentar
realizá-lo no mundo real seria a missão suprema do ser humano. Mas como é possível
identificar as idéias, em especial a idéia do Bem? A resposta para essa questão encontra-se
na concepção platônica de conhecimento, cujo centro está na idéia de anamnese: a alma
pode se recordar da verdade que sempre possuiu. É de si mesma que a alma extrai o
conhecimento das idéias (do Bem, do Belo, do Bom, do Justo, etc.). A presença de todos os
conceitos que possuem “algo a mais” do que a simples experiência sensorial não podem ser
explicados senão pela presença na alma desse algo a mais, que pode ser lembrado como
reminiscência. Para Platão, há uma marca impressa na alma pela idéia que sempre
permanece, mesmo que escondida, em cada ser humano. Essa recordação pode ser feita por
meio da filosofia. Por isso, para falar de Platão, é preciso observar algumas linhas centrais
de sua “teoria do conhecimento”.
Na República há o famoso “mito da caverna”, onde Platão expõe a sua teoria do
conhecimento23 e a sua concepção do “mundo das idéias”. Prisioneiros acorrentados e
criados numa caverna vêem, num muro, somente as sombras de estátuas que passavam do
lado de fora. Criados assim desde que nasceram, acreditam que essas sombras constituem a
verdadeira realidade. Quando um deles escapa e sai da caverna, fica assustado e, por um
instante, cego. Logo que a sua visão se acostuma com a luz, ele vê os objetos reais, percebe
que tudo o que via na caverna não passava de sombras da realidade e descobre que o sol era

22
A verdade pode variar: para mim a verdade é Cristo, para Fulano é Alá, para Beltrano é a ausência de
verdade, e assim por diante. Mas a idéia do verdadeiro (e a do falso) é igual para todos os homens: é aquilo
que se conforma ou não com as suas convicções.
23
Há vários ramos da filosofia, que tratam de diferentes aspectos da realidade: a ética estuda o agir humano, a
estética estuda o belo, a ontologia estuda o ser, etc. A “Teoria do conhecimento” é uma “especialidade” da
filosofia que pretende responder algumas questões básicas sobre o conhecimento, tais como “de onde vem o
conhecimento?”, “como conhecemos as coisas?”, “é possível conhecer as coisas?”, etc.
18

a fonte de luz que permitia a visão e a existência desses objetos. Depois de vislumbrar as
coisas como elas realmente são, o prisioneiro retorna à caverna para tentar libertar os seus
antigos companheiros, que se recusam em subir em direção ao sol e que podem matá-lo
caso ele insista nessa ascensão. Esse mito tem pelo menos quatro possíveis significados: 1)
traduz os graus em que se divide a realidade: as sombras simbolizam as aparências
sensíveis, as estátuas, as próprias coisas; o muro, a linha divisória entre as coisas sensíveis e
as supra-sensíveis; e o sol simboliza a idéia do Bem, 2) traduz os graus do conhecimento:
sombras = eikasía (imaginação), estátuas = pistis (crença, objetos sensíveis), objetos e sol =
graus da dialética, do conhecimento filosófico, 3) aspecto ascético, místico e teológico:
vida dos sentidos = sombras, vida na pureza = vida do espírito, 4) aspecto político: o rei
filósofo, contemplativo, que desce ao mundo das sombras para orientar os homens em vez
de ficar contemplando a idéia. Simboliza também o risco que o rei filósofo corre ao tentar
governar os homens (o que pode ser um “desabafo pessoal”).
O certo é que o “mundo das idéias” de Platão é um todo hierarquicamente
organizado, no qual o vértice, o fundamento último, é a mais importante de todas as idéias:
a do Bem, que produz o ser e a substância. Somente por meio da filosofia, é possível
ascender ao mundo das idéias; apenas o rei filósofo pode plasmar o mundo ideal no real. É
a partir dessa visão do conhecimento e da realidade que Platão elabora sua teoria política,
que é uma resposta aos sofistas e, ao mesmo tempo, constitui a elaboração de um estado
perfeito, governado pela justiça ideal. Trata-se da primeira utopia da história, cheia de
sugestões estranhas aos homens modernos, mas plena de críticas ainda atuais e instigantes.
Vejamos:
Como foi visto nas páginas anteriores, os sofistas afirmaram a relatividade dos
valores e da idéia de justiça, que passa a se basear na prova argumentativa: se eu provar que
Alfredo é justo, ele é; se não, não é. Os sofistas pensavam, acertadamente, que a capacidade
de argumentação era fundamental para a vida política e que os bons oradores, que
ofereciam justificativas racionais para as suas propostas, seriam bons políticos. Mas os
sofistas não formularam um conceito mais amplo de justiça, que contemplasse toda a pólis
e se orientasse pela idéia suprema do Bem. Para Platão, isso é inconcebível: a justiça não
pode ser um mero convencer ou uma coisa relativa e deve se dirigir ao todo, e não apenas
às situações específicas. Qual será, então, a definição platônica de justiça?
Em primeiro lugar, como já foi sugerido, ele afirma que o conceito de justiça deve
se orientar pela idéia universal do Bem. Como Platão era um grego e via na pólis o espaço
por excelência de realização do homem, ele acreditava que, se o homem é a sua alma, o
estado é uma projeção ampliada dessa alma. Dessa maneira, o Bem coletivo é superior ao
individual, ou seja, a justiça do estado é superior à justiça dos homens individuais.
Por sua vez, a justiça do Estado significa que cada um exerça uma só função na
sociedade, aquela para a qual, por natureza, ele for mais bem dotado. O argumento de
Platão é o seguinte: o Estado surge porque os seres humanos não são autárquicos, isto é,
não se bastam a si mesmos, precisam de outros homens para sobreviver. O Estado se
origina, então, das múltiplas necessidades que os homens têm. Dessa multiplicidade de
necessidades nascem as profissões, que só podem ser exercidas por pessoas diversas.Os
homens não nascem em tudo semelhante aos outros, mas com diferenças naturais e de
aptidões que devem ser aproveitadas para a formação do Estado, para a realização do Bem.
Em outras palavras: se o homem não vive só e se os homens são diferentes, a justiça do
todo é superior à das partes e só pode ser efetivada por meio da justa adequação de
19

cada um à tarefa que lhe cabe na sociedade. A partir dessa noção de justiça, Platão
constrói o seu Estado ideal, a sua famosa República.
Na “República”, as castas têm os seus papéis bem definidos e, por vezes,
subdivididos. Entre os guardiões do Estado, por exemplo, há os que obedecem e os que
mandam. Aos primeiros, camponeses, artesãos e comerciantes, será permitida a posse de
bens e riquezas, mas nem em excesso e nem em escassez (para que a preguiça ou a cobiça
não os influenciem); aos segundos, defensores do Estado (guerreiros), não serão concedidos
bens, terão habitação e mesa comuns e receberão víveres de outros cidadãos para seu
sustento. A abnegação exigida desses segundos é total: nem mesmo a posse de uma família
é permitida, e a única coisa que podem possuir é seu próprio corpo. Os filhos dos guardiões
não devem reconhecer os pais e precisam ser retirados imediatamente das mães para serem
criados em comum. Todos aqueles que nasceram em um determinado período deverão se
tratar como irmãos. Até mesmo a seleção dos casais deve ser controlada pelo Estado, ou
seja, deve ser feita de maneira que só os melhores homens e mulheres se juntem. Para isso,
aliás, Platão oferece uma solução nada ortodoxa: controlar a reprodução por meio de
sorteios que devem ser manipulados de tal modo que somente as melhores mães e os
melhores pais se encontrem. Isso foi motivo de muitas críticas à filosofia platônica, pois é,
de certa maneira, a primeira “sugestão filosófica” de eugenia de que se tem notícia24.
Para manter o estado saudável e a justiça funcionando, a educação deve ser
exemplar (os gregos usavam a palavra paidéia, que tem um sentido mais amplo do que
“educação”. Para traduzi-la, pode-se tentar a palavra formação). Aqui entra uma grande
novidade entre os pensadores gregos: Platão afirma que homens e mulheres devem ser
educados da mesma maneira e podem ocupar os mesmo cargos, se tiverem aptidão para
isso. Na educação platônica, os guardiões são educados com música e ginástica para que
sofram os efeitos do Bem. Já os governantes precisam mais do que dos efeitos do bem;
precisam do conhecimento do bem. Quais são, então, os homens e as mulheres que devem
governar? Quais homens e mulheres têm o conhecimento do bem que lhes permite governar
com justiça? A resposta de Platão é direta: os governantes são os filósofos e os filósofos são
os governantes.
De acordo com Platão, colocar o filósofo no governo equivale a colocar o divino e o
absoluto como medida suprema, como fundamento do Estado. O filósofo, depois de ter
alcançado o divino, o contempla e o imita e, por isso, é capaz de plasmar o Estado segundo
a mesma medida. No Estado platônico é extremamente importante a seleção de jovens
dotados de vocação filosófica. Afinal, como foi dito, a Paidéia ginástico-musical produz os
efeitos do Bem, mas não o conhecimento do Bem. Para chegar a esse conhecimento não há
atalhos, somente o longo caminho da “segunda navegação”, que passa pela aritmética,
geometria, astronomia, ciência da harmonia e culmina na dialética, isto é, na segunda
navegação, na contemplação do sol ou da idéia do Bem que Platão simboliza no mito da
caverna.
Para obter governantes filósofos, após longa observação, os que chegarem aos trinta
anos e tiverem vocação dialética serão colocados à prova para verificar se, prescindindo de
olhos e sentidos, são capazes de subir à verdade. Aqueles que passarem nesse teste serão
educados na dialética por cinco anos. Dos trinta e cinco anos aos cinqüenta, deverão ainda
se submeter a atividades empíricas, assumindo o comando de guerras e vários cargos.
Somente aos cinqüenta anos termina a Paidéia dos governantes: se sobreviverem, estarão
24
Essa crítica, no entanto, não parece correta, pois Platão não desejava uma “raça superior” como o nazismo
desejou no século XX.
20

aptos a governar. É interessante perceber que, apesar de Platão desenhar uma sociedade
dividida em castas, nessa sociedade ainda há o espaço para a mobilidade social: se um filho
de artesão tivesse habilidade filosófica, ele poderia ser governante. Além disso, cada casta
tinha a sua compensação e os seus sacrifícios; os que obedecem podem ter algum dinheiro,
os que mandam nada possuem, e assim por diante.
Trata-se, então, de uma aristocracia no sentido forte do termo: o governo dos
melhores por natureza e educação. Esse Estado ideal é o parâmetro para as construções
reais: todas as constituições reais são imitações da constituição ideal. Quando é um só que
governa imitando o político ideal, tem-se uma monarquia; quando é a classe dos ricos que
governa idealmente, tem-se uma aristocracia; quando é o povo, tem-se uma democracia.
Existem, no entanto, as formas corrompidas de Estado. A monarquia pode se degenerar em
Tirania, a aristocracia em oligarquia e a democracia em demagogia.
A respeito da corrupção do Estado, há uma ordem, que pode ser historicamente
rompida, mas que é determinante: o primeiro passo da corrupção do Estado é a timocracia,
governo que substitui a virtude pela honra como valor supremo. Fazendo isso, a sede de
honras (a ambição) substitui o Bem público e torna-se a mola mestra da vida pública. Na
vida privada já se esconde o desejo por riquezas e, portanto, a próxima forma de Estado
corrompido: a oligarquia, forma de governo fundada na riqueza. Após a oligarquia, que é
o governo cujo valor fundamental é a riqueza, temos a democracia, que Platão entendia
pejorativamente por demagogia. É notória a antipatia platônica pela democracia, que
condenou Sócrates e que pode tender a um forte caráter demagógico. Muitas críticas foram
feitas a Platão por leitores modernos,25 mas seu argumento á instigante:
“A insaciabilidade de riqueza e dinheiro leva, pouco a pouco, na oligarquia, a não se cuidar
de outra coisa a não ser de riqueza. Os jovens, crescendo sem uma educação moral,
começam a gastar sem medida... e se abandonam indiscriminadamente a todo o gênero de
prazer [...] Dessa maneira, os ricos detentores do poder se enfraquecem, mesmo
fisicamente, até o momento em que os súditos pobres tomam consciência do que está
acontecendo e, na primeira ocasião propícia, tomam o poder e instauram o poder do povo,
proclamando a igualdade dos cidadãos (distribuindo a igualdade seja entre os iguais, seja
aos desiguais, diz Platão), e distribuindo magistraturas com o sistema do sorteio. O Estado
fica cheio de “liberdade”, mas é uma liberdade que, desvinculada de valores, degenera em
licenciosidade. Cada um vive como lhe apraz e, se quiser, pode participar também da vida
pública. [...] quem quiser fazer carreira política não necessita ter natureza adequada,
educação e competência: basta que afirme ser “amigo do povo.””26
Como se vê, o principal motivo da antipatia platônica para com a democracia era a
“distribuição de igualdade entre os desiguais” e o sistema de “sorteio” das magistraturas,
que substituía o critério da competência. Se as pessoas não são iguais, tratá-las igualmente
significa ferir a justiça do todo. Justo é saber dar a cada um a parte que lhe cabe, por
aptidão, na sociedade (e isso só é possível no governo do rei filósofo). Depois da
democracia, pensava Platão, só restava a tirania, onde o desejo de um só substituía a
justiça e a razão. Da total liberdade para a total escravidão: é esse o passo final da
corrupção do Estado na teoria platônica. Assim como qualquer grego (até mesmo os

25
A hermenêutica revelou que esse tipo de crítica é injusto, pois quando lemos um texto, devemos tomar
consciência de sua historicidade, dos pré-juízos, pré-conceitos e pré-suposições de sua época. Compreender o
tempo histórico de Platão é essencial antes de criticá-lo. Mesmo assim, as teorias gregas continuam
assustadoramente atuais.
26
Ibidem, vol II, p.265
21

sofistas, quando preparavam as pessoas para a vida política), Platão colocava o Estado e a
política acima do indivíduo e da vida privada.
Para resumir, pode-se dizer que a filosofia platônica responde aos sofistas de
maneira semelhante a que vimos em Sócrates: no lugar da relatividade dos valores, ele
oferece a orientação pelas idéias universais que estão impressas em nossa alma, em especial
a do Bem. Orientando-se por essa idéia suprema, ele elabora o Estado ideal, onde a justiça é
colocar cada peça em seu lugar.

PARA PENSAR:

1- Pense se o conceito de justiça de Platão, dar a cada pessoa uma função na sociedade
por mérito, não pode ser associado à prática do administrador (como deve ser feita a
distribuição dos talentos dentro de uma empresa?).
2- Existe alma? Se existe, o que é a alma?
3- O conhecimento do bem e do mal está “impresso na alma” ou é fruto da “cultura”?
Justifique a sua resposta.
4- A atual democracia mundial é excludente ou oferece oportunidades iguais a todos os
cidadãos? Se você acha que ela é excludente, quais são os excluídos? E como ocorre
o processo de exclusão na atual democracia?
5- Você enxerga algum outro regime político como sendo melhor do que a
democracia? Justifique e fundamente a sua resposta.
5- Sugestão de pesquisa e de reflexão: sociedades bem distintas das “civilizadas”,
como os canibais de Papua, na Nova Guiné (tribos Korowai e Asmat) e as seis tribos
americanas que se situavam na região de nova York e da Pensilvânia e que formavam
as chamadas “Nações Iroquesas”. Sobre os canibais, procurem saber e refletir: quem
pode ser a sua vítima? Como e por quê eles comem as suas vítimas? O que se deve
fazer a respeito disso? O que é o bem e o mal para um canibal de Nova Guiné? E para
você? Sobre os índios iroqueses dos Estados Unidos, procure saber e refletir: como eles
se organizavam? Como eram tomadas as suas decisões? Como eles tiveram seus
territórios tomados? Com quem eles lutaram? O que ganharam em troca? Qual
importante documento histórico é inspirado nas nações iroquesas?

II.5 – Aristóteles (Estagira, 384/83 a 322 a.c): a divisão do conhecimento e a ética –


Seu pai, Nicômaco, foi médico do rei Amintas, da Macedônia. Com 18 anos, Aristóteles foi
para Atenas e ingressou na Academia, onde permaneceu por 20 anos, até a morte de Platão.
Saiu porque, após a morte de Platão, o “acadêmico” Espêusipo, seu mais forte opositor,
assumiu a direção da Academia. Foi, então, para a Ásia menor.
Passou por Assos onde fundou uma escola com os platônicos Erasto e Corisco, e lá
permaneceu por três anos. Depois foi para Mitilene, na ilha de Lesbos, para lecionar. Em
343/342, Felipe, o macedônio, confia-lhe a educação de seu filho, Alexandre, então com 13
anos. Deve ter ficado na corte Macedônia até Alexandre assumir o trono, em 336. Retorna à
Atenas em 335/334 e abre uma escola em alguns edifícios próximos a um pequeno templo
dedicado a Apolo Lício, de onde vem o nome “Liceu”. Como dava aulas passeando no
22

jardim, a sua escola (o Liceu) também era conhecida como perípato (peripatos=passeio), e
seus seguidores como peripatéticos.
Em 323, com a morte de Alexandre, ocorre em Atenas uma forte reação
antimacedônia. Temendo um novo “atentado contra a filosofia” (o primeiro foi a morte de
Sócrates), Aristóteles foge para Calcídia, onde a sua mãe possuía bens, e deixa Teofrasto na
direção do Liceu. Morre em 322, com poucos meses de exílio.
Aristóteles é o responsável pela primeira e mais famosa divisão do conhecimento, a
saber: 1- ciências teoréticas, que buscam o saber por si mesmas. São a metafísica ou a
“filosofia primeira”, que é a mais elevada das ciências, a física ou “filosofia segunda” (onde
se inscreve a psicologia), e a matemática. 2- o segundo grande ramo do conhecimento é
constituído pelas ciências práticas, que buscam o saber para alcançar a perfeição moral.
Esse ramo inclui a política e, subordinada a ela, a ética. 3- o terceiro ramo é constituído
pelas ciências poiéticas ou produtivas, que buscam o saber em vista do fazer, com a
finalidade de produzir objetos.
Como se vê, a ética era subordinada à política; a perfeição moral estava
indissoluvelmente ligada à perfeição do Estado. A saúde da comunidade era mais almejada
do que a do indivíduo. Essa prioridade grega da política sobre a ética nos parece estranha,
pois nosso tempo, por diversas e justas razões, considera o indivíduo como anterior ao
Estado. Hoje em dia consideramos a liberdade individual como um valor fundamental e
inquestionável da democracia. Os povos que ainda não conquistaram a sua liberdade
individual estão em procura dela, seja por meio de protestos e argumentos ou de violência e
desordem. O Estado ocidental atual (atualmente “encarnado” na forma da democracia) só
tem sentido se garantir a liberdade individual. Na Grécia antiga, ao contrário, o todo (o
Estado) era anterior ao indivíduo, ou seja, a liberdade individual não se sobrepunha à
liberdade política. Para os gregos, livre era o cidadão, isto é, aquele que pode cuidar das
tarefas da “pólis”. Um grego certamente veria a nossa ânsia pela “liberdade individual”,
freqüentemente identificada com uma alienante busca por dinheiro e bens materiais, como
um sintoma de alguma demência ou como falta de caráter. Quem está certo? O cidadão
grego ou o cidadão moderno? Nem um nem outro.
Cada visão de mundo representa o seu tempo e deve ser compreendida em seu
contexto. Gadamer, um filósofo do século XX, dizia que todos os tempos e todas as
culturas têm diferentes pré-supostos, pré-conceitos e maneiras de interpretar a realidade.
Assim, por exemplo, na década de 1960 predominava a interpretação marxista da realidade.
Todos interpretavam a história como uma luta de classes, como uma peleja entre proletários
e capitalistas e com inúmeros conceitos marxistas. Atualmente há outras formas de se
encarar a história, e poucos são os que continuam a interpretá-la de maneira puramente
marxista. Todos nós temos pré-conceitos e maneiras de ver a história, que variam com o
tempo. Procurar compreender os pré-conceitos do tempo e do povo que estamos a estudar
(assim como os nossos), ajuda a compreender melhor o passado. Um exemplo: é preciso ter
consciência de que estamos, agora, a aplicar conceitos da hermenêutica, que dizem para
termos consciência de nossos pré-juízos. Outro exemplo: um cientista, que encara a
realidade de maneira objetiva, isenta de valores, pela ótica da pura ciência, deveria ter
consciência de que a isenção valorativa é, ela mesma, um valor. Fazendo isso, ele ampliaria
as suas convicções e perceberia que não há isenção no mundo: só posicionamento. E que
todo o posicionamento da comunidade científica gera amplas e graves conseqüências para o
mundo atual. Armas biológicas, químicas e/ou de destruição em massa são alguns exemplos
do que a “isenção valorativa” da comunidade científica pode ajudar a construir. Não é à toa
23

que os cientistas do século XXI estão cada vez mais preocupados com a ética: eles sabem
que a “ciência pela ciência” já não é mais possível porque o mundo está na beira do colapso
e exige responsabilidade, paz e diálogo. Todo cientista atual sabe que é essa mesma ciência,
que nos deu as ferramentas para cavar esse abismo, que pode nos dar os instrumentos para
superá-lo e seguir em frente.
É por isso, então, que devemos ter sempre consciência de nossos “pré-conceitos”
quando interpretamos a realidade: isso aumenta a nossa capacidade de compreender os
outros povos, as outras formas de vida, as outras épocas. Por isso, a ética de Aristóteles
deve ser encarada sob a perspectiva grega, que considerava a pólis como superior ao
indivíduo. Para ele, a ética era subordinada à política, era um caminho, um pré-requisito
para a política. O cidadão moralmente equilibrado seria um bom político. Por outro lado, os
gregos, de maneira geral, viam o cidadão que não participava dos destinos da pólis como
um idiota, por mais honesto que fosse. É nesse contexto que Aristóteles elabora a sua ética.
Na Ética à Nicômaco27, Aristóteles desenvolve o seguinte raciocínio: em todas as
suas ações, o homem tende a precisos fins, que se configuram como bens. E todos os bens e
fins que o homem almeja estão em função de um fim ou bem último: a eudaimonia
(felicidade). A partir daí, Aristóteles ergue uma argumentação que até hoje fascina os
leitores.
Para definir a felicidade, Aristóteles diz o que ela não é. Começa pela definição que
a maioria das pessoas têm: a felicidade consiste no prazer e no gozo. E afirma que essa
felicidade corresponde a uma “existência digna dos animais”. Os mais evoluídos acreditam
que a felicidade consiste na honra e na fama. Mas a honra é fugaz e depende de alguém
para conferi-la. Piores ainda são os que crêem que a felicidade consiste no acúmulo de
riquezas, pois o dinheiro é apenas um meio, e não um fim. Se a felicidade não é oriunda do
prazer, da fama ou da riqueza, de onde ela vem?
Aristóteles acreditava que a felicidade não vinha do exterior, mas de dentro do ser
humano (vale aqui perceber como a inversão socrática dos valores influenciou toda a nossa
cultura). Para ele, a felicidade, tal como era para Sócrates, significava viver conforme
aquilo que distingue o ser humano das bestas: a razão. Afinal, a felicidade é uma atividade
da alma, e a alma é racional. Levar uma vida conforme a razão significa, por sua vez, levar
uma vida de acordo com as virtudes.
E, se o homem possui diversas funções, assim ocorre com a sua alma. Para cada
função da alma é exigida uma virtude. Por isso, Aristóteles divide as virtudes em éticas e
dianoéticas. As virtudes éticas são as relativas à parte sensitiva e concupscível da alma.
Essas virtudes consistem no domínio dos impulsos instintivos, no domínio da desmedida, e
são adquiridas através do habitus. Realizando ações justas, adquirimos o habitus da justiça;
realizando atos corajosos, adquirimos o habitus da coragem, e assim por diante. Mas isso
informa apenas como adquirimos as virtudes, e não qual é a natureza das virtudes. O que
define uma virtude? Qual é a essência comum a todas as virtudes éticas? O justo meio,
responde Aristóteles. A coragem é o justo meio entre a covardia e a temeridade, a
amabilidade é o justo meio entre a hostilidade e a adulação, e assim por diante. A virtude é,
enfim, a justa medida com a qual repartimos os bens, as vantagens e os ganhos.
Por sua vez, as virtudes dianoéticas são aquelas que correspondem à parte mais
elevada da alma, a racional. Conhecidas como “virtudes da razão”, elas se dividem em dois
grupos, que correspondem às duas partes da alma racional, a razão prática, que conhece as

27
Trata-se da primeira obra de ética da história do ocidente. A partir daí firma-se a “ciência do ethos”.
24

coisas contingentes, e a razão teorética, que conhece as coisas necessárias e imutáveis28.


Essas virtudes são a sabedoria (phrónesis) e a sapiência (sophia).
A sabedoria, virtude da razão prática, consiste em dirigir corretamente a vida do
homem, em saber deliberar sobre o que é bom ou ruim para o homem. E a sapiência,
virtude da razão teorética, consiste na captação intuitiva dos princípios por meio do
intelecto. Essa é, segundo Aristóteles, a virtude mais elevada da alma, porque diz respeito
ao que está acima do homem. Dessa maneira, a felicidade consiste em viver de acordo com
as virtudes: em primeiro lugar na atividade do intelecto, em segundo na vida de acordo com
as virtudes éticas. Aqueles, no entanto, que não vivem conforme as virtudes éticas, não são
capazes de chegar às virtudes dianoéticas. Desde Aristóteles, a contemplação de Deus exige
o equilíbrio moral, o exercício das virtudes éticas. Por mais diferente que o deus
Aristótélico fosse do Deus cristão, do Deus judaico ou do Deus muçulmano, ele exigia
perfeição moral para poder ser compreendido. Desde sempre os pensadores, em sua
maioria, afirmam que a ausência de uma alma equilibrada impede a contemplação do
divino, do sumo bem.
De todas as ciências, portanto, a metafísica é a mais elevada e foi chamada por
Aristóteles de filosofia primeira ou teologia, em oposição à filosofia segunda ou física.29
Ela é uma ciência que trata das realidades que estão acima do mundo físico, isto é, das
realidades supra-sensíveis. Aristóteles definiu a metafísica de várias maneiras: como a
ciência que indaga sobre as causas e os princípios primeiros; como a ciência que indaga
sobre o ser enquanto ser, ou como a ciência que indaga sobre Deus ou sobre a substância
supra-sensível. Trata-se de uma ciência que vale em si e para si, pois tem em si mesma seu
fim, ou seja, sua razão de ser é uma só: satisfazer a curiosidade humana por um puro
conhecimento. Ela nasce da admiração do homem diante do mundo, da radical necessidade
que o homem tem de conhecer o porquê último.30 Para Aristóteles, todas as outras ciências
são mais necessárias do que a metafísica, mas nenhuma é superior a ela. Para ele, todo o
saber que tem uma porção intelectual é superior àqueles saberes que são meramente
manuais:
“Todos os homens, por natureza tendem ao saber. (...) com efeito, os homens adquirem
ciência e arte por meio de experiência. A experiência, como diz Polo, produz a arte,
enquanto a inexperiência produz o acaso. A arte se produz quando, de muitas observações
da experiência, forma-se um juízo geral e único passível de ser referido a todos os casos
semelhantes. Ora, em vista da atividade prática, a experiência em nada parece diferir da
arte; antes, os empíricos têm mais sucesso do que os que possuem a teoria sem a prática. E a
razão disso é a seguinte: a experiência é conhecimento dos particulares, enquanto a arte é o
conhecimento dos universais; ora, todas as ações e as produções referem-se ao particular.
(...) Todavia, consideramos que o saber e o entender sejam mais próprios da arte do que da
experiência, e julgamos os que possuem a arte mais sábios do que os que possuem só a
experiência, na medida em que estamos convencidos de que a sapiência, em cada um dos
homens, corresponda à sua capacidade de conhecer. E isso porque (...) os empíricos
conhecem o puro dado de fato, mas não o seu porquê; ao contrário, os outros conhecem o

28
Aqui vale perceber uma semelhança com a divisão platônica da realidade, proposta em sua “segunda
navegação”: Platão diz que há um plano da realidade onde se encontram as coisas sensíveis, fenomênicas,
contingentes, e outro onde se situam as coisas inteligíveis, matafenomênicas, necessárias. E afirma que o
verdadeiro conhecimento é o daquelas coisas que não mudam. Ou seja: por mais que tenha se afastado do
platonismo, Aristóteles carrega a herança dos ensinamentos de seu mestre por toda a vida.
29
O termo metafísica foi criado posteriormente para designar os livros que vinham depois da física.
30
REALE, op.cit., p.337-339.
25

porquê e a causa. (...) Por isso consideramos os que têm a direção nas diferentes artes mais
dignos de honra e possuidores de maior conhecimento e mais sábios do que os
trabalhadores manuais, na medida em que aqueles conhecem as causas das coisas que são
feitas; ao contrário, os trabalhadores manuais agem, mas sem saber o que fazem, assim
como agem alguns dos seres inanimados, por exemplo, como o fogo queima: cada um
desses seres inanimados age por certo impulso natural, enquanto os trabalhadores manuais
agem por hábito.”31
Aqui, no entanto, Aristóteles ainda fala da techné,ou seja, de um saber que ainda
não é o mais elevado, pois conserva uma certa dose de “empirismo”. Para ele,
“quem deseja a ciência por si mesma deseja acima de tudo a que é ciência em máximo grau,
e esta é a ciência do que é maximamente congnoscível. E a mais elevada das ciências, a que
mais autoridade tem sobre as dependentes é a que conhece o fim para o qual é feita cada
coisa; e o fim em todas as coisas é o bem e, de modo geral, em toda a natureza o fim é o
sumo bem. (...) Do que foi dito, resulta que o nome do objeto de nossa investigação refere-
se a uma única ciência; esta deve se ocupar sobre os princípios primeiros e as causas, pois o
bem e o fim das coisas é uma causa.”
Essa ciência das causas primeiras, da qual fala Aristóteles, é a metafísica. E o sumo
Bem é Deus, que Aristóteles define da seguinte maneira:
“...dado que o que é movimento e move é um termo intermediário, deve haver,
consequentemente, algo que mova sem ser movido e que seja substância eterna e ato. (...)
dado existir algo que move sendo, ele mesmo imóvel e em ato,não pode ser diferente do que
é em nenhum sentido. (...) Portanto ele é um ser que existe necessariamente; e enquanto
existe necessariamente, existe como Bem, e desse modo é Princípio. (...) Desse
princípio...dependem o céu e a natureza. (...) Portanto, do que foi dito, é evidente que existe
uma substância imóvel, eterna e separada das coisas sensíveis. E também fica claro que essa
substância não pode ter nenhuma grandeza, mas é sem partes e indivisível.”32
O conhecimento de Deus (ou do “primeiro princípio”) é o mais elevado que um
homem pode possuir. Esse conhecimento só pode ser atingido pela filosofia, pelo
pensamento. Nesse sentido, Aristóteles afirma que a “atividade contemplativa é o que há de
mais prazeroso e mais excelente”33. Por isso, a felicidade suprema consistia em levar uma vida
de acordo com a virtude e, além disso, dedicar-se a mais elevada de todas as atividades: a
contemplação.
Aqui termina a parte sobre a Grécia clássica. Há muito mais para se estudar sobre o
assunto. Aqui foram delimitadas algumas das figuras mais importantes desse período
apenas para estimular a curiosidade e mostrar que muitos dos problemas e questionamentos
atuais foram “descobertos” na Grécia antiga. A próxima unidade trata, muito
superficialmente, de três períodos da história: o helenismo, a idade média e o renascimento.
Esses períodos formam a ponte para a modernidade, onde o mundo que conhecemos
começa a se formar.

PARA PENSAR:

1- Você concorda com Aristóteles quando ele afirma que os conhecimentos técnicos
são superiores aos manuais, mas inferiores aos “contemplativos” ou puramente
teóricos? Por quê?

31
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002, p.9.
32
Idem, ps.565-567
33
Idem, p.565
26

2- Imagine um mundo onde fossem expulsos todos os técnicos e trabalhadores


manuais e fossem mantidos apenas os teóricos. Você acha que esse mundo é
possível? Por quê? E o contrário (um mundo onde os teóricos fossem expulsos e
permanecessem só os trabalhadores manuais), é possível? Por quê?
3- Qual é a importância do trabalhador manual, do técnico, do gerente/coordenador e
do diretor geral na sua empresa? O que ela faz por cada um deles? Como é a
comunicação entre cada um desses colaboradores dentro de sua empresa? Há
políticas bem definidas para esses colaboradores em sua empresa?

III - Helenismo, Idade Média e Renascimento

III.1 O helenismo: a expedição de Alexandre Magno (334-232 a.c) é um marco no período


de decadência da pólis que, gradualmente, perde a sua autonomia, a sua liberdade e o seu
papel histórico. Alexandre morre cedo e não concretiza o seu sonho de formar um grande
império. Surgem, no entanto, monarquias que, embora instáveis, abalam definitivamente os
valores gregos clássicos como os defendidos na República de Platão. O grego, antes
cidadão, se torna um súdito; as virtudes civis dão lugar aos conhecimentos técnicos, e o
administrador da coisa pública (da res pública) deixa de ser o cidadão e passa a ser o
funcionário, o soldado ou o mercenário. A antiga divisão entre gregos e bárbaros
desmorona.34 Finalmente, em 146 a.c, a Grécia perde a sua liberdade e se torna uma
província romana. São séculos de decadência para a Grécia antiga, mas de florescimento de
um novo império.
Nesse panorama, o homem é compelido a buscar uma nova identidade, diferente da
de cidadão da pólis. Essa identidade é a do indivíduo: se a educação clássica dos gregos
formava cidadãos, a cultura da era helenística formava indivíduos. A transferência do
poder para um só ou para poucos dá ao indivíduo uma maior liberdade para forjar a sua
vida e os seus valores.
Uma das conseqüências dessa mudança política e espiritual é a separação entre a
ética e a política. A ética clássica era baseada na identidade entre o homem e o cidadão, ou
seja, era subordinada à política. O homem ético era o político, o cidadão. Já na era
helenística, com a “descoberta do indivíduo”, a ética se estrutura de maneira autônoma,
baseando-se no homem e em sua singularidade.
Nesse processo, a filosofia perde um pouco do seu vigor especulativo, mas ganha
mais adeptos: se já não era mais possível extrair valores da pólis, as pessoas passam a
recorrer à filosofia para orientar as suas vidas. É por isso que os filósofos da era helenística
não possuem o rigor teórico, lógico e conceitual dos gregos: mais do que o rigor conceitual,
eles buscavam normas de conduta e novas formas de vida para um tempo de mudanças. São
os grandes moralistas que passam a ser o destaque na filosofia. Entre eles, encontram-se, os
cínicos, os epicuristas e os estóicos.
Os cínicos e a interiorização da felicidade: Antístenes, o fundador do cinismo,
admirava Sócrates, mas negava Platão. Para ele, as “Idéias” platônicas eram um absurdo.
“Vejo um cavalo, e não a cavalidade”, dizia Antístenes a Platão. Do pensamento de
Sócrates, no entanto, Antístenes conservou o valor dado ao autodomínio. A capacidade de
34
Com isso, antigos pré-conceitos são eliminados. Alexandre estava disposto a acabar com a noção racista de
mundo que os gregos possuíam. Para isso, estabelecia medidas para estimular a miscigenação: vários oficiais
macedônios casaram-se com mulheres persas. Ele mesmo se casou com uma mulher persa. Ao invés de matar
a mulher da nobreza, Alexandre a conservava para misturá-la com sua raça e firmar a sua conquista.
27

Sócrates de suportar as fadigas, dominar as paixões e bastar-se a si mesmo é uma


mensagem de liberdade que tocou Antístenes profundamente. Para ele, o homem não
deveria ter necessidade de nada, muito menos do prazer que, a seus olhos, escravizava o
homem. Xenofonte descreve a liberdade de Antístenes da seguinte maneira:
“- E tu, Antístenes, retomou sócrates, diz-me como é que, embora sendo tão carente, és
assim tão orgulhoso de tua riqueza.
- Porque a meu ver, amigos, riqueza e pobreza os homens as têm não em casa, mas na
alma. Vejo tantos que são carentes e, embora possuindo muitos recursos, são considerados
pobres a ponto de afrontarem qualquer fadiga, qualquer risco para ganhar mais: conheço
irmãos que tiveram a mesma herança e, todavia, um tem o necessário para os seus gastos,
enquanto o outro carece de tudo; e sei de certos tiranos tão famintos de riquezas que
cometem delitos muito mais horrendos do que os homens deseperados (...) Destes tenho
compaixão, e muita, pela sua trágica obssessão. Da minha parte, (...) se agora me fossem
tirados todos os meus pertences, vejo que não há nenhum trabalho que seja tão ignóbil que
não me ofereça um sustento suficiente.”35
Honra, fama, poder, prazer, projeção social; tudo isso era evitado pelos cínicos, que
levavam uma vida conforme a natureza e desprezavam os hábitos sociais. Para os cínicos, a
vida genuína deve eliminar as necessidades supérfluas e seguir a parrhesía (liberdade de
palavras) e a anáideia (liberdade de ação).
Essa total liberdade ascética pregada pelo cinismo foi seguida por vários filósofos,
especialmente quando a pólis grega entrou em declínio. Dentre eles, o mais famoso é
Diógenes (aprox. 390-320 a.c), que era capaz de insultar os poderosos e de fazer qualquer
coisa à luz do dia, até mesmo as suas necessidades fisiológicas. Para ele, o homem devia
bastar-se a si mesmo, dizer tudo o que pensasse a quem quer que fosse, agir como quisesse,
e ser indiferente diante das convenções sociais. Diógenes também reforçou uma forte
característica do pensamento cínico: o desprezo pelo prazer. Para ele, o prazer enfraquece o
corpo, amolece o espírito e ameaça a liberdade. Afirmava que os estúpidos eram escravos
das paixões assim como os servos dos senhores. Por isso, não admitia o casamento: o
homem deve ser inteiramente livre de qualquer cobiça ou obrigação social.
Diante disso, pode-se compreender os objetivos finais dos cínicos: a autarquia e a
apatia, conquistadas mediante exercícios físicos e fadiga. Muitas vezes eles se
alimentavam apenas de ervas e água fresca e dormiam em qualquer lugar, até mesmo num
barril, como fez Diógenes36. O ensinamento de Diógenes pode ser resumido nos dizeres que
seus admiradores deixaram em seu monumento fúnebre: “Até o bronze cede ao tempo e
envelhece, mas a tua glória, ó Diógenes, permanecerá intacta pela eternidade, pois só tu ensinaste
aos mortais a doutrina de que a vida basta a si mesma e indicaste o caminho mais fácil de viver.”37
No diálogo “Vitarum auctio”, do século II d.c, de Luciano, a filosofia de Diógenes é
descrita da seguinte maneira:
“Mercúrio- Ó tu, que levas o bornal e a túnica sem mangas, vem, e participa um pouco da
reunião. Estou vendendo uma vida máscula, uma vida ótima e corajosa, uma vida livre:
quem a compra?

35
REALE, op. Cit., v. I, p. 337
36
Reza a lenda que Diógenes estava em seu barril, tomando sol, quando Alexandre o grande se aproximou e
disse que, para um sábio como ele, daria qualquer coisa que pedisse. A resposta foi rápida: “quero que saia da
frente do sol que estou tomando”. Pare de fazer “sombra”, disse-lhe o cínico. Podemos interpretar essa
sombra, como uma sombra da alma, como a corrupção que a riqueza e o prazer podem trazer à alma.
37
REALE, op.cit., v.III, p. 33.
28

Comprador- Ó vendedor, o que dizes? Vendes alguém que é livre? (...) e não temes que te
acuse de vendê-lo como escravo e te acuse no Aerópago?
Mercúrio- Não lhe importa absolutamente ser vendido: porque crê que de qualquer modo é
livre.
Comprador- Que se poderia fazer com alguém tão sujo, miserável e esfarrapado?
Simplesmente fazê-lo cavar a terra ou carrefar a água.
Mercúrio- Poderia também trabalhar como porteiro, muito mais fielmente do que os cães.
É verdade: ele tem tudo do cão, inclusive o nome.
Comprador- De onde ele é? E o que ele afirma saber?
Mercúrio- Pergunta a ele, pois é melhor assim.
Comprador- Esse rosto escuro e severo faz-me temer, se me aproximo, latirá e me
morderá. Vê como levanta o bastão, encrespa as sombrancelhas, e olha arrevesado e
ameaçador?
Mercúrio- Não temas: é cão doméstico.
Comprador (perguntado para Diógenes)- Diz-me, homem tolo, de onde és?
Diógenes- De todos os países.
Comprador- Que queres dizer?
Diógenes- Que sou cidadão do mundo.
Comprador- De quem és discípulo?
Diógenes- De Hércules.
Comprador- E porque não vestes também a pele de um leão? A clava tens como ele.
Diógenes- Esse manto é para mim como a pele de leão. Como Hércules, faço guerra aos
prazeres; e não dando ordens como ele, mas pessoalmente, assumi a tarefa de purificar a
vida humana. (...) Eu sou o libertador dos homens, o médico das suas paixões, em suma, eu
sou o profeta da verdade e da franqueza.
Comprador- Veja só, o profeta! E se te compro, como me ensinarás?
Diógenes- Se te assumo como discípulo, despir-te-ei da moleza, encerrar-te-ei na pobreza,
como esse manto. Obrigar-te-ei à fadiga, a cansar-te, a dormir por terra, beber só água,
alimentar-se de qualquer comida ao acaso. Se tiveres riqueza e quiseres me escutar, jogá-la-
ei ao mar. Não pensar em mulher, em filhos, em pátria (...) As qualidades que deves ter são
essas: ser desavergonhado e arrogante, insultar a todos igualmente, sem ter respeito por reis
ou particulares; e assim todos te admirarão e te considerarão corajoso. Deves ter um modo
de falar bárbaro, uma voz estridente como um cão, um rosto desdenhoso, um andar
estranho, tudo o que possui uma besta selvagem; nem pudor nem doçura nem moderação
nem vergonha na cara. Vais aos lugares mais frequentados, e ali permanece só, despreza a
todos, foge da amizade e da hospitalidade que arruinariam o teu reino. Faz em público
aquilo que os outros se envergonham de fazer em privado, as mais ridículas e torpes
luxúrias. Enfim, quando te venha a vontade, morre comendo um polvo cru ou uma lula.
Essa é a felicidade que te prometo.
Comprador- Vai-te daqui, são coisas sujas e bestiais.
Diógenes- Porém são fáceis e todos podem praticá-las; não há necessidade de
ensinamentos, de discursos, e de outras bobagens, mas por um atalho alcanças a glória. E se
és um inepto, um engraxate, um açougueiro, um ferreiro, um servente, tornar-te-ás um
homem importante se te mostrares audaz e imprudente, e se souberes insultar bravamente.
Comprador- Vai-te daqui, não necessito de ti; mas talvez pensas ser um navalestro, ou
quem sabe um hortelão. Se quiserem vender-te por no máximo duas moedas...
Mercúrio- Leva-o, fechemos o negócio rapidamente com prazer, pois este grita, insulta, faz
sermões, provoca confusão com todos e tem o diabo no corpo.”38

38
Cf. REALE, v. III, p.34-35
29

A despeito do tom explicitamente irônico do famoso Leilão dos Filósofos de


Luciano, o retrato do cinismo é razoável: uma vida asceta, a interiorização total da
liberdade, a negação das normas sociais e a capacidade de ser feliz em qualquer lugar são
destacadas neste trecho.
Para o grego que vivia o desmoronamento da pólis, esse era um precioso
ensinamento. Afinal, se a era da pólis estava por terminar, era preciso buscar novas
alternativas de vida. Uma dessas alternativas é o cinismo, que bem ilustra a diferença
radical entre a filosofia clássica e a helenística: enquanto um grego só poderia se feliz
enquanto cidadão, os homens da era helenística poderiam ser felizes individualmente,
conforme as escolhas que fizessem, conforme a vida que escolhessem. Para resumir, pode-
se dizer que o cinismo buscava um outro tipo de liberdade, bem diferente da liberdade
cidadã dos gregos (e bem mais próxima de nossa atual concepção de liberdade): a liberdade
individual.
Epicuro: o prazer como fundamento da ética: Epicuro (341-270 a.c) fundou a
primeira das grandes escolas da era helenística, essencialmente antiplatônica e
antiaristotélica: o Jardim. Seu desejo era preencher o vazio que se abriu com a decadência
da pólis. Para isso, ele estabelece um novo ethos, o do indivíduo, em contraposição ao
tradicional ethos grego, que se enraizava na pólis. O homem passa a ser considerado em si
mesmo, fora da convivência num Estado. A identificação entre o homem e o cidadão se
esgota, a política passa a ser considerada como um “inútil afã”, e a genuína vida é aquela
que escolhe o “viver escondido”. Enquanto os gregos viam na pólis o espaço de realização
do homem, os epicuristas (assim como os cínicos) pregavam o isolamento social. Como
não era mais possível se realizar comunitariamente, o desprezo pela sociedade e suas
normas e costumes acabou se tornando um novo modo de vida.
Além de negar o ethos da Grécia clássica, Epicuro também negava a filosofia grega,
especialmente a platônica. Para ele, a “segunda navegação” de Platão era um absurdo.
Negar os sentidos como fonte de conhecimento, como o fez Platão, era inconcebível para
Epicuro, que considerava a sensação como o mais sólido critério de verdade. Não há
“supra-sensível”, pois tudo é matéria. A filosofia não deve tratar das “realidades supra-
sensíveis”, mas prover saúde à alma. Sobre a alma, por sua vez, Epicuro afirma que ela não
é separada do corpo: servindo-se do atomismo, ele afirma que corpo e alma são formados
por átomos materiais. Por isso, os epicuristas acreditavam que o prazer devia ser o objetivo
último da existência humana. Esse prazer não pode, no entanto, ser confundido com o
simples desfrute da carne:
“Quando, pois, dizemos que o prazer é um bem, não aludimos de modo algum aos prazeres
dos dissolutos, que consistem no excesso no comer e no beber, como crêem alguns que
ignoram o nosso ensinamento ou o interpretam mal; mas aludimos à ausência de dor no
corpo, à ausência de perturbação na alma. Não, portanto, as libações e as festas
ininterruptas, nem o gozo das donzelas e mulheres nem o comer peixe e tudo mais que uma
rica mesa pode oferecer, é fonte de vida feliz; mas o sóbrio raciocinar que perscuta a fundo
as causas de todo ato de escolha e de recusa, e que afasta as falsas opiniões, pelas quais
grande perturbação toma conta da alma.”39
O prazer epicurista era obtido pela aponia (supressão da dor física) e pela ataraxia
(paz de espírito, ausência de perturbação do ânimo). A regra da vida moral epicurista é a
sabedoria que escolhe os prazeres que não comportam em si dor e perturbação, descartando
aqueles que dão gozo momentâneo, mas trazem consigo dores e perturbações.
39
EPICURO, Epístola a Meneceu. 131s, apud REALE, v. III, p. 211.
30

Como os cínicos, Epicuro procurou dar uma resposta ao seu tempo, onde a vida na e
pela pólis estava em declínio. Se não é possível considerar o Estado como fonte de
felicidade, o esforço individual é capaz de conduzir os homens para uma vida
genuinamente feliz. Homem de seu tempo, Epicuro se serviu da autarquia socrática para
negar os valores e a filosofia clássica e propor um novo modo de vida, isolado e individual.
Outros representantes desse tempo são os estóicos.
Os estóicos: Zenão (333/32 a.c – 262 a.c), um jovem da ilha de Chipre, chegou a
Atenas em 312/11 a.c para dedicar-se à filosofia. Como não era ateniense, Zenão não tinha
o direito de possuir um edifício e, por isso, dava suas lições num Pórtico que, em grego
significa stoá. Por essa razão, os seus seguidores são conhecidos como “os do Pórtico”, “os
da Stoá” ou simplesmente como os estóicos. No Pórtico de Zenão, ao contrário do Jardim
de Epicuro, foram admitidas discussões sobre os dogmas do fundador da escola, o que
levou a filosofia estóica a grandes evoluções e transformações.
Para os estóicos, a alma é uma tabula rasa que, por meio da experiência, adquire os
seus conhecimentos pouco a pouco. A base do conhecimento é a sensação (aísthesis), que é
uma impresssão provocada em nossa sensibilidade pelos objetos. Essa impressão se
transmite à alma pelos sentidos e nela se exprime gerando a representação (phantasía). Mas
o conhecimento não se esgota aí: há também o logos, ou seja, a capacidade de raciocinar e
de pensar, que é o que realmente nos distingue dos animais.
Por causa da valorização do logos, o Pórtico elabora uma verdadeira lógica, que
aqui não será descrita. Formula também um conceito diferente de Deus, que passa a ser
considerado como o logos impessoal que rege todas as coisas. E, se Deus é impessoal, de
nada adiantam as orações: os homens precisam alcançar a felicidade por conta própria. Essa
felicidade, por sua vez, significa viver conforme a natureza racional do homem. O fim
último da vida humana é atuar a razão e se autoconservar. Para atingi-lo, deve-se viver na
virtude, que é a perfeição da razão e pode ser alcançada pela prática da katórthoma (ação
reta).
Uma ação reta (Kartóthoma) é aquela que deriva de um “orthós lógos” (lógos reto) e
que visa a autopreservação (oikeíosis). Daí que: 1- Não se deve julgar uma ação pelo seu
êxito em alcançar algum resultado, mas pelo seu ponto de partida, 2- não se pode julgar se
uma ação é ou não reta pelos seus traços extrínsecos (uma ação pode assemelhar-se a um
kartóthoma, mas não sê-lo), 3- a ação reta vem do lógos, da ciência, da sabedoria.
Apesar de terem pontos comuns ao cinismo e ao epicurismo, os estóticos não
defendiam o individualismo e a vida reclusa. Se o homem é movido pela natureza de
conservar o próprio ser, esse instinto não se dirige somente ao indivíduo, mas à família, aos
parentes, aos amigos, aos semelhantes e a toda comunidade. Como diz Reale, do “ser que
vive fechado na sua individualidade, como queria Epicuro, o homem volta a ser um ‘animal
comunitário’.”40 O estado, no entanto, era definido apenas como uma “multidão de homens
que habitam o mesmo lugar regidos pela lei”.
Se a vida perfeita (a do indivíduo e a do Estado) é aquela de acordo com a razão, as
paixões são rejeitadas como caminho para a felicidade. Por isso, como Sócrates já tinha
feito, os estóicos valorizam o autodomínio como uma grande virtude. Mas, enquanto
Sócrates recomendava ter um autocontrole sobre as paixões, os estóicos pregam a definitiva
eliminação das paixões. Assim sendo, a apatia é a verdadeira felicidade e o sábio é aquele
que não deixa as paixões nascerem, que suporta o seu destino e que se basta a si mesmo.

40
REALE, v. III, p.335
31

O extremo logocentrismo estóico acaba por afastar o homem de sua humanidade.


Sem as paixões, guiando-se apenas pelo frio logos, o homem perde a sua vontade de viver.
Talvez seja por isso, diz Reale, que os estóicos admitiam o suicídio do sábio quando este se
encontrasse em situações extremas: apesar dessa concessão ser contrária ao instinto de
autoconservação, ela é perfeitamente compreensível numa visão da vida que suprime a
paixão e que acaba reprimindo a alegria de viver.
Conclusão: os cínicos, os epicuristas e os estóicos representam a busca humana por
novos caminhos, que sempre se acentua nos tempos de crise. As conseqüências das
conquistas de Alexandre refletem profundamente na forma de filosofar. De uma filosofia
mais teórica para uma filosofia moralista; de uma filosofia contemplativa para uma filosofia
que pretendia “curar a alma”, esse foi o caminho da Grécia clássica para o helenismo.
Caminho que revela como a política pode influenciar o pensamento e vice-versa.
Alterações mais radicais na filosofia ocorreriam no período que ficou conhecido como
“idade média”. Os adventos de Cristo e da igreja mudam as faces do mundo e da filosofia.

III.2 - A Idade Média:

A idade média é um longo período da história, que possui as suas diferenciações e


peculiaridades. A partir de uma periodização imperfeita, pode-se dividi-la em duas etapas: a
alta idade média, que vai da destruição do império romano no século V d.c ao século XI, e
a baixa idade média, que se estende do século XI ao século XIV, quando começa a
transição para o capitalismo.
A alta idade média é marcada por importantes transformações sócio-econômicas: as
invasões que ocorrem nesse período ocasionaram a destruição do sistema escravista e da
organização política centralizada da era romana. É nesse período que se constituiu o modo
de produção feudal, que se caracterizava pela descentralização política e administrativa,
pela difusão do cristianismo e pelo campesinato servil. A nobreza, proprietária dos feudos,
exigia dos servos (camponeses) o pagamento de uma série de tributos convertidos em
trabalho e/ou parte da produção. Em troca, os senhores feudais ofereciam a sua “proteção”.
Cada feudo era uma unidade e quem justificava as relações sociais e políticas e garantia a
estabilidade do mundo feudal era a igreja católica.
Já na “baixa idade média”, ocorre uma completa disseminação do sistema feudal na
Europa, que começa a se tornar o centro do mundo pela força e pela cultura.
Paradoxalmente, é nesse período que se inicia a desagregação do modo de produção feudal
e a lenta transição para o capitalismo que, séculos mais tarde, confirmaria o ocidente como
o lado “vitorioso” do mundo até o final do século XX, quando começam a surgir novos e
graves conflitos culturais, quando emergem novas potências orientais, especialmente a
China, e quando o conflito entre o mundo árabe e o ocidente desperta idéias e práticas
fundamentalistas em todos os lados envolvidos.
Filosoficamente, a Idade Média é um período marcado por uma reflexão sobre o
homem com um caráter explicitamente religioso e cristão. Em seus primórdios, a fé cristã
era pregada oralmente e por meio dos testemunhos da vida de Jesus Cristo. Mas
rapidamente surge a necessidade de uma reflexão e de uma sistematização dos
ensinamentos de Cristo e das Sagradas Escrituras: em primeiro lugar para definir melhor as
fórmulas dogmáticas contidas nos símbolos da fé; em segundo lugar para defender-se das
acusações caluniosas das autoridades romanas. Aos poucos, vários filósofos desenvolvem e
32

problematizam a doutrina cristã. Nesse processo, a antropologia do homem interior, que


podia conhecer a si mesmo (Sócrates), dá lugar à antropologia do homem pecaminoso,
decaído, afastado de seu criador, e que não pode conhecer-se legitimamente sem Deus.
Afastada de Deus, a razão humana é fraca e incorre em erros. É como se o homem perdesse
a propriedade de si mesmo e passasse a pertencer a um Ser supremo, sem o qual ele não
pode agir nem conhecer.
Somando-se a isso um autoritarismo praticado em determinados momentos da
história pela igreja nos âmbitos intelectual e político, pode-se afirmar que o conhecimento
que não fosse o REVELADO por Deus era considerado falso ou herético. O homem não
podia produzir a verdade, mas apenas aceitá-la. São conhecidos os julgamentos e as
condenações da Santa Inquisição para a manutenção da unidade medieval e do domínio
intelectual e político da igreja. Também são famosas as tentativas da igreja de assumir o
poder temporal.
Não foram esses, no entanto, os únicos legados do cristianismo e da igreja católica:
o conceito de livre arbítrio, o amor ao próximo, a igualdade entre os homens, a instituição
do casamento, a conservação e a produção do conhecimento, as primeiras universidades e a
valorização da mulher são heranças que a idade média deixou para os homens. A Grécia
antiga foi um dos pilares de nossa civilização; outro foi o cristianismo. Mas foi preciso
romper com o predomínio da Igreja e da visão cristã da realidade para que as ciências
empíricas se desenvolvessem. Se nas artes, na lógica, na literatura, na música e em vários
âmbitos a idade média foi inspiradora, para a ciência o solo do ateísmo e da transição para o
capitalismo que se forma a partir do renascimento foi mais fértil.
A Idade Média é, pois, um período onde a visão religiosa do mundo predomina, o
cristianismo se impõe como religião quase que universal e a filosofia passa a ser “serva da
teologia”. Associada à religião, a filosofia tenta justificar as verdades da fé e dar
sustentação teórica ao cristianismo. Isso não significa, no entanto, que a idade média foi um
período de extrema unidade intelectual: se a teologia era o centro das reflexões medievais,
por outro lado, ocorreram distintas conceituações teológicas. Um exemplo dessa
diversidade encontra-se no pensamento de Pedro de Abelardo, mais lógico, exato, e no de
Bernardo, profundamente místico, que dividiram a especulação filosófica-teológica do
século XII.41 Para ilustrar o pensamento medieval, vale observar a filosofia de Santo
Agostinho.
Santo Agostinho (Tagasta, 354 d.c – Hipona, 430 d.c): viveu na época de
dissolução do império romano. Em 380 d.c, o imperador Teodósio ordena a todos os povos
a ele submetidos que se convertam ao cristianismo católico. Aí começa a instauração
política do cristianismo, que se fortalecerá ao longo da idade média. Agostinho, portanto,
viveu nas vésperas da idade média.
Seu pai, Patrício, era pagão e se converteu ao cristianismo no fim da vida; sua mãe,
Mônica, era uma fervorosa cristã. Em sua juventude, Agostinho foi adepto do
maniqueísmo, doutrina que afirma a existência de dois princípios, o bem e o mal, que lutam
entre si.42 Também se aproximou dos céticos. Levou uma vida mundana embora repleta de
curiosidade. Nas Confissões, Agostinho relata como era a sua vida até o momento de sua
41
Cf. PETERSON, Marianna Allen. Introdução à Filosofia Medieval. Fortaleza: Edições UFC, 1981,
p.13/14.
42
Doutrina que parece ter se espalhado na aurora do século XXI, quando determinadas partes do mundo vêem
as outras como o mal e a si mesmas como redentoras. Visão perigosa para um mundo tão armado e à beira de
um colapso social e ambiental.
33

conversão ao cristianismo. Foi somente em 387 que ele se converteu a cristianismo e foi
batizado pelo bispo Ambrósio. A mãe, Mônica, está sempre presente em suas recordações
como um exemplo de fé e caridade (daí Santa Mônica, a santa dos filhos problemáticos).
Depois de sua conversão, Agostinho passa a defender ardorosamente a fé cristã e
inaugura o “filosofar na fé”, ao afirmar que a razão e a fé são complementares. Mesmo
sabendo que o conhecimento total de Deus não é possível nessa vida, ele acreditava que a
razão poderia abrir as portas para a fé e explicar as verdades sagradas na medida em que
essas verdades não excedessem a capacidade humana. Por outro lado, a fé é fundamental
para a compreensão da verdade; sem ela o homem não atinge o verdadeiro conhecimento. É
nesse sentido que Agostinho elabora a sua célebre fórmula:
INTELLIGE UT CREDAS (COMPREENDE PARA CRER)
CREDE UT INTELLIGAS (CRÊ PARA COMPREENDER)
A razão abre as portas da fé e a fé viabiliza o acesso à verdade. Sem a razão, a fé
não amadurece, não se desenvolve. E sem a fé, o homem fica preso ao mundo sensível,
onde os objetos aparecem e desaparecem (ou, como diria Platão, o homem fica preso ao
“mundo das sombras”, onde o conhecimento é ilusório e contingente). O verdadeiro
conhecer significa a apreensão pelo pensamento de um objeto que é necessário e que não
muda. Tais conhecimentos só podem ser encontrados na alma. Assim, a verdade é distinta
da constatação empírica dos fatos; ela é a descoberta de uma regra pelo pensamento. Por
exemplo: 2 + 2 = 4 ou o fato de que “devo fazer o bem e evitar o mal” não são verdades
sensíveis, mas inteligíveis, cujas principais características são a necessidade, a
imutabilidade, a eternidade e a sua presença em nossa alma. É interessante perceber a
semelhança dos argumentos de Agostinho com os de Sócrates ou Platão: a essência do
homem é a sua alma, que contém conhecimentos verdadeiros, que são inteligíveis,
necessários e eternos.
Mas como se explica a presença de conhecimentos necessários, eternos e
verdadeiros na alma? São os homens, seres contingentes e finitos, a fonte de tais
conhecimentos? Aqui a filosofia de Agostinho se distancia da filosofia grega: para ele a
necessidade do verdadeiro para a razão é apenas o sinal de sua transcendência sobre ela. A
necessidade que o ser humano tem de encontrar a verdade, especialmente a absoluta, revela
que ela é uma realidade puramente inteligível, necessária, imutável e eterna. Essa verdade é
Deus, que é a realidade divina mais interior a nós mesmos e que, no entanto, não é nosso
interior. Deus é perfeito, eterno e imutável e pode ter a sua presença detectada pelo usa da
fé e da razão. Todo o pensamento de Agostinho segue esse itinerário: do exterior para o
interior e do interior para o superior. No lugar do mundo das idéias surge o Deus cristão,
que é pessoal e capaz de interferir na vida humana. Antes um mundo ideal, agora um Deus
sem defeito, presente em todos os lugares, capaz de tudo e sempre o mesmo.
Se Deus é perfeito, onipresente, onipotente, eterno e imutável, porque existe o mal?
De acordo com Agostinho, se Deus é plenitude de ser, se Ele é o sumo bem, o mal não
existe. O mal moral não se encontra na alma, que não é má por si mesma, mas nos atos das
pessoas. Quando o homem faz um mau uso do livre arbítrio, ele incorre em faltas morais. O
mal é ausência de bem em uma natureza que deveria possuí-lo. Dessa maneira, é o homem,
e não Deus, o responsável pelo mal, pelo pecado. Mas o que é o pecado?
O pecado original, fruto do livre arbítrio, teve como conseqüência a rebelião do
corpo contra a alma, que deu origem à concupiscência e à ignorância. A alma, que deveria
reger o corpo, passa a ser regida por ele e acaba deixando de se reconhecer. O homem cai
34

no materialismo e passa a acreditar que é apenas um corpo. Essa servidão materialista, fruto
do livre arbítrio, é o verdadeiro sepulcro da alma, o pecado por excelência.
Para se afastar do mal, o homem só pode recorrer a dois artifícios: à graça e ao livre
arbítrio. A graça nasce da fé, e a fé, por si só, já é uma graça. O poder de usar o livre
arbítrio, conhecido como liberdade, é capaz de fazer com que o homem se afaste ou se
aproxime da verdade. A suprema liberdade consiste em confirmar-se na graça e não mais
praticar o mal. Embora isso não seja completamente possível nessa vida, o ser humano deve
fazer o máximo para se aproximar da beatitude, para que possa ser recompensado na vida
futura.
Agostinho encarna a filosofia medieval: é cristão, defende a fé e crê que a razão, em
última instância, só pode se tornar plena com a ajuda do absoluto, isto é, de Deus. Ao
contrário do que muitos defendem, a filosofia e a era cristã não são tão “obscuras” quanto
se costuma afirmar. Afinal, esse período é marcado por uma preocupação com a perfeição
moral e com a elevação espiritual. Além do que, a espera pela vida eterna e a dureza das
condições de vida da época, eram uma espécie de antídoto contra determinados problemas
atuais. As neuroses, a solidão e o sentimento de falta de sentido, de inadequação e de vazio,
apesar de eternamente presentes no coração humano, são muito mais evidentes em nossa
época do que na idade média, quando a vida tinha um sentido extra-temporal que fazia o
homem se sentir mais confortável no mundo. O tempo medieval era um tempo de espera
pela vida futura. A pressa era menos importante do que a qualidade do tempo; a vida não
precisava ser consumida, mas bem vivida.
Agostinho representa, então, uma época onde o tempo era apenas uma espera (por
vezes tediosa e sofrida) pela eternidade. A partir de Agostinho a fé cristã ocupa o centro do
pensamento ocidental. Durante séculos a igreja ditou as regras, condenando a usura e
determinando o que podia ou não ser conhecido, ou seja, impedindo o desenvolvimento do
comércio e do conhecimento empírico, que são fundamentais para o capitalismo. Ético era
aquilo que fosse conforme as Sagradas Escrituras. Se as heranças desse tempo são boas ou
más, é assunto para longas discussões.
Até que, por volta do século XV começa um dos períodos mais efervescentes de
nossa história: o renascimento.

III.3 - O renascimento e a transição para a modernidade:

Na Idade Média, Deus era o centro da reflexão e a fonte das verdades. O ser humano
era investigado como um ser decaído que, ao exercitar o seu livre arbítrio, poderia seguir o
caminho do bem ou o do mal. A partir do renascimento, o centro da reflexão filosófica é
transferido para o homem e seus assuntos, sua arte, sua retórica, sua poética e sua política.
O termo “renascimento” indica o retorno do homem ao centro da reflexão filosófica e o
nascimento de uma nova cultura, oposta à medieval. De acordo com Foucault, o
renascimento é o “nascimento do homem”, ou seja, é o período no qual o ser humano
começa a perceber-se como um ser histórico, capaz de problematizar-se e de ser o agente de
seu próprio destino.
Nesse período há um retorno à estética e às obras clássicas (gregas e romanas). Não
se trata de uma imitação, mas do rompimento com a estética, a filosofia e a supremacia do
modelo teológico-político da idade média. Marsílio de Pádua, filósofo “pré-renascentista”
35

do século XIV, é um dos primeiros a lutar contra a supremacia política da igreja na idade
média. Servindo-se, muitas vezes ilegitimamente, de Aristóteles, Marsílio afirma que a
salvação da alma consiste em seguir a palavra que foi revelada por Deus, e não as ordens da
igreja. Seus ataques são violentos: para ele, o papa é o inimigo da paz e a verdadeira igreja
não é uma instituição hierarquizada, mas o conjunto dos fiéis. Os questionamentos de
Marsílio foram aprofundados no renascimento por diversos autores que lutavam pela
liberdade de expressão num mundo onde a igreja exercia poder de censura. E não é somente
a política que passa por transformações: o pensamento e a arte são revolucionados. Nas
artes, são conhecidas as obras-primas do período: a Mona Lisa de Leornado Da Vinci; os
afrescos de Rafael, etc.
Por tantas mudanças, quase sempre a imagem do renascimento é de luz e razão,
contrapondo-se às trevas e à escuridão da idade média. Essa imagem, no entanto, não
corresponde à verdade: assim como na idade média ocorreram momentos de trevas, mas
também de luz e razão, no renascimento, não só a razão, mas também as trevas e a
ignorância se fizeram presentes. Cultos diabólicos, práticas mágicas, misticismos e
supertições proliferaram nesse período, onde muitos homens eram, simultaneamente,
racionais e irracionais. Cardano, por exemplo, realizou grandes avanços na álgebra, mas
traçou o horóscopo de Jesus Cristo. Essa contrariedade faz do renascimento um período
ímpar na história, onde as sementes de uma era racionalista se misturavam com a magia e
com o misticismo.
Por carregar em si tais contradições, o renascimento é o período histórico que
melhor evidencia a proximidade da ciência moderna com a magia, da razão positiva com o
místico: muitos cientistas dessa época eram “alquimistas” ou “magos” que, como os
cientistas modernos, queriam dominar a natureza. Vários foram os que tentaram
transformar metal em ouro e interferir de maneira mágica na realidade ao mesmo tempo em
que procuravam desvendar os mistérios da natureza com a razão. É nesse período que a
ciência moderna e o Estado começam a se configurar. Todos os frutos semeados nesse rico
momento da história amadureceram na modernidade.

IV.1- Thomas Hobbes (Malmesbury, 1588-1679): nasceu prematuramente por causa do


terror que sua mãe sentiu com a notícia da chegada de tropas inimigas em sua cidade. Em
sua autobiografia, Hobbes afirma que, junto com ele, nasceu o seu irmão gêmeo: o medo.
Por isso, a sua filosofia é marcada pelo horror à violência, à guerra, à desordem. Desde
cedo, Hobbes teve gosto pelas línguas clássicas (grego e latim). Aos quinze anos traduziu a
Medéia, de Eurípedes, do grego para o latim. A partir de 1608, depois de concluir os seus
estudos em Oxford, tornou-se preceptor na casa de Cavendishh, à qual ficou ligado por
muito tempo, e foi também preceptor de Carlos Stuart (futuro Carlos II). Na velhice, foi
acusado de ateísmo e heresia. Morreu aos 91 anos, em dezembro de 1679. A sua obra mais
famosa é o “Leviatã”, cuja filosofia é radicalmente distinta da medieval.
Para Hobbes, não há nada fora de nós além dos corpos em movimento, e nada
dentro de nós além de movimentos orgânicos. Assim, a filosofia é a ciência dos corpos e
poderia ser dividida da seguinte maneira, embora haja outras divisões e subdivisões ao
longo da obra de Hobbes:

Filosofia=ciência ========== corpos naturais {corpos físicos (astronomia, etc.)


36

dos corpos {corpo humano (medicina)

========== corpo artificial {Estado (ciência ou “filosofia” civil)

Essa divisão, por si só, já constitui uma áspera crítica aos filósofos que trataram da
filosofia política e da ética de maneira teológica ou puramente especulativa, ou seja, à
filosofia medieval. A filosofia não deve e não pode tratar de Deus, que é assunto de fé, nem
de essências ou de preceitos morais universais, que não são um antídoto eficaz para o
egoísmo humano e para a desordem política. Ao contrário, ela deve lidar com os corpos
físicos ou, mais especificamente, com o corpo artificial: o Estado.
Por sua vez, no trato com o “corpo artificial”, a filosofia não deve se preocupar com
o destino da alma nem com as influências do além, mas com a descoberta de uma regra
segura das ações, pela qual se possa saber se aquilo que estamos fazendo é justo ou
injusto. Ou seja: a filosofia política deve tratar da constituição do Estado (do corpo
artificial) estabelecendo uma norma ou medida do justo que não dependa da natureza divina
ou da vontade humana, mas da lei. Isso porque, em seu estado de natureza, o homem tende
a aniquilar os seus semelhantes. É célebre a reafirmação que Hobbes faz da frase de Plauto:
“homo homini lupus” (o homem é o lobo do homem). Para ele, nem a religião nem a moral
constituem um freio moral suficiente para barrar a guerra de todos contra todos, inevitável
ao homem em seu estado de natureza. Percebe-se que Hobbes se distancia da filosofia
medieval a cada palavra. A sua crítica ao padrão de pensamento medieval prossegue em
ordem crescente.
Além de uma natureza egoísta, o homem também não possui livre-arbítrio, diz
Hobbes. A liberdade humana é uma ficção: ela é, como a dos animais, necessária,
instintiva. E, se não há liberdade, também não existem o bem e o mal. Bem é aquilo para o
qual tendemos e mal é aquilo do qual fugimos (notar semelhança com os sofistas). Como
uns tendem e fogem para e de algumas coisas, e outros de outras, o bem e o mal são
relativos. Nesse ponto, fica mais clara a ligação entre o pensamento moral e o político de
Hobbes.
Se o bem e o mal são relativos, se não há valores absolutos, se não há uma idéia
universal de justiça, só podemos construir a nossa vida moral e política por meio da regra
que a ciência política descobre e que é capaz de nos informar se uma ação é ou não justa: o
pacto que confere a um homem ou assembléia um poder absoluto. É o poder, e não os
princípios ou valores morais, que possibilita a convivência humana. Por isso, os
homens devem se reunir e delegar poder a um soberano (que pode ser um ou uma
assembléia) que cuide da justiça. Esse soberano, por sua vez, não deve estar incluído no
pacto, deve estar acima dele, com poder absoluto para que possa evitar disputas que levem
os homens novamente ao estado de guerra. Ou seja: o critério para julgarmos se uma ação é
ou não justa ou moralmente correta, é o poder absoluto (a lei), e não Deus ou a razão. Uma
vez delegado o poder ao soberano, é este que decide pela correção ou justiça das ações43.
Somente assim a ordem pode ser estabelecida e os interesses egoístas podem ser
administrados em prol do bem comum.

43
Só há uma situação em que Hobbes admite o questionamento do poder do monarca: quando este não
conseguir manter a paz, ou seja, quando o monarca não conseguir cumprir o seu papel, que é acabar com o
estado natural de “guerra de todos contra todos”.
37

Por isso, aliás, Hobbes atacou a igreja e suas principais doutrinas, em especial o
livre arbítrio: ele acreditava que o poder era a única forma de unificar as vontades e as
paixões e manter a paz. Sobre o livre arbítrio, vale observar a sua crítica:
“Em segundo lugar, examinarei as doenças de um Estado que derivam das doutrinas
sediciosas, uma das quais é a seguinte: todo indivíduo particular é juiz das boas e más ações. Isto é
verdade na condição se simples natureza, quando não existem leis civis, e também sob o governo
civil nos casos que não estão determinados pela lei. Mas não sendo assim, é evidente que a medida
das boas e más ações é a lei civil (...) Partindo dessa falsa doutrina, os homens adquirem a tendência
para debater consigo próprios e discutir as ordens do Estado, e mais tarde para obedecê-las ou
desobedecê-las conforme acharem conveniente em seus juízos particulares. Pelo que o Estado é
perturbado e enfraquecido”44
Por isso, todos os discursos e doutrinas que disseminam a desobediência ao Estado
devem ser controladas pelo poder, que deve ser absoluto. Determinadas doutrinas
proferidas pelo clero são frontalmente contrárias ao principal requisito para a paz: a
obediência ao soberano, única forma de unificar as vontades e controlar as paixões que
levam à sedição. Somente com a criação de um terceiro termo (o Estado), autorizado pelos
homens em um pacto a agir em nome deles, pode-se unificar as vontades, conformar as
paixões e obter a paz. Mais ainda: somente com a instituição do Estado pode-se falar em
liberdade. A liberdade ilimitada se autodestrói e é típica do estado de natureza, onde reina a
guerra de todos contra todos. O justo e o injusto, portanto, só têm sentido quando definidos
pelo soberano na forma da lei. A defesa do livre arbítrio e a tentativa de determinar o que é
certo e errado mostram como a igreja pode ser perigosa ao Estado quando contrária às
conclusões infalíveis da ciência civil. Por isso, o seu discurso e os de todos aqueles que
disseminam a desobediência e a discórdia devem ser controlados pelo poder absoluto do
Estado.
Hobbes é um exemplo de rompimento com modelo teológico-político da idade
média e um dos marcos da inauguração o modelo político do “mundo moderno”. A sua
concepção ética é orientada para a defesa de uma nova ordem política, baseada na lei e no
poder absoluto. Thomas Hobbes representa um tempo onde se fortalecem as grandes
monarquias, os grandes Estados, e onde o mundo começa a se preparar para uma nova
ordem econômica e política, oposta à descentralização e ao misticismo medieval. Neste
novo mundo, é preciso buscar novas bases para o conhecimento, pois Deus já não é
garantia de um conhecimento seguro. René Descartes é o símbolo da busca moderna por
uma outra fundamentação do conhecimento, distinta da fundamentação teológica da idade
média.

IV.2 – A “moral provisória” de René Descartes (31 de março 1596 – 1650):


portador de uma singular visão de mundo, Descartes é um símbolo da modernidade. O seu
pensamento, revolucionário e profundo, surpreende a todos por sua simplicidade.
René Descartes é um dos maiores representantes de um padrão de racionalidade
centrado nas matemáticas e marcado pela redução da natureza a seus elementos
mensuráveis. De acordo com essa visão, o universo é um grande mecanismo que pode ter
suas engrenagens decifradas por meio da matemática. A natureza é considerada como uma
máquina, desprovida de alma, finalidade ou governo divino, mas regida por leis que podem
ser descobertas pela ciência. A essa visão, damos o nome de mecanicismo. Nesse sentido,

44
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico Civil. São Paulo: nova
Cultural. Col. Os pensadores, p. 244.
38

pode-se afirmar que Descartes era um grande otimista e acreditava que a razão humana
poderia decifrar as verdades da natureza e da vida humana se fosse bem orientada.
Como um bom otimista, ele se preocupa com a certeza de seu conhecimento e
procura fundamentá-lo em um ponto seguro, que garanta a sua veracidade.Trata-se, como
diz o professor Ivan Domingues45, da busca pelo “grau zero do conhecimento”, isto é, pelo
ponto onde todo conhecimento começa. Não que ele estivesse preocupado exatamente com
a questão “de onde vem o conhecimento?” (que para os medievais, como foi mostrado,
vinha de Deus), mas sim com a possibilidade de fundamentar o conhecimento em um ponto
seguro que garantisse a sua legitimidade, a sua correção. Para chegar a esse porto-seguro ou
grau zero do conhecimento, Descartes escreve uma das obras mais famosas da
modernidade, o Discurso do Método. Logo no início, ele afirma:
“o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se
chama de bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, assim, a
diversidade de nossas opiniões não resulta de serem umas mais razoáveis do que as outras,
mas somente de conduzirmos o nosso pensamento por diversas vias, e de não
considerarmos as mesmas coisas.”46
Um bom método é capaz de proporcionar conhecimentos seguros. Para encontrar
esse caminho seguro, Descartes se inspira na matemática, que produz conhecimentos
indubitáveis. Por isso, o método que ele propõe é constituído por quatro preceitos muito
simples, oriundos da matemática e anunciados da seguinte maneira:
“O primeiro - consistia em nunca aceitar como verdadeira coisa nenhuma que não
conhecesse como evidente; isto é, devia evitar cuidadosamente a precipitação e a
prevenção; e nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente
ao meu espírito que não tivesse ocasião nenhuma de o pôr em dúvida.
O segundo – dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas
pudessem ser e fossem exigidas para melhor compreendê-las.
O terceiro – conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais
simples e fáceis de serem conhecidos, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o
conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo certa ordem entre os que não se
precedem naturalmente uns aos outros.
E o último – fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais, que ficasse
certo de nada omitir”.47
A partir dessas regras, Descartes deseja encontrar uma certeza inabalável que
fundamente todos os outros conhecimentos. Começa, então, a duvidar de todas as coisas
que tinha como certas. Como os sentidos podem nos enganar, é preciso duvidar da
existência de todas as coisas sensíveis, de todos os conhecimentos obtidos pelos sentidos.
Mais ainda, é necessário duvidar da própria existência: os mesmos pensamentos que nos
ocorrem quando estamos acordados podem nos ocorrer quando estamos dormindo, ou seja,
quem nos garante que não sonhamos que estamos acordados? Quem nos garante que não
somos um sonho de um grande sonhador? Quem nos garante que não há um Deus a nos
enganar, a nos dar a ilusão de nossa existência?

45
DOMINGUES, Ivan. O Grau zero do conhecimento. São Paulo: Loyola, 1991
46
Descartes, René. Discurso do Método. Rio de Janeiro: Tecnoprint
47
Ibidem, p.63/64
39

Nesse ponto máximo de radicalização, a dúvida metódica48 encontra uma certeza


inabalável: somos seres que duvidam; somos “uma coisa que pensa”. Cogito ergo sum
(penso, logo existo), afirma Descartes. O porto-seguro que ele procurava é o sujeito, o “eu
penso”, que substitui Deus como ponto arquimédico de todo conhecimento. É o sujeito, e
não Deus, que garante a veracidade do conhecimento. Se usarmos corretamente a nossa
inteligência, podemos chegar a verdades e ao conhecimento objetivo da realidade: essa é a
crença de Descartes e da modernidade. É, portanto, para ajudar a razão em sua busca da
verdade que Descartes oferece o seu método.
Esse método, no entanto, é perigoso. Não é qualquer pessoa que pode e deve utilizá-
lo, mas somente aquelas que têm o preparo suficiente. Descartes crê que o bom senso é
igual para todos, mas acha algumas características psicológicas são incompatíveis com o
uso de seu método.
“A simples resolução de nos libertarmos de todas as opiniões anteriormente recebidas como
verdadeiras não é um exemplo que todos devam seguir; o mundo é praticamente composto
por duas espécies de espíritos aos quais ele de nenhum modo convém, a saber: aqueles que,
julgando-se mais hábeis do que são, não resistem precipitar os seus juízos e nem têm
paciência para conduzir em ordem todos os seus pensamentos, de onde resulta que se
tomarem uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que receberam e de se afastar do
caminho comum, nunca poderão manter-se na senda que é necessário seguir para ir mais
direito e ficarão perdidos por toda a vida. E os outros que, possuindo bastante razão e
modéstia para julgar que são menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso que outras
pessoas, pelas quais eles podem ser instruídos, devem antes contentar-se em seguir a
opinião dessas outras pessoas do que procurarem por si outras opiniões melhores.”49
Os arrogantes e os despreparados são incapazes de tirar proveito de seu método
porque não têm uma racionalidade sadia: os primeiros porque a soberba lhes precipita o
juízo, os segundos porque são incapazes de juízos próprios, devendo seguir a opinião
alheia. O método só é proveitoso para o “homem de ciência”, que tem consciência de seus
limites, mas que não se contenta com a opinião comum.
Mas, mesmo para os homens de ciência, a dúvida radical pode ser perigosa. Para
conduzir o homem de ciência em sua dúvida e salvaguardá-lo da irresolução permanente e
da infelicidade e/ou do perigo que o ato de colocar toda a realidade em dúvida pode causar,
Descartes elabora a “moral provisória”. Quando alguém constrói uma nova casa, precisa de
um abrigo; o mesmo ocorre com a dúvida: quando alguém quer duvidar de tudo, precisa de
um apoio, de algumas certezas, mesmo que elas venham a se modificar com o tempo:
“...não basta, antes de começar a reconstruir a casa em que se mora, derrubá-la e provermo-nos de
materiais e de arquitetos... é necessário...estar prevenido com outra casa onde possamos nos alojar
comodamente durante o tempo em que trabalharmos...”50
A moral provisória é, portanto, uma proteção que faz com que o homem de ciência
não se perca na investigação e nem se desvie da verdade. Ela protege e abriga o filósofo em
seu ingresso na dúvida, em sua busca pelo conhecimento, em sua construção de um novo
edifício, de uma nova visão de mundo. Afinal, a ciência modifica a nossa visão tão
radicalmente, que é preciso estar preparado e abrigado para absorvê-la. Esse abrigo, essa

48
A dúvida de Descartes é chamada de metódica porque faz parte de um método que busca a verdade. Por
isso, pode-se dizer que a dúvida de Descartes é diferente da dúvida cética, que duvida por duvidar. Ao
contrário, Descartes duvida para encontrar uma certeza.
49
Ibidem, p.59.
50
ibidem, p.71
40

moral provisória, é muito simples e pode ser elaborada a partir de “três ou quatro” máximas
que são colocadas da seguinte maneira:
“A primeira era obedecer às leis e aos costumes de minha terra, guardando com constância
a religião na qual Deus me fez a graça de ser instruído desde minha infância e de me
governar, em tudo mais, segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas dos
excessos[...] pois todo excesso costuma ser mau, como também porque, desse modo, me
desviaria menos do verdadeiro caminho, no caso de errar, do que se estivesse escolhido um
dos extremos. [...]
Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e resoluto que pudesse em minhas
ações e em seguir com não menor constância as opiniões mais duvidosas, uma vez que me
houvesse determinado por elas, imitando nisto os viajantes que, ao se encontrarem perdidos
em uma floresta, não devem vaguear de um lado a outro e menos ainda parar em algum
lugar, mas andar sempre a direito o mais que possam, numa mesma direção, e de nenhum
modo modificá-la, em virtudes de fracas razões, embora tenha sido, de início, o acaso que
haja determinado essa escolha[ ...]
Minha terceira máxima era a de procurar sempre vencer antes a mim próprio do que à
fortuna, e de modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo; e acostumar-me a
crer que somente os nossos pensamentos estão inteiramente em nosso poder, de modo que,
depois de havermos procedido da melhor maneira possível no tocante às coisas que nos são
exteriores, se não somos bem-sucedidos no que diz respeito, é porque isso é absolutamente
impossível.
Enfim , para a conclusão desta moral, lembrei-me de fazer um exame minuncioso das
diversas ocupações que os homens têm ...e julguei que o melhor que eu poderia fazer era
continuar naquela em que me encontrava, isto é, ...em progredir, tanto quanto pudesse, no
conhecimento da verdade, segundo o método que me havia prescrito.”51
À primeira vista, essa moral provisória parece não passar de conselhos de prudência,
de conservadorismo moral ou de uma “anomalia” do “Discurso do Método”. Alguns
autores acusaram Descartes de “conservador” por causa dessa proposta. Revolucionário no
conhecimento, conservador na moral: esse foi o veredicto dado a Descartes por alguns
estudiosos.Qual será, então, o lugar dessa moral no sistema cartesiano? Lívio Teixeira
defende a tese de que ela“...se justifica não só por necessidades de ordem prática, mas também
que se justifica teoricamente, que se enquadra em linhas gerais na concepção que Descartes tem
do espírito humano, bem como nas determinações do método.”52
Teixeira lembra que, mesmo parecendo ser obra do senso comum, a moral
provisória é superior à tradicional porque pressupõe a existência de uma moral tradicional,
mas não adere à ela incondicionalmente, “pois que submete os preceitos que nela encontra a
uma escolha que é orientada pela razão, no sentido de que é não só a mais vantajosa, mas também
a que mais se aproxima da verdade.”53 Há, pois, pelo menos dois fatos que provam a
superioridade da moral provisória sobre a tradicional: 1- o homem que age segundo a moral
tradicional, nem sequer toma consciência de suas normas, enquanto aquele que age segundo
a moral provisória analisou todos os princípios e valores que segue 2- as viagens de
Descartes lhe revelaram o caráter aleatório e relativo das morais tradicionais, o que as
coloca num nível inferior ao da moral provisória, que é permanentemente aberta a uma
“auto-reforma”, uma vez que deve ser sempre submetida à crítica. Por isso, Lívio
Teixeira faz a seguinte “defesa” de Descartes:

51
Ibidem, ps. 70-77
52
TEIXEIRA, Lívio. Ensaio sobre a moral de Descartes. 2º ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
53
Ibidem, p.137.
41

“Descartes, que de um golpe quis abolir a tradição e a história e começar tudo de novo no
que diz respeito à filosofia e à ciência, tinha um vivo sentimento do valor dos processos da
história no que diz respeito às instituições. Ele sabia que não era possível nem conveniente
erradicá-las, querer substituí-las de improviso... antes dos sociólogos modernos, este
filósofo do bom senso descobrira que há um hiato entre as instituições e o pensamento.Eis
porque se pode dizer que ele é...um revolucionário a longo prazo, que semeia
confiantemente as sementes de futuras instituições, ainda que, de momento, faça sua
profissão de obediência às leis e aos costumes. (...) Em suma, a Moral Provisória não é a
expressão de um conformismo banal, mas sim de um conformismo constantemente
retificado pela razão.”54
A moral provisória é útil para o homem de ciência que deseja conhecer, mas que
não quer ficar “perdido” na dúvida metódica que lhe será exigida em seu caminhar rumo à
verdade. Além disso, a moral provisória é o mais eficiente antídoto para aquele que
Descartes considera como o pior dos vícios: a irresolução. A virtude vem do exercício da
liberdade; por isso, para René Descartes, a irresolução é o colapso da vida, o domínio do
capricho, da anarquia, da desordem e da angústia. A irresolução é imoralidade essencial
porque é oriunda da ausência de vontade. Sem vontade, não há liberdade. A liberdade ou a
vontade devem, portanto, se afirmar mesmo diante da confusão de idéias, mesmo quando
lhe faltar o elemento intelectual de apoio. É mais racional agir seguindo um rumo
hipotético do que permanecer indeciso, inativo.
A moral provisória não é, pois, um simples compromisso com a ordem social, mas
é, acima de tudo, uma criação da liberdade. No plano das idéias confusas, a racionalidade
se salva pela vontade de procurar melhores juízos. A moral provisória não é uma anomalia,
mas o fruto de uma racionalidade lúcida e amante da liberdade.
Descartes é um dos primeiros grandes racionalistas da modernidade. A ciência, o
iluminismo, a revolução francesa e vários outros eventos marcaram a modernidade como a
era do triunfo da razão. Immanuel Kant, o filósofo de Königsberg, é um dos expoentes
desse período. Mas não é possível falar dele sem antes apresentar David Hume, autor que
retirou Kant de seu “sono dogmático” ao criticar duramente o racionalismo puro originado
por Descartes.

IV.3 – Hume (1711-1776) e o empirismo: nasceu em Edimburgo, na Escócia. Com


11 anos de idade entrou na universidade de sua cidade natal para estudar latim, grego,
matemática, física e filosofia. Em 1729, com 18 anos, teve uma intuição que lhe revelou um
“novo cenário de pensamento”. Foi daí que veio a idéia de sua obra “Tratado sobre a
natureza humana”, publicado em Londres. Ficou decepcionado com a recepção da obra.
Em 1745, outra decepção o atingiu: foi recusado para a cátedra em Edimburgo por
ter pensamentos céticos e ateus. Foi, no entanto, secretário e diplomata, o que lhe
proporcionou muitas viagens. Em 1748 reescreve o primeiro livro do Tratado e o publica
com o título de “Ensaio sobre o entendimento humano”, que seria definitivamente
rebatizado, em 1758, de “Investigações sobre o intelecto humano”. Essa obra é de grande
importância para a filosofia e para a história da ciência. E é um contra-peso para o
racionalismo puro de Descartes.
Hume era um empirista que desejava esclarecer os conceitos e raciocínios confusos
dos filósofos (especialmente dos racionalistas). Para isso, ele propunha um retorno à
experiência espontânea do mundo, pois acreditava que nenhum filósofo poderia nos
54
Ibidem, p. 140.
42

conduzir para além das experiências cotidianas ou ditar regras de conduta distintas das que
obtemos por meio das reflexões sobre a vida diária. De acordo com ele, o ser humano
possui duas formas de percepção, as impressões e as idéias. Impressões são as sensações
imediatas da realidade externa; idéias são as lembranças dessas impressões. Quando alguém
se queima, tem uma impressão; quando se lembra da queimadura ao ver o fogo novamente,
tem uma idéia. A impressão é a fonte da idéia que é armazenada na mente. Isso diminui a
diferença entre sentir e pensar, que é reduzida apenas ao grau de intensidade: sentir é ter
percepções mais vivas (sensações) e pensar é ter percepções mais fracas (idéias). Assim,
toda percepção é dupla: é sentida (vivamente) como impressão, e é pensada (de maneira
mais fraca) como idéia. Dessa forma, o primeiro princípio da ciência da natureza humana é
o seguinte: todas as idéias simples provêm de suas correspondentes impressões. Esse
princípio quer acabar com os exageros do racionalismo: não existem idéias inatas 55, pois só
há idéia depois de uma impressão que a origine.
Idéias e impressões, por sua vez, podem ser simples ou complexas. Exemplos de
impressões simples são o vermelho, o quente, o frio, etc.; e um exemplo de impressão
complexa é o de uma maçã (é fria, doce, vermelha, etc.). Já as idéias complexas são as
formadas com mais de uma idéia simples. Até mesmo as idéias mais fantásticas como um
anjo ou um cavalo alado, não passam de junções de idéias operadas pela imaginação
(homem/asa; cavalo/asa). Nada é inventado ou “intuído”; o conhecimento ocorre com
associações de idéias que são realizadas por três princípios básicos, enunciados por Hume
da seguinte maneira:
“Quanto a mim, creio existirem apenas três princípios básicos de conexão entre as idéias, a
saber: a semelhança, a contigüidade de tempo ou lugar, e a causa ou efeito. (...) Uma
pintura conduz naturalmente os nossos pensamentos para o original; a menção de um
aposento numa casa desperta naturalmente uma pergunta ou comentário a respeito dos
outros, e, se pensarmos em um ferimento, dificilmente podemos furtar-nos à idéia da dor
que o acompanha.”56
Não existem idéias universais ou gerais (como pensava Platão, Santo Agostinho e
outros filósofos). Todas as idéias são particulares e, quando conjugadas a uma certa
palavra, adquirem um significado mais extenso. Quando isso ocorre, recordamos de outras
idéias individuais semelhantes a ela. A palavra “homem”, por exemplo, traz a idéia de um
homem determinado, mas não de todos os homens particulares que podem ser observados.
Com isso, fica fácil compreender porque Hume refuta a existência do princípio de
causa e do efeito: causa e efeito são idéias distintas, ou seja, nenhuma análise da idéia de
causa, por melhor que seja, pode nos fazer descobrir a priori o efeito que dela deriva.
Suponhamos que viemos agora ao mundo: ao observarmos duas bolas de bilhar, nunca
poderemos saber a priori que uma bola, jogada contra a outra, produzirá como efeito o
movimento desta outra. Experimentamos apenas que um acontecimento vem depois do
outro, e não que o primeiro acontecimento se dá “por causa” do segundo. É o hábito, e não
a existência de uma causa, que nos faz afirmar que, ao jogarmos uma bola contra a outra,
teremos um movimento da segunda. Aprende-se bilhar jogando. Ou seja:

55
Para Descartes, Deus era uma idéia inata, ou seja, que vinha impressa na alma. Para provar a existência de
Deus, ele afirma que se os homens, que são seres contingentes, imperfeitos e finitos, têm a idéia de um ser
necessário, perfeito e infinito, é porque essa idéia foi colocada na mente humana por Ele, Deus. A origem
dessa concepção, como vimos, pode ser encontrada em Platão, que afirmava que nascemos com idéias (do
belo, do justo, do bem,etc) gravadas em nossa alma.
56
HUME, Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril, 1973, p.137
43

“ Quando raciocinamos a priori e consideramos apenas algum objeto ou causa tal como se
apresenta ao intelecto, fora de qualquer observação, ele jamais nos poderia sugerir a idéia
de um objeto diferente, tal como seria o seu efeito; e muito menos mostrar-nos uma
conexão inseparável e inviolável entre os dois. Muito sagaz seria o homem que pudesse
descobrir pelo raciocínio que o cristal é o efeito do calor e o gelo do frio, sem ter tido
notícia prévia da operação dessas qualidades.”57

Pra Hume, portanto, a experiência é a base do conhecimento. Causa, efeito,


semelhança e conriguidade não são características dos fenômenos ou da natureza, mas
hábitos do ser humano que facilitam a organização de suas experiências. Trata-se de uma
concepção que pretende esclarecer os raciocínios confusos dos filósofos e os exageros dos
racionalistas.
Até aqui foi revelada a concepção que Hume tinha sobre o conhecimento humano,
mas e a moral? Se todos os conhecimentos provêm da experiência, de onde provêm os
princípios morais? Da razão certamente que não, pois se Hume não acreditava em idéias
inatas, não poderia acreditar em princípios morais racionais ou inatos (como Sócrates,
Platão, Santo Agostinho e outros).
Sendo empirista, Hume não acreditava numa “lei moral”, numa capacidade da razão
de distinguir o certo ou o errado ou em uma lei divina, uma vez que, para ele, Deus era uma
idéia complexa que o ser humano forma em sua mente. Dessa maneira, são os sentimentos,
e não a razão, que nos impelem a agir moralmente; são os sentimentos, e não a razão, que
conduzem o homem à caridade. A razão não é e não deve ser o critério para o nosso agir.
Afinal, é tão racional trair ou subjugar o próximo para salvar nossos interesses particulares,
como também não é contrário à razão “o preferir a destruição do mundo inteiro a um
arranhão em meu dedo”. Nem mesmo a experiência, grande mestra do conhecimento, tem
valor na moral, que é o campo onde os sentimentos governam.
A experiência e o hábito são os alicerces do conhecimento humano, e os
sentimentos são os verdadeiros motores da moral. Com esses pensamentos, Hume faz uma
ampla crítica à metafísica (e ao racionalismo de Descartes) e inspira um dos maiores
filósofos da modernidade: Immanuel Kant.

VI.4 – Immanuel Kant (1724-1804): nasceu e se manteve por toda a vida em


Königsberg. A rotina diária de Kant foi motivo de algumas anedotas (diziam que era
possível saber exatamente que horas eram quando ele saía de casa para seus passeios
vespertinos), mas revela um caráter insistente e sistemático. O certo é que a obra kantiana é
fruto de um homem que dispensou toda a sua vida buscando o saber. Talvez seja por isso
que ele não foi um autor precoce: precisou meditar longamente antes de escrever.
Em sua época, havia uma divergência entre o racionalismo e o empirismo: de um
lado, os racionalistas afirmavam que a base para todo o conhecimento encontra-se na razão
(vide Descartes); de outro lado, os empiristas afirmavam que o conhecimento do mundo se
dá por meio dos sentidos, da experiência (como afirmava Hume). Kant fará uma síntese dos
dois: para ele os racionalistas deram exagerada importância à contribuição da razão, e os
empiristas deram muita ênfase à experiência sensorial. Com os empiristas, Kant concordava
que todo o conhecimento se origina das sensações, da experiência; com os racionalistas, ele
concordava que existem, na razão, fatores decisivos e estruturais que possibilitam o
conhecer. Há condições na mente humana que contribuem para o conhecimento do mundo,
57
Ibidem, p.140
44

mas sem a experiência nada se conhece. Enfim, a primeira crítica de Kant será elaborada
para fundamentar a nova ciência, especificamente a física de Newton, que produzia um
conhecimento objetivo da realidade sem recorrer a idéias gerais ou inatas, mas apenas à
observação e à experimentação.
Entre as obras de Kant, destacam-se as suas famosas críticas: a Crítica da Razão
Pura (CRP), a Crítica da Razão Prática (CRPr) e a Cítica do Juízo (CJ), que pretendem
responder, respectivamente, a três perguntas fundamentais: o que posso conhecer? O que
devo fazer? O que me é permitido esperar? Aqui serão vistas, superficialmente, as duas
primeiras.
A Crítica da Razão Pura: com a primeira crítica, Kant inaugura a sua filosofia
transcendental e revela como ocorre o conhecimento humano mediante a análise de suas
condições de possibilidade. Ao perguntar pelas condições de possibilidade de todo o
conhecimento objetivo, Kant realiza a “revolução copernicana” da filosofia, que pára de
perguntar sobre os objetos e começa a indagar sobre o nosso modo de conhecer os
objetos. Para responder à pergunta “o que posso conhecer?” (ou como podemos formar
juízos sintéticos a priori)58, Kant desvenda a estrutura cognitiva do ser humano. Em linhas
gerais, pode-se dizer que a mente humana se divide em três “partes” que, juntas,
possibilitam o conhecer e o agir humano: a sensibilidade, o entendimento e a razão, que
correspondem a três partes importantes da Crítica da Razão Pura, a saber:
1- Estética transcendental: (aísthesis = sensação, percepção sensorial) Estuda as
estruturas da sensibilidade, o modo como o homem recebe as sensações, ou seja, como se
forma o conhecimento sensível. A sensibilidade é constituída por duas “formas de
intuição”: o espaço e o tempo. Espaço e tempo não existem fora de nós, mas são modos de
percepção do ser humano. Todo o conhecimento deve ser, antes de tudo, ordenado espacial
e temporalmente. É a sensibilidade quem primeiro permite que o diverso do fenômeno seja
ordenado segundo determinadas relações.
2 – Analítica Transcendental: analyo = decompor algo em seus elementos
constitutivos. Essa parte da crítica trata do intelecto e de seus conceitos. Os conceitos do
intelecto unificam e ordenam o múltiplo sob uma representação comum. O intelecto unifica
e sintetiza através de vários modos que Kant denomina “conceitos puros” ou “categorias”
do intelecto. E, se pensar é julgar, existem tantos conceitos ou categorias quantas são as
formas de juízo. São doze as formas de juízo e doze as categorias

TÁBUA DOS JUÍZOS TÁBUA DAS CATEGORIAS


I. QUANTIDADE
1. Universais 1. Unidade
2. Particulares 2. Pluralidade
3. Singulares 3. Totalidade
II. QUALIDADE
1.Afirmativos 1. Realidade
58
Há três tipos de juízos: analíticos, onde o predicado já está contido no sujeito (todo corpo é extenso),
sintéticos, que são obtidos através da experiência, ampliam o conhecimento, mas não são necessários e
universais, e juízos sintéticos a priori, que são universais, necessários e ampliam o conhecimento. Esse
terceiro tipo é o que constitui a ciência. As operações aritméticas e os juízos da geometria se encaixam nesse
terceiro tipo (ex: uma linha reta é a menor distância entre dois pontos ou 5+7=12).
45

2. Negativos 2.. Negação


3. Infinitos 3. Limitação
III. RELAÇÃO
1. Categóricos 1. Da inferência e da subsistência
(substância e acidente)
2. Hipotéticos 2. Da causalidade e dependência
(causa e efeito)
3. Disjuntivos 3. Da reciprocidade (ação recíproca
entre agente e paciente)
IV – MODALIDADE
1 Problemáticos 1-Possibilidade-impossibilidade
2. Assertivos 2. Existência-inexistência
3. Apodíticos 3. Necessidade-contingência

A partir dessas categorias, o intelecto ordena a diversidade do fenômeno. Assim


como as coisas devem, para serem conhecidas sensivelmente, se adequar às formas da
sensibilidade, para que sejam pensadas, elas devem se adequar às leis do intelecto. O
fundamento do objeto encontra-se no sujeito. Apesar disso, o sujeito não pode conhecer
nada além do que lhe é dado pela experiência. A sensibilidade e o intelecto permitem que o
homem conheça a natureza e os fenômenos, e nada mais.
3- A dialética Transcendental: apesar de não poder conhecer além da experiência, a
razão humana tende a ir além dela. O homem não conhece o que está além de sua
experiência, mas pensa sobre isso. A dialética transcendental tem como tarefa “descobrir a
aparência de juízos transcendentes”, ou seja, de juízos que ultrapassam a fronteira da
experiência. A dialética transcendental mostra os dilemas que caímos quando tentamos
pensar sobre o que está além da nossa experiência. Afinal, Kant sabe que a nossa razão tem
uma tendência irrefreável de ir além da experiência. Mas, quando se aventura além da
experiência, o espírito humano facilmente incorre em erros. Esses erros, por sua vez, têm
uma lógica e não podem não ser cometidos. A dialética transcendental estuda quantos são
esses erros e porque eles são cometidos, para que se possa disciplinar a razão quando ela se
aventurar na impossível tarefa de conhecer o que está além de nossa experiência possível.
Trata-se de uma das maiores e mais famosas críticas da metafísica.
Os erros de raciocínio da razão se baseiam nas três idéias básicas da razão: a idéia
psicológica (alma) a cosmológica (o mundo como unidade metafísica) e a teológica (Deus).
A essas idéias correspondem a psicologia racional, a cosmologia racional e a teologia
racional. Dessas três, só será vista a segunda, que revela os erros mais comuns da razão
humana.
A cosmologia racional e as antinomias da razão: a segunda idéia da razão é a de
“mundo”, entendido como um “todo metafísico”. Quando a razão quer passar da
consideração fenomênica do mundo à consideração metafísica, ela incorre numa série de
antinomias, cujas teses e antíteses se anulam reciprocamente (antinomia = conflito de leis).
As antinomias correspondem aos quatro grupos de categorias (quantidade, qualidade,
relação e modalidade). São elas:

TESE ANTÍTESE
Primeira antinomia
46

O mundo tem um começo e, ademais, O mundo não tem um começo


No que se refere ao espaço, está nem limites espaciais, mas é
Encerrado em limites. infinito, tanto em relação ao tempo
quanto ao espaço.

Segunda antinomia

Toda substância composta que se Nenhuma coisa composta que se


encontra no mundo consta de partes encontra no mundo consta de partes
simples, não existindo em nenhum lugar simples, e nele não existe, em lugar
senão o simples ou aquilo que dele é decomposto. nenhum, nada de simples.

Terceira antinomia

A causalidade segundo as leis da Não há nenhuma liberdade, pois


natureza não é a única da qual podem tudo no mundo ocorre unicamente
derivar todos os fenômenos do mundo; segundo as leis da natureza.
para sua explicação, é necessário admitir
Também uma causalidade livre.

Quarta antinomia

No mundo há algo que, como sua parte Em nenhum lugar existe um ser
ou como sua causa, é um ser absolutamente necessário como
absolutamente necessário. causa do mundo.

Dessa maneira, há uma estrutura racional, formada por sensibilidade, entendimento


e razão, que nos permite conhecer as coisas. Mas quando tentamos conhecer coisas que
estão além da experiência, caímos em erros insolúveis.
A Crítica da Razão Pura mostra, portanto, que só é possível conhecer os fenômenos.
Quando vão além do limite da experiência, os conceitos do intelecto trabalham no vazio, ou
seja, quando quer conhecer além do mundo sensível, a razão nos leva a erros (ou a
antinomias) que não têm solução. Mas a razão não pode conter a necessidade de ir além do
mundo fenomênico, de ir até a esfera “noumênica”, onde se encontra a coisa em si ou,
como diria Platão, o supra-sensível. As idéias da razão, diz Kant, não ampliam o
conhecimento da natureza, mas têm um papel normativo, ou seja, valem como “esquemas”
que ordenam a experiência e lhe conferem unidade. As idéias organizam os fenômenos
organicamente: “como se” (als ob) todos os fenômenos relativos ao homem dependessem
de um princípio único (a alma); como se todos os fenômenos da natureza dependessem de
princípios inteligíveis; como se o todo dependesse da inteligência suprema. Se no nível da
Razão Pura, que investiga nosso modo de conhecer, as idéias não possuem um papel muito
relevante, no nível da Razão Prática, que investiga como devemos agir, essas idéias têm um
papel fundamental. A liberdade kantiana é uma das mais belas criações da filosofia, mesmo
que atualmente esteja sendo, junto com todo o projeto iluminista, muito criticada.
47

A Crítica da Razão Prática: trata da razão prática, que determina a vontade e a


ação moral (e não o conhecer). Nessa obra Kant afirma que, se as idéias da razão não
podem ser conhecidas ou discernidas de modo teorético, elas podem e devem ser admitidas
no (e para o) âmbito prático. Dessa maneira, enquanto na Crítica da Razão Pura Kant
criticava as pretensões da razão teórica de ir além dos limites da experiência, na Crítica da
Razão Prática ocorre o oposto: ele critica as pretensões da razão prática de permanecer
sempre e somente ligada à experiência. A esfera numênica, que diz como é a “coisa-em si”,
que revela a “essência” das coisas, e que era inacessível na primeira crítica torna-se agora
praticamente acessível.
O ponto de partida da CRPr é a consciência da lei moral ou do imperativo
categórico que é um fato da razão enunciado da seguinte maneira: “Age de tal modo que a
máxima de tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação
universal.”59 Esse imperativo tem origem a priori na razão, ou seja, não se origina da
experiência. Ele se fundamenta na autonomia da vontade, que é a faculdade de agir
conforme leis concebidas por conta própria. A razão prática coincide, pois, com a faculdade
volitiva (a vontade), que é o que distingue os homens das bestas: os animais agem por
instinto, e os homens agem por leis concebidas por conta própria. A vontade é a capacidade
de distanciar-se dos impulsos naturais e instintivos e de suspendê-los como motivação
última do agir.
O imperativo funda-se na vontade, que é o que distingue o homem do animal, mas o
que é, afinal, um imperativo? Primeiro é preciso estabelecer a diferença entre os princípios
práticos conhecidos como máximas e imperativos:
“Princípios práticos são proposições que contêm uma determinação geral da vontade, a qual
inclui em si várias regras práticas. São subjetivos, ou máximas, quando a condição é
considerada pelo sujeito como válida unicamente para a sua vontade; mas são objetivos, ou
leis práticas, quando essa condição é reconhecida como objetiva, isto é, válida para a
vontade de todo o ser racional.”60
Somente os imperativos são objetivos, isto é, válidos para todos, e não apenas para o
sujeito que os pronuncia. Por sua vez, os imperativos subdividem-se em hipotéticos e
categóricos. Hipotéticos quando determinam a vontade sob a condição de que ela queira
alcançar determinado fim. (EX: Se quiseres boas notas, deves estudar mais). Conselhos de
prudência e regras estratégicas são exemplos de imperativos hipotéticos. Já o imperativo
categórico determina a vontade sem ter em vista um efeito desejado, mas
exclusivamente como vontade. Ele não diz “se queres, então deves”, mas sim “deves
porque deves”. Somente o imperativo categórico é uma lei prática válida
incondicionalmente para todos os seres humanos; somente ele é lei moral universal e
necessária. Universal porque válido para todos, e necessária não como “necessidade”
(müssen), mas no sentido do dever (sollen). Afinal, o filósofo de Königsberg sabe que o
homem pode agir contrariamente à lei moral, afetado que é pelas inclinações sensíveis.
Aliás, diz Kant, é justamente porque o homem é um ser imperfeito e sujeito às paixões da
alma, que a moralidade assume a forma do imperativo, do dever ser. Fosse ser, seria
perfeita, divina.
A lei moral, então, só pode ser formal, e não material. Isso significa que a
essência do imperativo categórico não consiste em ordenar aquilo que se deve querer,
mas em revelar como se deve querer aquilo que queremos (de tal modo que a máxima de
59
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: edições 70, 1994, p.42
60
Ibidem, p.29
48

nossa vontade possa ser considerada como universal). A moralidade não consiste naquilo
que se faz, mas no como se faz aquilo que se faz. A forma pura da lei moral é, pois, a
universalidade. Isso não quer dizer que, ao se auto-determinar, a vontade não proponha
conteúdos e que a forma da lei moral não tenha uma matéria, mas apenas que esta não pode
nunca ser o motivo e a condição determinantes da forma da lei moral.
A consciência desse imperativo categórico necessário e universal possibilita a
consciência da liberdade. Assim, se na CRP a liberdade era um conceito problemático cuja
realidade não podia ser provada, na CRPr, ao contrário, a lei moral demonstra a
possibilidade e a realidade da liberdade. Lei moral e liberdade têm uma estreita ligação: a
lei moral prova a realidade da liberdade, mas, ao mesmo tempo, ela não teria sentido se o
homem não fosse livre. Pode-se dizer que na ordem do ser, a liberdade é anterior à lei
moral, e na ordem do conhecer a lei moral é anterior.
Dessa maneira, a autonomia da vontade é o único princípio de toda lei moral de dos
deveres conforme essa lei; a heteronomia, ao contrário, não só não determina qualquer
obrigatoriedade, mas opõe-se ao princípio de obrigação e à moralidade da vontade. Livre é
apenas o sujeito que é autônomo, que age conforme a lei moral, ou seja, que é capaz de agir
por conta própria.
De acordo com Kant, toda moral que aponta para determinados fins (para aquilo que
se deve fazer, e não para o como se deve fazer) passa a ser considerada como heterônoma.
A ação moral deixa de ser aquela que visa alcançar a felicidade ou qualquer outro fim, e
passa a ser aquela que se orienta pelo puro e simples dever. Ou seja: bem moral é aquilo
que está conforme o critério do imperativo categórico. Kant reformula a moral e a coloca
conforme a ciência e a razão de seu tempo. Depois dele, há uma crescente racionalização da
filosofia, cujo ápice é o positivismo, que acreditava que a ciência seria a soluçãopara todos
os problemas humanos.

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