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DISCIPLINA: PSICOPATOLOGIA

PROF: ATAUALPA MACIEL

BERG, J.H. VAN DEN. O paciente


psiquiátrico: esboço de Psicopatologia
Fenomenológica. Campinas: Editora Psy,
2003.

PREFÁCIO
Em última analise, a posição fenomenológica aqui
Pouco depois da Metablética ou Psicologia
adotada não só na ciência introduz nova concepção de
Histórica aparece agora em vernáculo O Paciente
objetividade, mas ainda na filosofia implica a recusa de
Psiquiátrico, ambos estudos da lavra do eminente
qualquer dualismo substancial entre corpo o alma, físico e
psicólogo o psiquiatra holandês Dr. JH Van den Berg,
psíquico, objeto e sujeito, atingindo assim o platonismo, o
professor e diretor do Instituto de Psicologia dos Conflitos,
cartesianismo. o paralelismo psicofisiológico etc. mas
na Universidade de Lelden.
deixando intatos o aristotelismo e o tomismo, em que a
Se escrevo mais este prefácio, não é porque tais
alma ou o psíquico se identifica ao corpo ou físico como a
obras me pareçam carecer de introdução, mas para aceder
natureza ou forma própria deste, sendo a consciência
aos amáveis convites do tradutor e do editor
concebida como essencialmente “Intencional”, ou relação
O presente livro há de interessar especialmente
de mútua cognoscibilidade com o objeto.
aos filósofos e os psicopatologistas. Os primeiros nele
Os psicopatologistas por sua vez neste livro
encontrarão interessante amostra do método
acharão uma critica aguda aos conceitos fundamentais,
fenomenológico, praticado conforme a concepção de
vigentes na psiquiatria atual, mormente na de orientação
Husserl e Heidegger, aplicada na psiquiatria por iniciativa
freudiana; quais sejam, os conceitos de projeção,
de L. Binswanger. Segundo tal concepção, consiste o
conversão, transferência, mitologização, inconsciente etc.
método fenomenológico em descrever o objeto, tal como
Lembremos, entretanto, que o autor não pretende arruinar
se revelar em si, dentro da perspectiva do sujeito conscien-
simplesmente a valiosa contribuição de Freud, mas antes
te. Destarte, objeto e sujeito já não são dois absolutos
corrigir-lhe o exclusivismo do fator neurotizante sexual ou
essencialmente independentes, mas comparáveis a dois
biológico pela concepção mais ampla de que, por mais
pólos necessariamente ligados em relação recíproca de
variados que lhe possam ser os fatores, a chamada neurose
cognoscibilidade. Assim, manifestando-se tal como é, o
é sempre no fundo “sociose” ou “synethose”, devida a
objeto revela o respectivo sujeito; e inversamente, ao
qualquer causa da inadaptação social; de modo que a
relatar o seu estado de alma, o sujeito não pratica a pura
Psicopatologia pode ser conceituada como a ciência da
introspecção subjetiva, mas indica o modo em que lhe é
solidão ou do isolamento humano (conf. Metablética, cap.
dado o mundo objetivo e temporal, abrangendo o próprio
3). Ao leitor comum, enfim, convirá passar por cima deste
corpo, além dos corpos ambientes, físicos ou humanos.
prefácio e procurar desde logo entender um livro, que pela
Compreende se. pois. porque o método
clareza, precisão e vida concreta do estilo a si mesmo se
fenomenológico aqui praticado pretende estudar o paciente
apresenta corno lido e autêntico “fenômeno” de ciência e
psiquiátrico, não por via puramente introspectiva,
arte descritiva.
recomendada por Jaspers, mas sim, por descrição fiel do
mundo objetivo do psicopata, como preceitua Binswanger.
Logicamente, deve tal método descritivo e
objetivo recusar todas as interpretações do comportamento PROF. LEONARDO VAN ACKER
do psicopata como devido a deturpações do mundo rios Doutor cm Filosofia pela Universidade de Lovain,
objetos, reputado exclusivamente normal e puramente Bélgica Catedrático da Pontifícia Universidade Católica de São
objetivo, pelo psiquismo anormal do paciente, considerado Paulo.
meramente subjetivo.

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com que este estudo — se assim é permitido dizer —
INTRODUÇÃO também diga respeito à sua própria vida.
Finalmente, esta declaração: o paciente, cujos
Esta Psicopatologia geral que aqui males aqui se descrevem existe e não existe. Não
apresentamos concisamente é de estrutura pouco existe no sentido de que o paciente descrito seja um
usual. Via de regra, urna psicopatologia geral indivíduo identificável pelas queixas aqui relatadas;
consiste num sumário de sintomas, síndromes e existe, sim, enquanto as suas queixas pertencem a
descrições de doenças em geral; quando se descreve uma só classe de paciente. Conheço esse paciente;
o caso de um paciente, é apenas para documentar o encontro-o em cada um dos meus enfermos.
assunto em discussão. Aqui, pelo contrário, descreve-
se a condição mórbida de um simples paciente e nada
mais. Não se oferece ao leitor definição alguma de
sintomas psiquiátricos, nem resumo de síndromes,
nem descrição geral de enfermidades. O número de
CAPÍTULO I
livros em que isto tem sido feito, e muito bem feito,
já é suficiente. Há, por exemplo, apenas para QUAIS OS PROBLEMAS
mencionar dois deles, a obra do Dr. R. Vedder:
Inleiding tot de psychiatrie e, para aqueles que SUGERIDOS PELAS
desejam um trabalho mais extenso, o não QUEIXAS DA MAIORIA DOS
ultrapassado livro de Jaspers: Allgemcine
Psychopathologie. Minha intenção foi mostrar ao PACIENTES?
leitor que um simples paciente, seja qual for o grupo
a que pertença o seu distúrbio, engloba toda a 1. Aparece o paciente no consultório do psiquiatra.
Psicopatologia.
O paciente estudado nesta obra pertence, sem Faz alguns anos, já tarde da noite, fui
dúvida alguma, ao grupo dos neuróticos seriamente chamado ao telefone por um homem, cuja voz
perturbados. Assim mesmo, as suas percepções são denunciava nervosismo e que desejava consultar-me
anormais no sentido de que não se diferenciam das a respeito das suas dificuldades pessoais. Sugeri um
alucinações e de que o seu pensamento ilusório não é encontro para o dia seguinte à tarde, mas ele
diferente dos pensamentos dos pacientes que sofrem respondeu que, devido a razões muito especiais,
de ilusões. Naturalmente, seria incorreto negar a preferia procurar-me à noite. Marcamos hora para a
existência de linhas de demarcação, quando elas noite seguinte e apareceu-me então, na hora
realmente existem. Há, uma diferença entre as combinada, um jovem dos seus 25 anos, dizendo ser
alucinações e as percepções neuróticas, da mesma a pessoa que telefonara na véspera. Mostrou-se
forma que há diferença entre pensamentos ilusórios e indeciso a princípio, mas finalmente explicou o
neuróticos. Mas as diferenças não chegam ao ponto motivo de sua visita.
de anular qualquer relação ou, para dizê-lo mais Logo nos primeiros instantes compreendi que
claramente, não são suficientemente grandes para se achava em grandes dificuldades. Olhou-me com
que, quando uma condição é melhor compreendida, o expressão mista de desconfiança e timidez e, quando
mesmo não aconteça simultaneamente à outra pegou na minha mão estendida, a sua mão deu-me
situação. Todos os pacientes participam da mesma uma sensação de moleza e de fraqueza; era a mão de
existência humana. Assim espero que, ao estudar a uma pessoa que não encontra saída para os seus
condição do meu único paciente, possa contribuir a problemas e que, completamente fora de controle,
criar melhor compreensão de outros pacientes ou deixa-se levar pela correnteza. Inclinando-se
mesmo, em princípio, de todos os pacientes, embora desajeitadamente, sentou-se na cadeira que eu lhe
sabendo que o meu livro é pequeno e de modestas tinha indicado.
pretensões. Muito empertigado, deixou espaço entre as
Não se pode explicar em poucas palavras, em suas costas e o espaldar da cadeira, como se estivesse
que consista o método fenomenológico da preparado, desde o início, para levantar-se e ir
Psicopatologia. Em diversos trechos das páginas embora. Sua mão direita, que mantinha dentro do
seguintes procurarei definir mais claramente o que colete ao entrar e que utilizou apenas para me
isto significa. No entanto, somente a impressão geral cumprimentar com pouco entusiasmo, voltou
é que poderá esclarecer ao leitor o que é, realmente, a imediatamente à sua posição original. Com os dedos
fenomenologia. Uma das principais características da da mão esquerda, tamborilava sem parar sobre o
fenomenologia é que não visa à procura de uma braço da cadeira. Não cruzou as pernas. Seu
teoria sutil, mas apenas a um plausível conhecimento comportamento dava a impressão de um homem cuja
íntimo. O leitor tem o direito de usar a sua própria vida, há muito tempo, era um contínuo tormento.
mente, ao acompanhar a discussão, mesmo se o A história que me contou confirmou
assunto está um pouco fora das suas capacidades. O plenamente a minha primeira impressão. Disse que
leitor pertence à mesma existência humana que faz era estudante, mas que não freqüentava as aulas

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desde vários meses, porque não se sentia capaz de semana em casa de seus pais, que moravam a 20
caminhar na rua à luz do dia. A única ocasião em que quilômetros de distância. Tomava sempre o último
se obrigara a sair de dia conservava-se como trem e, durante a viagem, sentia-se deprimido. Assim
pesadelo em sua memória. Tivera a sensação de que que chegava à casa dos pais, sentia uma paz deliciosa
as casas entre as quais passava estavam prestes a invadir-lhe o corpo, mas essa sensação agradável
desabar sobre ele. As casas pareciam cinzentas e desaparecia em poucas horas, porque o
quase em ruínas. A rua era espantosamente larga e comportamento dos pais ia irritando-o aos poucos.
vazia e as poucas pessoas com quem tinha cruzado Julgava o pai rústico e sem modos. E quando a mãe
pareciam-lhe irreais e longínquas. Mesmo quando sentava-se perto dele e indagava simpaticamente dos
alguém roçava por ele, sentia-se impressionado por seus estudos, o ódio crescia-lhe por dentro e
uma distância que os separava. Sentia-se precisava dominar-se para não esbofetear a
profundamente solitário e, cada vez mais, temeroso. progenitora. Nessa casa, onde cada canto e cada
O medo impelira-o a voltar para seu quarto e ele se móvel lembrava-lhe a infância, as recordações do
teria certamente posto a correr, se não se sentisse passado o impeliam a culpar os pais pela sua
tomado por umas palpitações tão fortes que só lhe infelicidade, em termos candentes. Sentia-se feliz ao
permitiam andar passo a passo. partir novamente. No trem de volta, conseguia
Essas palpitações o estavam torturando já geralmente encontrar um lugar solitário num
havia bastante tempo. A princípio, isto é, alguns anos compartimento vazio onde, em voz iria, podia
atrás, eram passageiras e suportáveis; com o correr insultar à vontade os seus pais. Chegando ao seu
do tempo tornaram-se mais freqüentes e mais quarto, livrava-se dos pensamentos do passado
violentas. Às vezes, as batidas do seu coração eram metendo a cabeça num livro.
mais rápidas que o normal, mesmo nos intervalos Não pensava, ou não queria pensar no futuro.
entre as crises. Estava sempre preocupado com seu A vida, para ele, era apenas o estudo, sem nenhum
coração e precisava manter a mão sobre o peito, para outro propósito. Se, de vez em quando, as
certificar-se de que nada ocorria de anormal e para circunstâncias o compeliam a pensar no que estava
poder, se fosse preciso, comprimir e acalmar as por vir, tudo se tornava vago e ameaçador.
batidas. Assim termina o relato do paciente, em sua
Quando se achava em seu quarto, esses primeira visita ao psiquiatra.
distúrbios não o incomodavam tanto. Sentia-se da
melhor maneira possível quando estava estudando e 2. Resumo das queixas.
nada o perturbava. Além dos assuntos relacionados
com os seus estudos, nada mais podia ler. Havia anos Para melhor compreensão, o sumário das
que não lera um romance. Tinha certeza de que seu queixas do paciente, relatadas em sua primeira visita,
coração sofreria qualquer abalo se se entregasse a será completado com detalhes que ele acrescentou
qualquer leitura emocionante. Pelo mesmo motivo, mais tarde. A fim de conseguir uma visão bem clara,
não lia jornais. Recebia somente poucos amigos. vou catalogar os males de que se queixou.
Eram pessoas que só falavam dos próprios Restringindo-me às próprias informações do
conhecimentos e que, quando discutiam assuntos da paciente, penso que os seus males podem ser
vida de todos os dias, só o faziam para criticar. As classificados em quatro grupos: as mudanças que se
discussões em que se arrasava o sexo feminino produziram no mundo observável, as mudanças em
tinham o dom de fazê-lo sentir-se em boa saúde. seu corpo, as alterações nas suas relações com
Sentia-se então eufórico, podia rir e esquecia-se do outras pessoas e naquelas que concernem o seu
seu coração. A sua opinião sobre o amor era, passado e seu futuro. A fim de não dar interpretação
conseqüentemente, cínica. Concordava com a prematura a essas mudanças, acho preferível
definição do moralista francês Chamfort, segundo a conservar a classificação sugerida pelas próprias
qual o amor não era mais que “o contato de duas queixas.
epidermes e a troca de duas pálidas fantasias”.
Antes de ficar doente, conhecera uma moça, a) O mundo.
mas, quando ela sugeriu que ficassem “namorados A alteração no mundo concreto e observável
firmes”, riu-lhe na cara. Ela o abandonou então e ele é de tal natureza que o paciente não ousa sair de casa
verificou com surpresa que o seu coração desatou a durante o dia claro. Quando se pede ao paciente que
bater aceleradamente. A partir desse momento, descreva o que viu, diz que a rua parecia muito larga,
resolveu nunca mais manter relações com moças. as casas cinzentas ou sem cor, tão velhas e arruinadas
Depois desse incidente, passou a visitar prostitutas, a que pareciam a ponto de desabar. As casas também
intervalos regulares, embora não muito lhe causavam impressão de confinamento; era como
freqüentemente. Costumava humilhar essas mulheres se todas as janelas estivessem com as venezianas
por todos os meios possíveis, mas nunca tinha fechadas, embora ele percebesse que não era assim.
verdadeiro contato físico com elas. As casas assemelhavam-se a cidadelas fechadas.
Uma vez cada três meses passava o fim de Olhando para cima, via as casas inclinando-se sobre a

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rua, de modo que a faixa de céu entre os telhados olha ansiosamente em volta de si. Quando lhe
parecia mais estreita que as ruas em que caminhava. perguntamos o que o está perturbando, responde que
Ao chegar a uma praça, surpreendeu-se com a sua a rua lhe causa pavor. Parece tão estranha, tão larga,
extensão, muito maior do que o seu tamanho real. e assim mesmo tão estreita. As casas debruçam-se
Sabia, com certeza, que não seria capaz de atravessá- sobre as calçadas; pensa que vão desmoronar de um
la. Sentia que uma tentativa para cruzar o largo teria momento para outro. Falamos com ele calmamente e
resultado numa tão intensa sensação de vácuo, de dizemos-lhe que nada há de errado com a rua; pelo
largueza, de singularidade e de abandono que as suas contrário, apresenta aspecto muito agradável, mas ele
pernas não o agüentariam. Teria caído ao chão. Do meneia a cabeça e não se convence. Ao contrário, à
abrigo do seu quarto, a rua lhe parecia menos medida que vamos caminhando — apesar das nossas
perigosa, mas, mesmo assim, pensava que não seria palavras tranqüilizadoras, tão bem escoradas na
capaz de andar ou ficar de pé na rua, sem ressentir as realidade — mais ansioso vai ficando. Agarra com
mesmas impressões. Havia anos que não saía da mais força o braço que está segurando, como se
cidade, para passear pelos campos ou pelos bosques. sentisse que o apoio não é suficiente. O suor transpira
Sabia, porém, o que aconteceria se ele saísse estrada em sua testa. Seu rosto denota a impressão de que
afora. Seus pais viviam no interior; da casa deles alguma coisa séria vai acontecer. Quer retroceder;
avistava os descampados. A janela do seu quarto de para casa, pelo amor de Deus! De volta ao quarto,
dormir proporcionava-lhe mesmo belíssimo limpa o suor que lhe cobre a face e sorri debilmente.
panorama. Ou melhor, lembrava-se que, no passado, Qualquer pessoa normal perguntaria: que aconteceu?
achava a vista magnífica, mas agora já não a Nada aconteceu na rua que pudesse refletir-se no
apreciava. As cores dos campos recobertos de flores paciente, mas ele não vê as coisas do nosso modo.
e de árvores já não lhe causavam impressão alguma; Pode até mesmo exclamar: “Você não faz idéia do
tudo lhe parecia sem vida e sem cor. Mas era que aconteceu aí fora!”
sobretudo o espaço aberto que o atemorizava; mesmo Será conveniente lembrarmo-nos do
no campo, não seria capaz de dar o menor passeio. seguinte: aquilo que, na rua, parece real para o
Costumava tomar um táxi para ir até a vizinha paciente, para nós é inexistente. Assim, o paciente
estação. deve estar-se iludindo. De que maneira se engana,
A descrição que o paciente fazia disso tudo porém, não é claro. Mesmo o fato de que ele se ilude
era tão convincente que dava a impressão de estar ele a si mesmo permanece obscuro.
vivendo em outro mundo, tão real como este nosso
mundo comum e palpável. A impressão de que o b) O corpo
paciente estava falando sobre alguma coisa que, para Os lamentos do paciente quanto ao seu
ele, era perfeitamente real, tornava-se ainda mais estado físico (não tem a menor aparência de estar
forte ao percebermos quanto sofria em conseqüência enfermo), referem-se ao seu coração. Há muitos anos
das suas observações. Não se tratava de fantasia ou que vem sofrendo de palpitações, especialmente em
de ilusões. A realidade definia suas ações. Era crises esporádicas. A princípio, essas crises eram
simplesmente impossível para ele negar as suas suportáveis, mas se tornaram gradualmente tão
apavorantes experiências na rua; via as coisas violentas que receava desmaiar de fraqueza. No
exatamente dessa maneira. As coisas do seu mundo intervalo dessas crises, sofre de dor permanente no
eram temíveis, ameaçadoras e quando procurava peito. Parece-lhe que o seu coração bate depressa
compreender que a casa, a rua, a praça e os campos demais. Há qualquer coisa de errado em seu peito;
deveriam razoavelmente reassumir a sua primitiva alguma coisa que vai rebentar. O paciente tem medo
forma e natureza e que, portanto, as suas percepções de que o seu coração pare subitamente de bater. É por
deviam lhe estar fornecendo uma falsificação da isso que conserva a mão dentro do colete; quer estar
realidade, então essa correção, na qual queria alerta quanto a seu batimento. O seu pulso, de fato,
acreditar ao menos por um momento, parecia-lhe tem ritmo muito rápido e ligeiramente irregular.
irreal e artificial. Muito mais irreal que a observação Afinal de contas, seria talvez conveniente consultar
direta e não emendada, que para ele era tão um cardiologista. Replica, todavia, que já consultou
ameaçadora que o repelia para seu quarto. O que grande número de cardiologistas, que lhe
percebia era uma realidade, tal como a descrevia. asseguraram unanimemente estar perfeito o seu
Vamos supor que estamos acompanhando o coração. Mostra-me a carta que recebeu do último
paciente num passeio. O dia é claro, o sol está cardiologista consultado, o mesmo que lhe sugeriu
brilhante, o povo está todo nas ruas, que de modo consultar um psiquiatra. Os dizeres dessa carta
algum parecem assustadoras. Tudo isto pode ser confirmam que o exame cuidadoso não revelou
observado da janela do paciente. Confirma este as qualquer anomalia, a não ser as batidas muito rápidas
nossas observações, embora esteja farejando algum e o pulso ligeiramente irregular. Junto à carta está um
perigo. Vamos para fora. Começa então a mudança. filme eletrocardiográfico, que de sobejo prova nada
Logo depois de atravessar a porta, o paciente agarra haver de anormal no coração.
nosso braço, seu rosto assume expressão vidrada, O paciente já está a par de tudo isso, mas não

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está convencido. Em sua opinião, se existissem pois a amizade, em sua opinião, não é mais que
métodos mais apurados de exame, os defeitos seriam egoísmo disfarçado. Não chama de amigos aos
certamente encontrados. Pois não tem ele evidência colegas estudantes que o visitam e conversam com
da certeza da sua opinião? Basta-lhe dar alguns ele a respeito dos seus conhecimentos científicos.
passos na rua para perceber como está ruim o seu Eles podem ser úteis no que se refere aos estudos,
coração. Se ele prosseguisse no passeio, sabe que as mas esta é a única razão que o faz suportá-los. E as
batidas iriam parar. E, além disso, não lhe dói o pessoas que discutem, desdenhosamente, os assuntos
coração o dia todo? Cartas de todos os cardiologistas relativos aos valores da vida, proporcionam-lhe,
do mundo não seriam capazes de convencê-lo de que certamente, momentos de prazer, mas também não
a dor que sente não existe e que o seu coração está gostaria de considerá-los amigos. No que concerne às
perfeito. O seu coração está doente: esta é a realidade moças, não tem opinião, formada. Prefere não ter
da sua vida física. nada com elas. Em sua opinião, são criaturas
Além disso, o paciente queixa-se de fraqueza inferiores que se interessam principalmente por
nas pernas e de distúrbios no sentido do equilíbrio. assuntos que para ele são assustadores. A seu ver, as
Quase todas as noites, quando está escuro e as ruas relações com prostitutas são a única espécie de
não parecem tão alarmantes, ele dá um passeio. A relações que um homem pode ter com o outro sexo.
princípio, tudo corria bem, mas, ultimamente, só O amor é pura bobagem — embora admita que esta
pode andar com a ajuda de forte bengala. Mais bobagem está sempre a preocupá-lo. É por esse
recentemente, até a bengala se tornou inadequada e motivo que não lê romances. Para conservar a sua
ele só pode caminhar apoiado em sua bicicleta, tranqüilidade, ele tem que se afastar de tudo o que
segurando o guidão com ambas as mãos. Desde possa evocar relações humanas normais. Por esse
então, nunca mais saiu sem a sua bicicleta. Os seus motivo, também não lê jornais.
vizinhos, que pensam que sai para uma corrida todas As outras pessoas na rua parecem-lhe
as noites, estão enganados. Ele nem pode sentar no distantes, o que lhe dá um sentimento de abandono.
veículo; fica tonto só de pensar nisso. Quando o Mesmo quando esbarram com ele, na calçada, a
pavimento está escorregadio, no inverno, fica em distância se mantém. Movimentam-se sem razão pela
casa. É muito meticuloso na escolha dos seus rua muito larga, como se fossem bonecos sem vida.
sapatos; não pode correr o risco de escorregar e de Fazem-no sentir-se solitário, inquieto, ansioso e
perder o equilíbrio. zangado. Gostaria de destruir esses bonecos. Todo o
Não é necessário acrescentar que o paciente gênero humano é seu inimigo.
consultou também um otologista, que o examinou Nosso Bom-Senso nos diz que o paciente
cuidadosamente e lhe afirmou não existir anomalia deve estar mais uma vez errado. Está sendo vítima de
alguma em seu sentido de equilíbrio. Não precisava um desentendimento provocado por ele mesmo.
preocupar-se a esse respeito. Assim mesmo, o Embora, de certo ponto de vista, seja certo que a
paciente continuou inquieto e consultou um sociedade é movida pela ambição e pelo interesse,
neurólogo que também lhe declarou não ter também é óbvia a existência da verdadeira amizade e
encontrado defeito algum. do amor. Mas essa evidência é positivamente negada
Tudo isso conduz à mesma conclusão: os pelo paciente. Está sempre pronto a citar incidentes
sintomas, que tanto estão a perturbar o paciente, suscetíveis de provar que a amizade é apenas uma
resultam inexistentes quando submetidos a cuidadoso máscara. Não adianta discutir o assunto com ele.
exame, isto é, depois de objetiva e conscienciosa Tudo o que é óbvio para qualquer pessoa, para ele
pesquisa clínica. O paciente, portanto, deve estar não existe. O paciente vive em outra realidade,
errado; deve estar iludindo-se a si mesmo, sem o inclusive em suas relações com outras pessoas.
saber; pois quem pode duvidar do resultado de um Esclarece perfeitamente esta outra realidade quando
exame médico, moderno, objetivo e científico? faz descrição da aparência das demais pessoas. Dão-
E assim mesmo, mais uma vez, não se pode lhe a impressão de serem bonecos sem sentido, que
explicar como o paciente se engana a si mesmo. se movem sem nenhum objetivo e que são
Ouvindo a sua história, a gente fica imaginando se o controladas pelo mal. Não quer ter nada com elas.
paciente está mesmo se iludindo; será possível que Nada quer receber delas. De qualquer maneira, nada
uma pessoa sofra tanto por auto-ilusão? poderia receber, pois estão longe demais. Não pode
alcançar pessoa alguma, e ninguém pode alcançá-lo.
c) As outras pessoas. Para ele, estão condicionadas pela distância, no
Quando se pede ao paciente que exprima as sentido mais literal da palavra. Mesmo quando estão
suas opiniões a respeito do próximo, uma coisa em contato físico com ele, elas permanecem
resulta evidente: ele não tem contato real com pessoa distantes. Não é isto uma contradição? Para o
alguma. Toda e qualquer pessoa o irrita. Quando seus paciente, não é contradição alguma. Poderíamos
pais estão conversando sobre assuntos corriqueiros de argumentar com ele, com todos os elementos de
todos os dias, acha-os crédulos, muito românticos e persuasão ao nosso alcance que, quando duas pessoas
otimistas demais. Tem objeções à palavra “amigo”; estão se tocando, não pode haver percepção de

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qualquer distância entre ambas. Mas isto não Ambos os informantes descreviam a mãe como sendo
adiantaria nada, pois ele percebe e sente a distância. muito carinhosa, muito sentimental, disposta a tudo
É distância o que ele observa; qual a vantagem, para tornar a vida fácil para os filhos, mas sem
então, de argumentar com ele? Alguma coisa que chegar ao exagero mencionado pelo paciente. Para os
ninguém percebe e que, quando sugerida, é negada observadores de fora, a família parecia ser
por toda a gente, parece ser uma realidade para o perfeitamente normal.
paciente. Os outros filhos mantinham relações normais
com os pais. Em criança, o paciente não tinha
d) Passado e futuro. despertado qualquer atenção especial. Não dera mais
É impressionante notar com quanta aversão o trabalho que qualquer irmão ou irmã. Brincava
paciente se refere ao seu passado. Diz que mal se sempre alegremente, mas parecia ter inclinação para
lembra da sua infância, mas as poucas recordações brinquedos solitários. Quando havia uma festa,
que conserva dão-lhe, a seu ver, o direito de pensar divertia a família com as suas brincadeiras. A
que teve péssima educação. O pai sempre se imitação que fazia do mestre-escola da aldeia era
mantinha distante dos membros da família e a sua muito apreciada; parecia verdadeiro professor. Às
atitude era sempre ríspida com todos. A mãe mimava vezes, suas palavras continham certa malícia, mas ele
demais o filho. E nenhum dos dois preparava-o para era ainda criança, de modo que ninguém estranhava.
enfrentar os azares da vida. Via de regra não pensa Somente quando começou a crescer é que se tornou
muito nessas coisas. Mas quando vai para casa visitar aparente que não se sentia feliz em casa. A princípio,
os pais, incidentes do passado ressurgem em sua os pais consideraram esses sinais como meras
mente. Em todos os recantos da casa paterna ele se manifestações da puberdade e resolveram dar-lhe
lembra da sua infância. Acha que os pais ainda o mais liberdade. Mas o rapaz não reagiu do modo
estão tratando como criança. Continuam fazendo os esperado. Ficaram satisfeitos quando manifestou o
mesmos erros do passado. Tem certeza de que os pais desejo de continuar os estudos, pensando que a
nutrem sentimentos hostis para com ele. A sua liberdade de vida do estudante poderia resolver os
mesada é inadequada — e ele sempre tem que pedi- seus conflitos, cuja natureza desconheciam. Notaram,
la, para não ser esquecida. Considera manifestação de porém, que o estado do filho ia piorando.
desconfiança qualquer indagação do pai a respeito Patenteiam-se novamente as divergências
dos seus estudos. Quando o pai lhe pergunta como se entre a história contada pelo paciente e as
sente, percebe um tom de reprovação e de malicioso considerações de observadores que podem ser
prazer. Fica zangado e preferiria ir embora para considerados objetivos. Sentimo-nos inclinados a
jamais voltar, se não fosse financeiramente escolher o lado das testemunhas, pois o
dependente. É provável que sua mãe se preocupa desenvolvimento normal e satisfatório das outras
com ele de todo o coração, mas ele precisa assumir crianças da família não é mais uma prova de que o
uma atitude de resistência. Porque, se fosse responder paciente deve estar errado? Isto poderia ser
às suas perguntas, sentir-se-ia de novo criança e com considerado boa evidência, mas nenhum resultado se
certeza prorromperia em prantos. Isto seria pode obter da confrontação do paciente com esses
intolerável e destruiria as bases da sua atitude perante argumentos. Ele não ficaria convencido e tenderia a
a vida. É por isso que não se abre com ela. Somente queixar-se de tanta incompreensão. Sabe todo
quando se mantém frio e em atitude de homem psiquiatra que discutir essas coisas com o paciente
prático é que a vida lhe é suportável. É por isso que não faz sentido. Argumentar com ele poderia até
responde à mãe em frases frias e curtas. E, quando resultar em desastre. Se se espera algum resultado
ela insiste, levanta-se e deixa a sala. favorável do tratamento, não se deve discutir com o
Acontece que, muito tempo depois de paciente o ponto de vista das testemunhas. Não
terminado o tratamento, recebi informações de duas adianta procurar convencer o paciente. Ele nunca será
fontes diferentes, a respeito das condições da vida convencido. Isto também é verdadeiro para todas as
familiar do paciente, tão lugubremente descritas em outras inconsistências. Falando de um ponto de vista
seus relatórios. Essas informações provinham de um psicoterapêutico, achamos incorreto que se diga ao
colega, que conhecia muito bem os pais do paciente, paciente que ele está se iludindo no que concerne à
e de um conhecido, que costumava visitar a família, observação da rua, que ele está errado em sua opinião
quando o paciente ainda era criança. Embora a respeito do seu coração e que tem falsa impressão
descrevendo os pais sob cores completamente das pessoas em volta dele. Voltarei sobre isso mais
diferentes, os relatórios de ambos coincidiam em suas adiante. O que devo salientar aqui é a conclusão de
linhas gerais. Fiquei sabendo que o pai era homem que o paciente, no que se refere à sua memória do
reticente, absorto em seu trabalho, mas que nunca passado, diverge da opinião dos outros, tomando sua
deixara de preocupar-se com a família. Era severo opinião divergente pela realidade, pela realidade da
com os filhos, mas não duro ou desprovido de afeto. sua infância.
Permitira que cada um procurasse a própria profissão A mesma situação se apresenta quanto ao seu
e nunca lhes negara os meios de viver e de estudar. futuro. Gostaríamos de dizer ao paciente que não se

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deixasse enganar pelas suas concepções erradas; contribuiria à melhora do doente. Mas, acima de
gostaríamos até de exortá-lo aos gritos para que tudo, porque, de certo modo, concorda com o
abrisse os olhos e percebesse como o mundo é paciente. Os parentes e amigos estão certos, mas o
realmente, para que compreendesse as boas intenções paciente também está. Alguma coisa realmente
das pessoas que estão em volta dele, para que mudou; quanto a isto o paciente não está errado. Mas
percebesse como foi e está sendo bem educado e não foi o mundo exterior que mudou. Foi o próprio
sentisse a saúde do seu corpo; se ele pudesse ao paciente, o sujeito, que se tornou mentalmente
menos compenetrar-se de tudo isso, poderia esperar perturbado, o que significa que mudou. O paciente
tudo do futuro, pois é jovem, inteligente, de boa está enganado na localização da mudança. O
estirpe e não desprovido de recursos. psicoterapeuta acredita que o paciente transferiu o
Teria fisionomia agradável, se não fosse o seu defeituoso estado de espírito para os objetos que
seu aspecto zangado e fúnebre, e possui modos percebe. Ou, para dizê-lo em palavras técnicas: o
encantadores. O futuro está aberto à sua frente. Mas, paciente projeta. Projeta sobre as coisas em volta
quando é perguntado a respeito, não tem plano algum dele tudo aquilo que, afinal, existe dentro de si.
para o futuro. Não sabe o que vai acontecer com ele e O conceito de projeção tem-se tornado
receia o pior. Todas as esperanças, tão boas, tão familiar. Tanto assim que mal podemos — se é que
corretas e tão verdadeiras, são afogadas pelas suas podemos — compreender as dificuldades teóricas
lamentações; o futuro, diz ele, o está olhando de implícitas nesse conceito. E, de fato, ninguém foi
soslaio e sarcasticamente. ainda capaz de explicar de que modo a projeção se
efetua. Seria necessário compreender que não há
3) Análise do problema. teoria aceitável para explicar de que maneira uma
No parágrafo precedente, as queixas do disposição de ânimo anormal, um distúrbio mental,
paciente foram classificadas em quatro rubricas. Foi isto é, alguma coisa dentro do paciente, possa sair
possível, de cada vez, estabelecer contradição entre a dele, possa mover-se rumo a objetos do mundo
opinião do paciente e os fatos da realidade. Embora externo, juntar-se e incorporar-se a eles, de tal forma
sendo verdade que nem todos os pacientes que o paciente os perceba como realidade, perdendo
psiquiátricos chamam a atenção para essas quatro simultaneamente a memória da realidade verdadeira.
contradições mencionadas, não é raro que, ao Porque uma coisa é certa: o mundo a que o paciente
ouvirmos a história de uma pessoa mentalmente se refere, para ele é tão real quanto, para nós, o
perturbada, ouçamos pelo menos uma parte mundo em que vivemos. O seu mundo é, até mesmo,
(geralmente grande parte) do que acima foi resumido. mais real que o nosso; pois, ao passo que podemos
Já tenho salientado que não adianta pôr o paciente em nos livrar do feitiço de uma paisagem depressiva, o
confronto com essas contradições; isto é um fato bem paciente não é capaz de se liberar do seu lúgubre
conhecido pelos psiquiatras e pelos psicoterapeutas. panorama. No caso que estamos estudando, o
Além disso, o paciente está cansado e enojado com paciente chegou a isolar-se em seu quarto para evitar
esta espécie de discussão. Já ouviu inúmeras vezes de ser perturbado pelos objetos que veria na rua.
dos parentes, amigos e conhecidos a afirmação de Pode este fato corresponder com o conceito de
que as suas opiniões estão erradas. Essas discussões projeção? Assim que compreendemos o que significa
nunca lhe fizeram bem; pelo contrário, causaram-lhe a palavra projeção enfrentamos um enigma.
irritação e mal-estar. Consulta então um Chegamos então às queixas sobre o estado
psicoterapeuta a fim de ouvir uma resposta diferente. físico. Nesse ponto o psicoterapeuta concorda,
E ele consegue outra resposta, de acordo com a também, com os parentes e amigos do paciente.
corrente de pensamento geralmente seguida pelo Compartilha da opinião de que o corpo do paciente
psicoterapeuta. está perfeitamente são. Mesmo que tenha tido, a
Quando o paciente declara que as casas princípio, algumas dúvidas, devidas à aparência
parecem estar na iminência de ruir e que as campinas sofredora do paciente, elas foram logo dissipadas
não têm cor nem vida; em outras palavras, que o pelos relatórios dos outros especialistas. Mesmo
mundo parece diferente durante os momentos em que assim, o psicoterapeuta não presume que o paciente
está apavorado, o psicoterapeuta não sente a menor esteja usando de simulação ou sofrendo de doença
tendência a compartilhar da crença de que as coisas e imaginária.
os próprios objetos mudaram. Continua a considerar O paciente está realmente doente; ele sabe
corretas suas próprias observações e incorretas as do disso; mas a sua enfermidade não é aquela que ele
paciente. O paciente deve estar enganado; neste pensa ter; não é um distúrbio físico, mas mental. Está
ponto o médico concorda com os parentes, amigos e colocando a sua enfermidade mental no lugar dos
conhecidos do paciente. Mas o psicoterapeuta não o seus órgãos físicos. O psiquiatra dá a essa mudança o
diz abertamente. Não quer confrontar o paciente com nome de conversão. O paciente converte.
o seu erro. Em primeiro lugar, porque sabe que o Eis uma segunda palavra que tem sido
paciente não se dará por convencido. E, em segundo geralmente adotada em psiquiatria: conversão. Não é
lugar, porque está ciente que essa declaração não óbvio que esse conceito seja tão obscuro como o

7
conceito de projeção? Vejamos o que esta palavra inimaginável e até mesmo oculto, onde o corpo e a
implica. O arrazoado é este: o ser humano consiste de alma estariam interligados
duas partes, o corpo e a alma. As duas partes são
diferentes uma da outra. Ao contrário da alma, o Deve o psiquiatra quebrar a cabeça com
corpo é visível e retalhável, é uma coisa. A alma, de esses problemas filosóficos? A pergunta está mal
acordo com a opinião geral, está contida dentro desta formulada. O psiquiatra que fala de conversão já é
coisa. É difícil dizer exatamente em que lugar. filósofo, portanto não há razão para que deixe de se
Falharam todos os esforços para descobrir a preocupar com a sua filosofia. É preciso compreender
localização da alma. No entanto, determinados que não se pode falar de conversão, sem estar
órgãos são necessários para a existência da vida previamente convencido de que, além do corpo,
mental. O coração é um deles. O cérebro é ainda mais existe a alma e que esta alma, situada dentro do
indispensável. E, quanto ao cérebro, é especialmente corpo, mantém contato com este corpo. A não
a sua parte central que tem sido relacionada com o aceitação dessa filosofia terá como resultado a
que se designa por alma. Verdade é que ainda não se adoção de outra interpretação para o fato de que uma
sabe como é feita a conexão. Ao dissecar esses pessoa, mentalmente perturbada, se queixa a respeito
órgãos, nunca foram encontrados pensamentos, de seu corpo. O próximo capítulo será dedicado à
desejos ou recordações; nunca se localizou o medo, a outra filosofia e à interpretação das queixas físicas
esperança, o amor ou o ódio. Nada que se pudesse que dela resultam.
chamar de alma foi encontrado dentro do corpo. Mas
isto não nos surpreende, pois não é verdade que Mas, antes disso, um comentário sobre a
tínhamos partido da suposição de que a alma é irracionalidade da idéia de que o paciente converte.
invisível e não pode ser dissecada? Neste caso, ela Se é fato que os distúrbios que provocam os males
não ocupa espaço. Mas então deve ser errado físicos do paciente, são de origem antes mental do
presumir que a alma se encontre dentro do corpo. que física, então o que leva o paciente a insistir sobre
Aquilo que não ocupa espaço não pode estar dentro as suas dores físicas? Seria mais plausível que
ou fora de coisa alguma. A suposição de que o insistisse sobre os seus distúrbios mentais, relatando
homem tem um corpo e uma alma e que esta alma, a seguir os respectivos efeitos sobre seu corpo. Mas o
que não ocupa espaço, está contida dentro do corpo que ouvimos do paciente é história completamente
tridimensional é, afinal de contas, bastante obscura. diferente; fala de palpitações, tensão no estômago, de
O conceito de que as dificuldades mentais se um círculo que aperta a cabeça, de fraqueza nas
expressam fisicamente é a transposição de um hiato pernas e canseira nos braços. É verdade que,
metafísico. Ninguém sabe exatamente o que significa ocasionalmente, menciona sintomas que poderiam ser
esta concepção. chamados mentais: sente nervosismo, ansiedade e
Todavia, supondo que exista, dentro do irritação. Mas ele mede sua nervosidade pelo
corpo, algo parecido com uma alma inespacial, como sentimento de agitação do seu peito, pela pressão na
conceber que essa alma, sem espaço nem matéria, sua garganta e pelo tremor dos dedos, das mãos e de
possa afetar a matéria do corpo? Filósofos como todo o corpo. Localiza sua ansiedade na região do
Descartes e Leibniz meditaram em vão sobre isso. coração. O que mais lhe desagrada é o mau gosto na
Dizer que uma coisa incorpórea possa influir boca e uma sensação de náusea na garganta.
materialmente sobre um corpo físico não é Quase nos inclinamos a pensar que a
explicação válida. A idéia é até contraditória — é conversão existe no sentido inverso: que o mal-estar
uma impossibilidade intrínseca. Foi Leibniz que físico é real, dele derivando o mental. Os mal-estares
chegou a esta conclusão, formulando, em físicos não dão a impressão de serem mal-estares
conseqüência, a teoria de que, desde a criação, corpo convertidos. Na descrição do paciente, a doença
e alma seguem seus caminhos separados, como dois física é a mais real.
sistemas divididos e fechados em si mesmos. Entre
esses caminhos o Criador, desde o começo, teria Vou abandonar agora este tema para observar
estabelecido um paralelismo tão rigoroso que nós, que linha de raciocínio é seguida pelo psicoterapeuta,
iludidos pelas aparências, supusemos haver um quando ouve o que o paciente pensa das outras
contato continuo entre ambos. Para cada ato, não pessoas. Pode ser dito de início que o psicoterapeuta,
haveria uma decisão conduzindo para o fato, mas a bem como os parentes do paciente, não está
decisão e o fato resultariam ambos, inclinado, via de regra, a acreditar no que diz o
independentemente, de seqüências independentes de paciente. Não pode ser verdadeiro que quase toda a
eventos, partindo da Criação; uma seqüência de gente queira fazer-lhe mal. O paciente faz do
eventos para o corpo e uma seqüência de eventos próximo idéia errada. Deve estar enganado. Está
para a alma. errado quando pensa que todos os homens
Ninguém mais acredita nessa teoria, nem prejudicam a sua liberdade pessoal e que todas as
naquela de Descartes, que julgava fosse a glândula mulheres são criaturas desprezíveis, que o perturbam
pineal — situada no centro do cérebro — o lugar com as suas atrações físicas. Como foi que o paciente

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ficou apanhado por essa incompreensão? Para tal para conclusão no consultório do médico. O
pergunta, o psicoterapeuta tem resposta decisiva. Diz tratamento do paciente parece consistir apenas no
que, na realidade, as dificuldades do paciente tratamento da transferência. Assim o terapeuta nunca
relacionam-se apenas com os seus pais. Em sua pode pôr em dúvida a realidade da transferência
infância, alguma coisa não deu certo. A sua educação
não foi verdadeira educação, foi antes obstáculo ao O paciente fica bom; não é isto prova da
seu amadurecimento. As relações do paciente com correção da opinião do médico? Independentemente
seu pai tornaram-se tensas; esteve desde então desta evidência, a pergunta justifica-se para
combatendo o pai e ainda continua a fazê-lo, com a comprovar a verdade dos argumentos teóricos que
particularidade de ter agora transferido a cena do servem de base ao conceito de transferência. De fato,
combate para as suas relações com os outros homens. até mesmo um conceito que resulte satisfatório na
Quanto à sua mãe, o paciente teve que se defender, prática, pode ser baseado em erro. Para comprovar
em sua infância, contra o seu excesso de indulgência esta teoria, vou partir do exemplo seguinte.
e a sua influência muito dominadora. Não conseguiu
liberar-se da mãe, como não conseguiu livrar-se do Durante a infância, um paciente começou a
pai. Mas, do mesmo modo que na luta contra o pai odiar a sua mãe, porque ela jamais lhe dava a menor
(transferida em luta contra outras pessoas), ele liberdade. Agora, odeia a todas as mulheres. A linha
desistiu de lutar contra a mãe. Em vão, porque de raciocínio é a seguinte: o paciente transfere para
ninguém pode deixar atrás de si coisa tão inacabada. outras mulheres o ódio que sente pela mãe. Esta
Tem de continuar a luta, e é o que está fazendo. Mas estrutura de pensamento pressupõe que um afeto, ou
em vez de lutar para se livrar da mãe, ele combate seja, o ódio, possa ser desligado do seu objeto. Deve
todas as mulheres que encontra. Transporta as existir então alguma coisa que se possa chamar “ódio
emoções destinadas à sua mãe para outras mulheres. sem objetivo”. Todavia, ninguém jamais sentiu algo
Tornou-se vítima da transferência. parecido com “um ódio sem objetivo”. Ninguém
pode dizer que sentiu, alguma vez, ódio não dirigido
Aqui encontramos uma terceira palavra, que contra alguma pessoa ou coisa. Até mesmo o “ódio
se tornou lugar-comum em psiquiatria: transferência, cego” é dirigido — cegamente — a alguma coisa ou
a transmissão de sentimentos — e de todas as a todas as coisas. O amor sem alvo é também
dificuldades de contato que os acompanham — de desconhecido. Esta interpretação destrói, no entanto,
uma pessoa para outra, sendo a primeira pessoa a interpretação da transferência, já descrita e
aquela com quem o paciente está realmente em aparentemente simples. Sem dúvida, deve existir
dificuldades, enquanto a segunda nada tem a ver com alguma coisa chamada “transferência”; a evidência é
essas complicações. O psicoterapeuta presencia convincente demais para ser negada. Mas o
impressionantes exemplos de transferência. Às vezes, “mecanismo” sugerido pela palavra pode não ser
ele próprio vem a ser a pessoa a quem o paciente correto. Quem tiver dúvidas a respeito, faria bem de
transfere as suas emoções. Mais cedo ou mais tarde, se pôr no lugar de alguma pessoa que sofresse de
o paciente em tratamento passa a nutrir para com o transferência. Quem odeia sua própria mãe sente que
médico, sentimentos que deveriam ser dirigidos a o seu ódio está profundamente ligado, entrelaçado
outras pessoas. O psicoterapeuta é odiado, sem ter com sua mãe. É impossível separar o ódio, da pessoa
dado motivo algum para isso; ou é amado, sem que dessa mãe, que é o objeto desse ódio. Ambos formam
haja razão concreta para o amor. O tratamento uma só coisa.
explica geralmente os motivos que levam o paciente Não é difícil encontrar uma resposta, quando
a agir desse modo. Em seu ódio, por exemplo, ele se indaga de que maneira surgiu essa errada cadeia de
deixa transparecer particularidades do seu passado raciocínio. A causa pode ser encontrada no fato de
contato com o pai, a mãe, o irmão ou a irmã. Seu que se tornou costume tratar qualidades mentais
amor é uma cópia do amor transviado ou insatisfeito como se fossem objetos. Dizer que um afeto é
que nutriu para com uma das personagens da sua transferido de uma pessoa para outra, é a mesma
infância. Aquilo que ficou inacabado antes, continua coisa que observar o transporte de um cinzeiro da
agora no consultório do terapeuta. O psicoterapeuta mesa para a escrivaninha. Isto está muito certo
não se preocupa com isso. Sabe que esta é a maneira quando se trata de coisas. Todavia, os afetos não são
pela qual o paciente encontra a cura. Aceita a coisas. Não podem ser levantados de um lugar para
transferência — embora não seja em forma concreta; serem colocados em outro. Nesse contexto, as
isto é, a transferência de ódio nunca chega a vias de palavras “levantados” e “colocados” não têm sentido.
fato, e a de amor, a um abraço. Mas, fora disso, tudo Tampouco tem sentido a palavra “transferência”,
é permitido. O terapeuta oferece ao paciente a cujo conceito pertence à ciência física. Se a palavra
oportunidade de expressar os seus afetos de deve fazer sentido em psicologia — e demorada
antigamente e de se livrar das incompreensões em experiência depõe em seu favor — deve ser
que se viu enleado. A história afetiva do sujeito, que psicologicamente definida. Até há pouco, faltava essa
não chegara a termo nos períodos anteriores, é trazida definição.

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Projeção, conversão, transferência — e há paciente sofre de falsificações de memória. Sua
uma quarta palavra que o paciente, ao relatar o seu memória está transformando o seu passado em mito e
caso, faz surgir na mente do psiquiatra. lenda.
Tem-se dito que todos os psiquiatras Estará o psiquiatra consciente de que, com
costumam encontrar na infância dos pacientes a estas palavras, está negando o conceito corrente de
origem dos seus males. Vejamos como o paciente memória, que provavelmente ele mesmo aceita?
descreve a sua infância e procuremos encontrar as Lembrar, de acordo com este conceito, é tornar
dificuldades teóricas que nos são apresentadas pelos conscientes os engramas (•) registrados no cérebro.
seus relatos. Se algo acontece a uma pessoa, se um indivíduo
É fato que muitos pacientes neuróticos tecem observa qualquer coisa, uma pintura ou desenho do
comentários pouco favoráveis a respeito da sua que foi observado (de acordo com essa teoria), fica
infância. Muitas vezes, os seus educadores parecem gravado no cérebro. Via de regra, considera-se isso
ter sido gente que nada entendia do assunto. Os como sendo processo puramente fisiológico.
pacientes rememoram tristes episódios: os pais lhes Mediante a percepção, as lentes do olho
batiam com freqüência e brutalidade e as mães, ou transmitem uma reprodução mais ou menos perfeita
eram indiferentes ou sufocavam o filho com um amor da cena percebida à retina; por meio de certos
irracional. Reportam, às vezes, incidentes criminais: mecanismos, esta pintura é transportada, também
um pai ameaça o filho de atirá-lo à rua ou (mas isto é com maior ou menor exatidão, aos centros do
uma velha história) promete cortar-lhe o pênis, se cérebro, onde lançam âncora. Lembrar-se significa,
persistir em brincar com ele. então, voltar para esse ancoradouro. Naturalmente,
Nos primórdios da psicoterapia, antes de podem ocorrer perturbações na marcha do processo;
1900, acreditava-se realmente nessas histórias. Eram é possível, por exemplo, que a memória não grave
chamadas “feridas mentais”, “traumas” e se lhes perfeitamente a impressão original; então a memória
atribuía a origem de todas as neuroses. Mais tarde, fica contaminada por outras associações de memória,
quando se tornou claro que esses racontos não tinham e assim por diante. Em tal caso, suspeitamos
base verídica, a doutrina do trauma começou a ficar geralmente que ocorreu alguma perturbação.
desacreditada. As neuroses, entretanto, precisavam Dizemos então que não podemos focalizar a
ter uma causa. Na confusão do momento, alguns impressão, que não podemos lembrá-la ou que a
psiquiatras transportaram o trauma para períodos nossa memória está falhando. Dizemos isto,
mais longínquos; para o instante do nascimento, por aguardamos uma correção, tão logo “as coisas voltem
exemplo, ou mesmo para as épocas pré-históricas da claramente à nossa memória”, o que sucede mais
humanidade. Os meninos teriam sido castrados e os rapidamente quando alguém, que se achava presente
pais, deglutidos. Se, a princípio, esta teoria parecia na época da percepção ou da experiência, “nos faz
estar confirmada pelo estudo das então chamadas lembrar” o que aconteceu.
raças primitivas, o conhecimento mais atento dessas Nada disso se observa no paciente. Se nos
raças tornou o observador muito prudente em suas esforçarmos, até mesmo apoiados, se for possível,
afirmações. Foram justamente os etnólogos os menos nas declarações de testemunhas visuais, em curá-lo
afoitos a aceitar essa suposição. Desde então, a dos seus enganos, ele se agarra energicamente ao que
hipótese foi totalmente abandonada e, mais tarde, chamamos os seus erros. Como explicar tal
formularam-se grande número de outras teorias para comportamento pela teoria dos engramas? Não faz
explicar a origem das neuroses. Contudo, continuou sentido falar aqui de falsificação ou de mitificação.
sendo muito difícil compreender porque o paciente Podem os engramas ser obscurecidos por um mito?
dá um relatório do seu passado que contradiz o Supondo seja isto possível, como explicar que o
verdadeiro curso dos acontecimentos. paciente acredite no seu mito e considere errada a
Também neste particular o psicoterapeuta verdade? Por que motivo não tem ele a mais leve
concorda em linhas gerais com os parentes e suspeição do seu erro? Oxalá pudéssemos ao menos
conhecidos: o paciente deve estar errado. Do admitir que nos esteja enganando. Mas logo pomos
contrário, seria difícil explicar, antes de mais nada, de lado essa idéia, quando conversamos com ele: o
por que as outras crianças da mesma família paciente está de completa boa fé.
conseguiram atingir a maturidade, livres de neuroses. O paciente está de boa fé. Neste ponto, quase
No caso do paciente em discussão, além disso, os todos os psicoterapeutas concordam comigo, quando
testemunhos de duas fontes insuspeitas não nos asseveram que o engano cometido pelo paciente está
permitem acreditar que os pais fossem o tipo de gente
descrito pelo paciente. Mas, também, aqui, o fala de «artlvlié mythopatlque» e de «mythomanle», termos estes
dificilmente aplicáveis em holandês Preteri, por Isso, a palavra
terapeuta não diz apenas que o paciente está errado. «mitificação».
De acordo com o psiquiatra francês Dupré, ele

verifica que o paciente, em conseqüência da sua N. do trad.: Engrama., termo criado por R. SEMON, Die Mneme (1904)
neurose, é vítima da mitificação do seu passado.1 O para desejar a modificação do sistema nervoso correspondente à fixação de
uma lembrança. A evocação dessa lembrança nessa mesma terminologia.
é chamada ecforla. (Ver LALANDE, Vocabulalre de Phllosophle).
1. E. Dupré. Pnthulugir ilc liinaelinillon et u> 1'Emotlvllé. Paris, 1925. Dupré

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realmente presente, mas se conserva inconsciente. objetos e que se pode dizer a respeito dessa relação
Pode-se fazer honestamente a mesma observação a quando há um distúrbio mental?
respeito de todas as contradições discutidas. O 2. Qual é a relação entre nós mesmos e o nosso
paciente projeta a sua condição subjetiva em todas as corpo, e qual é essa relação quando existe um
coisas da sua existência de todos os dias — mas distúrbio mental?
projeta inconscientemente. O paciente sofre de 3. Qual é a relação, também geral, entre nós e outras
distúrbios físicos que não podem ser confirmados por pessoas e como é essa mesma relação quando há
qualquer exame médico, converte — mas converte perturbação mental?
inconscientemente. O paciente considera hostil toda a 4. Qual é a nossa relação com o passado ou, melhor,
gente que o cerca, é vítima de transferência — mas com o tempo, e que se pode dizer dessa relação
transfere inconscientemente. Confunde, obscurece a quando existe perturbação mental?
sua memória com um mito — mas mitifica 5. Depois disso, finalmente, mais uma pergunta —
inconscientemente. esta muito importante: é necessário admitirmos uma
Desta maneira, tudo se torna mais uma vez vida mental inconsciente, ou seja, — o inconsciente?
aceitável. Nada custa manter os conceitos
anteriormente criticados de projeção, conversão,
transferência e mitificação se, além disso, admite-se
CAPÍTULO II
o inconsciente. Em face de cada dificuldade teórica,
atribui-se ao inconsciente uma qualidade capaz de AS RESPOSTAS
dissipá-la. Quando, por exemplo, fica estabelecido
que o ódio sem objeto não existe, de modo que a O homem e o mundo
transferência de ódio torna-se impossível, pode-se É inverno. A noite está caindo e eu me
presumir que o inconsciente é precisamente a área em levanto para acender a luz. Olhando para fora, vejo
que ocorrem tais emoções sem objetivo, de modo que que começou a nevar. Tudo está coberto pela neve
nessa área pode um afeto ser separado do seu alvo brilhante, que está caindo silenciosamente do céu
original. Então é possível a transferência de um afeto encoberto. A gente caminha sem ruído ao longo da
de um objeto para outro. A crítica do conceito de minha janela. Ouço alguém sacudir a neve dos seus
transferência torna-se então sem efeito, tanto mais pés. Esfrego as mãos e aguardo a noite com
porque os meios de verificação estão ausentes; pois o satisfação, pois, faz alguns dias, telefonei a um amigo
inconsciente, por definição, não é aquilo que escapa à convidando-o a vir ter comigo esta noite. Dentro de
nossa atenção? Se o inconsciente foge à uma hora estará batendo à minha porta. A neve lá
experimentação, então não faz sentido apelar para fora parece que dará à sua visita um caráter ainda
ela. mais agradável. Ontem comprei uma boa garrafa de
Há mais uma objeção, porém. Do ponto de vinho, que coloquei a distância apropriada do fogo.
vista psicológico, a cadeia de raciocínio que Sento-me à mesa para responder algumas
acompanha as palavras projeção, conversão, cartas. Meia hora mais tarde, toca o telefone. É o meu
transferência e mitificação mostra-se fraca ou mesmo amigo, a dizer que não poderá vir. Trocamos algumas
insustentável. Que devemos então pensar quando a palavras e marcamos novo encontro para outro dia.
corrente de raciocínio salva-se por uma Quando torno a colocar o fone no gancho, o silêncio
argumentação que deixa de lado o terreno da do meu quarto ficou mais profundo. As próximas
psicologia, pois o inconsciente não pode ser horas se parecem mais longas e mais vazias. Coloco
experimentado mentalmente? Tão logo se submete à mais uma acha de lenha no fogo e volto à minha
experimentação, deixa de ser inconsciente. Muitos escrivaninha. Dentro de alguns momentos estou
psicopatologistas reconhecem esta dificuldade. absorto num livro. O tempo passa lentamente.
Sentem-se como cientistas de física, convidados a Ao levantar os olhos por um momento, para
explicar problemas físicos com a ajuda do ocultismo. refletir sobre um trecho pouco claro, a garrafa, perto
do fogo, chama a minha atenção. Percebo mais urna
O inconsciente (somado a muitas outras vez que o meu amigo não virá e volto à minha leitura.
causas) constitui evidência da solução prematura das Revendo este episódio extraído da vida de
dificuldades teóricas apresentadas pelo paciente todos os dias, noto que há interação contínua entre
psiquiátrico. Assim, eu pediria ao leitor que mim, o sujeito, e as coisas à minha volta, os objetos.
continuasse a manter por mais alguns momentos a Estou esperando meu amigo; esta condição subjetiva
sua surpresa acerca das discrepâncias entre a história torna-se visível para mim por intermédio dos objetos
contada pelo paciente e “os fatos da realidade”. Eu do meu quarto. Acendo a luz, preparo cigarros e
lhe pediria que esperasse um pouco antes de entrar procuro manter o vinho na temperatura apropriada.
com a hipótese do inconsciente e gostaria de chamar Mesmo para outras pessoas, minha condição
a sua atenção sobre as seguintes perguntas: subjetiva (nesse momento) é perfeitamente visível;
alguém que entrasse inesperadamente diria: “Vejo
1. Qual é a relação existente, em geral, entre nós e os que está aguardando uma visita”. Aí, começa a nevar;

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esta condição objetiva aumenta a minha expectativa consciência do meu ambiente: o quarto, o fogo, a
subjetiva. Quando o telefone põe fim a esta garrafa e, dentro de tudo isso, o meu amigo ausente.
expectativa, o silêncio do quarto torna-se mais Outro exemplo: Um casal que visitou Veneza
profundo. Quando, mais tarde, eu olho para a garrafa, durante a lua de mel, faz uma excursão à mesma
é este fato objetivo que me diz que a expectativa cidade dez anos mais tarde. No trem, recordam-se de
subjetiva está cancelada. vários incidentes. Mais uma vez, a cidade de Veneza
É uma interação. Agora, uma pergunta revive para eles. Mas eles somente compreendem o
quanto à natureza dessa interação. A fim de encontrar que Veneza significava para eles quando embarcam
a resposta, concentro-me na última observação: Vejo numa gôndola e sentam-se na felza (♠), quando
a garrafa de vinho e compreendo que meu amigo não avistam os palácios, ouvem os gondoleiros
virá. Que acontece neste momento? Ou melhor: Que interpelando-se uns aos outros e sentem o cheiro
vejo eu quando observo a garrafa de vinho? A característico das águas do Adriático. Eis aí Veneza!
pergunta parece fútil e a resposta é também simples. A introspeção no trem evocou certamente algumas
Estou a ver uma garrafa verde com um rótulo branco, memórias, mas que não eram mais que a sombra das
sobre o qual está impressa a marca do vinho. recordações que agora afluem para eles, vindas das
Examinando mais cuidadosamente, posso ler as fachadas brancas, dos sons e dos odores. Os turistas
palavras do rótulo. É uma garrafa de Médoc. A bem sabem que a memória, condição extremamente
garrafa está arrolhada e a boca recoberta por uma subjetiva, está estreitamente fundida com as vozes, os
cápsula de chumbo. Eu poderia continuar deste modo odores, com tudo o que está por aí, contido nos
e discriminar todos os detalhes da garrafa. Mas toma- objetos. Neste caso, o psicólogo não pode,
se óbvio para mim que, ao anotar esses detalhes, não honestamente, deslocar os acentos. Pois não está ele
fico mais próximo daquilo que estava observando procurando descrever os fatos?
quando, levantando o olhar, vi a garrafa. O que Se está procurando descrever os fatos, vai
estava vendo então não era a garrafa verde, com o encontrar um erro no parágrafo precedente. A
rótulo branco, a cápsula de chumbo e mais detalhes; introspeção no trem foi o que escrevi. Mas era
o que estava vendo realmente era, pois bem, alguma realmente introspeção? Estava o casal olhando para
coisa como o desapontamento causado pelo fato de dentro das próprias almas, quando estavam
que meu amigo não viria ou pela solidão da minha conversando sobre Veneza? Ou estavam olhando
noite. É claro que eu via a garrafa com o rótulo para trás, pela extensão dos dez anos decorridos, para
branco, a cápsula etc. etc. mas o fato de ver essas namorar a Veneza daqueles dias, a Veneza do tempo
coisas significava que eu “pulava” por cima do objeto em que eram recém-casados? Será que existe
“garrafa”, para “cair” sobre o valor que essa garrafa realmente algo que se possa chamar introspeção? Ou,
tinha adquirido para mim esta noite. em outras palavras, há realmente alguma coisa que
possa ser considerada puro sujeito? Deixarei essa
O psicólogo positivista ou behaviorista, questão em suspenso por enquanto. O assunto agora
imbuído de ciência física, irá dizer que tudo isto é em discussão é a asserção de que o puro objeto não
pura poesia. Ele me explicará que, na verdade eu vi existe. Disso posso dar mais um exemplo.
uma garrafa de vinho, com um rótulo etc., mas que O fato de que um objeto carrega o mesmo
eu adornei essa observação com assuntos que não lhe nome sob diferentes circunstâncias, não garante que
dizem respeito. Eu contaminei a observação mediante seja semelhante em todas essas diferentes
a projeção de uma condição, ou seja, a condição de circunstâncias. Tomemos, por exemplo, um carvalho.
estar desapontado e solitário. Posso responder a isso O carvalho, aqui e ali, tem o mesmo nome. O
com o seguinte comentário: Se fosse minha projeção carvalho num bosque da Normandia e o carvalho
que eu estava vendo, não teria eu observado minha numa praça de Berlim. Mas quanta diferença! Não há
solidão mais distintamente, menos adulterada, com dúvida que essa diferença pode ser atribuída a uma
mais realidade e mais diretamente, se eu tivesse diferença dentro do espectador; a mesma pessoa é
perguntado como me sentia, não à garrafa mas a mim diferente, conforme esteja num bosque da Normandia
mesmo? A introspeção me teria mostrado como me ou em Berlim. Mas esta diferença existe porque se
sentia. Pois bem, parece que não é assim. Sempre que manifesta ali, nesses lugares, Normandia ou Berlim.
pergunto a mim mesmo, pela introspeção, como me O carvalho desempenha um papel nesse ato
sinto, em vez de obter uma compreensão mais de ser diferente. Um carvalho sem nada, sem lugar,
refinada da minha solidão, eu obtenho uma não existe. O carvalho é diferente.
compreensão menos clara. Pior ainda: se eu procuro,
pela introspeção — isto é, deixando de lado tudo o Esta última asserção, a saber, que o carvalho
que está fora de mim — concentrar-me na é diferente, necessita um esforço de compreensão.
investigação dos meus sentimentos, então não sei o Acho bom providenciar agora outro exemplo da
que fazer. Sinto-me de pé diante de um muro mesma ordem, indagando se o mesmo carvalho (no
impenetrável. Cada esforço que faço para concentrar-

me no meu puro íntimo, resulta na tomada de N. do trad.: Espécie de cabina no centro da gôndola.

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mesmo lugar) é sempre igual para pessoas diferentes. intenção de caçar. O negociante de madeiras revela a
A resposta é negativa (1). Para o caçador, o carvalho todo o mundo a sua profissão quando vê toras de
é um abrigo para pássaros e uma oportunidade para madeira no carvalho, isto é, futuras tábuas, mesas,
se abrigar do sol. Para o madeireiro, o carvalho é um pontes e casas. A jovem evidencia as suas dis-
objeto que pode ser medido, cortado e vendido. Para posições românticas quando contempla o carvalho a
a moça romântica, faz parte de uma paisagem seu modo. Da mesma maneira, o casal redescobre as
apropriada ao amor. Todos vêem carvalhos sensações da lua de mel, quando observa novamente
diferentes. E, no entanto, o carvalho é um só. Trata- as coisas em Veneza — como eu redescobri meu
se de contradição? De fato é uma contradição, desapontamento quando, aquela noite, vi a garrafa de
enquanto não distinguirmos duas formas de vinho perto do fogo.
percepção. Se a percepção significa a observação Se desejamos obter o conhecimento íntimo
científica e isenta de emoção, suscetível de medição e de outras pessoas (sua condição e natureza, seus
confirmação, então as três1 pessoas vêem exatamente hábitos e problemas), será melhor não investigar, em
a mesma coisa: um carvalho, ou seja, uma árvore, primeiro lugar, o relato das suas observações
com determinada forma, provida de tronco, galhos, introspectivamente acessíveis e subjetivas. Este
ramos, folhas e frutos, e cujo nome botânico é relato, embora essencialmente possível, geralmente
Quercus robur. Mas o psicólogo pouco tem a fazer não fornece muitas informações. Conseguimos a
com este objeto e com a percepção relacionada com impressão do caráter de uma pessoa, da sua
ele. Em regra, a nossa percepção é de outro gênero. subjetividade, da sua natureza e condição, quando a
Nunca vemos “objetos” puros e simples, fazemos descrever os objetos que ela considera seus;
desacompanhados de qualquer outra coisa. Mesmo o em outras palavras, quando indagamos do seu
Quercus robur é mais que um objeto. Vemos as mundo. Não do mundo como parece ser no “segundo
coisas dentro do seu contexto e em conexão com as pensamento” (ou “pensando melhor”) mas do mundo
nossas pessoas; unidade esta que só pode ser como ele o vê na observação direta e diária. O
quebrada em detrimento das suas partes. É uma “segundo pensamento” perturba a veracidade desta
unidade significativa. Poderíamos dizer que vemos o realidade. Este “segundo pensamento” tem
significado que as coisas têm para nós. Se não vemos prejudicado consideravelmente o desenvolvimento da
o significado, não vemos coisa alguma. E isto é — psicologia. Estes comentários quase não precisam ser
uma vez mais — também verdadeiro para o botânico. ditos aos psicólogos e psiquiatras dos dias atuais, Na
Se não vê o Quercus robur, nada vê como botânico. rotina das investigações de dados subjetivos tornou-
Não há dúvida que a moça romântica encontra no se quase de praxe não inquirir da vida interior do
carvalho certas qualidades que o negociante de paciente. Prefere-se apresentar-lhe um jogo de
madeira não vê nem mesmo em sonhos (a menos, cartões Rorschach ou TAT, por exemplo, e pedir-lhe
talvez, que esteja interessado na moça); por outro que descreva o que vê. O psicólogo pouco se
lado, o negociante observa particularidades interessa pelo que diz o paciente “no segundo pen-
inexistentes para a moça. Ambos, porém, vêem uma samento”: um homem com calças e colete etc. Pelo
realidade; eis o que é necessário sublinhar. Certa vez contrário, testa a percepção espontânea, perguntando
um africano de cor, que jamais saíra da sua aldeia e ao paciente o que está acontecendo no desenho;
do seu sertão, foi levado a Londres, onde lhe procura determinar o significado que os objetos do
mostraram grande parte da cidade. Quando, no fim da desenho têm para o paciente. Ele consegue
excursão, solicitaram-lhe que descrevesse o que tinha conhecimento íntimo do sujeito por meio da pesquisa
visto, ele não mencionou o que esperavam ouvir dele, dos seus objetos, das coisas sólidas e reais do seu
isto é, não se referiu a ruas calçadas, edifícios mundo.
construídos de tijolos, carros, trens e ônibus, mas
disse que o que mais o surpreendera fora aquele Tudo isto pode ser resumido como segue: a
homem que cumprimentava tanta gente com tanto relação entre o homem e o mundo é tão íntima que
entusiasmo. Referia-se a um policial que dirigia o seria errado separá-los, num exame psicológico ou
trânsito num movimentado cruzamento, com grande psiquiátrico. Se forem separados, o paciente deixará
reforço de gestos e de apitos. Quanto ao mais, nada de ser esse paciente particular e o seu mundo deixará
vira. Como os carros, os trens, as ruas e os altos de ser o seu mundo. Em primeiro lugar, nosso mundo
edifícios nada significassem para ele, não podia vê- não é somente um conglomerado de objetos que
los. podem ser cientificamente descritos. Nosso mundo é
nosso lar, nosso ambiente, nossa casa, uma realização
Tudo o que vemos, ouvimos, provamos ou de subjetividade. Se desejarmos compreender a
cheiramos interessa em primeiro lugar, direta e existência humana, teremos que prestar ouvidos à
espontaneamente, a nós mesmos. O caçador vê a sua linguagem dos objetos. Se estivermos descrevendo
um sujeito, teremos que elaborar a cena na qual o
1
O exemplo é de J. van Uexkiill e G. Kriszat. Strelíziige durcli dle Umwelten
sujeito se revela.
von Tleren und Menschcn, Hamburgo, 1956. É conveniente acrescentar novamente aqui

13
uma observação, destinada àqueles que consideram combinadas muitas vezes em grupos ou glândulas.
essas palavras muito filosóficas. Ninguém deixa de As glândulas tem duetos, pelos quais o líquido
ter uma filosofia. Quem se gaba de não ter filosofia produzido pelas células flui para outro lugar.
alguma, está sendo vítima da filosofia que se esconde Exemplo disso são as glândulas salivares. As
atrás dessa negação. A estrita separação entre o glândulas que não têm duetos de drenagem, despejam
homem e o mundo não é natural, nem original. Esta o seu líquido, chamado hormônios, diretamente
separação originou-se de uma filosofia. Foi Descartes dentro do sangue. As glândulas sexuais são, entre
que, com alguns outros, em obras de natureza todas, as de maior significado. Por intermédio dos
filosófica, cavou um fosso entre o homem e o mundo, seus hormônios, elas carregam o corpo com uma
entre assuntos humanos e não-humanos e entre res tensão, que é de natureza primordialmente
cogitantes e res extensae, nas palavras de Descartes. fisiológica. A representação psíquica dessa tensão é
Desde então, esta separação lançou raízes, chamada libido. Traduzida do latim, esta pa-
avantajando a ciência física, pois, esta é impotente lavra significa fome, desejo e, particularmente,
em relação aos objetos não completamente objetivos, desejo sexual. Supõe-se que a libido fornece a
não completamente inumanos. É fácil compreender verdadeira tensão ou o genuíno impulso para a vida e
que uma ciência como a psicologia tem sido que todas as forças, empenhes e desejos têm sua
prejudicada por esta separação. Por causa disso a origem nessa tensão. Em conseqüência, a origem de
psicologia tornou-se a ciência do sujeito, o que toda e qualquer motivação ou desejo situa-se dentro
significa, em última análise, a ciência de um vácuo, do indivíduo, dentro do seu corpo, dentro das células
de um nada; pois, o sujeito, o sujeito puro, o homem do seu corpo, dentro das células das suas glândulas
interior sem nenhuma coisa exterior, não existe. Cada sexuais. O esforço de todo indivíduo resulta da sua
um de nós pode confirmar este fato, examinando se libido, deriva portanto de uma necessidade interna e
eventos puramente subjetivos ocorrem alguma vez não de uma causa cuja defesa valha a pena assumir.
conosco. Ao pensarmos, pensamos alguma coisa, Quem deseja, está sendo empurrado, não arrastado.
localizada, em última análise, aí, acolá, lá fora; ou Aquilo que arrasta é uma resultante. Não arrastaria
seja, uma coisa, ou algo relacionado com coisas. Ao ou excitaria se não existisse uma .sombra de libido.
sentir, sentimos simpatia para com pessoas ou coisas, Tudo isto significa que o que está aí fora não tem
aí fora; sente-se a ausência, a falta de alguma coisa, a importância porque não nos pertence. Mesmo que a
ausência de algo aí fora, exterior à nossa própria natureza filosófica fundamental do conceito de libido
pessoa. Mesmo a imaginação mais individual e fosse já bastante clara em conseqüência deste racio-
abstraía pinta alguma coisa, aí, externa: uma fantasia, cínio, tornar-se-ia ainda mais óbvia pela leitura do
um castelo de Espanha, uma utopia ou o reino dos que acontece quando o possuidor desses grupos de
bem-aventurados; coisas impossíveis de discernir células não consegue “drenar” completamente a sua
pelo toque das mãos, mas assim mesmo imaginadas libido. Fica então doente — doente como resultado
entre, ao lado ou em cima de outras coisas que se de demasiada tensão. Isto significa que qualquer um
podem tocar. Nada nos pertence que não esteja ligado que não tenha o seu desabafo sexual, é doente. Quem
a algo externo. Isto torna sem sentido qualquer vive em estado de celibato é doente. O viúvo é
psicologia estritamente subjetiva. Não existe tal doente. Todos os não-casados são doentes; não se
psicologia. Isto foi percebido por muitos psicólogos, pode conceber que eles possam livrar-se da sua
mas estes, convencidos de que era irrefutável o fisiologia. Verdade é que podem disfarçar a sua
dualismo cartesiano, enveredaram para o campo da enfermidade, dirigindo, por exemplo, a sobra da sua
fisiologia. Por impotência, o psicólogo tornou-se libido para certos substitutivos. O sujeito poderá
fisiólogo ou (o que vem a ser a mesma coisa), cuidar de um cachorro, tratar de um jardim ou
behaviorista, mensurador, computador e calculador. construir casas. Talvez escreva poesias ou se dedique
O psicólogo deixou de crer nas realidades mentais, a ciências. Tudo isso enquanto durar o excesso de
mas, para ser psicólogo, ele deve crer nessas libido; quando se esgotar, adeus poesia, ciência, casa,
realidades. Muito bem, pode ele continuar a crer jardim e cachorro. Toda essa teoria tem sido
nelas. Tão logo se afaste da doutrina cartesiana do seriamente defendida em numerosas publicações. Até
dualismo, que não é válida na vida de todos os dias, mesmo uma escola de psiquiatria foi construída sobre
ei-lo novamente psicólogo. Mas isto só é possível essa suposição; em palavras triviais: quem não dá seu
numa discussão filosófica que invalida o argumento pulo está doente. Existe alguma realidade que possa
de Descartes. Aqui vai mais um exemplo., para sustentar essa teoria? Nem mesmo as aparências
explicar o ponto de vista cartesiano e salientar a favorecem essa suposição. Inúmeras pessoas solteiras
necessidade de refletirmos filosoficamente sobre ele. gozam de perfeita saúde. A ciência, a arte e os
A palavra libido encontra-se com grande “hobbies” (passatempos), não constituem violação de
freqüência nas obras psicológicas e psiquiátricas. A outros desejos, que se supõem autênticos porque
cadeia de pensamento subjacente que apoia esta originários das células. A fisiologia não é certamente
palavra pode ser descrita como segue: o corpo é um fator que se possa ignorar, mas é um fator
compito de líquidos e células, estas últimas determinado pela própria vida. A quantidade de

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paixão que possa existir dentro de nós, não é ditada sentir-se mal e resolver ficar na cama, poderá — se a
por uma glândula, mas pelo próprio contexto da vida. isso for convidada — descrever a sua situação,
(♥) As pessoas que estiveram confinadas em campos contando como se sente subjetivamente: cansada,
de concentração perderam de repente todo impulso nauseada, sem apetite e com dor de cabeça — dados
sexual, mas não porque os grupos de células ficassem estes que parecem subjetivos mas que, na realidade,
imediatamente desnutridos. As necessidades sexuais dificilmente podem ser chamados assim. Essa pessoa
perdiam, então, qualquer sentido, tornando-se mesmo sente canseira nas pernas e na cabeça, náusea na
perigosas. Tudo isto significa que a teoria da libido é garganta, nenhum apetite para o café com biscoitos
uma filosofia, fruto de um pensamento que torna o etc. Está completamente fora da nossa capacidade
homem e o ambiente mutuamente estranhos. descrever um mal estritamente subjetivo, um mal-
Somente outra filosofia pode livrar-nos dessa estar que pertença ao sujeito, mas não ao corpo e ao
estranha teoria, proporcionando-nos nova penetração seu ambiente. Quem se queixa, queixa-se de coisas
íntima no significado dos males dos nossos pacientes. que estão aí no corpo ou nos objetos. Mesmo quando
É o que passamos a ilustrar. o pensamento falha, é o pensamento sobre coisas
Num estudo médico de Weiszácker (♣), curto presentes algures que falha. De sorte que o paciente
mas significativo, intitulado Studien zur somente chega à descrição real de sua condição
Pathogenese, podemos encontrar a descrição de uma quando relata que aspecto tem o papel que recobre as
paciente que sofre de diabetes insipidus. Padece de paredes do seu aposento, o som da campainha do seu
sede, ou seja, de forte e elementar desejo pela água telefone, e como penetra em seu quarto o ruído dos
mais ou menos comparável àquele outro desejo automóveis na rua.
compulsório chamado libido. A paciente descreve o De acordo com a senhora Pastorelli (2) que,
seu anseio como segue: “Sinto-me vinculada à água. por causa do estado do seu coração, acha-se presa à
Gosto de nadar e aproveito todas as ocasiões em que cama onde está para morrer, estar doente significa,
isto é possível. Sempre imagino como é delicioso sobretudo e em primeiro lugar, uma modificação do
receber um forte jato de água em meu pescoço. Gosto ambiente em que o enfermo se encontra. Significa
de cascatas e correntezas e por isso adoro a Floresta que até os amigos mais íntimos se tornaram distantes.
Negra, na Baviera. Quando ali estou, procuro uma Significa que as coisas mudaram - as mesmíssimas
vereda que acompanhe uma corrente. A água ali é tão coisas que eram prova de saúde para as pessoas com
clara”. O fato de estar doente, diferente, e de sofrer saúde. “Desde que eu o sei” (diz Jacqueline Van der
de sede ressalta principalmente do desvio das suas Waals, que sabe que vai morrer), (!) “a abundância,
percepções. A água desempenha papel predominante a beleza e a doçura das coisas que me cercam são
em suas observações. Assim, ela procura mais vezes duas vezes mais doces e amorosas”. Estar doente,
a água, ouve mais vezes correntezas e goza mais quer se trate de doença comum ou de doença mortal,
intensamente do banho nos rios e fontes do que uma significa, antes de mais nada, sentir as coisas de
pessoa normal. É exato que ela se sente (conforme modo diferente, ver de modo diferente, viver num
diz) vinculada à água, expressando assim uma outro mundo parcial ou completamente diferente.
condição subjetiva. Contudo, esta condição subjetiva Quem assim fala, espontaneamente, mais do
permanecerá vazia se não for exemplificada que qualquer outra pessoa, é o paciente psiquiátrico.
objetivamente. Continua a nadar sempre que é O paciente deprimido descreve um mundo que se
possível. Gosta de riachos ao longo das veredas dos tornou escuro e sinistro. As flores perderam a cor. o
bosques. Teria fornecido medíocre relatório dos seus sol perdeu o brilho, tudo parece sombrio e morto. Um
males, se tivesse apenas descrito as suas dores dos meus pacientes chegou ao ponto de comprar
subjetivas, mas não se limitou a isso; permitiu o lâmpadas mais fortes, porque a luz em seu quarto lhe
exame das suas condições íntimas, ao descrever a parecia menos brilhante. Por outro lado, o paciente
aparência que os objetos tinham para ela. que sofre de mania, acha as coisas cheias de cor e de
Desta maneira, vem à luz nova patologia, que beleza, belas como jamais vira antes. O paciente
não se restringe ao resumo do que o paciente observa esquizofrênico enxerga, ouve e cheira indícios de um
introspectivamente “em si mesmo”, mas consiste na desastre mundial, observa, nos objetos, a queda da
descrição da fisionomia patológica das coisas. (1) Ou sua existência. Nas vozes do povo, nos murmúrios do
seja, na descrição da qualidade das coisas, que — vento, percebe que uma revolução se aproxima. Até
também para o próprio paciente — sejam mais reais e no gosto do seu pão percebe o mal, a penetrar nas
convincentes. coisas deste mundo. — Será que o psiquiatra faz
Depois de uma noite agitada, se uma pessoa justiça a essas observações e também ao paciente,
quando declara que o sujeito está doente e que as

observações dele estão sofrendo do uso exagerado
Que eu saiba, foi Alfred Adler, o primeiro a fazer tal afirmação (Zur Kritik
der Freudschen Sexuallheorie des Seelenlebens, 1911). Adler também de-
das metáforas, ou seja, das projeções? O paciente
senvolveu originais raciocínios sobre outros aspectos que somente agora
estão sendo plenamente apreciados. 2
F. Pastorelli, Servltude et grandenr de U maladle. Paris, 1933.

V. Von Weizsàcker. Studicn zur Pnthogpnese, Wiesbaden, 1946.
1
Essa expressão é de Erwin Straus. !
Jacqueline E van der Waals, leniste verr.en. Rotterdam, 1950.

15
está doente; isto significa que o seu mundo está nem indicado que o psiquiatra tome o partido dos
doente ou, mais literalmente (embora isto pareça parentes e conhecidos. Deve tomar o partido do
estranho), que os seus objetos estão doentes. Quando paciente e pôr-se em seu lugar, o que significa que o
o paciente psiquiátrico conta como seu mundo lhe médico se coloca na existência do paciente, no
parece, está a descrever, sem rodeios e sem en- mundo do paciente. O julgamento dos parentes e
ganos, o que ele mesmo é. amigos implica geralmente numa condenação. Mas o
Voltemos ao paciente do primeiro julgamento do psiquiatra também se ressente desse
capítulo. Diz que as casas parecem velhas e defeito — como deixam perceber as denominações
dos sintomas, verdadeiro vocabulário de rejeições,
estragadas. Observa que estão a ponto de ruir; as por bem intencionadas que sejam. O paciente é
paredes se inclinam e ameaçam esmagá-lo. A chamado de melancólico, ou seja, sofrendo de bílis
sua queixa deve ser aceita seriamente. É assim negra (“black biled”); o seu estado de espírito é uma
que a rua em que caminha se apresenta para ele. variedade obscurecida e degradada da mentalidade
Verdade é que não se parece com a rua como nós normal; ou o dizem descontrolado, pois o seu
a conhecemos, mas isto apenas significa que o comportamento não sofre as influências restritivas de
paciente está doente e que nós não estamos. uma existência perfeita e sadia. Falam de
Nada nos autoriza a afirmar que a nossa observa- hiperestesia, de hipercínese, de hipertimia ou de
ção é mais verdadeira que a do paciente. hipobulia, hipomnésia e hipoprossexia. Em suma, o
Também nossa própria observação prova apenas paciente sofre de excesso ou deficiência de uma
o que parecemos e o que somos. Se encontramos dessas coisas, peca nas proporções, é a própria
imagem da transgressão. A condenação resulta ainda
unanimidade entre a nossa opinião e a de mais evidente quando se empregam palavras tais
inumeráveis outras pessoas, isto apenas significa como demência, amoralidade, perversidade,
que a gente que nos cerca é mentalmente sã e paralogia e alucinação.
cresceu dentro da mesma cultura; pois se um O paciente é um amontoado de equívocos e
tibetano ou um pigmeu for chamado a caminhar de erros: ele projetou, coisa que a gente sadia só faz
pelas ruas que conhecemos, ele verá, apesar da excepcionalmente, e deveria mesmo evitar. É preciso
sua sadia condição mental, uma rua bem confessar que isto tudo está relacionado com a época
diferente. Não precisamos ir tão longe. O homem em que o paciente psiquiátrico era condenado e
do campo, o pescador de alto mar e o operário de trancafiado num hospício. Não há dúvida que as
fábrica do nosso próprio país percebem ruas instituições, hospitais e clínicas que hoje abrigam os
diferentes, quando caminham pela mesma rua. A pacientes, mudaram e melhoraram muito. Seria então
muito justo que, em decorrência de um modo de
mulher, o homem, a criança, o adolescente e o
pensar mais correto, também se fizessem alguns
velho também observam ruas diferentes. Eles
melhoramentos na terminologia psiquiátrica.
vêem a sua idade. a paisagem do seu passado, a
Tomemos, por exemplo, a palavra projeção. Não
educação que tiveram, seu próprio sexo,
tem importância saber que o paciente diverge da
ocupação ou inteligência; enxergam todas as
pessoa sã; qualquer leigo sabe disso. Tampouco
suas próprias qualidades e características na
é importante saber em que sentido ele diverge
feição da rua em volta deles. As qualidades do
das pessoas sãs — supondo-se que este “em que
sujeito sãos os aspectos do mundo e as
sentido” possa ser explicado (o conceito de
fisionomias das coisas da existência de todos os
“projeção” não ajuda muito). Importante é saber
dias. Examinarei adiante o aspecto unilateral
como é a existência do paciente. A patografia,
dessa conclusão, que jamais foi suficientemente
em vez de ser negativa, deve ser positiva; pois
posta em relevo. O paciente, personagem deste
no sentido aqui entendido, o paciente vive tão
livro, conta como as coisas se passam com ele.
positivamente como nós mesmos.
Sua existência está prestes a desintegrar-se; tudo
em volta dele, tudo acerca dele está velho e
2. O homem e o corpo.
estragado. Está vivendo com as relíquias de um
Quando o médico francês La Mettrie
tempo passado e ele mesmo é um anacronismo
ficou doente durante o sítio de Freiburg, na
vivo. Que as ruas e praças lhe pareçam
quarta década do século XVIII, notou que a febre
temivelmente largas e vazias, isto é a expressão li-
teral da sua condição “subjetiva”, ou seja, pessoal. É alterava não somente a condição do seu corpo,
um indivíduo solitário, e os objetos estão afastados e mas também a condição daquilo que ele tinha
hostis. Não dispõe de maneira mais adequada para aprendido a chamar de alma, Desde então,
descrever a sua condição: ele conta a verdade da sua diminuiu a sua crença na completa separação do
doença mental. Ele está certo. corpo e do espírito. Escreveu um livro a respeito,
Isto significa o seguinte: não é necessário

16
(1) que foi lançado à fogueira em Paris, e perdeu ao longe, exclamando: costumava ter essas orelhas,
o seu emprego de médico militar. Toda a gente mas agora já não as tenho mais. Precisamos admitir
considerou desprezível o seu livro, não somente que esses exemplos não são muito comuns, muito
por estar escrito em linguagem sarcástica mas, menos comuns do que o fato de sermos o nosso
sobretudo, porque se percebia que o autor, estava próprio corpo. Mesmo ao dizer que tem um corpo, a
gente se retira, de certo modo, da vida de todos os
pondo em dúvida o princípio sacrossanto de que dias. Dizendo isto, modificamos um pouco o nosso
o homem tem um corpo material e mortal, e uma corpo; pois o corpo que temos é diferente do corpo
alma imaterial e imortal. Esta suposição, que já que somos. O corpo que temos foi, de certa maneira,
era difícil de contestar filosoficamente, do ponto abandonado pelo seu proprietário. Alguma distância
de vista teológico parecia ser lei. Toda a gente, tem que ser estabelecida, embora pequena, entre nós
porém, estava errada. De qualquer maneira, a e o nosso corpo, antes de podermos dizer que temos
separação não pode ser atribuída da à Bíblia. A um corpo. Falar do seu próprio corpo significa falar
palavra imortal somente aparece duas vezes na de si mesmo. Uma pessoa lava-se, não é o seu corpo
Bíblia e, em ambos os casos, aplica-se a Deus. que se lava. Uma pessoa barbeia-se, não é o seu
De acordo com a Bíblia, somos completamente rosto que se barbeia. E se está barbeando o seu
queixo, não está barbeando o queixo da face que tem,
mortais; podemos usar das expressões corpo e
mas da face que é. Quem está aparando suas unhas,
alma, mas esta distinção não existe na Bíblia. Por
está aparando suas unhas; em momento algum ele se
intermédio da morte de Cristo, a eternidade foi
separa da sua mão — a menos que haja algo errado.
prometida a nós, mortais, mas isto não é a mesma
Uma perturbação deve aninhar-se no corpo que a
coisa. Todavia, não estamos interessados aqui
gente é, para fazer surgir o corpo que a gente tem e
nessas distinções, por importantes que sejam. O que
isto é uma doença. Ou então, deve-se refletir sobre o
estamos agora discutindo é a significação psicológica
corpo que a gente é para surgir o corpo que a gente
da experiência de La Mettrie, experiência esta que
tem.
pode ser repetida por qualquer pessoa interessada.
Com estas palavras surge uma peculiaridade
Uma pessoa cujo cérebro esteja delirando, é diferente
que foi observada em forma semelhante, quando da
de si mesma. Ouve, pensa, sente e crê de modo
discussão das relações entre o homem e o mundo.
diverso; nada deixa de ser alterado pela febre. Seria
Tornou-se então claro que essa reflexão cria entre o
então correta essa distinção entre corpo e alma? É
homem e o mundo uma distância pré-reflexivamente
necessário compreender que nessa distinção, a alma é
desconhecida até então na vida diária, pois só agora a
a parte essencial; o corpo, sendo capa dessa parte
relação entre alma e corpo está em discussão. É
essencial, é matéria estranha ao nosso ser. Será isto
necessário salientar que, no estado pré-reflexivo
verdadeiro? Comecemos com um exemplo brutal:
uma pessoa que sabe estar morrendo de câncer diz homem e corpo estão muito estreitamente
entrelaçados, se não idênticos, enquanto a simples
que o mal está apenas corroendo a sua capa e que o
reflexão já cria aí uma distinção. Dessa reflexão de
seu próprio ser não está sendo atingido? Usamos
todos os dias originou-se a convicção de que o corpo
também outras palavras quando nos cortamos com a
pertence ao mundo dos objetos materiais. E essa
navalha de barbear. E a mãe que, desesperada, está
convicção, de que o corpo é um objeto material,
esfregando o braço do seu filhinho doente, acredita
tornou-se extraordinariamente fértil no campo da
que está tocando na prisão que contém o seu menino?
ciência médica, pois um objeto que se tem pode ser
Ou está a sua mão a tocar a sua própria criança? E a
dissecado e, dessa forma, podemos procurar entendê-
moça que está enfeitando o seu corpo, pensa que está
lo; ao passo que aquilo que somos não pode ser
tratando de um objeto (chamado corpo), obstáculo
dissecado. O estudante de Medicina que está
entre ela e o mundo, entre ela e outras pessoas, ou
acariciando a mão da sua namorada, cometerá um
está tratando de si mesma? Parece-me que uma
erro se, no seu pensamento, estiver estudando
pessoa não necessita mais que olhar a própria mão,
simultaneamente a anatomia dessa mão. A mão da
para saber que está, toda ela, nessa mão. São
sua amiguinha não tem veias, músculos, nervos ou
incontáveis os exemplos que tornam bem claro que
ossos. Está acariciando outra mão a qual na verdade é
nós mesmos somos o nosso corpo.
macia ou dura conforme o lugar e ainda apresenta
Ninguém se sente disposto a negá-lo, mesmo
outras particularidades (tais como um pulso
formulando em seguida a afirmação de que também
palpitante), mas que não pode ser encontrada em seu
temos um corpo. Tampouco há dúvida sobre isso.
livro de anatomia. Até mesmo o fisiólogo sabe que
Vejamos um simples exemplo: um indivíduo olhando
não é correto, que não é verdadeiro especular, numa
para o espelho, nota que tem tais e tais orelhas e tal
mesa de banquete, sobre o destino das coisas que
nariz. Está em seu poder, se conseguir infiltrar essa
estão sendo deglutidas. Ele está comendo, na
idéia em sua cabeça, cortar as suas orelhas e atirá-las
companhia de outras pessoas. Nenhum processo
1
J. O. de Ia Mettrie, Histoire naturelle de 1'ime (titulo mudado mais tarde
químico está se realizando em seu estômago; ele
para Traité de 1'âme), Haia, 1745). apenas nota que está ficando satisfeito. A vida pré-

17
reflexiva, isto é, a vida que é vivida na existência de psicossomática, que se condicionou a essa pré-
todos os dias, não conhece fisiologia; ao comer, reflexão. (1)
tornamo-nos estômago, da mesma forma que nos
tornamos cabeça, quando estudamos; tão “cabeça” Segundo exemplo, também tirado do campo
que não sentimos a fome do estômago, nem o da psicossomática. Um paciente, sofrendo de pressão
formigamento das pernas cruzadas muito tempo alta, mas com os órgãos ou sistemas orgânicos em
debaixo da mesa. No ato sexual — último bom estado, queixa-se de tensão em todo o corpo.
exemplo — não são esses objetos chamados órgãos Diz estar rebentando para fora de seus vasos
sexuais que se tornam utilizáveis para os parceiros, sangüíneos, mas não são os vasos descritos nos livros
dois sujeitos presos dentro de seus corpos; a simples de anatomia que estão para explodir. Os seus vasos
idéia de tal coisa tornaria o ato sexual impossível. No “pré-reflexivos” estão sob pressão; os vasos de que
ato sexual, homem e mulher transformam-se em toda a gente toma conhecimento quando o sangue
criaturas de sexo, até mesmo em órgãos sexuais; e sobe à cabeça, quando a pessoa fica pálida de medo
esta alteração não pode ser catalogada por nenhum ou rubra de raiva ou aborrecimento. São os vasos
anatomista ou fisiólogo. As coisas catalogadas por cujas paredes marcam os limites da vergonha e da
eles são de outra ordem: a ordem dos conhecimentos impulsividade. Paredes contra as quais colide a
reflexivos e, portanto, gnósticos, enquanto a trans- agressividade. A agressividade é assunto do corpo. A
formação do homem e da mulher pertence à ordem pessoa que relaxa cada músculo, que afasta qualquer
da experiência pré-reflexiva e, portanto, da vivência tensão do seu corpo, não pode ser agressiva. A
pática.Assim, o corpo pré-reflexivo que somos, vergonha não existe como qualidade “puramente
possui certamente órgãos (estômago, cabeça, órgãos psíquica”. A vergonha é, como dizia Madame Guyon,
sexuais, mão, olho, etc., até mesmo veias), mas estes aquilo que envolve o corpo como se fosse roupa. A
órgãos não são idênticos àqueles descritos nos livros vergonha reside nas paredes do corpo. As qualidades
de anatomia e fisiologia. chamadas “puramente psíquicas” são qualidades ou
condições do corpo. A pessoa delicada não se
Na medicina psicológica e na medicina movimenta como a pessoa audaciosa. A voz de uma
psicossomática, já se tornou óbvio, há muito tempo, pessoa agressiva é forte, seus músculos tensos, seu
que os males psicológicos dos pacientes psiquiátricos sangue corre--lhe mais rápido nas veias. Assim, a
não podem ser estudados pelos meios normais de agressão reprimida, controlada, a agressão que deve
exame médico, pois o exame normal dirige-se a ser contida dentro dos seus limites internos, é
órgãos que não tem significado para o paciente. também uma qualidade do corpo, que pode ser
Quando o paciente de úlcera gástrica queixa-se do chamada hipertensão. A hipertensão essencial, ou
seu estômago, não se refere ao órgão, melhor, pré-reflexiva poderá então ser talvez medida
anatomicamente descrito, situado logo abaixo do seu pelo esfigmômetro; poderá também resultar no
diafragma, chamado estômago, ventrículos ou saccus rompimento de um vaso anatômico. — Tampouco
digestivus — mas àquele outro órgão que, quando neste exemplo pretendo encontrar uma regra geral
uma pessoa come, recebe e digere: o seu estômago. aplicável a todos os casos de hipertensão; estou
Comer, do ponto de vista pré-reflexivo, significa re- apenas procurando ilustrar a diferença entre o corpo
ceber, saborear ou devorar. Até mesmo digerir tem dos livros de anatomia (que temos) e o corpo da vida
significado pré-reflexivo: significa assimilar em não-gnóstica, pática e pré-reflexiva (que somos).
geral, fazer derreter no que a gente é, até mesmo O paciente descrito neste livro não está
declarar-se em concordância com os eventos e sofrendo de distúrbio psicossomático, no sentido
incidentes da vida, tais como são aceitos pela pessoa estrito da palavra. Exame médico acurado não
que come, mesmo se assim o faz agressivamente. O revelou defeito algum. Isto significa que a sua doença
paciente de úlcera gástrica não pode aceitar a sua não é organicamente física, ao ponto de ter produzido
vida. Falta-lhe alguma coisa e não encontra defeitos orgânicos. Mas não consideremos a distinção
oportunidade de preencher essa falta. Então digere a entre distúrbios neuróticos orgânicos e não orgânicos.
si mesmo e come um buraco em seu estômago, um Mais importante é o que as duas categorias possuem
buraco que se torna visível naquele outro órgão em comum. É que o mal-estar físico do paciente
visado pelo anatomista. — Esse exemplo não concerne ao seu corpo pré-reflexivo. O paciente,
pretende ser válido de modo geral. Há pacientes personagem deste livro está convencido de que seu
gástricos que formam a sua úlcera de outra maneira. corpo está doente. O cardiologista declara que não há
O que pretendo salientar aqui é que o defeitos. Esta declaração pouca impressão causa no
psicopatologista e o anatomista não estão falando do paciente. O motivo agora é óbvio: é que o médico e o
mesmo órgão, estômago, e que seria ótimo se paciente falam de órgãos diferentes, o médico está
existisse a possibilidade de dar uma descrição, do que
se entende por “estômago pré-reflexivo”. Esta 1
V. von Weizsácker dá, a meu ver, o melhor e não ultrapassado
possibilidade não está inteiramente ausente. Existe exemplo disto em F&lle nnd Probleme, Anthropologische Vorlesongen
mesmo uma corrente de pensamento na medicina in der me-dlzlnimchen Klinlk, Stuttgart, 1947.

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pensando num músculo oco, munido de válvulas e de estão falhando e que está perdendo seu senso de
um septo. O paciente fala do coração que pode estar equilíbrio! Mundo e corpo estão interligados; então a
em seu lugar certo; neste caso o seu coração costumeira distinção entre mundo e corpo é
abandonou o seu lugar certo; fala do coração que provavelmente radical demais.
pode ser quebrado por um gesto ou um olhar, ao Já em 1935, Buytendijk e Plessner (1)
passo que o médico não encontra sinal de fratura. pretenderam que o comportamento físico dos homens
Refere-se ao coração que pode estar muito bem, e dos animais não podiam ser compreendidos,
mesmo quando o cardiologista alimenta dúvidas; e enquanto não fosse respondida a pergunta: em que
que pode estar enfermo ainda quando todos os mé- espécie de mundo o homem e o animal existem? Os
dicos declarem unanimemente que o coração está autores então descrevem o comportamento físico
funcionando esplendidamente. Se dissermos então como sendo uma resposta; comparam a um diálogo a
que o paciente “está expressando fisicamente um relação entre corpo e mundo. Procurarei esclarecer
conflito emocional”, estaremos confundindo duas este conceito com alguns exemplos.
realidades. Quem disser que o paciente está Uma jovem tem uma tarde de folga. Resolve
convertendo, isto é, transportando algo de uma ir passear na cidade e espera atrair a atenção dos
categoria para outra, olvida que o paciente não está rapazes que encontrar. Veste o mais lindo vestido e
falando dos órgãos visados pelo médico e de que não aplica um pouco de maquilagem. Quando está pronta,
está convertendo, nem transportando coisa alguma de examina o resultado no espelho, ou melhor, faz de
uma esfera para outra, pois ele continua falando conta que outras pessoas estão olhando pelos olhos
dentro da ordem de uma realidade que se caracteriza dela, como se dissessem: “Olhem para a moça no
pelo fato de que a diferença entre corpo e alma não espelho”. Se estas outras pessoas disserem: “Ela é
foi estabelecida. O paciente tem realmente um mesmo bonitinha”, ela se levanta e, por alguns
coração doente, não está enganado nem se está momentos, caminha pelo seu quarto. Então ela já
iludindo; está sofrendo de sério distúrbio cardíaco; está na cidade: de outra maneira ela não poderia
pois o coração a que se refere é o centro do seu andar assim, nem parecer tão “sexy”. Deixa então o
mundo. quarto e diz “até logo” aos pais. Ao dizer “até logo”,
comporta-se diferentemente: anda de outra maneira e
Ninguém pode duvidar de que este centro não lança olhares provocantes. Não que os seus pais
está perturbado, no que concerne ao paciente. Seu critiquem muito o seu comportamento; ela não está
coração torna-se frio, embora não inteiramente. Está contendo-se ou corrigindo seus modos, está apenas
rebelando-se, batendo incessantemente contra as comportando-se com naturalidade; a mudança do sou
paredes do seu peito. O paciente também se queixa comportamento efetua-se sem nenhum esforço.
de fraqueza nas pernas e de equilíbrio instável. Significa isto que, no momento de se despedir dos
pais, ela está ainda situada no ambiente da sua
Ninguém ficará surpreso se o neurologista infância e os seus modos se ajustam a esse ambiente.
não encontrar deleito algum. O seu martelinho de O seu corpo dá a reação adequada àquilo que a casa
reflexos não atinge o joelho que o paciente tem em paterna está a gritar-lhe: “És uma criança”. Sai então
mente. É dentro de outro contexto mais geral que as da casa. Assim que está na cidade, ouve outras vozes;
suas pernas falharam. Perdeu literalmente a as ruas estão brilhando com uma luz que nunca viu
capacidade de ficar de pé; no mesmo sentido, o seu em criança. Isto comprova que ela é adulta. A
equilíbrio está perturbado. Está para cair, e é possível maneira com que a gente olha para ela está a dizer-
que a queda também se torne visível quando as lhe que está vestida como mulher jovem e atraente e
pernas do livro de anatomia também falharem. Mas que seu corpo está maduro. De novo o corpo se ajusta
isto não é necessário. A sua vida consiste em cair. à situação, meneando-se e recendendo sexualidade.
Mesmo quando está recostado, está caindo. Por que o soldado deve colocar-se em
posição perfilada quando se apresenta a um superior?
A análise dos seus males físicos não termina (1) Porque as instruções que recebeu só têm um
aqui. O leitor pode adivinhar o que a canseira do sentido e não dois, três ou mais sentidos parciais. Se
paciente significa; pode imaginar sua dor de cabeça. o soldado estivesse descansando sobre uma só perna,
O que importa aqui é apenas a forma de explicação. poderiam dar-lhe “meia ordem”. Mas o seu mundo
Todavia, não devemos nos esquecer do seguinte: não é assim. Como soldado, não vive uma existência
Comparando os resultados da investigação feita na de “talvez sim” ou “talvez não”, mas leva vida
natureza do mundo do paciente com o que acaba de categórica de “sim” ou “não”. Por que a atitude de
ser observado acerca do seu corpo, podemos prece é também tradicionalmente simétrica? Porque o
estabelecer uma relação, senão uma similaridade. Diz mundo da pessoa que reza, embora diferente daquele
o paciente que as casas são velhas e estragadas, e que
estão prestes a desmoronar sobre ele. É o seu mundo 1
F. J. J. BuytencSijk e H. Plessner. Acta Biotheoretica, A, I, 1935.
que está desmoronando. Ele está dizendo exatamente 1
F. J. J. Buytendljk, Algemens theorle der mcnselijke houding en beweglng,
a mesma coisa quando exclama que as suas pernas Utrecht, 1948.

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do soldado, possui uma direção, uma orientação permanecerão frescas. Tudo tem tempo, seja futuro
incondicional, sem desvios nem atalhos. Quem reza, ou passado. Até mesmo o bloco de rocha,
está rezando, isto é, está afastando momentaneamente aparentemente eterno, é terciário ou diluvio ou se
de si todos os “talvezes” que o rodeiam; ou melhor, originou na Criação. Realmente, nada está
está tentando fazê-lo. Por que é assimétrica a atitude desprovido de tempo. Tudo tem duração. Se
de um adolescente? Porque em seu mundo, nada é tirássemos dos objetos a sua duração, eles
permanente; tudo é duvidoso e nada há que se pareça pareceriam diferentes. — É neste sentido que as
com uma direção. coisas são diferentes para o paciente catatônico. Seu
Disse que o corpo se ajusta, mas isto não é tempo é diferente. Vive num outro tempo. Se lhe
bem correto. Porque o que se ajusta está em segundo perguntarmos em que ano estamos, talvez mencione
plano, está “reagindo” (agindo sozinho). Na relação o ano em que a sua psicose começou; não envelheceu
de corpo e mundo, nenhum dos dois está em segundo desde então, o seu tempo parou. Para ele, não há
plano, pois o corpo (1) se forma em concordância botões a se transformarem em flores, nem há bonde
com o mundo em que deve executar a sua tarefa. elétrico que vai e vem. Utilidade e propósito são
Reveste-se de uma forma ou figura: figura de coisas que desconhece. É inútil perguntar-lhe para
trabalho, de luta ou de amor. — Mas também se pode que servem as flores da sala de estar. Qualquer
dizer que o mundo muda de acordo com o corpo que mudança ou deslocação dos objetos é, para ele, sem
nele se move. Os objetos assumem formas diferentes, sentido, obscura, desnecessária, não
quer sejam formas de trabalho, de luta ou de amor. realmente possível. Ninguém ou coisa alguma
Pois não diferem as coisas para o ferrabrás e para o realmente muda. Todas as coisas estão congeladas
conciliador? Os objetos são diferentes para eles. numa espécie de espaço intemporal. Assim é o seu
Assim, pois, o corpo pré-reflexivo e o mundo pré- mundo, e a imobilidade do seu corpo corresponde a
reflexivo estão unidos como num diálogo. Ambos essa situação. O paciente catatônico ergue-se como
devem ser compreendidos dentro do seu contexto estátua num museu de raridades.
próprio. Para a pessoa sã, tão grande é a função do
Desse contexto, vejamos agora alguns tempo no mundo, tão importante o ir e vir que se
exemplos psiquiátricos. Em primeiro lugar, o transforma em movimento, que o seu corpo se move
paciente catatônico, que quase não se move. Quando no mesmo ritmo. Se o mundo for rápido, isto é, se os
os sintomas da doença estão completamente objetos vibrarem, se tudo indicar impaciência e
realizados, o paciente não fala uma palavra e se progresso, então o corpo entrará também na corrida.
mantém de pé, no mesmo lugar, completamente sem Se tudo tiver tempo, se os objetos sugerirem des-
movimento. Não responde a perguntas. A sua canso e sossego, se mostrarem, talvez, um sinal de
expressão é fixa e sombria. Dá impressão de estar eternidade, então o movimento se tornará também
cheio de pensamentos mas, ao mesmo tempo, a gente vagaroso. O habitante das cidades corre, o camponês
desconfia que ele está pensando em nada anda compassadamente, o monge é solene em suas
absolutamente. É um enigma. Somente depois de atitudes; os seus objetos são diferentes.
bastante tempo é que se torna evidente que algo está Para o paciente que sofre de melancolia
penetrando na sua mente, e ele dá mostras de estar mórbida, particularmente para o paciente endógeno-
apreciando uma saudação, mesmo quando não a depressivo, a vida move-se muito vagarosamente. Ele
retribui, A sua imobilidade provoca inchação das vê todas as coisas arrastando-se laboriosamente.
pernas. É levado então para a cama, para prevenir Consequentemente, o seu corpo também se move
perturbações circulatórias. Mas, imperturbável, volta devagar e penosamente. O mundo parece murcho e
daí a pouco ao lugar preferido. Ai fica durante sem vida e por isso, o paciente sente-se cansado,
semanas, meses e anos em completo repouso. De aborrecido e inativo.
onde vem sua imobilidade? Não há defeitos físicos. Para o paciente que sofre da vivacidade
O paciente vive num outro mundo. O mundo da mórbida de uma mania, a vida transcorre facilmente,
pessoa sã caracteriza-se pela utilidade, direção e não há obstáculos, tudo ajuda aos seus movimentos e,
propósito. Para qualquer um de nós, o bonde elétrico, por conseguinte, ele se move depressa e facilmente.
estacionado num ponto de parada, significa um meio O seu mundo é bem vivo, colorido e fresco. É por
de transporte, que vai de um ponto para outro, isso que se sente vivo e disposto; sente-se tão leve
mesmo se o ponto de partida e o ponto de chegada que quase pensa poder voar. (1)
nos forem desconhecidos. O bonde tem propósito, di- O esquizofrênico, finalmente, percebe
reção e utilidade. É assim que o vemos. As flores na indubitáveis indicações de que o mundo está para ser
sala de estar são ornamentos do aposento, vão se destruído. Fareja da nação por todos os lados e
abrir completamente ou vão começar a murchar; observa o trabalho dos poderes satânicos. Não é
nossa visão mede o espaço de tempo em que surpreendente que se lamente de possuir um corpo
anormal. Os seus pensamentos foram extirpados e ele
1
V. E. von Gcbsattel, StichtiEes Verhalten im Gebief sexueller 1
Verirrungen, Monatschrift fiir Psychlatrie und Neurologle, 1932. L. Binswanger, Ueber Ideenflucht, Zurique, 1933.

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está sendo manipulado por maquinismos; ele o sente, raspando cenoura e cantando uma canção de que só
e está se movendo de acordo com essa impressão. O conhece as primeiras estrofes: “Minha querida
seu corpo se move de modo condicionado, dentro de Espanha, terra dos meus ancestrais, minha querida
um mundo estranho e inseguro. Espanha, terra em que vivo”; vai repetindo sempre as
Nota-se, pois, que a separação entre mundo e mesmas palavras. O leitor pode imaginar o quadro
corpo não é assim tão importante como o pensamento doméstico. Quando a mãe ia buscar outro maço de
cartesiano poderia deixar supor. O parágrafo seguinte cenouras, a cena ficava vazia por alguns instantes;
pretende mostrar que, dentro desta linha de precisamente então, quando a mãe deixava de cantar,
raciocínio, outras distinções têm sido feitas com tudo era diferente, como se a cena nunca tivesse
demasiado rigor. existido. O córrego, a casa, o céu, a árvore — se a
gente quisesse saber se todas essas coisas ainda
3. A comunicação entre o homem e o seu semelhante. estavam ali, teria que prestar muita atenção; mas
Carry van Bruggen, em seu romance quando a mãe voltava e recomeçava a sua cantoria:
provavelmente autobiográfico Het huisje aan de sloot “Minha querida Espanha” — tudo voltava a estar ali
(“A casinha perto do córrego”) relata que, na manhã normalmente.
de sábado, a mãe da menina judia, principal As coisas mudam, ao ponto de
personagem do livro, tirava da mesa a toalha desaparecerem e retornarem. O córrego, a casa, o
vermelha e preta de todos os dias, para estender em céu, a árvore, a cadeira, os móveis e o fogão, tudo
seu lugar a lustrosa toalha branca; então acontecia muda; mas nada muda sem razão ou sentido. Os
“algo” em certo instante, que ela não conseguia fixar. objetos mudam em certas ocasiões especiais. Quando
Enquanto a velha toalha preta e vermelha permanecia alguém chega ou parte. Quando começa o dia ou
na mesa, nada acontecia; entrava a mãe no aposento e quando cai a tarde. Aos domingos, as coisas não têm
nada demonstrava de extraordinário. Tirava a toalha o mesmo aspecto que nos dias úteis. Quando
de duas cores, a mesa ficava nua, a exibir suas acontece que o meu amigo já não vem mais, a
manchas e arranhões. A seguir, a toalha branca garrafa de Médoc muda de aspecto. Aí não está a
flutuava nas mãos da mãe, quase atingindo a dificuldade; a dificuldade está em ver a mudança.
lâmpada; descia depois sobre a mesa e — outra vez Inspeção mais cuidadosa também não revela coisa
falhou a fixação. “Algo” aconteceu, mas ninguém o alguma.
viu chegar. Repentinamente, transfigura-se a Abrem-se então dois caminhos para o
face da mãe, e cada cadeira, os móveis e o fogão psicólogo, bem como para o psiquiatra, dependendo
assumem aspecto diferente; ninguém foi capaz de ver da maneira como interpretam essas palavras. O
a verdadeira mudança, ninguém conseguiu fixar psicólogo acredita primeiramente nos resultados de
aquele momento. Mas a próxima vez — resolve de uma observação reflexiva; então não observará coisa
novo a menina — ela não irá olhar para a toalha mas, alguma. Negará então a mudança e dirá que o que
ao contrário, ficará observando sua mãe, o bufe, as está acontecendo é uma projeção — mas depois disso
cadeiras e o fogão, pois pretende fixar algum dia esse ele terá de explicar o que significa a palavra projeção.
momento maravilhoso, em que todas as coisas Não é capaz de fornecer essa explicação. Em
mudam de aparência. segundo lugar, o psicólogo não acredita na
observação reflexiva. Dirá então que a maneira como
Como mudam todas as coisas de aparência? vemos na observação reflexiva não é a maneira como
Que quer dizer a autora? Que os objetos mudam a sua a pessoa, que viu a mudança, estava olhando e, por
aparência? Ou sua forma? Ela fala de mudança dos conseguinte, não é a maneira que se supõe deva ser
objetos em si mesmos, mas esta espécie de alteração usada pelo psicólogo, se ele sentir o desejo de
nunca foi observada. A mera observação de qualquer compreender essa visão.
mudança é um fato difícil, muito árduo de se O psicólogo, e com ele o psiquiatra que
estabelecer. A mudança, em si mesma, é um fato. pertence à segunda maneira de pensar, deseja
Será então que os objetos são susceptíveis de restringir-se definitivamente ao que está realmente
mudança? Disso a autora está completamente acontecendo. Emprega todos os esforços para
convencida, da mesma forma que estamos, quando impedir que a sua ciência seja perturbada. Procura
fato idêntico acontece conosco. Cada um de nós tem descrever os fenômenos como eles são. É um
uma recordação ou experiência semelhante àquela da fenomenologista, isto é, só respeita os fenômenos que
jovem judia. Talvez seja mais correto dizer que, são registrados e os incidentes da maneira que
diariamente, cada um de nós vive na realidade dessa ocorrem. De modo que ele tem que respeitar a
espécie de experiência. Os objetos mudam de aparên- observação espontânea dos incidentes, a visão das
cia todos os dias, continuamente e nunca sem alguma coisas do incidente. Ele perturbaria as coisas, se as
razão. Disso posso fornecer outro exemplo, extraído examinasse reflexivamente. Então, ele se abstém de
também do livro de Carry van Bruggen. fazê-lo—isto não significa que, no futuro, ele verá as
coisas superficialmente. Pelo contrário, é de opinião
A mãe está sentada no fundo da casa, de que, não submetendo as coisas a uma inspeção

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reflexiva, ele será capaz de vê-las mais claramente e acrescenta: “Mas não, não desejo tal, provavelmente
com mais realidade. porque teria meão de ver as coisas com os seus
O exame reflexivo (no sentido aqui olhos”. — Suponhamos que o homem não tivesse
empregado), reduz as coisas ao que pode ser emendado a sua frase e que a mulher, a pedido dele,
observado sem emoção. Ora, as observações da vida tivesse vindo para junto dele e o tivesse
diária não ocorrem, ou ocorrem muito raramente, acompanhado numa visita a essa casa, tão gabada por
sem emoção. Por conseguinte, tais observações vêem ele. A darmos crédito ao autor, ele teria visto a casa
outras coisas. Quem desejar saber o que, em determi- com outros olhos. O aspecto da casa teria mudado,
nado momento, está acontecendo psicologicamente, quando ele a olhasse com os olhos da mulher. Ter-se-
fará bem em se colocar pessoalmente nessa situação. ia tornado menos atraente, menos convidativa, menos
Deverá evitar conclusões prematuras sobre a habitável. Podemos concordar com o autor. Todos
situação, pois um rápido julgamento é geralmente nós conhecemos pessoas com as quais não
prematuro. Primeiro descrever, depois julgar. gostaríamos de sair a fazer compras, ou a visitar um
Descrever é o mais importante. A descrição acurada museu, ou a observar um panorama, porque
de um incidente implica necessariamente no preferiríamos não estragar essas coisas. Da mesma
julgamento do incidente, bem como da teoria do forma, conhecemos gente em cuja companhia gos-
incidente. Somente depois, se for ainda preciso, taríamos de dar um passeio, porque os objetos
permite-se uma teoria sobre o incidente. A primeira avistados não sofreriam dano. A estes chamamos
teoria é a do incidente e do autor que nela figura. A amigos, bons companheiros, pessoas queridas.
primeira Psicopatologia é a do paciente. Pois bem, Afinal, tudo se resume no seguinte: uma
quem se colocar no lugar do paciente, em sua palavra, um olhar ou um gesto podem abrilhantar
situação, em sua observação (isto é, nas suas coisas) uma coisa ou torná-la sombria. A pessoa que está
verá as coisas diferentemente, as ruas, as casas e as conosco não é outro indivíduo isolado, próximo a
pedras. Quem se colocar no lugar da heroína do nós, que lança palavras em nosso ouvido mas
romance de Carry van Bruggen, verá objetos permanece estranho aos objetos em nossa volta. É a
desaparecendo e retornando. Pois isto é o que se lhe pessoa que, ou está conosco, ou não está conosco e
apresenta. O investigador deverá aderir aos dados que torna visíveis os graus de unidade ou de distância
fornecidos. — É este o princípio básico de toda dos objetos, concreta e realmente. A unidade não é
fenomenologia: o pesquisador deve manter uma simples idéia. Unidade ou distância aparecem
fidelidade aos fatos, conforme vão acontecendo. dentro da fisionomia do mundo. Esta fisionomia pode
Sobre este princípio, não se pode construir teoria ser familiar ou não, pode estar próxima ou distante.
alguma que justifique o conceito de projeção. Quando a mãe da heroína de Carry van Bruggen se
Ninguém sente (ou experimenta) a projeção. afastava, os objetos desapareciam; quando voltava, as
Ninguém sente que algo subjetivo se destaca coisas retornavam ao lugar onde estavam antes.
dele indo depositar-se em coisas vazias que por aí se Maior realidade é impossível. A unidade não é ilusão
tornam coisas reais. As coisas reais são reais ou psiquismo.
imediatamente. Quem olha, não vê primeiro um não- O fenomenologista francês Jean Paul Sartre
ser, e só depois da sua projeção, um ser real. Não demonstrou convincentemente que “a outra pessoa”
existe intervalo livre entre a visão anterior e a visão não raramente alarga a distância para outros objetos
posterior à projeção, intervalo esse que poderia, de (para o objeto ou para a tarefa; a tarefa é sempre um
acordo com a teoria, ser esperado, especialmente aspecto mais ou menos convidativo ou compulsório
quando uma projeção transforma objetos anônimos do objeto). Eis aqui uma das suas ilustrações:
em coisas que possam ser usadas e fruídas. A Um homem está olhando pelo buraco da
projeção que se realizasse muito rapidamente e sem fechadura, coisas que não lhe dizem respeito. Está
bastante participação da consciência para ser notada e absorto pelo que vê. É como se tivesse penetrado no
registrada, não seria mais que uma hipótese. Se existe aposento pelo buraco da fechadura. (O
um livre intervalo, então só pode ser esperado depois fenomenologista inclina-se a tomar esta frase quase
e não antes da visão dos objetos. O homem vê as literalmente ) Deixou seu corpo fora da porta; é por
coisas e constata a solidão; mas não inversamente, isso que não percebe como está ficando cansado.
como pressupõe a doutrina da projeção. Ouve passos que se aproximam. Então acontecem
Outro exemplo para documentar a diversas coisas. Mesmo antes de se erguer,
significação dos objetos nas relações de pessoa para desaparece o quarto que se acha do outro lado da
pessoa. — No romance De verborgen bron (O poço porta, o quarto em que ele se encontrava em espírito.
escondido), de Hella Haasse, um homem escreve à Volta para fora da fechadura. Aquilo que estava tão
sua esposa, relatando o que sentiu ao visitar uma casa perto, tão perto que o fizera esquecer do próprio
que acabam de receber por herança. Está en- corpo, torna-se — em decorrência da presença de
tusiasmado pelo que viu e, em sua alegria, escreve o outra pessoa — um lugar muito e muito afastado. A
seguinte: “Gostaria que você estivesse aqui!” distância persiste, quando percebe que a outra pessoa
Lembra-se então da distância que os separa e desaprova o seu comportamento. Mas é possível que

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os passos pertençam a uma pessoa que já tenha ombro de uma pessoa, quando queremos a sua
compartilhado das suas espiadelas pelo buraco da atenção. Olhamos um para o outro e nos
fechadura. Neste caso, a proximidade da cena volta compreendemos mutuamente com um simples piscar
imediatamente; é mesmo possível que o espetáculo se de olhos. Os namorados andam de mãos dadas.
torne ainda mais próximo, em conseqüência da Existe o abraço, o beijo e a carícia. A essência de
experiência da observação feita em conjunto. todos esses fenômenos não é o contato de corpos
Até aqui tratamos de exemplos que anônimos. O contato efetua-se entre o homem e o seu
esclarecem a natureza dos contatos entre o homem e semelhante, é direto, sem separação, é a participação
os seus semelhantes. Embora sendo bastante comuns, de um no outro. Um simples aperto de mão pode
apresentam, neste contexto, aspecto peculiar. Em vez elucidar a natureza do contato em si mesmo. Cada
de documentar as conexões entre pessoas, estes um de nós conhece o aperto de mão que despreza,
exemplos ilustram mudanças na proximidade ou no que abusa e insulta; como também conhece a grande
afastamento dos objetos. Mas isto está relacionado variedade de apertos de mão que revelam a amizade e
com as outras explicações fenomenológicas do con- o amor. Seja o que for que isto possa significar e
tato humano. Enquanto a psicologia se basear numa sejam quais forem os comentários que se possam
interpretação filosófica considerando a existência fazer, não há negar que existe um contato
humana de uma alma encerrada dentro do corpo, não diretamente físico e diretamente inter-humano, que
se poderá esperar que a psicologia esteja interessada não se refere aos objetos. Que significa isto para o
em objetos. Neste caso, os objetos são estranhos a fenomenologista? Como sempre, a resposta só pode
nós; estão mesmo fora do nosso corpo e somente ser obtida mediante um exemplo concreto.
podem ser incorporados, de certa maneira, quando
nosso desejo, nossa lascívia ou libido se descarrega Quando observo o dorso da minha mão (1)
neles. Em outras palavras: os objetos nunca nos vejo veias que formam certo desenho. Os desenhos
pertencem na realidade, pois o que consideramos da mão direita não são iguais aos da mão esquerda.
aspectos íntimos e fiéis dos objetos, resultam Quando olho para a mão de outras pessoas, também
pertencer finalmente ao sujeito. Tem sido esta, até há percebo desenhos. Parece que não existem mãos que
pouco, a explicação dada pela psicologia. O mundo tenham a mesma configuração das veias. Assim
não tinha significado. De acordo com este ponto de acontece com as impressões digitais; não existem
vista, o contato entre pessoas tinha que ser achado duas pessoas no mundo com as mesmas ranhuras na
numa conexão entre elas. Mas este entre continuava ponta dos dedos. Tudo o que nos concerne é pessoal.
vazio. Uma descrição do que existe entre pessoas Toda e qualquer parte difere da parte equivalente de
contém necessariamente observações sobre objetos, outra pessoa. Qual a razão desse elemento
deveres, interesses, planos ou, para dizê-lo individual? É claro que as veias do dorso da mão têm
brevemente, sobre o que existe aí fora. Entre as que seguir algum desenho; ali estão elas; são
pessoas não há coisa alguma. Mesmo uma simples necessárias e têm que estar em algum lugar. Mas por
troca de olhares se destina ao que está aí fora. A que se estendem nesse lugar preciso e não em outro?
psicologia fenomenológica tem sua origem nessa Por que têm desenho diferente, entre a mão direita e a
observação. Existe um contato original com os esquerda? Por que, finalmente, o desenho difere de
objetos. Freqüentemente, nós é que somos os objetos. uma pessoa para outra? Independentemente da sua
O sapateiro perde consciência de si mesmo; está configuração, as veias funcionam perfeitamente.
absorto em seu trabalho, transforma-se no sapato que Então por que estão localizadas desse jeito? Ninguém
está remendando; se assim não fosse, seria melhor pode dar resposta satisfatória, embora toda a gente a
que parasse de trabalhar. O escritor transforma-se em conheça. Assim que acariciamos essa mão
seu romance, se é que deseja escrever bem. O “incidental”, assalta-nos a convicção de que as veias
matemático transforma-se em seu problema, penetra estão se estendendo aí exatamente como devem. A
nele e só se liberta dele quando consegue solucioná- carícia suspende a natureza acidental do desenho. A
lo. Quando compreendermos isto, deveremos nos carícia transforma a mão em mão, exatamente a mão
precaver contra a tendência de considerar o contato que tinha de estar aí.
entre o homem e o seu semelhante como uma A carícia provoca uma transformação na
conexão entre “almas”. A inadequação da última mão. A carícia transforma o corpo, mesmo se o
palavra implica na impossibilidade da palavra que a fisiólogo não consegue analisar essa transformação.
precede. Não há “entre”. As relações inter-humanas Como indivíduos, todos sentimos que o nosso corpo
realizam-se como fisionomia de uma palavra, como é mais ou menos estranho para nós. Tem certa forma,
proximidade ou distância de deveres e planos, ou que não foi pedida nem desejada e apresenta algumas
seja, de objetos. particularidades. Mesmo se temos de aceitar a forma
e as particularidades como aceitamos a temperatura,
Esta resposta, todavia, não é completa. Há ainda existe campo para a desconfiança. Por que
outro contato ainda, entre o homem e o seu
1
semelhante. Apertamo-nos as mãos, pomos a mão no Exemplo extraído de J-'Êlre et le néant, de Jean Paul Sartre, Paris, 1943.

23
exatamente este corpo? Este nariz e esta fronte? Até sua vida, percebe que deseja possuir este corpo, novo
que outra pessoa nos diga que este nosso corpo é e bem modelado. Torna-se mulher aos olhos dos
exatamente como deve ser. Na amizade e no amor, a rapazes e percebe que, num dia próximo, será
natureza acidental do corpo é eliminada; efetua-se a completamente mulher, num momento menos
justificação do corpo. O amor remove a distância do surpreendente e da sua própria escolha. Quer ser o
corpo; algo acontece que se pode chamar de adesão seu próprio corpo e; por isso, a parte que pode ser
ou concordância, o indivíduo começa a ocupar o seu vista, o rosto, enche-se de sangue. Enrubesce, toma-
próprio corpo e é convidado a ser esse corpo. se visível, mais visível que antes de ser alvo dos
A outra pessoa desempenha um papel nas olhares masculinos. O seu sangue move-se para
relações que temos com o nosso próprio corpo; pode responder aos olhares dos rapazes mas, ao mesmo
tornar essas relações mais íntimas, como também tempo, o seu rubor é uma barreira, atrás da qual ela
pode aumentar essa distância. Existem numerosos se esconde. Ela se esconde detrás de uma camada de
exemplos de um e de outro caso. Uma jovem sangue. Seu rubor é uma repulsa. Seu rubor é o
sardenta vive zangada com o seu rosto, até que um resultado de um afastamento do seu corpo e de nova
homem lhe faça saber que gosta dela como é, isto é, intimidade com seu corpo. O olhar das outras pessoas
com as suas sardas. Talvez lhe diga que gosta dela afasta seu corpo e, ao mesmo tempo, o aproxima.
por causa das suas sardas, porque a maioria das Os exemplos dados até aqui tornam possível
moças não as possuem. O amor é isso mesmo. As definir como segue a natureza das relações entre o
molas do amor são movidas por particularidades que homem e o seu semelhante: a relação entre o homem
só se encontram na pessoa amada. As peculiaridades e o seu semelhante é de tal natureza que se realiza na
excepcionais que, na opinião de outros, poderiam forma, e na proximidade ou distância entre o mundo
constituir um obstáculo, são, para o namorado, outros e o corpo.
tantos atrativos. Finalmente, parece conveniente documentar
No parágrafo precedente, estivemos esta definição por meio da psicologia da conversa de
estudando o homem que espia pelo buraco da todos os dias. — Meu amigo e eu estamos
fechadura. No momento em que ouve passos, o conversando. Esta conversa significa também que
quarto afasta-se dele. Mas há mais. No mesmo estamos conversando sobre alguma coisa. Não é
momento, cria-se uma distância entre ele e o seu possível falar, sem ter assunto de conversa. Estamos
corpo. Assimila o olhar de condenação da outra conversando sobre a Islândia, que nenhum de nós
pessoa e, por intermédio dos olhos da outra pessoa, visitou até agora, mas que conhecemos pelas nossas
ele vê e condena seu corpo (o fenomenologista toma leituras. Não estamos a falar da sua imagem, que se
isto ao pé da letra). formou em nossas mentes — esta imagem é o legado
de um sujeito sem objeto — mas consideramos a
As palavras, os gestos e os olhares dos outros podem Islândia como é realmente, isto é, estamos falando de
aumentar ou diminuir a distância entre homem e um país real. Quando meu amigo fala desse país,
corpo. É raro que haja mistura de ambos. Mais um procuro “entrar” nas coisas que diz. Por mais errada
exemplo: Uma jovem dos seus dezesseis anos entra que possa ser nossa opinião (estivemos apenas lendo
num quarto em que o seu irmão mais velho está a respeito da Islândia), esforço-me em estar naquele
conversando com alguns colegas. Quando os amigos país. Quando é a vez do meu amigo falar, ele procura
vêem quem está entrando, param de conversar e estar comigo no país em discussão. Este nosso “estar
olham para ela. Pela primeira vez em sua vida, a aí”, juntos, é a nossa amizade, pois, se estivesse
moça percebe que está sendo olhada por olhos mas- conversando com outra pessoa menos simpática,
culinos. Enrubesce. Que significa seu rubor? De minhas palavras, mesmo sendo as mesmas, seriam
modo geral, há diferença entre a maneira com que um incapazes de nos levar juntos para a Islândia, da
homem ou uma mulher olham para outra pessoa. mesma forma que as palavras dele, se não fosse meu
Enquanto o olhar da mulher pode repousar sobre a amigo, seriam incapazes de encontrar em mim
superfície dos objetos e das pessoas, o olhar do qualquer ressonância relativamente àquela ilha.
homem tende a atravessar os objetos; penetra, muda, Haveria mesmo certa relutância em se estabelecer um
desmascara, muito mais que o olhar feminino(1). A interesse comum, o qual, no caso presente, seria a
moça percebe que está sendo olhada com esse tipo de Islândia real. O aspecto irreal e não compartilhado
visão. Os amigos do irmão estão olhando para ela seria então (nesse momento), nossa mútua
sem disfarce; estão olhando através das suas roupas. desafeição; pois a desafeição e a amizade significam:
Os seus olhos estão procurando despi-la. Em concreção das coisas. Na conversa com meu amigo,
decorrência, a jovem sente que lhe roubaram o corpo; a Islândia passa a existir realmente; mesmo sem
de certo modo seu corpo tornou-se propriedade do conhecê-la, vejo-a diante dos meus olhos. Ela nasceu
corpo dos amigos do seu irmão. Mas esta alienação das suas palavras e das minhas. Mas, ao mesmo
do próprio corpo não é tudo. Pela primeira vez em tempo, vejo-o, vejo meu amigo. Vejo as suas
expressões entusiásticas. Meus olhos perpassam pelo
1
F. J. ,1. Buytemlijk, Do vrouw, Utiecht, 1951. seu rosto, cuja expressão se harmoniza com essa

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Islândia, que evocou em minha mente. Num só pessoas serão um obstáculo à posse do seu próprio
relance vejo seu corpo, aprecio seu olhar, seu sorriso, corpo, da mesma forma que são obstáculo entre ele e
suas mãos. Demonstro o apreço que lhe tenho, o mundo. Quando declara, finalmente, que a gente
embora expressando-o vagamente. Meu apreço dá- lhe parece hostil, que as feições das pessoas lhe
lhe a liberdade de me falar como me fala, de me olhar parecem duras, semelhantes a bonecos de madeira,
como me olha e de mover-se como se está movendo. — está expressando pela terceira vez, que o distúrbio
Minha presença não é uma crítica das suas que o levou a procurar o terapeuta é o seguinte: ele
expressões, mas uma apreciação. No meu olhar, está seriamente perturbado em seu contato com as
sente-se ele como deseja ser. O fato de eu falar, ouvir outras pessoas.
e ver como ele, provoca a adesão entre ele e o seu O paciente é bastante claro. O que não se
corpo. Esta adesão entre ele e seu corpo é tornou claro é o modo como o paciente chegou a
literalmente a adesão entre ele e mim: é a nossa esses distúrbios de contato. Que aconteceu em sua
amizade. — O mesmo se dá comigo. Estou falando vida, que transformou todas as pessoas em seus
sobre a Islândia, estou evocando esse país com as inimigos? O próximo parágrafo será dedicado a esta
minhas palavras, talvez como o vejo em minha mente questão. Será então necessário que o leitor preste
— embora nunca tenha estado ali. Não estou vendo atenção à relação entre homem e tempo.Que é o
uma imagem, meus conceitos atingem a verdadeira tempo?
ilha, lá ao Norte. A suposição de que estes conceitos
visam a uma imagem e não à realidade é — mais 4. Homem e tempo: — História vivencial.
uma vez — o produto de uma psicologia que separa o
homem e o mundo. A imagem é de propriedade Em suas Confissões, Santo Agostinho faz a si
solitária de um indivíduo, ao passo que essa Islândia, mesmo igual pergunta, a mais difícil que um
atingida e visualizada pelas minhas palavras, é uma pensador possa enfrentar: que é o tempo? Assim que
possessão nossa, de mim e de meu amigo. É por isso procura formular a resposta, encontra-se num
que estou falando tão facilmente; é por isso que estou impasse. “Quando alguém me pergunta o que é o
enxergando tanto; porque meu amigo está me tempo”, escreve Agostinho, “eu sei o que é, mas
ouvindo. Penetro nessa Islândia sem quando procuro explicar, já não sei o que é”. O
constrangimento, porque a amizade com meu amigo tempo é uma coisa toda natural. Sem hesitação,
não conhece barreiras. A remoção das barreiras entre vemos no relógio que horas são. Sem dificuldade,
mim e os objetos é a amizade entre mim e ele. Ao localizamos um acontecimento que se deu faz muito
mesmo tempo, sei que ele está olhando para mim. Ele tempo. Marcar um encontro para um dia próximo não
me vê gesticular, falar, olhar. Estou movendo meu requer esforço algum. Estamos de posse do tempo.
corpo livremente; sem qualquer obstrução estou Fluímos com ele: pois o tempo flui, compreendemos
fluindo para dentro dos meus braços, das minhas isto perfeitamente, mesmo quando estivemos
mãos, da minha garganta e boca, dos meus olhos. dormindo: tornou-se mais tarde. Todos os dias temos
Estou de posse do meu corpo; sou este corpo — o confirmação de que o tempo passa depressa ou
que implica que estou em bons termos com meu devagar, sem esforço, sem estudo ou dificuldade. O
amigo. tempo é óbvio, evidente por si mesmo. Mas quando
No parágrafo sobre a relação entre homem e queremos saber o que é o tempo, o que está fluindo e
corpo, deixei entender que a separação entre o corpo como está fluindo, não há explicação.
e o mundo não deve ser compreendida tão Isto, aliás, não se refere unicamente ao
estritamente. O corpo e o mundo estão ligados um ao tempo. A mesma dificuldade, embora talvez em grau
outro. Os objetos convidam o corpo a assumir uma menor, surge quando perguntamos: que é o espaço?
forma; o corpo forma os objetos. Por conseguinte, as Ou: que é nosso corpo? Ou: que vem a ser,
mudanças do mundo e do corpo, como estão ocor- realmente, o contato entre os homens? Nenhuma
rendo na conversa, não são dois acontecimentos dessas perguntas provoca qualquer dificuldade na
independentes um do outro. Que o meu amigo e eu vida diária. Tomamos posse do espaço: viajamos,
possamos conversar sobre a Islândia significa que ele voamos, entramos ou saímos de um lugar. Usamos do
e eu somos capazes de mover nossos corpos mais nosso corpo como se fôssemos este corpo:
livremente — e vice-versa. Ambos são um só. caminhamos, tomamos banho de mar ou de sol. Sem
Agora vejamos: que significa tudo isto para o muito pensar, apertamos outras mãos, conversamos,
paciente de que trata este livro? Ele diz que os casamos. Pode-se dizer que não encontramos
objetos ao redor dele tornaram-se estranhos. Significa dificuldade alguma em viver as respostas a estas
isto que ele não tem contato apropriado com as outras perguntas. Logo, porém, que começamos a pensar
pessoas. E acrescenta que o seu corpo mudou, já não sobre elas, assim que procuramos examinar essas
tem confiança em seu corpo e receia que seu coração questões, as dificuldades são incalculáveis. Assuntos
(o centro do seu corpo) entre em colapso. Desta que eram, pré-reflexivamente, muito claros, tornam-
maneira, confirma mais uma vez que não está em se muito obscuros depois de alguma reflexão. A
bons termos com as pessoas que o rodeiam. As outras fenomenologia é esta ciência extraordinária e

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pretensiosa que procura resolver esses problemas pré- Fenomenologia é um método, poderíamos
reflexivamente. Pretensiosa, sim, pois como podemos mesmo dizer, uma atitude. O seu método constitui
pensar sobre, refletir sobre aquilo que, por definição, um modo de observação,novo na ciência; novo, por
acontece antes de pensar e antes de refletir? Parece exemplo, em psicologia, mas nada novo na vida
que a impossibilidade é óbvia. diária; pelo contrário, o fenomenologista quer fazer
O fenomenologista não deixa de confessar as suas observações da mesma maneira como toda a
essa dificuldade. Esta perfeitamente cônscio dessa gente geralmente faz.* Tem fé inquebrantada na
dificuldade — talvez como resultado dos seus observação diária dos objetos, do corpo, das pessoas
esforços e mais do que qualquer outra pessoa — mas que o cercam e do tempo, porque as respostas às
não deseja dizer que isto seja uma dificuldade. Para questões acima mencionadas são baseadas nos
se chegara uma explicação dos assuntos pré- resultados dessa espécie de observação. Por outro
reflexivos, dirá ele, é necessário abandonar o sistema lado, desconfia das observações teóricas e objetivas,
habitual de pensamento. Em vez de propor uma das observações reflexivas, do tipo de observações
teoria reflexiva e, — como a história do pensamento que caracterizam os físicos. Desconfia dos
o ilustra — sempre ligeiramente estranha, artificial e, julgamentos padronizados, a que se chega com
portanto, pouco satisfatória sobre o problema, é facilidade, tais como projeção, conversão,
necessário que deixemos o problema falar por si. Isto transferência e mitificação. Está convencido que esta
não parece muito claro, mas alguns exemplos foram espécie de julgamentos mistifica a realidade por meio
dados nas páginas precedentes. Quando foi levantada de uma teoria fácil, mas incorreta e geralmente
a questão da relação entre o homem e o mundo, a obscura. Deseja reservar seu juízo para mais tarde
resposta não foi um argumento, mas a descrição de (pois ele também tem que julgar) depois de prestar
um incidente. Este incidente continuou sendo o ouvidos àquilo que os incidentes e os fenômenos
elemento dominante. Em outras palavras: procurei estão prontos para lhe contar. A sua ciência chama-se
ater-me à realidade, que surgia por meio desse inci- fenomenologia e o seu relato procura ser a expressão
dente, o mais estreitamente possível. É óbvio que isto daquilo que observa: ou seja, do que ouve, vê, cheira
seja um processo difícil. Também é óbvio que erros e sente.
possam surgir no decorrer desse processo. Ninguém Deseja viver, e quer que a sua psicologia
está livre de errar mas não é isto que estamos surja desta vida. Se pretender escrever um ensaio
discutindo. O que desejo afirmar neste passo é que o sobre a natação, ele terá, em primeiro lugar, que
fenomenologista está obsedado pelo concreto. O que nadar — repetindo a sua natação até que saiba e
está acontecendo é o seu primeiro e ultimo alvo, possa exprimir o que a natação realmente é. Somente
expressão que se torna talvez mais clara quando quem conhece fisicamente o mar, os rios, as
complementada por mais uma palavra: o que está correntezas, os lagos etc. pode escrever sobre o que
acontecendo “aí”. Pois bem, aí estava aquela famosa tudo isto é realmente. O rio aqui e ali adiante, o
garrafa de vinho. Descrevemos, então, essa garrafa, o Reno, o lago de Genebra, o Oceano Atlântico, o
que não parece fácil. É difícil captarem palavras a Mediterrâneo, — somente podemos escrever sobre
“teoria”, que começa e termina aí; mas quando tudo isso, depois de termos estado por ali em pessoa.
conseguimos fazê-lo, a resposta pré-refletida está Se o fenomenologista quiser escrever a respeito da
pronta. condução de um carro, terá primeiro que pegar no
As coisas têm algo para nos contar: isto é volante e dirigir. Ou então, conversar com motoristas
muito conhecido pelos poetas e pelos pintores; por profissionais, longo tempo e com toda a liberdade,
isso é que os poetas e pintores são fenomenologistas para saber o que fazem, para conhecer como são as
natos. Ou melhor, somos todos nós fenomenologistas estradas e as condições de temperatura, para saber o
natos; mas são os poetas e pintores entre nós que são que significa uma estrada escorregadia e conhecer o
capazes de transmitir os seus pontos de vistas para os código não escrito da estrada. Não viria a conhecer
outros, processo este também tentado, laboriosa- nada sobre essas coisas distantes, se fizesse sentar o
mente, pelo fenomenologista profissional. Todos nós motorista diante de um painel de instrumentos, dentro
compreendemos a linguagem das coisas. Vivemos de um laboratório de pesquisas. O fenomenologista
num mundo ajustado e evidente por si mesmo. O não emprega esses testes, ou somente lança mão
nadador lança-se à água porque a água lhe prova, de deles em última instância. Para ele, é difícil acreditar
mil modos, que está pronta a receber o seu corpo. A que o que acontece diante de um painel de instru-
criança agarra a areia aos punhados, porque a areia lá mentos, possa ser aplicado à realidade. — Por isso,
está a lhe gritar: agarra-me! É desta maneira que nos pouca vontade tem de colocar o seu paciente diante
mudamos para uma casa. Vemos os quartos da de um painel. Quer falar com ele; procura colocar-se,
maneira que serão mobiliados mais tarde; aí o ele próprio, nas situações descritas pelo paciente;
cantinho onde sentaremos, ali a cama para a criança, deseja comparar as impressões do paciente com as
acolá a quentura para o inverno, ali adiante a frescura suas “próprias,” é o seu relatório è ò resultado dessa
para o verão. Por aí tudo se estende a domesticidade; comparação. Em sua opinião, a psicologia, da mesma
a casa é habitável. forma que a Psicopatologia, é uma ciência

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comunicativa, meditativa e descritiva. O psicólogo vivemos e decidimos nosso futuro. O rapaz que nos
deve estar habilitado a falar, a simpatizar, a ver, a serviu de exemplo, certamente não irá insistir com
ponderar e a escrever. seus filhos para que passeiem com eles domingo à
Consideremos agora qual é a resposta do tarde; a sua lembrança — não compartilhada pelos
fenomenologista à pergunta: que é o tempo? De seus pais — decidirá do modo de tratar os próprios
acordo com o seu próprio método, começa com um filhos.
exemplo, bem conhecido em princípio e formulado A primeira coisa a dizer a respeito do
de tal maneira que qualquer um de nós pode re- passado, é que ele nos fala no presente. O passado
conhecê-lo em suas experiências pessoais. não é primordialmente significativo no tempo em que
Um rapaz está conversando com seus pais a se deu; naquele tempo, talvez não tivesse significado
respeito da sua infância. Diz ele: “Sempre me algum. O passado é significativo agora.
lembrarei das tardes de domingo”! Quando os pais Houve inúmeras tardes de domingo, gozadas
lhe perguntam o que quer dizer com isso, ele em completa liberdade: este era o passado quando
acrescenta: “Domingo à tarde! Nunca nos sentíamos ocorreu; mas este passado não tem função. Está aí,
tão rebeldes como quando os ouvíamos dizer: 'Vamos utilizável por outras pessoas que queiram fazer dele o
dar um passeio.' Vestíamos todos as roupas seu próprio passado. O passado que é significativo é
domingueiras e quando saíamos para a rua, éramos o passado como aparece agora. O passado que tem
prevenidos para não andar na lama, sem falar na significância é o passado presente.
proibição de trepar em árvores e outras que tais. Via Depois da guerra, certa mulher visitou a
de regra, encontrávamos outros pais pelo caminho, prisão, em que tinha passado algumas semanas
arrastando as suas crianças também limpinhas e de apavorantes durante a ocupação da Holanda pelos
cara triste. Poderia ainda identificar os lugares onde alemães. O que mais a impressionou foi que a porta
tínhamos que ficar algumas horas parados, com a da prisão lhe pareceu muito pequena, muito menor do
obrigação de .nos divertirmos”. Os pais replicam: que esperava. “Em minha memória, a porta era duas
“Quantas vezes você pensa que demos tais passeios?” vezes mais larga e duas vezes mais alta”, disse ela.
“Bem, não posso dizer exatamente — responde o Quando lhe perguntamos que largura parecia a porta
rapaz — mas acredito que era pelo menos uma vez ter agora para ela, depois da sua visita, replicou-nos a
cada quinze dias”. “Então você está errado — sorrir: “Bem, acredito que passei agora por uma larga
contestam os pais — nós também não gostávamos de porta.” Naturalmente, sabia perfeitamente que a
tais passeios; mas, às vezes, tínhamos que fazer porta, que se fechou sobre ela durante a guerra, tinha
visitas, porém, não mais que uma vez cada três um tamanho objetivo (isto é, válido para todos) e cuja
meses. E, quanto ao que você diz a respeito das medida poderia ser controlada. O mesmo tamanho,
paradas e conversas com outras pessoas, nós com efeito, da porta que a surpreendeu em sua visita
detestávamos conversar na rua; apenas trocávamos posterior à guerra. Mas não era o tamanho que
algumas palavras com os conhecidos e, depois de um contava: no passado, que ainda a possui, a porta
ou dois minutos, continuávamos o nosso caminho”. continua larga: é a larga e alta porta que lhe tirou a
Este é um exemplo. liberdade. Poder-se-ia ainda dizer que, imediatamente
Por aí percebemos perfeitamente que não depois da guerra, ela poderia — e até mesmo deveria
somente os neuróticos mitificam o passado, pois é — considerar a porta larga e recordá-la como sendo
fora de dúvida que todo o mundo comete enganos larga. A diferença entre guerra e paz, entre ocupação
desse tipo. Pode-se mesmo dizer que o engano é a e liberdade, tinha sido tão real, que a porta da prisão,
regra. De fato, não há incidente algum da nossa tanto como qualquer outro objeto relacionado com
infância que possamos relatar, sem sermos criticados essa diferença, tinha que parecer grande. Esses fatos,
pelos nossos contemporâneos que se achavam que sensibilizam todos os holandeses, apresentam-se
presentes na ocasião. Críticas sobre a ênfase, com na aparência dos objetos. Quando fomos libertados, o
que os enfeitamos, contestações quanto à freqüência pão era mais branco do que nunca: é mesmo certo
que lhes atribuímos. O que relatamos nunca é que o pão jamais fora tão branco; tão certo também
completamente correto. ÀS vezes, somos nós mesmos que (assim o esperamos), nunca mais será tão branco.
os críticos da nossa memória. Uma pessoa que, Os aviões que traziam alimentos e voavam baixo
depois de longa ausência, venha a visitar os lugares sobre as cidades, nunca foram tão pesadamente
em que passou a infância, ficará certamente muito carregados, embora seja fato que hoje possam levar
surpreendida: os lugares lhe pareciam diferentes cargas três ou quatro vezes maiores. O passado tem
quando era criança. Eram mais íntimos, diz a pessoa uma tarefa. Enquanto essa tarefa não for cumprida, o
sã; mais desgraçados, diz o neurótico. A proporção passado se nos apresentará — a despeito de todos os
das casas, as suas portas e janelas. a largura e o controles — impregnado do sentido dessa tarefa. A
aspecto da rua, as luzes noturnas, os ruídos porta da prisão pode certamente ficar menor, mas
matutinos, a aparência que tudo revestia no verão e nada de medi-la com uma fita métrica. A prisioneira
no inverno; tudo era diferente, e com este daquela época talvez possa um dia sobrepujar o ódio
“diferente”, que não pode ser verificado, é que e a hostilidade face ao inimigo. Se isto acontecer,

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estará terminado o papel da porta da prisão, A porta ocorrido durante a sua doença. A explicação
voltará a ser uma porta normal; uma porta para todos costumeira é que o paciente estava recalcando esse
O caso das tardes de domingo, aqui relatado, período. Supõe-se que o incidente ou período tinha
faz surgir observações semelhantes. As recordações afundado no inconsciente e ali ficara depositado por
do rapaz não provam que haja algum defeito na certo tempo. Trata-se, às vezes, de períodos ou in-
capacidade humana de relembrar o passado. Ele não cidentes significativos, e mesmo de grande
deixa de recordar o passado, mas dá a esse passado importância, que ficam sepultados dessa maneira.
uma relação significativa. Demonstra que a sua edu- Mas, é este próprio fato que nos faz duvidar da
cação não foi uma seqüência de incidentes pouco correção do que está implícito na palavra “recalque”.
significativos (aliás, nunca é). Talvez demonstre ele, Como pode um paciente deixar de ter acesso a um
através das suas recordações, que ainda não está passado significativo? Além disso, como pode uma
completamente maduro. É também possível que, ao coisa ficar sepultada ou afundada? E ainda se pode
mencionar essas lembranças aos seus pais, esteja perguntar: afundada aonde? Que é o inconsciente?
desejando livrar-se da sua imaturidade. Se deixarmos de lado as hipóteses complicadas,
Quem, depois de anos de ausência, visita os deveremos confessar que tudo continua sendo
cenários da sua infância e repara que a sua memória enigmático. Segundo a explicação mais precisa que
conservou uma lembrança mais amiga e mais pode ser aceita para cada paciente.
agradável que a realidade agora observada, chega à Desde que a situação deste se torna mais
conclusão de que o passado tem um valor a ser clara, o passado não desempenha papel. Às vezes não
conservado. Dirá ele: “Talvez fosse melhor não ter desempenha papel no sentido de não dever
voltado aqui”, e ele terá razão: é conveniente que o desempenhá-lo e sempre deixa de desempenhar papel
passado fique como está. O neurótico, porém, está porque não pode desempenhá-lo. O presente impede-
errado quando evita os cenários da sua infância. Está o. O presente é de outra natureza, de natureza tal que
procurando escapar de um passado de natureza o passado constituiria um fator por demais per-
prejudicial. Talvez seja a ocasião oportuna para que turbador. — A mesma conexão existe, no que
veja seu passado sob uma luz diferente. Será útil que concerne à percepção. Aquilo que não está
consulte um terapeuta, para discutir com ele o desempenhando papel não é visto nem ouvido,
passado. Se, com essa discussão, sentir-se melhor, embora estímulos continuem sem dúvida a afluir ao
terá tornado seu passado mais acessível. Poderá então olho e ao ouvido. Isto significa que o impacto real
visitar os sítios em que passou a infância; porque dos estímulos se realiza, que o objeto da percepção
estar curado significa estar apto a mover-se. Talvez ali está, mas não a própria percepção. Cada um de
encontre mistérios em vários lugares, mas já não se nós vive numa casa que tem aspectos jamais
defrontará com portas fechadas. observados por nós, embora estímulos vindos desses
aspectos atinjam os nossos olhos talvez milhares de
Deixem-me resumir tudo isto como segue: O vezes. Nem tudo o que acontece é uma experiência.
passado não é a posse de um tempo passado. A (1) Isto é verdadeiro para a existência como tal e,
recordação não é a volta ao ancoradouro de engramas portanto, não requer explicação. Assim vivemos, com
correta ou incorretamente gravados. O passado é: o os objetos à nossa volta, com as pessoas que nos
que era, como parece agora. O que era: de fato, as cercam. Assim é a nossa relação com o nosso próprio
tardes de domingo eram ocupadas por passeios passado. Aquilo que não tem função, não tem
cerimoniosos; mas isto não é mais que um fato, realidade. Está ausente. Está apenas presente como
esqueleto do passado. Se esse esqueleto tiver de fato bruto ou condição. A vida terá que decidir se
reviver, necessitará de carne e sangue. O passado, este fato ou esta condição devem transformar-se em
que é real, é real agora. O fato de ser real desta realidade. A vida também terá que decidir como a
maneira não é desprovido de sentido. O passado condição se torna realidade. Não nos é dada a
desempenha um papel, tem que preencher uma tarefa recordação pura e simples. As nossas recordações
atual, para melhor ou para pior. Se o passado não tem têm um motivo. É este motivo que decide a natureza
tarefa alguma a cumprir, absolutamente nenhuma, da recordação: encantadora, deliciosa, agradável,
então ele não está aí; então recordação alguma desse desapontadora ou aborrecida.
passado é possível. O motivo é que decide o passado; o leitor é
convidado a examinar as palavras motivo e passado,
A clínica psiquiátrica oferece surpreendentes o que significa que, enquanto até agora esta discussão
exemplos disso. Os pacientes neuróticos, como era a respeito do passado, está chegando
também os psicóticos, são capazes de esquecer naturalmente ao futuro. O motivo é o futuro. Será que
acontecimentos significativos. Às vezes, parece que é o futuro que decide do passado? Vejamos se isto é
períodos inteiros foram apagados, mas quando o verdade. Para isso, deixemos de lado a relação entre
paciente melhora, torna-se evidente que esses pe- presente e passado e dirijamos nossa atenção para o
ríodos não desapareceram completamente; o paciente
1
começa a falar de assuntos que não lhe tinham E. Straus, Urschelmis tind Erlebnis, Beriim, 1930.

28
significado do futuro. Que significa a palavra futuro? outra, de um país para outro ou de um para outro
Que nos ensina a psicologia, de modo geral, sobre o psiquiatra. Variam conforme as opiniões, de modo
futuro? que se pode presumir que a preferência pelo passado
A primeira coisa a responder é que a não foi, em primeiro lugar, uma preferência do
psicologia pouco tem a dizer sobre o futuro. paciente mas, principalmente, uma escolha do
Enquanto cada um de nós pensa muito mais nas terapeuta; surge então a questão de se saber por que
coisas por vir do que nas coisas já passadas, a motivo o terapeuta adotou essa preferência. A
psicologia consegue dizer muito sobre o passado, e resposta é a seguinte: o terapeuta sentiu a preferência
pouquíssimo sobre o futuro. Poderá a causa desse pelo passado porque se acostumou, de modo geral, a
fato notável ser atribuído a que a (moderna) acompanhar a linha de 'pensamento da evolução.
psicologia originou-se parcialmente da experiência Estamos ainda bastante ligados ao período em que
dos psicoterapeutas? O indivíduo neurótico muito triunfou a teoria da evolução; isto facilita a
tem a dizer sobre o seu passado, e muito pouco sobre compreensão desse modo de pensar. Tudo o que
o seu futuro, embora, ao que parece, a julgar por existe, veio a existir, é este o princípio básico dessa
recentes publicações, as coisas estejam mudando. Os corrente de pensamento. Para poder compreender al-
livros e os artigos representativos do começo deste guma coisa, o indivíduo tem que compreender a
século até o fim da terceira década podem ser origem dessa coisa. Ou, em outras palavras, tudo é a
perscrutados sem que se encontre uma única conseqüência de um desenvolvimento; a fim de
declaração sobre o futuro, a não ser algumas podermos compreender o presente, precisamos
referências nas quais o futuro é rejeitado. Certas investigar a condição que o precedeu. Que o presente
vezes, isto é feito com tamanha ênfase (1) que não se possa ser compreendido como resultado do presente
sabe quem era mais adversário do futuro, o paciente é um conceito que, mesmo para nós, não é óbvio a
ou o seu terapeuta. A princípio, e até trinta anos atrás, primeira vista. Ainda mais difícil é acreditarmos que
o terapeuta procurava com afinco manter-se o presente possa ser feito pelo futuro. Corno se
silencioso sobre o futuro (não há outra maneira de poderia conceber isto? A idéia de que o presente seja,
declarar isto); hoje, as suas objeções parecem ter até agora, a última fase de um processo de
desaparecido, em larga proporção. O paciente tem desenvolvimento, é muito mais fácil de ser entendida.
acompanhado esta preferência: a princípio só falava Todavia, aquela idéia inconcebível é
sobre as coisas do passado mas, recentemente, tem comprovada pela vida de todos os dias. Quando uma
encontrado as palavras para expressar o seu futuro. pessoa sai de casa, sai para fazer compras; isto é, sai
— Forçoso é admitir, porém, que o paciente segue para praticar uma ação no futuro. É verdade que
geralmente as preferências do seu terapeuta; do alguém, em casa, poderá ter dito: “Faça o favor de
contrário, não poderia sarar. Se o terapeuta for da comprar tal e tal coisa para mim”; porém, até o
escola de Jung, o paciente terá sonhos arquetípicos; momento em que o pedido se torne tarefa claramente
se for um adepto de Sartre, os sonhos do paciente definida e que tem de ser realizada — como futuro da
serão existencialistas. O paciente procura inserir sua própria pessoa — a pessoa fica em casa. Até uma
doença dentro da linha de preferências do médico, a pessoa expulsa da sua casa por um incêndio, tem
fim de poder curar-se dentro dessa experiência. pressa de retirar-se: é assim que ela estará em
Mesmo o paciente que sofre de séria doença segurança. É duvidoso que exista um ato qualquer
psiquiátrica incurável pode às vezes, dentro de certos que seja determinado somente pelo passado. As
limites, seguir as preferências do seu médico. Todo condições da decisão são dadas pelo passado, mas o
paciente sofre, além da sua enfermidade em si, da ato, em si, origina-se do futuro, da expectativa, da
doença que existe na opinião do seu médico. Sofre da vontade, do medo ou do desejo. Isto é verdadeiro
doença que existe na teoria do seu médico, embora para toda a vida; se o passado fornece as condições
seja esta uma expressão muito estranha. Sofre até para o que vai acontecer na vida, são os próprios atos
mesmo das moléstias expostas nos manuais; isto é da vida que estão enraizados no futuro. O mesmo
verdadeiro para todas as doenças, mas sobretudo para pode ser dito para as existências perturbadas. O
as doenças psiquiátricas. Este fato teve, e ainda tem, passado fornece as condições para a neurose, mas
importantes conseqüências para a história da esta se origina das condições inacessíveis ou
psiquiatria. Sintomas aparecem e desaparecem de dificilmente acessíveis do futuro. — Os primeiros
acordo com a mutável opinião histórica do psiquiatra terapeutas (vinculados a Darwin, Spencer e Jackson)
(sua maneira de agir e de falar), embora haja sempre não acreditaram nisso porque os seus pensamentos
um elemento essencial da moléstia que continua estavam condicionados pela teoria da evolução.
inalterado. Esta flutuação dos sintomas sobre a Havia outro motivo, embora relacionado com
teoria adotada, torna-se mais aparente nos casos de o evolucionismo, para que o terapeuta se interessasse
neurose. Os sintomas variam de uma época para pelo passado. O que aconteceu, aquilo que foi, está
fixado. Não somente como incidente que ocorreu,
1
Refiro-me à rejeição da teoria de A. Maeder sobre a Interpretação
mas também como impressão no cérebro, como
prospectiva do sonho. engrama. O que é, o que está acontecendo, não está

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fixado. O que é está sendo fixado, também como quintal, por exemplo. O futuro nunca se origina de
impressão no cérebro. O que está por vir, não está uma subjetividade puramente pessoal. Mesmo a
fixado de modo algum, pelo menos não como pessoa que está planejando em silêncio, está
impressão, nem como engrama. Como, então, pode destinada a influir sobre o próximo mais cedo ou
qualquer coisa se originar dele? Nada, só pode mais tarde; esse próximo que será finalmente
resultar em outro nada. Onde não há memória, nem incluído em seus esquemas. Outrossim, cada qual que
impressão no cérebro, nem engrama, nem matéria, se associa com outras pessoas está realizando um
tampouco pode haver o começo de qualquer coisa, futuro, por insignificante e próximo que seja; pode
pois nada há que possa servir de ponto de partida. Se ser até mesmo o futuro representado por uma rápida
a anatomia do cérebro tem que ser nosso guia, não resposta do caixeiro de uma mercearia. O futuro está
podemos encarar o futuro de outra maneira. Aí está o estreitamente ligado com outras pessoas e também
cérebro, ou melhor, aí estão as impressões de ontem, com outras coisas; tão estreitamente como estão
aí estão as de anteontem, as da infância, como ligados os engramas e o indivíduo solitário. Os
também aí está o lugar em que as impressões de hoje engramas são a propriedade do indivíduo, encerrados
serão registradas. Os fatores determinantes do futuro, numa caixa chamada cabeça. Isto quer dizer que o
mesmo quando se trate de felicidade ou de infortúnio, anatomismo significa individualismo. Deste modo os
são decididos pelo material que aí já se acha; pelas três 'ismos” — evolucionismo, anatomismo e
impressões de ontem, pelas recordações da infância e individualismo caminham juntos. Foi por estes três
por impressões parciais do presente. Nada mais há “ismos” que foram determinadas as doutrinas sobre o
que se possa utilizar e, portanto, outra coisa não há tempo.
que possa decidir a felicidade ou o fracasso no futuro. E que acontece sem esses três “ismos”? Um
O futuro é uma parte do cérebro que ainda não foi exemplo pode aplainar o caminho.O Sr. X acorda de
gravada, portanto nenhum impulso pode originar-se manhã. Antes de levantar-se, pensa alguns
dela. Os primeiros terapeutas foram vítimas desse momentos, imaginando o que o dia vai lhe trazer Não
anatomismo e o mesmo aconteceu com toda a gente precisa de muito tempo para isso. Na véspera, ou
naqueles dias. Ainda hoje, somos mais ou menos talvez alguns dias antes, já preparara os planos para
vítimas do anatomismo. Pode realmente o leitor esse dia, ou tais planos foram-lhe impostos pelas
acreditar que partículas indeterminadas do cérebro circunstâncias. Foi o passado que moldou o seu dia.
exerçam influência sobre nosso comportamento? Até O Sr. X entra num dia que já recebeu uma certa
há pouco, qualquer manual de psicologia começava forma. Pode ocorrer-lhe que a maneira como vai sair
com um capítulo sobre a anatomia do cérebro. da cama está relacionada com a forma que esse dia já
Primeiro a substância, depois o que acontece com recebeu. Há dias que o afetam de tal maneira que ele
esta substância e, finalmente, a repercussão psíquica pula da cama rapidamente. Outros dias são menos
desses fatos — mesmo sendo ilusória esta seqüência. convidativos, de modo que é necessário mais tempo
Contudo, aprendíamos a pensar desse modo. Assim para que uma perna acompanhe a outra fora da cama;
era o futuro: o que resultasse dos engramas, ou seja, há mesmo certos dias em que o Sr. X vira-se
uma extrapolação. novamente entre os lençóis, como se o dia não tivesse
No entanto, até mesmo uma simples ainda começado.
comparação resulta em outras conclusões. Todos nós Este exemplo, tão comum, que é conhecido
sabemos que os outros são capazes de dar um rumo de todos nós, demonstra que o futuro dificilmente
diferente ao nosso destino. Por exemplo: recebemos pode ser uma entidade obscura e irresoluta. O futuro
uma carta, convidando-nos a comparecer em tal lugar é real, tão real que, de manhã, o Sr. X fica
e conversar sobre a possibilidade de conseguirmos completamente condicionado por ele. Isto é possível
outro emprego. Nesse momento, modifica-se toda a porque existe uma conexão muito estreita entre
nossa perspectiva. Será isto resultado dos engramas, presente e futuro. Com o auxílio do nosso exemplo,
ou da carta que nos foi enviada por pessoa isto pode ser demonstrado mais precisamente. A
desconhecida? Neste caso é evidente que não há relação entre presente e futuro é de tal natureza que o
engramas. Pois bem, assim é que o futuro se presente envolve o futuro, pois o Sr. X, ao levantar-
apresenta; está fora da esfera da nossa pessoa, da se, não se deixa influenciar por aquilo que vai
mesma forma que aquela carta; age independente- acontecer realmente no decorrer do dia; uma coisa
mente de qualquer engrama e decide do nosso desse gênero seria realmente inconcebível. Aquilo
presente: o futuro é o fator primordial. que vai acontecer mais tarde, ainda não chegou e,
sendo inexistente, não pode produzir efeitos. É muito
O futuro, ou a carta de outra pessoa — possível que o que vai acontecer realmente nesse dia
existe aí alguma verdadeira diferença? A carta não concorde em absoluto com o estado de ânimo
convoca o futuro, o futuro invocado pelo signatário matutino do Sr. X.
da carta, isto é, por outra pessoa. O futuro também O futuro é o que está por vir, como está
pode ser concretizado por outra coisa: a descoberta vindo ao nosso encontro agora; sublinhando-se
de um tesouro ou de um poço de petróleo em nosso agora e vindo. O futuro está vindo em nossa direção;

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é Zukunft, avenir. Essas palavras expressam curta análise pode ser resumido como segue: Passado
movimento. Pensando no futuro, o tempo corre para e futuro não são duas esferas distintas que se estejam
nos encontrar e nós já estamos aí, no tempo que está tocando num ponto zero, chamado presente.
vindo para nós. Antes que o Sr. X se levante da cama, Realmente, o passado e o futuro diferem: o passado
o dia chegou; ele já estava dentro do dia, antes que o está aí, atrás de nós, o futuro ali adiante, à nossa
dia chegasse. frente. Todavia, ambos têm um valor atual; futuro e
passado estão incorporados num presente. O presente
Antes de sair da cama e começar a se tem dimensões; às vezes ele contém uma vida toda e,
movimentar em seu quarto, ele penetrou no dia. excepcionalmente, pode conter um período mais
Outro exemplo: ninguém se atira no rio para nadar se, longo que uma existência individual. O passado está
de certa outra maneira, já não se acha dentro do rio. dentro deste presente: é aquilo que era, da maneira
Que uma pessoa já esteja aí à vontade e que outra como está aparecendo agora. E o futuro, o que está
esteja hesitando, verifica-se pela maneira com que vindo, da maneira que está nos encontrando agora (1).
ambos se atiram à água. O primeiro pula dentro da Este aparecimento e este encontro estão
água, o segundo se introduz cautelosamente no intimamente relacionados. O passado aparece no que
elemento que lhe parece frio e perigoso. está vindo ao nosso encontro; se não aparece, está
ausente. Assim pois, realmente, o passado é o que se
Ninguém viaja para outro país, se já não estende atrás de nós, mas somente porque um futuro
estiver naquele país, mesmo quando ainda não o permite que aí se estenda. E o futuro está aí adiante, à
conhece. O futuro sempre tem o sentido ligeiramente nossa frente, mas somente porque é alimentado pelo
paradoxal de ali nos encontrarmos a nós mesmos. O passado. O presente é então o convite vindo do futuro
viajante já está ali; agora que o seu trem está para ganharmos o domínio dos tempos passados.
atravessando aquele país, o viajante está se Torna-se agora claro porque o neurótico (e muitas
encontrando a si mesmo; está encontrando o “eu” que vezes o psicótico) se preocupa com seu passado, o
mandou para aquele país antes de embarcar em seu passado que, para ele, se assemelha a um caos. O
trem. futuro tornou-se inacessível; pois um futuro acessível
Com tudo isso, o passado não fica sem significa um passado bem ordenado.
função. O nadador que penetra na água com Para efeito de clareza, a “explicação sem os
relutância deve ter algum motivo histórico. três ismos” foi restrita às experiências individuais.
Experiências anteriores, histórias que ouviu a Para suprir essa deficiência, apresentarei o próximo
respeito de mergulhos e afogamentos, fazem com que exemplo.Numa' fábrica, um operário cai da escada e
o seu ser já se encontre na água e, em conseqüência, quebra a perna. É levado ao hospital, onde a fratura é
ele penetra na água com muitas precauções. O reduzida e, depois de alguns dias, o operário, ainda
passado o está encontrando, vindo do futuro. mancando, tem permissão para voltar para casa.
Também o exemplo dado pelo Sr. X ao levantar-se Algumas semanas mais tarde, é informado de que a
conduz a essa conclusão. Penetra num dia que se está fratura se consolidou e que pode voltar ao trabalho.
iniciando e que foi modelado pelo passado. Se algum Nesse mesmo dia, descobre que a perna ainda dói.
passado não tivesse modelado o seu dia, ele não teria Consulta o médico da fábrica e é aconselhado a
razão alguma para levantar-se e, provavelmente, teria trabalhar meio período por mais uma semana, mas
ficado na cama. Mas è igualmente verdade que, se o também isto é impossível. O operário fica em casa, é
seu passado não fosse encontrar-se com ele no dia censurado pelo controle médico, mas persiste nas
que está por vir, este passado não existiria. A mesma queixas, mostrando-se incapaz de trabalhar e sendo
relação pode ser estabelecida na vida de um finalmente encaminhado para o hospital para um
indivíduo perturbado, mostrando-se, neste caso, de exame completo. Nem os exames, nem as chapas de
modo mais agudamente definido, até mesmo de raios X revelam qualquer defeito. Dizem ao paciente
modo por demais definido. O neurótico, que foge da que tudo está em ordem e que nada o impede de
discussão do seu problema, está trazendo as suas voltar ao trabalho. O paciente não se convence.
experiências anteriores para a futura discussão com Declara estar incapacitado de trabalhar. Fica em casa,
tanta convicção que resolve cancelá-la, para arrastando a perna e queixando se a todos que lhe dão
finalmente, depois que cancelou o encontro, tornar-se ouvidos. Que aconteceu?
incapaz de compreender que foi o passado que o Uma investigação na história do paciente
induziu a proceder desse modo. É até mesmo revela que sofreu de vários conflitos antes do
possível que, quando perguntado a respeito, nada acidente. Não estava satisfeito com seu trabalho,
conheça sobre o seu passado. O futuro, ou seja, a havia tensões entre ele e seu empregador e em geral
discussão do seu problema, cancelou o seu passado. não sabia bem o que fazer da vida. Não deixava de
Muitos anos podem desaparecer dessa maneira, o que haver relações entre esses aspectos. Quais eram essas
significa que um futuro não é possível. Os anos relações, não interessa saber aqui; o que interessa é o
retornam tão logo o futuro, de onde esses anos têm
1
que reaparecer, tornou-se acessível. O resultado dessa Cf. M. Heidegger. Sein und Zeit, Halle, 1927.

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fato de que, antes do acidente, o paciente tinha estado solução muito melhor teria sido resolver os seus
em dificuldades e que essas dificuldades eram conflitos no serviço ou, se fosse necessário, procurar
estreitamente ligadas aos seus contatos com outras outro emprego. Poderia também divorciar-se e casar
pessoas. Dificuldades com seu empregador, conflitos de novo e modificar todo seu ambiente, se fosse
com seus colegas, dissenções com os membros da preciso. Tudo isso, porém, é fácil de dizer. O
sua família, complicações com todo o mundo. operário era uma “pessoa difícil”. Sabemos como
Quando caiu da escada, caiu para fora das suas di- teria sido difícil para ele uma simples mudança de
ficuldades. É certo que fraturou a perna e que isto emprego. Procurou então o caminho mais fácil,
doía. Gemia e suspirava, mas isto não alterava o fato talvez o único caminho. Foi quase obrigado a
de que, ao mesmo tempo, inaudivelmente, ele encontrar a espécie de distúrbio que somente a fratura
suspirava de alívio. lhe poderia proporcionar e que o manteria afastado
No hospital, a fábrica estava bem longe, dos conflitos. Obrigado a encontrar: estava (embora
como também a família; o paciente sentia-se não completamente) obrigado a fazer uma (também
perfeitamente confortável no hospital. Mal melhorou, não completa) escolha.(1)
começaram a voltar as complicações. Será então de Reexaminemos toda a situação: na fábrica
admirar que o seu estado melhorasse tão lentamente e (deixaremos de lado os outros conflitos) o operário
que continuasse a se queixar? Uma dor ligeira trabalhava numa atmosfera de conflito. Admitindo
transformava-se nele em dor insuportável; pequena que a situação, na fábrica, fosse realmente difícil,
dificuldade no andar transformava-se em manqueira. devemos reconhecer que o paciente não reagiu de
Cada um de nós já passou, provavelmente, por maneira adequada e favorável. Os outros operários
experiência deste gênero. Se acordamos de manhã conseguiam agüentar, sob as mesmas condições. Se a
com ligeira dor de cabeça, sentimos essa dor com relação entre o homem e o seu ambiente humano for
mais intensidade, quando o dia se nos apresenta com comparada com um diálogo, o diálogo entre esse
aspecto pouco promissor; ao contrário, quando as operário e o seu ambiente transformou-se em disputa,
expectativas do dia são agradáveis, quase esque- mesmo que não tenham sido trocadas palavras duras;
cemos a dor de cabeça. Não seria certo presumir que, é até provável que não tenha sido dito número
no primeiro caso, estejamos fazendo exibição e que, suficiente de palavras ásperas. O trauma — a fratura
no segundo, estejamos fazendo pouco caso de uma — recebeu o seu significado dessa disputa: foi um
dor verdadeira. Não existe dor que não contenha algo sério trauma, um trauma seríssimo, a dor foi intensa,
em si. A dor tem um significado, que está pelo que se via da expressão do rosto da vítima; seu
habitualmente em harmonia com o conjunto da nossa desespero tornara-se óbvio para todos. O trauma
vida. Isto não quer dizer que a pessoa feliz não sinta tinha de desempenhar um “papel, como tudo na
dores, mas que as suporta de maneira diferente que a existência humana. O papel desse trauma consistiu na
criatura infeliz. eliminação de uma relação conflitante. O trauma
O que aconteceu ao operário pode ser precisava manter o operário afastado da fábrica,
resumido como segue: Quando, depois da redução da afastado da associação conflitante que tinha tomado o
sua fratura, viu-se numa cama de hospital, o seu lugar do seu trabalho. Mas o resultado foi que o
passado tinha sido enriquecido por um incidente paciente não melhorou. Do ponto de vista médico, é
significativo: a queda e a fratura. As semanas de certo que a sua perna sarou mas, enquanto o conflito
inação que o aguardavam, tinham sido determinadas de relações continuava a atuar, a perna tinha que
pelo acidente. Mas como? O paciente tinha que es- manter o seu papel; em outras palavras, como o
colher. De que maneira iria levar esse acidente para conflito não estava resolvido, a dor e a coxeadura se
seu futuro? E em que forma? — Da forma que mantiveram. A recuperação do paciente não será
tornasse seu futuro mais aceitável, o que no seu caso encontrada apenas na cura da fratura, mas na solução
(lembremo-nos das suas dificuldades e da sua do conflito entre ele e a fábrica; pois é esse conflito
personalidade!) significava na forma de uma situação que alimenta o trauma. As relações erradas tornaram
grave: muito sofrimento e muitos tropeços para sua o trauma sério e assim continuam a mantê-lo.
locomoção. Pode ser dito que o paciente não fez uma Gostaria de ponderar por mais um momento as pala-
escolha feliz. Uma existência com dores e coxeadura vras: o conflito é que alimenta o trauma.
(pois as dores e a coxeadura não são simuladas, o Quando, durante o registro de uma “história
paciente está realmente sofrendo), não possui de vida” ou no decurso de um tratamento
encantos para ninguém. psicoterapêutico, verifica-se que o pai desempenhou
Mas a sua existência antes do acidente papel significativo e desfavorável na vida do
conhecia outras penas e outras coxeaduras: a dor da neurótico, não nos cabe presumir, por enquanto, que
constante humilhação e a manqueira de uma vida dito pai tenha sido o obstáculo no desenvolvimento
escravizada. Estas dores e estes defeitos eram mais favorável do seu filho, mesmo que lhe tenha dado
difíceis de suportar. Assim, devemos reconhecer que educação objetivamente má. Uma pesquisa
o operário escolheu certo. Ou melhor, escolheu certo,
1
mas de um ponto de vista muito limitado, pois, Cí. J. P. Sartre, L'Être et le Néant, Paris, 1943.

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cuidadosamente levada a efeito junto de outras fontes momento do incidente e, de novo, mais tarde, talvez
pode vir a demonstrar, perfeitamente, que o pai não muito mais tarde e, quiçá, cada vez de modo
cometeu mais erros durante a educação do seu filho diferente. Ele determina (com pouca liberdade) a
do que a média dos outros pais; pode mesmo se dar o maneira com que o pai olha para ele e fornece o
caso de que o pai tenha desempenhado com sucesso significado de tudo o que aconteceu entre eles. Se o
os seus deveres paternos. Também não se justifica a contato entre eles sofreu perturbação, sente-se
presunção de que os erros cometidos pelo pai (todo compelido a determinar desfavoravelmente o
educador comete enganos), tiveram efeitos tão significado do incidente. Se o contato for correto, o
prejudiciais como o paciente quer nos fazer entender. incidente terá significado positivo. Não é necessário
É muito possível que os equívocos pertençam à que os incidentes recebam o seu significado na época
categoria de erros, incompreensões e frustrações, da sua ocorrência. O incidente recebe geralmente a
inerentes a qualquer tipo de educação. Se, induzidos sua significação principal durante o período de
pela evidente honestidade do paciente, tivermos ten- amadurecimento. Se o amadurecimento falha, isto é,
dência a duvidar dos dados fornecidos por outras se a relação entre pai e filho, que deve chegar a
fontes, teremos ainda que ponderar que, geralmente, conclusão satisfatória durante o período da
o paciente tem irmãos ou irmãs que não se tornaram puberdade, chegou a um beco sem saída, este
neuróticos apesar de possuírem o mesmo pai; fracasso passa a modificar todos os incidentes que
também não é muito freqüente que o paciente seja o tiveram lugar, anteriormente, entre pai e filho. Pare-
mais velho ou o mais novo dos filhos, ou o único ce-me que toda a gente já conheceu semelhantes
menino ou a única menina, de modo que o compor- mudanças pela sua própria experiência, porque esse
tamento excepcional do pai possa ser atribuído à fato (se é que existe) não é especificamente
posição excepcional da criança na família. E, se ainda neurótico. Uma pessoa que entra em conflito com um
houver alguma razão para pôr em dúvida os dados velho amigo e que já não confia nele, tende a
das outras fontes, será bom recordar que, entre as interpretar diferentemente os incidentes do passado.
muitas crianças que tiveram educação Verifica que os incidentes estão se apresentando sob
indiscutivelmente má, somente pequena porcentagem nova luz. O namorado sente-se inclinado a interpretar
chega a consultar o psicoterapeuta. Sem querer favoravelmente tudo o que aconteceu entre ele e a
minimizar a importância da boa ou da má educação, sua namorada antes que se apaixonassem. Procura
temos que concluir, baseados também nas numerosas igualar o passado com o presente do seu amor,
publicações dedicadas a este assunto, que não há descobre indicações de afeto num período em que
razão para dar às neuroses o carimbo de não havia qualquer sinal de amizade e no qual,
conseqüência educacional. Com maior razão, o portanto, qualquer indicação está objetivamente
mesmo pode ser dito quanto às psicoses. ausente (isto é: ausente para os outros).

A única conclusão que se pode tirar com Nestes casos, Dupré fala em mitificação do
certeza da história do paciente, é que o contato entre passado. Poderiam também ser chamados lembrança
o paciente e o seu pai está seriamente perturbado. ilusória ou falsificação de memória. Mas estas
Naturalmente, o pai deu motivo para isso; ele palavras e outras similares não dão impressão correta
realmente praticou erros (e qual o pai que não os do que está acontecendo. A perturbação no contato
pratica?). Mas a criança deve ter reagido de maneira entre pai e filho não é mito, é realidade.
excepcional: transformou- os equívocos em erros Esse gênero de contato é tão real quanto os
graves, erros irreparáveis. Desse modo, a disputa contatos não perturbados entre pais e filhos. Portanto,
entre pai e filho cresceu, e tudo o que ocorreu entre a mudança de natureza dos incidentes do passado não
eles recebeu sua significação de fatos alheios a essa pode ser chamada de mitificação desses incidentes.
disputa. Quando o paciente diz que o pai o tratava Esta mudança é uma mudança para nova realidade; a
cruelmente, está falando a verdade, mesmo se uma realidade necessária no contato perturbado. Digo-o
testemunha pudesse descrever o incidente mais uma vez: o paciente não está se enganando a si
mencionado como “uma simples pancada de régua mesmo, quando fala de trauma; está contando a
nos dedos da mão”, aliás bastante necessária. Nesse verdade quando relata o seu passado com seu pai.
contexto, a reguada nos dedos tem o significado de Palavras tais como “mitos” e “lembranças ilusórias”
umas lambadas ou de uma violenta surra. A pressupõem a existência de um passado de uma só
perturbação nos contatos transforma um simples tapa forma, a forma observada por uma testemunha sem
em ato nocivo. Desse modo, um sorriso transforma- emoção nem preconceitos no momento que o
se em riso de escárnio, uma observação trivial em incidente ocorreu. Pois bem, este passado destituído
áspera censura. O contato dá origem ao trauma de preconceitos não existe.
(embora a condição nunca esteja ausente). O tratamento do paciente, por conseguinte,
não consiste em liberá-lo do seu trauma infantil, mas
Em outras palavras: é o filho que determina a em liberá-lo do significado desses traumas por meio
natureza da pancada nos dedos; assim o faz no da sua libertação do contato perturbado, neste caso o

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contato com seu pai. Durante o tratamento, o paciente deve ser promovida por ele mesmo. É o paciente que
aprende a ver o passado de modo diferente. No carrega o fardo do seu passado. É ele que deve
consultório do psicoterapeuta, recapitula, falando, sua assinar outro papel ao seu passado.
infância e sua vida toda e, ao fazer isso, torna-se-lhe O psicoterapeuta é a pessoa sob cuja
claro que a sua vida poderia ter sido diferente e, orientação isto acontece; conhece o método, que é
consequentemente, ainda pode tornar-se diferente, aceito pelo paciente. Assim pois, o paciente é que se
tornar-se melhor. O paciente modifica seu passado e, torna responsável pela própria cura. Significa isto que
ao fazer isso, dá ao seu futuro (de onde o seu passado ele deve ser considerado culpado pela sua neurose?
se apresenta a ele) uma nova conformação. É quase Não, sem dúvida alguma. Significa que o terapeuta
evidente que o paciente confronta seu psicoterapeuta desempenha papel passivo no processo de recupera-
com as mesmas atribuições desfavoráveis com que ção? Também não; nem é passivo, nem o paciente é
enfrentava seu pai. Precisa de alguém, em quem culpado. O paciente caiu num impasse, sem qualquer
possa “corrigir” seu pai. Todavia, aos olhos de uma culpa, devido apenas à sua natureza, o que não exclui
testemunha imparcial, o paciente não tem causa ver- a cura da sua condição neurótica. Está procurando
dadeira, ou real motivo para essas atribuições levar a efeito a sua cura, dentro da sua própria
desfavoráveis, que se possam deduzir das existência. Nesse tratamento, ele modifica os papéis
características do terapeuta. Tampouco terá tido das pessoas que presidiram à sua infância. O
motivos de acusar o pai, baseados nas características terapeuta também toma parte nessa cura. Doença e
deste. O pai apenas deu ensejo a essas acusações; cura se realizam juntamente com outras pessoas.
como educador, tinha uma tarefa a cumprir e toda a Nessa descrição propositalmente neutra, nem o
gente que tem uma tarefa comete enganos. O paciente, nem qualquer outra pessoa é culpada ou
psicoterapeuta também tem uma tarefa e, por isso, responsável. Os termos culpa e responsabilidade são
também comete erros. As suas palavras serão mal enganadores, no que concerne à neurose e à
interpretadas pelo paciente pelo mesmo motivo que psicoterapia. Em geral, essas palavras não se
levou este a formar opinião desfavorável a respeito justificam em psiquiatria. É preferível não usá-las.
de seu pai; o paciente transforma os erros do contato Tampouco são necessárias no esquema deste
psicoterapêutico em erros verdadeiros. Mas, no que capítulo, cuja conclusão é a seguinte: o paciente é o
concerne ao contato com o pai, com a seguinte dono do seu tempo.
diferença: o terapeuta, com a sua rotina metódica, A pessoa sã é algo mais que simples dono. É capaz
consegue desenredá-lo das peculiaridades do seu de fazer alguma coisa com seu tempo, sem restrições
comportamento. O paciente é posto em confronto neuróticas. Em sua existência as palavras culpas e
com o seu distúrbio de contato. O paciente não responsabilidade são certamente válidas.
transfere para o psicoterapeuta o afeto que tem para Tais são as conclusões a respeito do tempo,
com o pai; semelhante coisa seria realmente impossí- que convergiram para permitir algumas observações
vel. A relação neurótica com o pai e a relação sobre culpa e responsabilidade, duas palavras
neurótica com 0 psicoterapeuta têm, porém, um freqüentemente mencionadas (muito facilmente e
aspecto comum, ou seja, a sua perturbação de contato com pouca justificação) em conexão com a neurose.
em geral. O fato de estar em maus termos com seu O próximo capítulo é dedicado a alguns assuntos
pai é um mau efeito da sua perturbação geral de particulares, até aqui apenas mencionados, que estão
contato; é esse mesmo distúrbio que provoca as suas em contato imediato com a doença do paciente deste
dificuldades de contato com o psicoterapeuta. livro e que, além disso, não devem faltar num breve
Poder-se-ia observar que, nessa ordem de ensaio de Psicopatologia.
raciocínio, grande responsabilidade é conferida ao
paciente. Mas, quando o médico aceita o paciente
para tratamento, nada mais faz que isso. Nada se
pode fazer a respeito do passado como realmente CAPÍTULO III
aconteceu. O passado está terminado e ultrapassado
e, além disso, o paciente é adulto. O pai e todas as
pessoas que o rodeavam na infância já CONSIDERAÇÕES
desempenharam seus papéis. E, se por um absurdo,
pudéssemos conceber a possibilidade de mudar as
COMPLEMENTARES
condições da infância do paciente, ninguém desejaria Na primeira parte deste livro, os males do
provavelmente fazer qualquer mudança pois, nas paciente foram classificados sob títulos que mais se
circunstâncias da sua infância, ninguém encontraria adaptavam ao seu relato. Havia quatro grupos de
os fatores capazes de explicar alguma neurose. Mais males: os referentes aos objetos (concernentes ao
uma vez devo repetir que não se podem colher louros ambiente material, ao mundo — como é geralmente
do passado, tal como foi. Assim mesmo, o terapeuta, chamado nas publicações fenomenológicas), os
ao propor um tratamento, durante a própria conversa referentes ao corpo, os relativos às relações com
explica ao paciente até que ponto a sua recuperação outras pessoas e aqueles relacionados com o passado

34
e o futuro. Para cada um desses grupos, parecia talvez nenhuma. Está isolado. Sente-se solitário.
existir uma palavra apropriada: projeção, conversão, Pode manter-se afastado durante uma conversação.
transferência e mitificação ou falsificação de Às vezes, nenhuma conversação com ele é possível.
memória. Essas palavras são claras e práticas e, no Parece estranho, misterioso, às vezes inescrutável. A
tocante às teorias que representam, aproximam-se variedade não tem fim — mas a essência permanece
muito da doutrina filosófica que pretende ser a vida a mesma. O paciente psiquiátrico está isolado. Daí
humana a existência de um sujeito sem história, é que vem o seu mundo diferente. As casas se in-
vivendo num corpo estranho, rodeado de objetos clinam para a frente, as flores não têm graça. É por
estranhos, entre os quais se encontram outros isso que o seu corpo também parece diferente. Dói-
sujeitos, todos sem história e contidos do mesmo lhe o coração e as suas pernas estão fracas. Daí o seu
modo em corpos estranhos. passado diferente. A sua educação falhou. Daí as suas
Esta imagem não corresponde com a vida dificuldades com as outras pessoas, sendo que este
como a conhecemos; a teoria implícita nessas quatro último mal engloba todos os outros. Está isolado, está
palavras continua obscura. É obscuro como um solitário. A solidão é a essência da sua doença, seja
sujeito destaca algo de si mesmo e remove esta coisa qual for o diagnóstico. Assim pois a solidão é o fator
imaterial de modo a ligá-la, finalmente, a um objeto essencial da psiquiatria. Se a solidão nunca ocorresse
material. Igualmente obscura é a idéia de que um na existência humana, poder-se-ia admitir que os
sujeito anima um corpo, que um sujeito troca outros distúrbios psiquiátricos seriam desconhecidos, com
sujeitos uns pelos outros e que um sujeito falsifica o exceção de algumas doenças causadas por defeitos
seu passado. anatômicos ou fisiológicos do cérebro.
É muito notável, outrossim, a quantidade de Existem pacientes psiquiátricos cuja
coisas que estas mesmas palavras negam. A palavra existência é tão solitária que é quase impenetrável
projeção nega o que o paciente percebe. A palavra pelas pessoas mentalmente sãs. Isto é verdadeiro
conversão nega o que o paciente sente fisicamente. O especialmente para o esquizofrênico e, em geral, para
termo transferência nega o que o paciente encontra todos os pacientes que sofrem de alucinações ou
em outras pessoas e o vocábulo mitificação denega o ilusões. Não seria correto da minha parte se, neste
que o paciente relembra. Quatro vezes não, no que se ensaio de Psicopatologia, conciso porém geral, eu
refere aos males do paciente. Não lhe resta senão silenciasse sobre estes dois sintomas, que
sofrer dentro do domínio chamado sujeito, do qual desempenham papel tão importante na literatura
não se sabe o que contém. psiquiátrica e que deram origem a tão grandes
Finalmente, há a dificuldade consistente em controvérsias teóricas. Vejamos primeiro a alu-
que, com estas quatro palavras, desaparece a cinação.
diferença entre o estado normal e o patológico, A definição mais antiga (*) é a de que a
porque, a mantermos esses vocábulos, teremos de alucinação é uma percepção sem objeto. O paciente
aceitar que toda pessoa projeta, converte, transfere e ouve vozes, escuta com grande atenção o que está
mitifica, visto que ninguém vive entre objetos sem ouvindo, enquanto a testemunha mentalmente sã
nome, num corpo anônimo, cercado de bonecos e nada ouve. O paciente está vendo uma cena com
provido de um passado fixado por engramas. Cada soldados, segue intensamente o que estão fazendo,
um de nós vive num mundo ordenado, encarnado, mas a testemunha normal nada vê de tudo isso.
humano e histórico. Não pode ser de outra forma. Em O paciente vê, ouve e percebe; mas não há
patologia, a ordem, a encarnação, a humanidade e a objeto. — E todavia essa definição não é correta, pois
história têm um padrão diferente, cada vez, embora o objeto que se presume ausente, somente é ausente
cada padrão possa esclarecer cada- um dos outros para a pessoa mentalmente normal. O paciente tem
padrões. Todos os paciente mentalmente perturbados um objeto e bem o demonstra pela maneira com que
são seres humanos. está olhando e ouvindo. Mas o paciente não percebe;
A única diferença que as quatro palavras poderiam tem alucinações, o que não é a mesma coisa. O
deixar subsistir é que as projeções, conversões, paciente é certamente capaz de distinguir as suas
padrões de transferência e de falsificação de memória percepções das suas alucinações (da mesma forma
das pessoas mentalmente sãs não atraem nossa que é capaz de distinguir ambas dos fenômenos
atenção, ao contrário daquelas do paciente perceptivos causados pela estimulação artificial do
psiquiátrico. A razão disto é que a pessoa cérebro). O conceito de percepção sem objeto
mentalmente sã encontra a mesma espécie de confunde duas realidades, a realidade da pessoa
projeções, conversões, padrões de transferência e de mentalmente sã e a realidade do paciente.
falsificação de memória entre os seus semelhantes Será possível encontrar melhor definição? É
mentalmente sãos, enquanto a pessoa mentalmente preciso compreender que os dois defeitos de que
perturbada está isolada com as suas projeções, sofre esta mais antiga e mais repetida das definições
conversões etc. Em fenomenologia, esta conclusão é são muito intimamente relacionados. O paciente
considerada de excepcional significância. O paciente
*
psiquiátrico está sozinho. Tem poucas amizades, ou Ver J. E. D. Esquirol, Des maladies mentales, Paris, 1838.

35
alucinado não percebe — eis o primeiro defeito — e mesma pergunta que já foi feita e que requer a
tem um objeto que não existe para nós — eis o mesma resposta. Os fios da conspiração são reais
segundo defeito. Isto implica que a sua alucinação para o paciente, embora não o sejam para nós — e as
tem um objeto que, para nós, é inexistente. Esta suas palavras descrevem uma vez mais a essência do
definição já é um pouco melhor, mas ainda continua seu distúrbio. O paciente está isolado, é o único dono
mais ou menos obscura. O paciente que sofre de das suas relações humanas, nas quais uma pessoa sã
alucinações, tem objetos que lhe pertencem não pode penetrar. São incompreensíveis essas
exclusivamente. Tem o seu próprio mundo, como relações. Se as suas relações pudessem ser com-
resultado do seu isolamento. Uma pessoa tão isolada preendidas (da mesma forma que podem ser
tem objetos que lhe são próprios. Mesmo a pessoa entendidas as relações de “sonho acordado” de um
mentalmente sã que fica completamente isolada, neurótico), o paciente não estaria perturbado dessa
dentro de pouco começa a ter alucinações. Mais cedo maneira particular. O seu distúrbio é justamente tal
ou mais tarde, a pessoa isolada tem os seus próprios que o faz viver numas relações ilusórias. Quem
objetos. Será que esses objetos existem? Esta questão estiver isolado exatamente dessa maneira, vive dentro
confunde novamente os dois mundos. Para o de um conjunto de relações ilusórias.
paciente (e para a pessoa normal que foi isolada), Há uma doutrina que explica as alucinações e
esses objetos são certamente muito reais, até mesmo as ilusões, pela suposta existência de uma relação
mais reais do que os objetos (comuns) são para a entre o paciente e a realidade demasiado fraca, rara e
pessoa não-solitária, pois o paciente — e a pessoa distante. Presume-se que a alucinação e a ilusão
normal isolada — leva na maior consideração os crescem como ervas daninhas no solo inculto que se
objetos das suas alucinações, fá-los decidir das suas estende entre a pessoa e o mundo. Esta doutrina é
ações, obedece-lhes as ordens e foge das suas correta, até certo ponto; somente quando há distância
imagens — entretanto estas últimas não são exatas, entre a pessoa e o seu ambiente pode a alucinação ou
pois o paciente não percebe imagens, mas objetos, a ilusão vir a existir. A única objeção que nos sen-
gente e realidade. Se estivéssemos isolados como ele timos tentados a levantar é que a distância entre
o está, veríamos e ouviríamos cenas, se não idênticas, pessoa e ambiente não pode ser considerada como
ao menos tão reais quanto as suas e acreditaríamos condição, no sentido de que a alucinação e a ilusão
nelas tão firmemente. Neste caso, porém, ninguém sejam conseqüências dessa condição, em vez de
acreditaria em nós ou entenderia as cenas, pois serem (e este é o nosso ponto de vista) a própria
estaríamos sozinhos. O desejo de compreender o que condição. Alienação, isolamento, solidão e tudo o
é um objeto visto por alucinação implica no desejo de mais que nessa triste seqüência possa ser expresso
considerar alucinação e percepção como fenômenos pela palavra distância (palavra usada pelo próprio
idênticos, ou seja, o desejo de resgatar o paciente do paciente deste livro), tudo isto nunca existe em si e
seu distúrbio mental. O próprio paciente, depois de por si, mas se mostra na realidade do ambiente; na
recuperado, não consegue dar sentido algum às suas realidade dos objetos, na realidade das relações
alucinações. As suas alucinações, a sua separação e o humanas e nas realidades do corpo e do tempo. Tudo
fato de não poder ser compreendido, tudo isto é uma isso está relacionado; nada surgiu em primeiro lugar.
coisa só, que se chama sua doença, doença que Seja qual for a ponta de uma toalha que pegarmos
conduz a severo isolamento. para levantá-la (a imagem é de Binswanger), ela se
As coisas são sensivelmente iguais quando se erguerá sempre em sua inteireza. Não interessa, pois,
trata de ilusões. Podemos dizer que o distúrbio como princípio, saber onde se inicia a descrição de
apresentado pelo paciente que sofre de alucinações, uma condição mórbida: se nos objetos, no corpo, nas
na esfera da percepção, exerce influência semelhante relações humanas ou no tempo. A descrição sempre
sobre o paciente que sofre de ilusões, desde que se termina, mesmo quando procuramos nos limitar ao
trate das suas relações com outras pessoas. O nosso ponto, na descrição da condição em seu todo.
paciente que sofre de ilusões pode pensar que outras Tudo está interligado.
pessoas estejam conspirando contra ele, mas a Todavia, as relações com outras pessoas são
testemunha mentalmente sã não encontrará evidência de importância tão primordial neste contexto que a
alguma que possa justificar essa presunção; não Psicopatologia pode ser chamada a ciência da solidão
conseguirá, todavia, convencer o paciente de que está e do isolamento — servindo a primeira palavra para
errado. Às vezes, tem-se a impressão de que o indicar que o paciente pode sofrer em conseqüência
paciente não quer ser convencido. Nenhuma da sua condição e a segunda para demonstrar que isto
evidência, por mais forte e convincente que seja, não é sempre o caso. O paciente deste livro sofria
consegue alterar a sua opinião. O paciente rejeita a realmente por causa da sua condição; mas o
evidência da realidade; rejeita simplesmente a esquizofrênico vive tão afastado da existência normal
realidade. A sua realidade é diferente. O paciente está que nem percebe a diferença entre perturbação e
sozinho, de modo tão intenso e tão doentio, que sanidade e por isso não sofre do seu isolamento.
mantém relações humanas que são estreitamente e Entre essas duas condições encontra-se toda espécie
individualmente suas. São reais essas relações? É a de variantes, acessíveis tanto pelas descrições do

36
neurótico quanto por aquelas do esquizofrênico. A penetra. O espreitador procura expulsar a testemunha
neurose e a esquizofrenia são, de fato, os dois pólos do campo da sua visão. O mais provável é que não
da Psicopatologia. O conhecimento íntimo dessas saiba o que fazer e que procure esconder-se. Poderá
duas doenças domina todo o terreno psicopatológico. alegar, talvez, que ouviu ruídos suspeitos dentro do
A Psicopatologia é a ciência da solidão e do quarto.
isolamento. Importante aspecto dessa ciência, Ao dizer isto, ele cria, do outro lado da porta,
diretamente ligado com a solidão e o isolamento, um aposento que não existe em sua própria mente,
ainda não foi aqui discutido: é o assunto do mas que ele quer inculcar na mente da testemunha.
inconsciente. Este assunto é muitas vezes confundido Pode acontecer que o espreitador consiga criar o novo
com outro, ligado a ele mas perfeitamente discernível aposento com tanta convicção que será capaz de se
dele, e que se chama ocultação; e como este último estender em detalhes e que talvez esses detalhes
leva à introdução do primeiro, começarei pelo sejam tão convincentes que a testemunha lhe dê
segundo. crédito.
Nas relações com outras pessoas, podemos Este exemplo demonstra o que significa a
silenciar sobre alguma coisa, podemos ter um ocultação no sentido fenomenologico. No momento
segredo, podemos procurar esconder algo das vistas em que é descoberto, o espreitador não está em lugar
de outra pessoa; podemos enganá-la, confundi-la e algum. O quarto foi afastado dele. O quarto
ludibriá-la. Podemos, em suma, esconder-nos dentro “derramou-se sobre a outra pessoa”. A descrição que
do contato. Que significa isto, Sartre dá ao que está acontecendo ao corpo do
fenomenológicamente? A pergunta não é destituída espreitador é muito adequada (modernamente,
de significado, pois a fenomenologia, pela sua ênfase diríamos “é muito plástica”); o corpo do espia “fica
na revelação do homem pelas coisas, cria a impressão frio sob o olhar da outra pessoa”. Isto significa que a
de não deixar lugar para a existência individual, testemunha tem o espreitador em seu poder; pois os
secreta e intencionalmente oculta. Talvez seja próprios movimentos deste são controlados por ele. O
interessante voltar ao exemplo do homem que espia espreitador necessita desenvolver grande esforço para
pelo buraco da fechadura. O leitor estará lembrado poder recuperar-se (física e mentalmente), pois seus
desse exemplo, tirado de Sartre. Pelo buraco de uma movimentos estão tolhidos. O seu corpo já não lhe
fechadura, um homem está olhando intensamente pertence, é propriedade da testemunha. Mas onde
para uma cena que não se destinava a ser vista por está, então, o espia? A bem dizer não está no quarto
ele. Está sozinho, pensa que ninguém o está nem no seu corpo porque está na iminência de
observando e está absorto no que está vendo. A desmaiar. Está em condições de desmaiar —
última parte desta frase deve ser entendida quase que devido à sua ausência — o que às vezes se dá
literalmente. O homem já não está ali, onde se realmente. Mas este homem não desmaia. Recupera-
encontra fisicamente agachado, mas desapareceu pelo se, endireita-se e olha desembaraçado para a
buraco da fechadura. Pelo menos, no que se refere a testemunha, começando a sua defesa. Conta a sua
ele individualmente. No que concerne à testemunha história, o que significa que deixa o quarto para a
que (imaginemos) está a observar secretamente o testemunha, mas determina que espécie de quarto vai
homem, há realmente um homem colado à porta, ser. Se não for cuidadoso, poderá mesmo começar a
mesmo que a testemunha possa facilmente pensar acreditar na história que conta. Neste caso, ele
que o homem está absorto naquilo que está vendo. também possui este novo quarto, embora de modo
Ninguém pode ficar curvado tanto tempo, a não ser inautêntico. Mas, geralmente, as coisas não vão
que tenha abandonado seu corpo. É isto que o homem longe. O espreitador deixa o quarto para a
fez; largou do seu corpo e sumiu para dentro do testemunha, determina que espécie de quarto é, e
aposento onde há tanta coisa para ver. A sua larga tudo nesse ponto.Acontece a mesma coisa com
condição, todavia, é crítica. Ele pode ser observado e, o seu corpo, pois corpo e coisas são interligados. O
de fato, está sendo observado. Assim que isto chega à espreitador deixa o seu corpo à testemunha, mas
sua atenção (isto é, quando ouve um barulho), ele determina que espécie de corpo será. Seus olhos, suas
sente-se sem defesa. A testemunha está olhando para mãos, sua inteira atitude refletem o quarto aban-
um corpo que o homem deixou atrás de si e onde não donado.
consegue reentrar, devido à reprovação suscitada Mais um exemplo de ocultamento, desta vez
pelo seu ato. Como lhe vai ser possível recapturar de natureza mais patológica. Também este exemplo é
o seu corpo? Abandonando o quarto, mas isto não é bem conhecido pelo leitor. — Um operário cai da
bastante; ele tem que combater a testemunha e livrar- escada, quebra a perna, fica de cama por um certo
se do poder que a testemunha exerce sobre o seu tempo, tem alta do hospital, mas a sua perna continua
corpo. Ele pode fazer isto olhando fixamente para a a doer e ele não retoma o seu trabalho. É fora de
testemunha, como fazemos num compartimento de dúvida que isto parecerá fraude para quem esteja fora
vagão ferroviário, (") quando um estranho ali
porta se abre para um corredor lateral, ao contrário dos carros americanos
e brasileiros, onde não há separação em compartimentos e onde a
" circulação se faz pelo centro do vagão.
N. do trad.: É oportuno lembrar que, na Europa, os vagões de passa-
geiros são geralmente divididos em «compartimentos> ou «cabinas», cuja

37
do assunto; e também para o operário, mas cora esta exemplo que todo o mundo pode aceitar como
particularidade que este, mais ou menos, ou talvez imagem de comportamento resultante de propósito
completamente, acredita em seu próprio engano, de inconsciente.
modo que talvez seja preferível substituir a palavra Este exemplo, no qual se demonstra que o
“engano” por outra. Ele se oculta com tanta força (e aparente resultado de um impulso inconsciente nada
com tanta necessidade) que lhe é impossível voltar mais é que a ocultação de uma personalidade, é
para trás. Um psicoterapeuta talvez fosse capaz de tirado, com grande prazer, de uma das primeiras
ajudar o paciente a voltar para trás, mas isto está fora obras de C. G. Jung. (") Pois o episódio explicado
do assunto. O que aconteceu foi o seguinte: este por Jung não é somente um caso belo e clássico, mas
operário trabalhava num ambiente de relações muito a explicação também mostra até que ponto um
tensas. Sem dúvida, queixou-se muitas vezes das homem como Jung compreendeu muito cedo que
condições em que trabalhava e provavelmente, nem tudo o que se apresentava com o rótulo de
sempre que lhe foi possível, usou de linguagem inconsciente tinha o direito de usar esse nome. A
ofensiva para com as pessoas relacionadas com o seu publicação remonta a 1913 e descreve o seguinte
trabalho. Se tivesse sido interrogado, antes do caso: Devido a perturbações neuróticas, sendo uma
acidente, teria certamente pintado um quadro delas perda de consciência, uma jovem mulher
lamentável do seu trabalho; é pouco provável que nos consulta um psicoterapeuta. Aparentemente, o seu
pintasse o mesmo quadro depois do seu acidente. mal começou num momento muito bem determinado,
Com toda a certeza, já prefere nada falar a respeito pouco tempo antes da consulta ou seja quando,
do seu trabalho. Fala apenas do seu corpo. Antes do depois de visitar alguns amigos seus, na companhia
acidente, falava sobre a fábrica e silenciava quanto ao de outras pessoas, ela estava voltando para casa, alta
seu corpo. Depois do acidente, fala do seu corpo e madrugada. De repente, uma carruagem puxada por
nada diz sobre a fábrica. Qual é o motivo dessa in- cavalos surgiu por detrás do grupo de amigos. Todos
versão? os companheiros se afastaram, mas não a paciente;
Em primeiro lugar: a fábrica. Queixava-se ela ficou no meio da rua e, quando os cavalos se
dela e hoje não mais a menciona. Quando perguntado aproximaram, saiu a correr na frente dos animais. O
a respeito das suas condições de trabalho, relata uma cocheiro praguejava e fazia estalar o chicote para que
história mais ou menos sem cor. Deixa a fábrica para ela se afastasse do caminho, mas sem resultado; ela
outras pessoas. Passemos agora ao seu corpo: a continuava correndo adiante dos cavalos e, no fim da
princípio não o mencionava; agora não se cansa em rua, ao atravessar uma ponte, desmaiou. Teria caído
falar dele. Queixa-se de um corpo que está no rio, se umas pessoas que atravessavam a ponte não
perfeitamente são. Mas este corpo, que poderia estar a tivessem agarrado. A sua perturbação começou
são, está proibido de estar são em relação com as nesse momento; sofria de neurose de choque.
outras pessoas. Deixa-o ficar doente para as outras É justificado perguntar por que a paciente
pessoas. O operário mente e engana, diz a pessoa de comportou-se de modo tão estranho aquela noite. Ela
fora (que é uma das outras pessoas). Para tirar a não sabe dar resposta a essa pergunta. Não é de
dúvida, deve ser examinado de novo, diz o médico temperamento medroso, como ficou demonstrado
(que também é uma das outras pessoas). “Ele está pelo estudo da sua vida. Teria havido qualquer coisa
doente”, dizem a mulher e alguns poucos amigos. A em seu passado, relacionado com cavalos? Orientada
explicação correta é que ele se está escondendo. para esse caminho, a paciente declara que se lembra
Procura deixar a fábrica e seu corpo para outros, este subitamente [Jung duvida que esse trauma tenha
é o ponto de vista fenomenológico, pois esconder-se realmente acontecido; essa dúvida sempre se justifica
significa deixar o corpo e o ambiente aos outros, mas quando o paciente partindo de um vácuo, lembra-se
de um modo escolhido livremente pelo paciente. repentinamente de alguma coisa (p. 349 do artigo
Se o paciente acredita em sua própria mencionado na nota anterior)] que, aos sete anos,
história, se nutre essa crença ao ponto de que testemunhara terrível acidente em que os cavalos
ninguém consiga fazê-lo voltar para trás (sempre que tinham desempenhado o papel principal. Ao passear
o seu comportamento seja tal que ninguém possa numa carruagem, os cavalos tinham repentinamente
duvidar da sua boa fé), então a sua história poderá disparado. O cocheiro, temendo que os cavalos
logo ser considerada como exemplo de caíssem num precipício, pulou do carro e gritou para
comportamento resultante de propósito inconsciente. que a menina fizesse o mesmo; mal tinha ela pulado,
Deixo por enquanto de indagar se este conceito pode os cavalos “mitsamt dem Wagen” (“juntamente com
ser mantido depois de análise mais rigorosa. Há a carruagem”) se precipitaram no abismo.
certamente casos que, por outro lado, chamam a Eis aí a explicação da sua neurose de choque.
nossa atenção como ilustrativos de um compor- Aos sete anos de idade, ela não fora capaz de
tamento que resulta de um propósito inconsciente,
quando, na realidade, referem-se apenas a "
CG. Jung. Veroch ciner Darstellung der Eychoanalytlschen Theorie,
ocultamento. Apresentarei ao leitor um exemplo Jahrbuch ítir Psycoanalytlsche und Psychopathologische Forschungen V,
deste último gênero e terminarei a lista com um 1913.

38
compreender, em toda sua inteireza, o choque e a precipício, a fim de preservar outro corpo, o corpo
ansiedade do trauma. O incidente ficou adormecido que caiu quando ela se esqueceu de defender a sua
dentro da sua mente e somente se reativou quando, virtude. Fraude ou ocultamento, seja qual for a
naquela noite memorável, ela ouviu o ruído dos palavra preferida, é fora de dúvida que o inconsciente
cavalos a galope. O que tinha ficado inconsciente du- pouco ou nada tem a ver com a sua história. Jung não
rante dezoito anos, voltou repentinamente à quis usar a palavra inconsciente em relação com este
consciência, embora só parcialmente, pois ela se caso. Só podemos concordar com ele. Quando uma
assustou com o incidente do seu passado somente conexão inconsciente é usada para servir de ligação
quando começou a falar com o terapeuta; foi somente com o passado, o paciente está procurando
aí que o susto surgiu, com o medo e a possibilidade esconder-se. Há exceções para essa regra, mas são
de cair num precipício. raras.
Mesmo que desejássemos conhecer mais a Por outro lado, não será possível pôr em
respeito desse caso, devemos admitir que a sua relevo, na história da paciente, conexões que se
configuração é clássica e completa. Um trauma possam chamar de inconscientes? É certo que essas
infantil, um período sem sintomas, seguido por um conexões existem. Em primeiro lugar: a paciente
trauma insignificante mas que causou reação precisa de um velho passado para poder escapar de
exagerada, originando-se então os sintomas. O um presente penoso. Ela não sabe que está fugindo
aspecto que preocupava Jung era o período decorrido do presente. A palavra inconsciente pode ser aplicada
entre o sétimo e o vigésimo quinto ano da paciente. O a esse não-conhecimento. Em segundo lugar: ela
trauma tinha ficado certamente inconsciente durante desejou voltar para o homem que amava, até mesmo
todos esses anos, de acordo com a explicação, mas é se valendo de um acidente. Também não tem
de se perguntar o que implica a suposição de que consciência disso. Isto significa que a palavra
alguma coisa encerrada durante tanto tempo ressurja inconsciente também se aplica a esta conexão es-
subitamente como resultado de um incidente insig- tritamente presente. E que dizer desse incidente
nificante. Pode-se presumir que a fórmula os cavalos aparentemente preparado de antemão? Tal incidente
de agora são os cavalos de então quebrou o sigilo? não nos deverá surpreender se nos lembrarmos que
Por que nada aconteceu durante esses dezoito anos? ocorreu há mais de cinqüenta anos; desde então os
Jung não se dá por satisfeito e investiga o que cavalos se tornaram muito raros, mas ainda mais
aconteceu imediatamente antes do momento do raras se tornaram as mulheres que tão trans-
choque. Onde tinha ela estado, aquela noite, e o que parentemente caíam em pânico ao simples rumor de
ali se passara? Fora visitar um casal que dava uma cavalos a galope.
festa de despedida, porque a mulher estava de partida Finalmente, o significado dos seus sintomas
para urna estância de cura, onde ia tratar de uma é inconsciente, e isto é muito importante. Quando lhe
doença nervosa. Para contar exatamente a verdade, perguntam a causa e o sentido dos seus sintomas (os
aquela mulher acabava de embarcar no trem e o seus desmaios, entre outros), a paciente não sabe o
grupo de amigos que a acompanhara à estação estava que responder. Isto é também verdadeiro para todos
de volta quando ocorreu o acidente com os cavalos. os pacientes, passados e presentes. E por que não
Jung deixa de acreditar na significância dos cavalos a sabe? Deve haver uma causa ou uma intenção que, no
galopar. Suspeita que deve existir outra conexão e caso dessa paciente, deve estar relacionada com o
encontra, eventualmente, a verdadeira explicação, impasse em que se achou perante o casal amigo; com
que pode ser resumida como se segue: A paciente o seu afeto (imaturo), que é correspondido, mas que
sabia que, se alguma coisa lhe acontecesse, seria não conduz ao casamento; com o seu sentimento de
levada de volta para a casa de onde saíra há pouco. vergonha e com a expectativa de escândalo e,
Ali ficaria a sós com o esposo da mulher que acabara certamente, com o medo da gravidez. Quando
de embarcar. E foi justamente o que sucedeu. Depois desmaia, talvez esteja apenas escapando das suas
do acidente, foi levada para aquela casa e confiada aflições; talvez mesmo, simbolicamente, esteja
aos cuidados daquele marido; depois disso, caindo na cama de seu amado. Podemos presumir
aconteceram as coisas que costumam acontecer entre outras ligações, outras causas e outras intenções, mas
um homem e uma mulher, que se conhecem e todas essas suposições têm algo em comum: a
demonstram interesse recíproco. Existia namoro paciente não está a par, não está consciente de tudo
anterior entre ambos? Realmente, ele já a beijara isso. Ela diz que está caminhando às apalpadelas e é
antes — e esta informação revelou uma das causas da justamente o que está fazendo. Talvez nem mm
doença nervosa da sua esposa. E onde ficaram os preencha realmente as perguntas que lhe são feitas.
cavalos do incidente ocorrido quando ela tinha sete As conexões tão facilmente encontradas pelo
anos? Estes foram trazidos para a cena a fim de que observador não encontram resposta nela. Por que
ela pudesse utilizá-los como esconderijo. A paciente não? Qual é o significado do inconsciente?
apresentou ao terapeuta (a pedido dele) um pedaço de Para dar resposta a esta indagação terei de
realidade sem valor, a fim de reter outra realidade. voltar ao paciente, objeto deste livro, a fim de ilustrar
Também confiou a ele um corpo escapando do a natureza e o significado do inconsciente com um

39
exemplo derivado da sua história. Este exemplo será significa reverenciar servilmente; e é justamente isto
o último que apresentarei nesta obra. que o paciente está fazendo. Abrir um livro significa
O paciente é estudante. Está freqüentemente reverenciar o livro. É possível ler desta maneira? De
absorto em seus livros de estudo. Realmente, não há qualquer maneira, não é assim que se extrai
outras coisas que possa ler em paz e com atenção. O conhecimento de um livro, porque extrair conheci-
jornal diário lembra-lhe os fatos ia vida que o deixam mentos implica em ser parceiro — embora não
enojado. Os romances põe-no em confronto com o deixando de ser aluno. Mesmo abrir a Bíblia significa
outro sexo, que evita. Os livros de estudo, ao ser parceiro. Ler, estudar, significa estar agindo,
contrário, não tocam no terreno da existência pensando e ponderando com o autor. O escravo
rotineira, nem nos assuntos do amor. Sente-se à rebelde é incapaz de estudar; lê “servilmente”, sem
vontade, dentro da esfera desses livros didáticos, mas tomar posse, e destrói um livro de vez em quando.
assim mesmo os seus estudos não estão caminhando Esta é a resposta, quando se pergunta por que o
de acordo com os planos. Faz muito tempo que não paciente lê com tão pouco proveito. O seu estudo é
se apresenta para algum exame. Tem certeza, aliás, uma rebelião.
que no seu estado atual não poderia responder a Aceitaria o paciente esta resposta, enfeitada
qualquer pergunta. Não somente porque um exame o com este comentário? Certamente que não. Por que
deixaria muito excitado mas também porque — e isto não? A resposta é óbvia. A questão do sentido do
é significativo — ele não conhece o assunto. Mas inconsciente ainda está em aberto. Por que não
então não estuda? Não há dúvida que estuda, e muito, admite o paciente o que está fazendo? Porque a sua
provavelmente mais que a maioria dos estudantes, admissão seria contraditória com aquilo que está
mas os seus estudos não conduzem a lugar algum. fazendo. Procuremos colocar-nos em seu lugar. Os
Pode ler um livro três vezes e lê-lo novamente pela autores dos seus livros são pessoas livres, autônomas
quarta vez, como se nunca o tivesse visto antes. O e dominadoras. O mesmo se dá com todos os adultos
que está lendo não penetra em sua mente. Há uma à volta dele, que são pessoas livres, autônomas e
barreira. Por que há uma barreira? O paciente não dominadoras — inclusive seu pai. Mas o terapeuta
sabe dizê-lo. E por que não sabe? Qual é a natureza também pertence a essa categoria de pessoas. O que
dessa barreira que não deixa penetrar em sua mente o significaria se o paciente dissesse à pessoa
que está lendo? dominadora, isto é, ao terapeuta, que concorda com
A resposta deverá ser encontrada dentro do ele? Significaria que ele não mais o considera tal
próprio conteúdo da leitura. O paciente lê um livro pessoa. O paciente poderia pensar com o terapeuta,
sem nenhum resultado. Que significa um livro para julgar com ele, decidir com ele. No que se refere à
ele? É fato que trata seus livros com respeito. Estão questão de autoridade, ele estaria curado. Mas não
corretamente alinhados em sua estante e, apesar de está curado, e então não pode compartilhar dos
terem sido muito manuseados, apresentam-se limpos pontos de vista do terapeuta. Não compreende o
e não amassados. Nunca empresta os seus livros, no terapeuta. Esperar que o paciente compreenda o
entanto, — e isto é de espantar muito — em terapeuta quer dizer esperar que esteja curado. A sua
momentos de desespero rasga um livro em mil incapacidade em compreender é que constitui sua
pedaços. Por quê? O paciente não sabe dizer. De doença. O seu “não saber” significa ser diferente dos
qualquer maneira, ele tem que descarregar c seu afeto outros, que sabem. O terapeuta sabe; isto significa
sobre alguma coisa. Mas isto não é resposta. Por que essencialmente o mesmo que dizer: o paciente está
um livro, entre tantas outras coisas? Poderia haver doente e não sabe. O consciente do terapeuta é o
alguma conexão entre o seu respeito pelos livros e a inconsciente do paciente. Que existe, então, dentro do
vontade esporádica de estraçalhá-los, de vez em paciente? Nada: o que devia estar presente nele, o seu
quando? Vinga-se, talvez, sobre o livro? Ou se vinga conhecer, reside dentro do terapeuta, essa autoridade.
sobre o autor? Que tem a dizer o paciente sobre os Quando o paciente se recupera, esse conhecimento
autores dos seus livros? Os autores são todos homens vem para ele; porque então o terapeuta vem para ele;
sábios, eruditos, modelos de ciência. Nada pode dizer então todos os adultos vêm para ele; então ele próprio
contra eles mas diz demais a favor deles. Não podem se torna adulto.
estar errados; diz que são as suas autoridades. A mesma relação pode ser estabelecida no
A resposta está contida nessa palavra; assim caso da paciente de Jung, nos três pontos da sua
que um autor se transforma em autoridade, os seus história em que pode ser aplicada a palavra
livros tornam-se ilegíveis. Mas o paciente não aceita “inconsciente”. Primeiro: desconhece que tem
esta resposta; e a verdadeira resposta não está contida invocado um passado a fim de, com ele, camuflar um
nessas palavras. Que significa para o paciente a presente. Se ela tivesse estado a par disso, teria sido
palavra autoridade? (Mais uma vez é necessário capaz de compartilhar da mentalidade do terapeuta,
descobrir o significado especial que o paciente atribui da sua liberdade, penetração e, acima de tudo, da sua
a essa palavra.) A palavra autoridade parece ser, para natureza sexual (qualidades que, em sua opinião, o
ele, um nome coletivo contendo toda pessoa adulta, terapeuta deve possuir). Ora, não é capaz de
toda pessoa ativa, produtiva e livre. Uma palavra que compartilhar dessas qualidades e nisso reside

40
justamente a sua doença. Segundo: não percebe que
se utilizou do incidente de rua como base para uma
BIBLIOGRAFIA DO
aventura erótica. De novo podemos dizer que, se ASSUNTO
estivesse consciente disso, estaria sexualmente
madura ou, em outras palavras, não estaria doente.
Terceiro: não conhece o significado dos seus SUMÁRIO HISTÓRICO
sintomas; pois está doente; então a resposta é sempre
a mesma. Se ela conhecesse o significado dos seus Ao leitor desejoso de travar conhecimento
sintomas, estaria mentalmente sã — como o terapeuta com a história da Psicopatologia e da psiquiatria
que conhece aqueles significados. Ele, o terapeuta, fenomenológicas, rapidamente mas não sem certa
sabe que ela não sabe. O inconsciente dela é o profundidade e que não se arreceie em abeberar-se
consciente do terapeuta. diretamente nas fontes, posso recomendar algumas
Mas afinal, o que se chama “inconsciente” é obras de Ludwig Binswanger. Esse psiquiatra suiço,
realmente inconsciente? A palavra é, de fato, considerado o pai da Psicopatologia fenomenológica,
enganadora; sugere que o conteúdo do inconsciente foi pródigo em trabalhos esclarecedores. Em
esteja dentro do paciente quando exatamente nele não Probleme der allgemeinen Psychologie (Berlim,
se acha — até que o paciente se cure. Seria melhor 1922, pág. 383)1 apresentou considerações bem
falar do poder de intuição de outras pessoas, mas documentadas sobre os novos caminhos que a
aquela designação foi universalmente adotada, como psicologia tomou desde o início do século XX, e cuja
as palavras projeção, conversão, transferência e influência sobre a psiquiatria pode ser estudada em
falsificação de memória. São palavras que certamente seu artigo Ueber Phaenomenologie (publicado em
não irão desaparecer tão cedo. Realmente, essas Zeitschriff fúr die gesammte Neurologie und
palavras, universalmente adotadas e de largo uso não Psychiatrie, 1923). Esse artigo foi também publicado
vão desaparecer, mas podemos procurar encontrar na primeira parte de Ausgewàhlte Vortràge und
outros conceitos para elas; pois o que presume a Aujsàtze (publicado em Berna, 1947).
teoria relacionada com essas palavras exige toda Vê-se quanto mudou a psicologia geral no período
espécie de concessões, que ainda não são suficientes seguinte, no importante trabalho de Binswanger
para torná-la aceitável; então a hipótese de uma Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins
secção separada da vida mental, chamada (Zurique, 1942, pág. 726); as conseqüências dessas
inconsciente, teve que ser formulada para preencher mudanças sobre a psiquiatria estão explicadas por ele
as lacunas. Prometi dizer ao leitor se a nos artigos: Ueber die daseinsanalytische
fenomenologia necessita dessa teoria. A resposta foi Forschungsrichtung in der Psychiatrie (Schweizer
dada. A fenomenologia não precisa dessa hipótese. O Archiv fiir Psychiatrie und Neurologie, 1946);
inconsciente é o conhecimento possuído por outra Daseinsanalytik und Psychiatrie (Nervenarzt, 1951) e
pessoa, a compreensão de outra pessoa, é a qualidade no livro Der Mensch in der Psychiatrie (Pfullingen,
de uma relação particular, principalmente mórbida. 1957, pág. 71).
Não é “uma camada profunda da personalidade”, que Estas seis publicações constituem excelente
possa servir para explicar muitos aspectos obscuros introdução à história da fenomenologia e à sua
de outras camadas mais superficiais. Para o aplicação em psiquiatria. A seguinte lista de
fenomenologista não há camadas além daquela trabalhos, acompanhados de curtos comentários,
camada (que assim não pode ser chamada) da vida poderá ser útil ao leitor desejoso de aprofundar-se na
em si. Aqui nesta vida, jaz a profundidade desta vida. matéria.
Aqui reside a explicação desta vida, na medida em De autoria do muito conhecido filósofo e
que pode ser explicada, pois há muita coisa acerca da psicólogo W. Dilthey, apareceu em 1894 o artigo
vida que não pode ser explicada e que aliás, nunca o Iãeen úber eine beschrei-bende und zerglieãernde
foi. A vida certamente não é um nevoeiro, mas é Psychologie (reeditado nas obras completas, parte IV,
certamente um mistério. E que assim continue sendo! Leipzig e Berlim, 1924; segunda edição em 1957),
O fenomenologista nunca tem necessidade de dando início ao desenvolvimento da psicologia
hipóteses. As hipóteses surgem quando a descrição fenomenológica. O autor analisa os métodos da
da realidade termina prematuramente. A psicologia confrontando-os, acima de tudo, com os
fenomenologia é a descrição da realidade. Daí os trabalhos de Wundt e concluindo que esses métodos
numerosos exemplos deste livro, derivados da vida são derivados da ciência física. Da mesma forma que
como realidade. o físico, o psicólogo procurou dissecar o objeto dos
seus estudos; procurou isolar os fatores elementares
da vida mental, a fim de reconstruir a vida mental
real com esses fatores elementares. Embora já sendo
CAPITULO IV
1
Refere-se an numero total de págs. da edição citada. Vale esta

BREVE EXAME DA observação para os ca.-us semelhantes que se seguem. (N. do Ed.).

41
óbvio, mesmo na época, que o alvo visado, ou seja, campo da cultura filosófica, que foge ao alvo deste
uma psicologia compreensiva, não podia ser atingido livro.
desse modo, Dilthey foi o primeiro a salientar que
esse alvo nunca poderia ser alcançado, pois os A pessoa que, pela primeira vez, introduziu
métodos seguidos não servem para a psicologia. Em na psiquiatria a distinção de Dilthey foi Karl Jaspers.
sua opinião, a característica essencial do aspecto Em seu artigo Kausale unã verstànãliche
psíquico da vida humana é que o pesquisador nunca Zusammenhànge zwischen Schi-cksal und Psychose
se defronta com um elemento isolado, mas sempre bei der Dementiá praecox (Schizophrenie)
com uma totalidade. Procurar descrever um (Zeitschrift fúr die gesammte Neurologie und
elemento, significa sair do campo da psicologia. Não Psychiatrie, 1913), mostra que os dois métodos,
existe um elemento psíquico como tal. Não existe quando aplicados ao estudo da esquizofrenia,
percepção elementar ou sensação elementar. O conduzem a resultados satisfatórios, mas que
psicólogo tem que deixar de lado os métodos da somente os resultados do método descritivo podem
ciência física. Deve tentar achar um método que se ser chamados psicológicos. Jaspers então aplica, com
origine do próprio assunto. O psicólogo não pode muito sucesso, o novo método fenomenológico a
esperar maiores resultados usando os aparelhos do todo o campo da Psicopatologia: Allgemeine
físico do que um pintor poderia esperar das Psychopathologie (Berlim, l. a edição 1913, pág. 338;
ferramentas de um ferreiro; pois como o assunto da várias reedições), livro este que, além do seu valor
psicologia, ou seja, a existência humana, é sempre fenomenológico, pode ser considerado sem rival
uma totalidade, o seu método não pode ser dissecado como sinopse do campo da Psicopatologia.
em elementos. Deverá ser sempre a descrição de uma O exemplo de Jaspers foi seguido por muitos.
totalidade. Pelo mesmo motivo, o alvo 'da psicologia Há numerosas publicações em que novos territórios
nunca pode ser a explicação, pois explicar significa foram abertos por meio do método fenomenológico.
construir e nada pode ser construído sem elementos. Mencionarei apenas alguns mais importantes: E.
O alvo da psicologia é retratar a totalidade. Die Natur Kretschmer, Der sensitive Bezie-hungswahn (Berlim,
erklaren wir, das Seelenleben verstehen wir — (“A 1918), K. Birnbaum, Pychopatholo-gische
natureza nós explicamos, mas a vida consciente nós Dokumente (Berlim, 1920), e H. C. Ríimke, Zur Phà-
compreendemos”) —estas palavras tornaram-se nomenologie und Klinik des GlucksgefUhls (Berlim,
famosas. O alvo da psicologia é observar, 1924).
compreender, para em seguida expor, expor com Em poucas palavras, o processo que conduz a
clareza o que foi visto vagamente na primeira tão bons resultados nesses estudos, resume-se em que
compreensão. Uma pessoa que vê uma criança chorar descreve, exata e exaustivamente, o que o paciente
porque não encontra seus brinquedos, considera psiquiátrico experimenta e aquilo que lhe vai pela
perfeitamente compreensível aquilo que está vendo. mente. Convém notar que, nesse meio tempo, o
Se for também psicólogo, ele desejará registrar aquilo processo fenomenológico, neste sentido da palavra,
que lhe pareceu compreensível. O fisiólogo quer não foi mais aplicado tão freqüentemente como antes.
explicar: deseja saber qual é o estímulo que causou a Foi Binswanger quem, em seu artigo Ueber
secreção da glândula lacrimal e outros fatos que tais; Phaenomenologie (Zeitschrift fiir die gesammte
fatos estes que não são de muita ajuda para o Neurologie und Psychiatrie, 1923) deixou claro que
psicólogo quando procura elucidar o que observou importantes campos da atividade psicológica e
compreensivamente, talvez num só olhar, talvez psicopatológica ficariam inexplorados, se a
depois de observar com mais vagar, mas nunca por fenomenologia fosse considerada apenas como
meio do método de investigação mais profunda. descrição exata das experiências intrapsíquicas. Para
A distinção feita por Düthey entre “explicar documentar o seu ponto de vista, referiu-se ao
pelos elementos” e “observar compreensivamente” já trabalho de Edmund Husserl, que era então
era conhecida há muito tempo. Blaise Pascal (1623- completamente desconhecido no mundo psiquiátrico:
1662) descreveu-a com muita ênfase. Num Logische Vntersuchungen (três partes, Halle, 1900-
manuscrito encontrado depois da sua morte, Pensées 1901), no qual este filósofo-psicólogo desenvolvia o
sur Ia religion (1669), distingue o esprit de géométrie importante trabalho do seu mestre Franz Brentano:
do esprit de finesse, distinção muito similar àquela Psychologie vom empirischen Standpunkt (três
feita por Düthey. — Seria interessante acompanhar a partes, Leipzig, 1874). Em seu livro, Husserl faz a
história dessa distinção nas atitudes e nos métodos distinção que já foi exaustivamente discutida nas
científicos. Eu mencionaria então pensadores como J. páginas precedentes: a distinção entre percepção
G. Herder (1744-1803), Kierkegaard (1813-1855), objetiva e categorial (nomes que não tinham sido
Nietzsche (1844-1900), Max Scheler (1874-1928), usados, antes). A percepção objetiva, (ou melhor:
Maine de Biran (1766-1824) e Henri Bergson (1859- geralmente válida) é a percepção da “investigação
1941). Todos esses autores têm algo a ver com a reflexiva”, a percepção do físico e do fisiólogo. Por
preparação da psicologia fenomenológica; mas os outro lado, a percepção categorial é a percepção tal
assuntos tratados por esses autores conduzem ao como acontece na vida de todos os dias, a percepção

42
do psicólogo, — que está perfeitamente disposto a pode ser considerado padrão no assunto: E. Straus,
examinar as coisas reflexivamente, mas que quer Vom Sinn der Sinne, (Berlim, 1935, pág. 314,
excluir a indiferença que acompanha tão facilmente o reeditado e ampliado em 1956, pág. 425). Como
exame “reflexivo” ou “objetivo”. Na percepção indica o título do livro, o autor procura formular nova
categorial não há hiato entre o homem e o mundo; o psicologia dos sentidos, a qual, como se pode
mundo é o lugar de residência da natureza humana, e esperar, consiste numa nova psicologia do mundo
o lugar de residência é uma das particularidades da (perceptível).
natureza. Lugar de residência também da doença. A F. Fischer foi o primeiro autor que aplicou a
fenomenologia se origina da percepção categorial e fenomenologia de Husserl-Binswanger ao grupo de
não, corno pretendia Jaspers, de uma (precisa) distúrbios esquizofrênicos.
introspeção. O argumento de Binswanger resume-se Mencionarei somente duas entre as suas
no seguinte: o fenomenologista não deve dirigir o seu numerosas publicações. A primeira trata da
olhar “para dentro”, mas “para fora”. Para dizê-lo Psicopatologia do tempo e a segunda tem por assunto
paradoxalmente: a verdadeira introspeção é feita por o espaço e o paciente esquizofrênico: F. Fischer,
meio do sentido físico da vista; nós somos; nós Zeitstruktur und Schizophrenie íZeit-schrift fiir
estamos vendo a nos mesmos quando observamos o gesammte Neurologie und Psychiatrie, 1929) e Ueber
mundo — nestas frases o sentido de ver e observar die Wandeungen des Raumes im Aufbau der schizo-
concerne a percepção categorial e não a objetiva, phrenen Erlebniswelt (Nervenarzt, 1934).
distinção esta que não foi feita por Dilthey nem por Completamente à parte, inclusive pelo fato
Jaspers. de ter o autor vivido muitos anos em Paris, temos o
A repercussão do artigo de Binswanger livro ainda muito pouco conhecido de E. Minkowski,
lembra a que teve em 1913 o artigo de Jaspers. que faz sério esforço, louvável em muitos aspectos,
Começaram logo a aparecer publicações para compreender a Psicopatologia partindo dos
fenomenológicas, atribuindo o novo sentido à palavra distúrbios de percepção do tempo: E. Minkowski, Le
fenomenologia. O sentido de elucidação da temps vécu (Paris, 1933, pág. 401). Antes disso, o
existência pré-reflexiva. Também isto foi discutido autor publicara um trabalho que, embora não escrito
nas páginas precedentes. numa tradição estritamente fenomenológica, é de
É importante não confundir estas duas natureza inegavelmente fenomenológica: E.
formas de fenomenologia: a de Dilthey-Jaspers e a Minkowski, La schizophrenie (Paris, 1927, pág. 268).
de Husserl-Binswanger. Em 1933 apareceu um livro que demonstrou
O novo enfoque, versando sobre a descrição até que ponto os autores dos trabalhos mencionados
de condições de existência normais e perturbadas, é acima deixaram de tirar todas as conseqüências das
examinado principalmente nos seguintes trabalhos: L. observações fundamentais de Husserl. Foi novamente
Binswanger, Lebensfunk-tion und innere Binswanger que removeu os resíduos do modo de
Lebensgeschichte (Monatschrift fiir Psychiatrie und pensar dos físicos, tão firmemente arraigados na
Neurologie, 1928) e E. Straus, Geschehnis und Er- Psicopatologia. O resultado foi uma patografia
lebnis (Berlim, 1930, pág. 129). completamente nova, que pode ser chamada revolu-
Não posso estender-me sobre os trabalhos que cionária: Ueber Ideenflucht (Zurique, 1933, pág. 214;
contém investigações fenomenológicas do homem o trabalho apareceu primeiro em dois artigos, no
normal e do homem perturbado, do espaço e do Schweizer Archiv fiir Psychiatrie und Neurologie,
tempo. No que concerne ao tempo: V. E. von 1931-32).
Gebsattel, Zeitbezogenes Zwangsdenken in der Me- Também este livro fora precedido por um
lancholie (Nervenarzt, 1928) e E. Straus, Das trabalho filosófico, subscrito por um discípulo de
Zeiterlebnis in der endogenen Depression und in der Husserl, que abriu o caminho para uma nova e
psychopathischen Versti-mmung (Monatschrift fiir original descrição da existência humana em si. Trata-
Psychiatrie und Neurologie, 1928). Uma vez mais, se de M. Heidegger: Sein und Zeit (Halle, 1927, pág.
estes dois psiquiatras publicaram, independentemente 438), livro que provocou completa mudança no
um do outro, artigos sobre o espaço (visto pelo neu- mundo do pensamento da Europa Ocidental. O traba-
rótico com obsessões), novamente com os mesmos lho de Binswanger é conseqüência direta desta obra
resultados. V. E. con Gebsattel, Die West des pioneira. Três períodos podem ser distinguidos,
Zwangskranken (Monatschrift fúr Psychiatrie und portanto, na história da psiquiatria fenomenológica.
Neurologie, 1938) e E. Straus, Ein Beitrag zur O primeiro período foi instaurado por Jaspers em
Pathologie der Zwangserscheinungen (Monatschrift 1913 e os dois períodos seguintes por Binswanger,
fiir Psychiatrie und Neurologie, 1938). Algum tempo entre 1923 e 1933. Cada período foi precedido por
antes o segundo tinha publicado um artigo muito nova reflexão sobre a natureza da existência humana,
interessante, no qual encarava uma fenomenologia (por Dilthey, Husserl e Heidegger). Embora haja dis-
geral do espaço: E. Straus, Die Formen des Ràum- tinção muito clara entre os três períodos no que
lichen (Nervenarzt, 1930). O tema desse trabalho foi concerne ao nome fenomenologia, os dois últimos
mais tarde elaborado em forma de livro, que hoje períodos se combinam tão harmoniosamente que o

43
sentido da palavra, como foi definido por Husserl, derável: Fdlle und probleme (Anthropologische
não precisa ser alterado. Vorlesungen in der medizinischen Klinik, Stuttgart,
A obra de Binswanger Ueber Ideenflucht faz 1947, pág. 203).
parte dos raros trabalhos que têm alterado o aspecto Este último trabalho, Fálle und Probleme,
da psiquiatria. Pode ser posto na categoria de compreendendo sessenta conferências, é um dos
Maladies mentales (1838), de Esquirol, da 5.a edição melhores estudos existentes no campo da patologia
da Psychiatrie (1896), de Kraepelin, de fenomenológica. Sendo também este trabalho de
Traumdeutung, de Freud (1900), de Dementia redação muito simples, de modo a não apresentar
praeçox, oder Gruppe der Schizophrenien (1911), de dificuldades aos estudantes não familiarizados com o
Bleuler, de Symptomatische Psychosen (1911), de assunto, posso recomendá-lo como uma introdução
Bonhoeffer, de Psychopathologie (1913), de Jaspers, geral, não complicada mas profunda ao terreno da
de Koerperbau und Charak-ter (1921), de fenomenologia. Os pacientes estudados nesse livro,
Kretschmer, de Conceptions o/ modern Psychiatry são quase todos portadores de defeitos internos; o que
(1940), de Sullivan. torna o livro de excepcional importância também
Uns dez anos mais tarde, Binswanger para o médico de clínica geral e para o especialista
escreveu a primeira patografia fenomenológica em somatologia.
compreensiva de um paciente que sofria de uma Numerosos trabalhos foram publicados pela clínica
forma atípica de esquizofrenia (ou, se preferem, de de von Weizsâcker. Mencionarei apenas: H.
severa forma de histeria esquizóide): Der Fali Ellen Huebschmann, Psyche unã Tuberkulose
West (Schweizer Archiv fiir Psychiatrie und (Stuttgart, 1952, pág. 284). Livros desse tipo
Neurologie, 1945), logo acompanhada por mais três levantam a questão da natureza do método usado
estudos também relativos à esquizofrenia: Wahnsrinr na Medicina somática. Ao leitor que desejar
ais lebensgeschichtliches Phdno-men und ais
Geisteskrankheit (Monaschrift fiir Psychiatrie und
clara resposta fenomenológica, recomendo o
Neurologie, 1945); Der Fali Júrg Ziiná (Schweizer opúsculo de W. Metz: Het verschijnsel pijn.
Archiv fiir Psychiatrie und Neurologie, 1947), e Der Methode en mensbeeld der geneeskunde
Fali Lola Voss (Schweizer Archiv fiir Psychiatrie (Haarlem, 1964).
und Neurologie, 1949). Algumas palavras sobre as mudanças que
O discípulo de Binswanger, Roland Kuhn, se deram na França. Um trabalho de filosofia,
escreveu a primeira patografia fenomenológica de um muito significativo pelas suas conexões com o
paciente sexualmente perturbado: Analyse eines assunto aqui tratado, também apareceu naquele
Mordversuches eines depressiven Fetischisten und país, com grande repercussão. Trata-se de L'être
Sodomisten an einer Dirne (Monatschrift fiir et le néant, de J. P. Sartre, (Paris, 1943, pág.
Psychiatrie und Neurologie, 1946); entrementes o 724), onde se nota facilmente a influência de
muito conhecido psiquiatra Boss, também suíço,
Husserl e de Heidegger. O livro oferece
procurou formular uma completa patossexologia,
baseada nos novos princípios: M. Boss, Sinn und excelentes exemplos de intuição
Gehalt der sexuellen Perversionen (Berna, 1947, pág. fenomenológica. Especialmente os capítulos que
130). tratam do olhar humano e do corpo, podem ser
Hàfner foi o primeiro a escrever uma considerados dos melhores jamais escritos sobre
fenomenologia da psicopatia: H. Háfner, um assunto fenomenológico. É bastante estranho
Psychopathen (Berlim, 1961), pág. 230). Na que esse trabalho, até agora, tenha exercido
Holanda, Van der Horst e seus discípulos, fizeram pouca ou nenhuma influência sobre a psiquiatria
séria tentativa para descrever toda a psiquiatria francesa (que foi, aliás, bastante influenciada por
partindo de novos princípios (não somente um livro bem escrito, fácil de entender mas, em
fenomenológicos): L. van der Horst, Ânthropologisch certo sentido, quase sem valor: G. Lanterni-
Psychiatrie, (duas partes, Amsterdão, 1946, pág.
790).
Laura, La psychiatrie phénoménologique, Paris,
No campo da psicossomática (se é lícito 1963). Isto é tanto mais estranho porque a
empregar esta palavra numa conexão psicologia francesa foi muito influenciada por
fenomenológica, sem mais explicação), Viktor von Sartre. Embora estejam fora do escopo deste
Weizsàcker abriu novos caminhos, com os seus livro, não posso deixar de mencionar os nomes
colaboradores e discípulos. Von Weizsàcker, falecido de alguns psicólogos franceses, cujos trabalhos
há poucos anos, foi longo tempo chefe da clínica sofreram a coloração da filosofia sartriana:
interna da Universidade de Heidelberg. Mencionarei Merleau-Ponty, Jeanson, Mounier e (em grau
dois livros de sua autoria: Stuãien zur Pathogenese menor) Georges Gusdorf. O livro deste último
(Wiesbaden, 1935, pág. 88 — estudo claro e conciso, La ãécouverte de soi (Paris, 1948) é de
quase que declaração de princípios, escrito em estilo
significado incalculável para a nova psicologia
acessível ao leigo) e o trabalho, muito mais consi-
(fenomenológica) .

44
O trabalho de Gaston Bachelard merece significa: análise, descrição da existência da pessoa
menção especial. Não visivelmente influenciado sã e da pessoa doente, como existência que se realiza
pelas novas tendências da filosofia alemã e lá no mundo.
francesa, elaborou ele uma psicologia dos Minha lista está bem longe de ser completa. Especial-
elementos fogo, água, ar e terra, que só poderia mente os holandeses, que se têm mostrado tão ativos
no campo da fenomenologia, não foram bastante
ter sido escrita por um fenomenologista. Os seus mencionados por mim. Deixando de me referir cada
trabalhos me parecem ser de imediato valor para a vez às suas respectivas obras (o leitor poderá
psicopatologia. Entre essas publicações, indicarei as encontrá-las facilmente), citarei os nomes dos
seguintes: La psychanalyse du feu, (Paris, 1938, pág. psicólogos e dos psiquiatras holandeses que de-
220), L'eau et les rêves, (Paris, 1942, pág. 265), Uair sempenharam papéis importantes no
et les songes (Paris, 1943, pág. 306), La terre et les desenvolvimento da fenomenologia. Entre os
revertes de Ia volonté (Paris, 1948, pág. 407), La psicólogos encontramos, ao lado do já mencionado
terre et les rê-veries du repôs, (Paris, 1948, pág. Buytendijk, B. J. Kouwer, M. J. Langeveld.
337), e, finalmente o trabalho que sintetiza os seus D. J. van Lennep e J. Linschoten. Entre os
pontos de vista La poétique de Vespace (Paris, 1951, psiquiatras (dos quais já mencionei Riimke e Van der
pág. 214). Horst), figuram P. Th. Hugenholtz, A. Hutter, A. D.
Agora que com estes últimos autores me Janse de Jonge, E. Verbeek e E. L. K. Zeldenrust.
encontro no campo da psicologia fenomenológica, Faço questão de mencionar um estudo deste último,
não deixarei de citar mais dois autores, que que pertence de direito ao terreno coberto pelo
demonstram que a fenomenologia conduz a presente livro: E. L. K. Zeldenrust, Over het wezen
resultados excepcionais na psicologia: O. F. Bollnow, der hysterie (Utrecht, 1954, pág. 180) e que é a única
cujo livro sobre os estados de espírito apareceu em monografia fenomenológica, aliás bem escrita, sobre
1943: Das Wesen der Stimmungen (Frankfurt, 1943) a histeria.
e o psicólogo holandês F. J. J. Buytendijk que, pela O leitor que estiver interessado numa lista
sua liderança pessoal e pelos seus numerosos e mais completa de autores estrangeiros, acompanhada
excelentes trabalhos prestou serviços excepcionais à de bons comentários, poderá consultar o trabalho de
psicologia holandesa. Herbert Spiegelberg, The Phenomenólogical
O psicoterapeuta francês R. Desoille pode ser Movement, (Haia, 1960, dois volumes, num total de
considerado um dos promotores de uma psicoterapia 735 págs.). Muita importância deve ser atribuída à
fenomenológica muito peculiar. Entre os seus publicação dessa obra em inglês. Fornece ao leitor
trabalhos, é digno de nota o seguinte: Le rêve éveillé americano (o inglês tem demonstrado, até agora,
en psychothérapie, (Paris, 1945, pág. 338), e pouco interesse na fenomenologia) os meios para se
Psychanalyse et rêve éveillé dirige (Bar-le-Duc, manter informado, rapidamente e muito bem, sobre o
1947, pág. 93), estudos esses que (embora o autor que a Europa tem a apresentar nesse campo, agora
não o percebesse), apóiam-se num princípio que os Estados Unidos estão se interessando por
terapêutico de Binswanger, ou seja, que o devaneio esses assuntos. A fenomenologia norte-americana é,
não é somente resultado de um desejo insatisfeito, realmente, de outra natureza que a européia: menos
mas deve ser considerado também como “tentativa de filosófica e mais sócio-psicológica em suas
agir” e, portanto, como ato de autoterapia. O leitor aplicações. Ao leitor que estiver interessado na
poderá encontrar os pontos de vista de Binswanger situação da fenomenologia nos Estados Unidos
sobre o assunto (certamente influenciado pelas recomendo, em primeiro lugar, um trabalho que
investigações do seu conterrâneo A. Maeder) em parece ter poucas ligações com a fenomenologia;
Traum und Existem (Neue Schweizer Rundschau, trata-se de Mind, Self and Society (Chicago, 1934,
1930), artigo este reproduzido no livro de Bins- pág. 401), por G. H. Mead, estudo que revela, em
wanger: Ausgewühlte Vortrüge und Aufsãtze (T. I., muitos trechos, um modo de pensar fenomenológico.
Berna, 1960). O já mencionado Medard Boss, em seu Depois disso, o leitor poderá consultar alguns dos
livro nunca assaz louvado Der Traum und seine trabalhos de Karen Horney, sem relação direta com o
Auslegung (Berna, 1953, pág. 239), apresentou que se chama oficialmente fenomenologia, por exem-
compreensiva fenomenologia do sonho e das suas plo, New ways in Psychoanalysis (Londres, 1939,
interpretações. pág. 305), que servirá de introdução para a obra de
Um discípulo de Boss escreveu um dos um psiquiatra norte-americano muito notável: H. S.
primeiros tratados de psicoterapia fenomenológica; Sullivan, Conceptions o/ Modem Psychiatry (Nova
trata-se da Daseinsanaly-tische Psychoterapie Iorque, 1940). Para demonstrar a existência, nos
(Berna, 1963, pág. 142), de G. Condrau, em cujo Estados Unidos, de um interesse crescente na
título aparece (não pela primeira vez em meu sumá- psiquiatria e na psicoterapia fenomenológica (ou
rio) a palavra Daseinsanalyse. A palavra Dasein, no existencial), mencionarei dois periódicos: The
sentido muito significativo de estar ai, ou de estar Journal of Existential Psychiatry (primeiro ano de
com as coisas, foi tomada de Heidegger. A palavra publicação em 1960) e Review of Existential
Daseinsanalyse foi cunhada por Binswanger e

45
Psychology and Psychiatry (primeiro ano em 1961),
ambos editados por A. van Kaam; a estes, pode ser
acrescentada terceira publicação, que não concerne
diretamente à psicologia e à Psicopatologia
fenomenológicas como tais, mas que publica,
ocasionalmente, artigos referentes a esses assuntos:
trata-se da revista Philosophy and Phenomenological
Research (fundada em 1940), editada por Marvin
Farber. Finalmente, também nos Estados Unidos, foi
publicado um trabalho coletivo: The
Phenomenological Problem, editado por A. E.
Kuenzli (Nova Iorque, 1959, pág. 321).Poderia
deixar este sumário nesse pé, se não fosse o desejo de
afirmar, mais uma vez, que a psicologia e a
psicopatologia fenomenológicas se apoiam ambas
sobre um fundamento filosófico, muito bem
considerado e consciente. Citarei, portanto, mais dois
trabalhos em que tal fundamento está clara e
habilmente explicado: W. Luypen, Existentiele
fenomenolugie (Utrecht, 1959, pág. 376) e S.
Strasser: Fenomenologie en cmpinsche vienskunde
(Arnhem, 1982, pág. 327). finalmente, para terminar
meu sumário, mencionarei mais um trabalho, que
coloca a fenomenologia no quadro geral de cultura
histórica, a que pertence: O. F. Bollnow,
Existenzphilosophie (Stuttgart, 1949, pág. 125).

Eis o meu breve sumário da literatura relativa


a este assunto; embota cuidadosamente composto,
deve ser, com certeza incompleto, quanto mais não
seja pela possível omissão de alguns autores. Por
isso, desejo terminar estas linhas apresentando
minhas desculpas aos poucos esquecidos — e os
meus agradecimentos a todos os autores.

JUSTIFICAÇÃO
Em 1954, a pedido do falecido Professor Dr. H. J.
Pos, escrevi um pequeno trabalho sobre
Psicopatologia fenomenológica, destinado aos
leitores norte-americanos. O opúsculo foi publicado
em 1955, nas American Lcctures Senes, pelo editor
Thomas, de Illinois, sob o título de The
Phenomenological Approach to Psychiatry. Deste
livro apareceu uma tradução italiana em 1961,
editada por Bompiani, Milão, sob o titulo de
Fenomenologia e Psichiatria. Esgotadas as edições
em 1963, os direitos autorais voltaram para mim.
Depois de consultar o meu editor, resolvi publicar
este estudo em holandês. Reli o velho texto, emendei-
o e percebi que uma recompilação geral se tornara
necessária. Alguns trechos já não eram apropriados,
outras passagens requeriam o acréscimo de algumas
frases. Dai resultou um texto inteiramente novo, em
que se reconhece, porém, o conteúdo da antiga edição
norte-americana. A bibliografia também foi posta em
dia, na medida do possível.
Mais uma vez, sou grato ao editor pela cuidadosa e
elegante apresentação desta obra.

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